FACOM - nº 16 - 2º semestre de 2006 Investimento no cinema brasileiro na Retomada (1994-2003) por André Piero Gatti RESUMO 52 O presente texto tem como objetivo fazer um retrospecto do investimento de recursos incentivados na produção cinematográfica como um todo. Com isso, se pretende avaliar a real capacidade do atual sistema de apoio à realização de filmes na consolidação de uma indústria cinematográfica propriamente dita. PALAVRAS-CHAVE Lei do Audiovisual, Lei Rouanet, Leis de incentivo, Industrialização, Produção cinematográfica ABSTRACT The purpose of this work is to make an overview of the state sources, through the laws that support the Brazilian film production. We want to understand if such model is able to develop an industrialization of the cinema in the country. KEYWORDS Audiovisual’s Law, Rouanet Brazilian Law, Incentive Laws, Industrialization, Brazilian film production Historicamente, é clara e notória a relação que a indústria cinematográfica manteve com o Estado brasileiro. A historiografia clássica é repleta de trabalhos sobre o tema. No período que se inicia no ano de 1990 desenvolveu-se uma idéia de que o ciclo histórico de relações entre cinema e Estado se encontrava praticamente rompido e, o que era pior, de uma maneira que se apontava como definitiva. Na realidade, identificou-se o fato de que se tratava de um curto período de transição, entre 1990 e 1993, cujos efeitos foram devastadores. Neste meio tempo, houve a edição da lei n°8.405/92, a primeira Lei do Audiovisual, cujos vetos presidenciais a tornaram praticamente inócua no aspecto de financiamento a produção cinematográfica e audiovisual. A partir de 1993, com a ascensão presidencial de Itamar Franco, identifica-se um reatamento das relações entre o setor cinematográfico e o Estado. Este diálogo voltaria a colocar as negociações FACOM - nº 16 - 2º semestre de 2006 políticas da indústria cinematográfica em patamares não muito diferentes daqueles dos estágios de relações anteriores, notadamente durante o Regime Militar. Mais uma vez, procurou-se uma interlocução junto ao poder estabelecido no sentido de construir um novo projeto para a indústria de sons e imagens em movimento. Para melhor compreensão do ciclo, é necessário se tentar entender de que maneira a máquina pública apoiou à atividade. Isto se deve ao fato que somente a partir da presença do Estado no campo cinematográfico foi possível acontecer novamente a existência do filme local. Apenas com este interesse do poder instituído foi possível se tornar palpável o objeto de estudo da circulação e recepção da mercadoria audiovisual destinada à comercialização nas salas de exibição. No período estudado, identificou-se o interesse do poderes executivo e legislativo na atividade audiovisual. Isto pode ser notado principalmente pela edição da nova Lei do Audiovisual (lei nº 8.685/93) e, pelos valores investidos, através das leis de incentivo fiscal no seu conjunto, das dotações oriundas do próprio Ministério da Cultura (MinC) e de outros organismos federais, como o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico Social (BNDES), Banco do Brasil (BB), Caixa Econômica Federal (CEF), por exemplo. Outro fator que acenou este interesse de investimento governamental foi feito através de diferentes aportes de recursos. Sabe-se que o capital também fluiu de maneira indireta, ou seja, não baseado apenas nas leis de incentivo. Isto porque algumas empresas públicas foram capazes de irrigar o setor com recursos dos seus ricos departamentos de marketing. Nesta situação, o exemplo maior é o da Petrobrás que, através da sua subsidiária BR Distribuidora, passou a investir significativamente na atividade de produção, distribuição e exibição do audiovisual independente brasileiro, através de recursos incentivados e de verbas não incentivadas. Pode-se atestar que o investimento no setor aconteceu de maneira direta na atividade objetivada pelos agora investidores. Dessa maneira, foram dispensados os grandes gastos com a atividade meio no seio da máquina do governo. Além disso, evitou-se o que poderia ser considerado como um dirigismo cultural, em que as contrapartidas do beneficiado são mínimas. A situação da ausência de um órgão específico para o setor perdurou até a constituição da Agência Nacional do Cinema (Ancine), já que a secretaria responsável pelo setor audiovisual pode ser vista como um órgão “enxuto”, pois conta apenas com algumas dezenas de servidores. Pode-se afirmar que o momento da criação da legislação é aquele em que começam a se reconstituir novamente os tecidos entre a produção e a sociedade como um todo. Os mecanismos legais de proteção e de fomento existentes são a prova disto. Houve uma clara tentativa de se atualizar o escopo legislativo do setor com a legislação de outros países que resistiram à intervenção monopolista das empresas transnacionais controladoras da circulação internacional de produtos audiovisuais. Deve-se destacar o fato de que, no transcorrer do período histórico abordado por esta pesquisa (19932003), utilizou-se o material disponibilizado pelo MinC, principalmente, através do seu sítio eletrônico (www.minc.gov.br e www.cultura.gov.br). Neste foram encontradas algumas incongruências e dados divergentes, entre os números fornecidos pelas fontes oficiais da questão do audiovisual. A despeito deste fato, crê-se que é possível se traçar uma evolução da política de investimentos do projeto de construção industrial, baseado no mecanismo das leis federais de incentivo à cultura. Isto porque os dados, mesmo quando corrigidos, não apresentaram discrepâncias que fossem capazes de modificar a compreensão do valor montante das inversões de capital que foram realizadas na atividade. Como não se sabe a metodologia adotada, pode-se tributar a diferentes metodologias como motivos para as apontadas discrepâncias. Entre os materiais disponibilizados destacam-se as seguintes fontes: Economia da Cultura, (pesquisa encomendada à Fundação João Pinheiro), Relação de Filmes Nacionais Lançados no Período 1995 a 2000, Relatórios MinC 1995,1996,1997,1998,1999 e 2000, Relatório de Atividades da Secretaria do Audiovisual, Cinema, som e vídeo:1995-2002, Relatórios Ancine 2002 e 2003. Outros materiais como notícias veiculadas na imprensa, boletins, textos das categorias e das personalidades também foram utilizados. Um breve retrospecto da evolução dos gastos estatais pode demonstrar a intenção que o Estado brasileiro dedicou a cultura e ao audiovisual. De 1985 a 1990, é clara a tendência estável, isto é, durante o Governo Sarney, quando oscilou de R$ 208 milhões a R$ 197 milhões. Isto porque em 1990 e, mais ainda depois, em 1991, ou seja, no início do Governo Collor, houve uma queda drástica para R$ 131 milhões, seguida de outra redução rediviva, em 1992, para R$ 108 milhões. Com o Governo Itamar Franco, os gastos voltaram a subir um pouco: R$ 222 milhões em 1993, para depois alcançarem, em 1995, R$ 245 milhões. A tese defendida é o fato de que o Estado veio a aumentar os seus gastos com a cultura e, no caso do audiovisual, esta situação também pode ser entendida como correlata. A Perquisa Economia da Cultura 53 FACOM - nº 16 - 2º semestre de 2006 identificou que a partir de 1990, de uma maneira geral, os Estados brasileiros passaram a investir mais decididamente na área cultural. A citada pesquisa traz a seguinte reflexão sobre o investimento dos estados na cultura: 54 Verifica-se que os Estados da Federação brasileira apresentam comportamento de gastos crescentes até 1992, quando aplicam o maior volume de recursos, exatamente o oposto do ocorrido com o Governo Federal que, neste ano, apresenta o seu menor volume. A partir deste exercício, as aplicações dos estados entram em queda, até alcançar seu menor valor em 1995 (deve-se considerar que essa diminuição tem forte relação com a queda dos gastos do Estado de São Paulo que, no cômputo geral, representa um percentual bastante importante do conjunto dos gastos da esfera estadual), contrastando com a recuperação dos gastos do Governo Federal e dos Municípios, a partir de 1993. Apesar da queda ocorrida no final do período, os Estados apresentam, no entanto, uma taxa de crescimento médio anual, nos 11 anos da série (1985-1995), de 4,82%.1 Ainda que a pesquisa Economia da Cultura não tenha os números especificados do índice dos gastos realizados com a cultura do audiovisual, no que diz respeito aos investimentos dos Estados brasileiros na atividade, fica patente que estes instrumentos foram importantes no processo de composição dos recursos destinados à produção como um todo. Esta situação pode ser observada pelo crescimento da produção do curta-metragem e de outros produtos audiovisuais ditos culturais em Estados sem grande tradição na confecção de obras do gênero, como Ceará, Pernambuco etc. O texto do MinC afirma que: Para o conjunto dos 26 municípios O primeiro período (1990-1991) das capitais de estados brasileiros, a é caracterizado pela implosão do despesa total realizada na execução aparelho cultural estatal então do Programa 48, isto é, de Cultura, anteriormente existente.3 O setor é estimada, em reais de dezembro cinematográfico acabou sendo um de 1996, para 1985 em 76,5 dos mais atingidos, pois foi neste milhões de reais, registrando um momento que deixaram de existir crescimento médio anual de 8,06% organismos como a Fundação no período 1985-1995, alcançando, do Cinema Brasileiro (FCB) e o em 1995, 179,5 milhões de reais. Conselho Nacional de Cinema Apenas oito municípios de capitais (Concine), além de empresas estatais dos estados brasileiros - São Paulo, como a Empresa Brasileira de Rio de Janeiro, Salvador, Belo Filmes (Embrafilme).4 O segundo Horizonte, Fortaleza, Curitiba, período (1992 - 2001) coincide com Recife e Porto Alegre - são a edição das leis federais de incentivo responsáveis por 88,83% do gastos à cultura, a Lei Rouanet e a Lei do com Cultura do conjunto dos Audiovisual, cujos reflexos no campo municípios de capital.2 cinematográfico começaram a ser percebidos em 1994. Há um terceiro (2001 – 2003) período legislativo coincidente com a edição da MP nº 2.228/01, que criou a Ancine, o órgão regulador do audiovisual, este ainda de curta vida. Pode-se dizer que este quadro de retomada de constituição de um processo legislativo para indústria audiovisual originou-se por volta de 1991, mobilização realizada por várias categorias e personalidades ligadas ao setor cinematográfico, que claramente buscavam uma rearticulação política junto ao Estado brasileiro. A finalidade era a de recuperar o terreno perdido, isto só aconteceu de fato em 1993. Somente com o presidente Itamar Franco no poder e Fernando Henrique Cardoso, então Ministro da Fazenda, alcança-se a edição da Lei do Audiovisual,5 ainda que de maneira provisória. Os instrumentos legislativos Lei do Audiovisual e Rouanet6 se transformaram Legislação cinematográfica e nos principais mecanismos de incentivos fiscais alavancamento da atividade – eles são os responsáveis pelo chamado Para uma melhor compreensão, ciclo que ficou conhecido como da entende-se que o período legislativo ‘Retomada do cinema brasileiro.7 cinematográfico deste trabalho pode Na Tabela 1 se encontram ser dividido em três sub-períodos detalhados os aportes financeiros distintos e complementares entre si. que alimentaram a produção. A constatação do aumento dos investimentos na cultura trata-se de um dado curioso, pois contrasta com os objetivos da política macroeconômica do período, que advogava uma intervenção menor do Estado nas atividades econômicas em geral. Esta situação se configurou pelo fato de que o setor cultural e o audiovisual fizeram um exercício de pressão que acabou rendendo alguns frutos para ambos. No caso específico dos bens de sons e imagens, pode-se afirmar que o escopo legal alcançado foi mais uma iniciativa de setores organizados da sociedade civil. Portanto, o Estado absorveu a política do setor, pois aparentemente não se tinha um projeto político estatal com a finalidade de se incentivar a produção e circulação de filmes, vídeos etc. FACOM - nº 16 - 2º semestre de 2006 Tabela 1: Evolução das Inversões Públicas na Produção do Audiovisual (1995-2002) Investimentos 1995 1996 1997 1998 1999 2000 2001 2002 (1) Total Incentivo Fiscal 28.347.902 75.550.880 113.615.462 73.181.958 59.400.244 55.831.444 100.694.421 43.055.853 549.677.984 16.260.928 51.233.048 75.607.335 39.093.362 35.931.645 28.312.509 41.487.618 7.926.592 295.853.037 4.030.992 6.819.036 3.848.491 3.999.707 3.865.016 5.92.993 15.225.127 5.979.529 48.860.891 8.055.982 17.498.797 34.159.636 30.088.800 19.603.582 22.425.943 43.981.496 29.149.733 204.964.056 Conversão Dívida Externa (2) - - - - 952.653 5.505.668 540.217 3.191.673 10.190.212 Programa Mais Cinema - - - - 7.041.667 2.125.000 - - 9.166.667 11.703.668 13.929.500 15.537.710 15.038.980 77.029.401 Artigo 1º Artigo 3º Mecenato Orçamento da União (3) 1.600.000 3.835.840 9.822.212 5.541.491 Fonte: Relatório de atividades da Secretaria do Audiovisual: Cinema, som e vídeo (1995-2002), p.4., Relatório Ancine 2003, p.32. (1) Atualizado até 11/02/2002 (2) Valor aprovado pelo Congresso Nacional Observando-se apenas o investimento realizado pela renúncia fiscal, verifica-se a sua capacidade de otimização da produção audiovisual (ver Tabela 2). A cifra de US$421.023.728 mostra que houve um investimento de porte considerável na área do audiovisual, pois a média de investimento por ano seria superior a U$46 milhões. Tal número contrasta com o investimento realizado no setor no período legislativo imediatamente anterior (1980-1989), quando o investimento do Estado no setor era da ordem de US$10 a US$13 milhões por ano, em média. Portanto, o valor médio do investimento anual da União, agregado aos investimentos realizados pelos estados e municípios, seja por dotação direta, seja através de leis de incentivo, redundam numa cifra que pode ser superior a U$ 65 milhões por ano. A situação paradoxal é que nunca houve tanto investimento no setor, cujo desempenho de mercado ficou aquém das médias históricas. O valor aproximado de U$605 milhões se trata de um custo direto que o Brasil teve com a indústria do audiovisual no período da Retomada do cinema nacional. Portanto, não se pode dizer que não houve investimentos do Estado na área, e a conclusão a que se pode chegar é que a solução para os problemas da indústria audiovisual não depende apenas da injeção de recursos estatais. No que tange à Lei do Audiovisual, os esquemas fechados de captação com as suas portarias, anexos e emendas, pode-se afirmar que a mesma se encontra em ponto de saturação. Identificou-se uma Tabela 2: Recursos Incentivados no Audiovisual (1994-2002)* Ano R$ US$ 1994 23.626.373 27.156.750 ** 1995 28.347.902 31.151.540 1996 75.550.880 73.912.627 1997 113.615.462 105.195.890 1998 73.181.958 62.586.820 1999 59.400.244 32.101.480 2000 55.831.444 29.690.661 2001 100.694.241 45.770.010 2002 3.055.853 13.454.950 *** Total 573.294.357 421.023.728 55 * Leis Rouanet e Audiovisual ** Apenas Lei do Audiovisual *** Atualizado até 11/10/2002. Fonte: Relatório de atividades da Secretaria do Audiovisual: Cinema, som e vídeo (1995-2002), Relatório MinC, 2001. Elaboração: Autor. Obs: Valores em dólares são aproximações. sensível queda na captação de recursos como atestam os próprios relatórios do MinC.8 A respeito dos recursos oriundos das leis de incentivo, pode-se afirmar que o seu principal mérito foi o fato de que elas foram as responsáveis pela reativação da produção de filmes em geral. Tanto que entre 1994 e 1999 foram produzidos cerca de 116 longas-metragens, FACOM - nº 16 - 2º semestre de 2006 56 80 documentários e um grande número de curtas-metragens no país. Neste período foram investidos cerca de US$332 milhões na atividade, envolvendo produção e comercialização, este é o momento do pico do incentivo direto. Um número que não pode ser considerado desprezível. Tomando-se como exemplo o período de 1995 a 2002, de acordo com o relatório SDAv/MinC, foram apoiados 1.199 filmes, sendo 190 longas de ficção, 669 curtasmetragens e 340 documentários não especificados quanto à duração. No primeiro momento percebeu-se algumas interessantes alterações no sistema de produção apoiado pelos incentivos fiscais. Isto devido aos mecanismos de captação e de recompra de cotas de investimento, tais situações fizeram com que os custos iniciais de uma produção média estivessem bem acima dos patamares históricos. O governo brasileiro enxergava que o sistema de financiamento da cultura necessitava de um realinhamento, que foi feito primeiro junto à Lei Rouanet, reformada em maio de 1995. No horizonte também se encontravam aspirações no sentido de provocar modificações importantes para a Lei do Audiovisual. Naquele momento, o ministro da cultura Francisco Weffort afirmava que: O cinema e as atividades audiovisuais vêm ocupando as atenções do Presidente Fernando Henrique desde há algum tempo. A decisão que ele anuncia hoje em Brasília, criando novos mecanismos de fomento ao setor, tem uma pequena história que começou em Petropólis, no último verão, quando o Presidente se reuniu com Luiz Carlos Barreto, Arnaldo Jabor, Cacá Diegues, Miguel Farias, Marcos Altberg, Marisa Leão, Gláucia Camargo e com representantes do Ministério da Cultura. Tinha início uma série de conversas destes com cineastas, no Rio e em São Paulo, e um amplo esforço para identificar soluções.9 O resultado prático destas propostas foram modificações introduzidas na Lei do Audiovisual, isto sem lhe alterar contudo a estrutura. O grupo de interlocutores acima convenceu o agora presidente Fernando Henrique Cardoso a atender às suas reivindicações, entre estas medidas constava a ampliação de dedução de 1% para 3% do imposto devido, no caso de pessoas jurídicas que realizem investimentos na área. Além disso, dobrou-se o limite, por projeto, de 1.700.000 para 3.400.000 UFIR’s. Também se diminuiu a contrapartida do produtor, que antes era da ordem 40% e que foi reduzida para 20%. Aos investidores foi permitida a dedução mensal e não apenas ao fim do ano como era originalmente previsto na Lei do Audiovisual. Entende-se que neste momento a política do MinC centrou o seu foco no setor audiovisual, de acordo com Francisco Weffort: 15% da demanda. Em resumo, a lei do cinema e do audiovisual funciona, mesmo nos limites atuais. Mas precisa de ajustes que a façam funcionar melhor[...]10 A partir do exposto pelo então ministro Francisco Weffort, e ao se observar a Tabela Recursos Incentivados no Audiovisual (19942002) , não se poderá afirmar que o Estado brasileiro não investiu na atividade audiovisual no período do governo de Fernando Henrique Cardoso, principalmente. A busca de um projeto de caráter industrial parece clara e acordada com o setor, que desta maneira garantia um mínimo de filmes para que a cinematográfica nacional pudesse voltar a disputar o mercado de exibição. Outras questões candentes ficaram de fora desta discussão. Destaca-se a cota de tela regulamentada por MP anualmente e sem um sistema de fiscalização que garantisse o mínimo proposto na lei. Neste período a cota de tela variou entre 28 e 63 dias por ano, e com uma regulamentação desvantajosa para o cinema Com estas medidas, o Presidente brasileiro notadamente no aspecto Fernando Henrique pretende criar que se referia à regulação da exibição uma avenida que ligue os produtores de filmes brasileiros nos complexos de cinema e audiovisual às empresas de exibição múltipla, cuja cota e ao mercado. Vejamos alguns máxima era acrescentada de apenas números. Desde janeiro de 1995 uma semana por sala. O exemplo é até julho deste ano, 33 projetos de simples, tendo como base a cota de 4 filmes aprovados no Ministério da semanas (28 dias), em um complexo Cultura concluíram a captação de que tivesse 6 salas, estas exibiriam recursos no mercado. Essa captação no total apenas 10 semanas de totaliza 42 milhões de reais, muito filmes nacionais. Diferentemente do mais do que a Embrafilme podia esquema tradicional que obrigaria dispor para o cinema nos seus tais salas do citado complexo a exibir melhores anos. Mas há que anotar 24 semanas de obras nacionais. também que temos em carteira No período 1995-1998, um dos no Ministério, no mesmo período, pontos que se deve destacar na relação 222 projetos aprovados. Significa entre o mercado cinematográfico dizer que o êxito atual, embora e o Estado brasileiro foi a extrema considerável quando comparado liberalidade do mesmo em relação com o passado, não vai além de ao campo. Pois, a legislação vigente FACOM - nº 16 - 2º semestre de 2006 era ainda basicamente restrita ao financiamento dos filmes, via leis de incentivo fiscal. O mercado dominado pelo filme importado encontrava muitas facilidades de penetração no território nacional. De acordo com o ministro Francisco Weffort: As regras atuais não são de mercado aberto, são de descampado total [...] Serão criadas políticas públicas para as partes em que o cinema pode se tornar indústria [...] O governo quer tratar isso como um negócio [...] Não temos que pagar royalties por filmes que não têm público no Brasil. Estamos propondo um mecanismo que vai onerar a escolha, torná-la pensada. Ninguém quer inviabilizar nada. Por isso vamos discutir com o setor [...]11 Esta discussão foi gerada pelo fato de que o MinC fez um levantamento da até então 395 salas informatizadas existentes e descobriu que dos 288 filmes por elas exibidos apenas 18 eram nacionais. Pior, em 1997, mais de 100 filmes importados alcançaram menos de 5.000 espectadores e outros 80 menos de 10 mil espectadores. A expressão corrente na imprensa era que o MinC estaria incentivando o chamado ‘lixo cultural’. Já que naquela época se pagava apenas a taxa de R$1.025 por filme de longa metragem. A idéia era de fixar categorias de filmes para taxação de importação, fato que só acontecerá com a edição da MP n° 2.288/01 que criou entre outras coisas a Contribuição para o Desenvolvimento da Indústria Cinematográfica (Condecine). Logicamente, exibidores e distribuidores de filmes importados foram contra tal medida, esta por sua vez, em um primeiro momento, também encontrou eco junto ao setor produtivo do cinema brasileiro que depois viria a mudar de posição. Os distribuidores tinham uma visão diferente desta situação, de acordo com o gerente da Columbia, Saturnino Braga: Deixamos de lançar no cinema até 20 filmes porque eles não se pagam. Alguns dos que adquirimos - como Nil by mouth (de Gary Oldman) – já são lançados diretos em vídeo.12 Outro executivo importante do setor de distribuição, Jorge Peregrino,13 afirmou que: Vamos acabar não podendo trazer mais filmes alternativos. Mais e melhores blues (de Spike Lee) e O apóstolo (de Robert Duvall) foram filmes que tiveram menos de 10 mil espectadores no país, mas que trouxemos porque eram obras de qualidade que contribuem para a diversidade do mercado.14 Ainda de acordo com o executivo da Columbia: Não se pode pegar uma lista de títulos e dizer que é lixo cultural sem nem sequer assistir ao filme. Eu repudio a figura do lixo cultural [...] Apenas 54 filmes importados e lançados em 1997 ficaram abaixo dos 10 mil espectadores.15 A partir dos números de Saturnino Braga, o MinC foi obrigado a rever a sua posição e recuar. Na época, o secretário do Audiovisual, Moacir de Oliveira, afirmava que se tentava achar uma solução para o setor como um todo. Esta situação gerou um encontro entre representantes do setor junto ao MinC, numa tentativa de equacionar tal situação. Além do staff do ministério, participaram deste encontro: Anibal Massaini, Leonardo Monteiro de Barros e Mariza Leão, representando os produtores, Iôna Macedo e, representando os exibidores se encontravam Adalberto Macedo, Adhemar de Olivieria e Roberto Darze. O fato é que o projeto de Weffort seria amplamente derrotado e a sua posição seria vista como uma formulação técnica errada. Outra questão candente era que o produto audiovisual quando exibido no vídeo, na TV paga e aberta deveria pagar taxas relativas a inserção em cada um destes segmentos do mercado. O próprio Secretário reconhecia que este tipo de sonegação existia. O resultado desta polêmica é que foi aberto um canal de interlocução institucional , isto aconteceu com a instalação da Comissão de Cinema do Senado Federal. Ainda em 1999, quando o presidente do Congresso era o senador Antônio Carlos Magalhães. Este convidou o produtor Luís Carlos Barreto para depor na Comissão, depois dele várias outras personalidades estiveram presentes, entre elas: Assunção Hernandez, Leopoldo Nunes etc. Por sua vez, as leis de incentivo também foram muito questionadas e acabaram se tornando o centro de atenções da sociedade brasileira. Isto aconteceu quando foi publicada a matéria: Caros, ruins e você que paga, de autoria do jornalista Celso Masson16. De acordo com o texto do citado: Poucos países se esforçaram tanto quanto o Brasil para ter uma cinematografia nacional. Nos últimos cinco anos o governo federal abriu mão de 280 milhões de reais para a produção de filmes, por meio de duas leis de incentivo [...] Com esse dinheiro, seria possível dobrar o número de bibliotecas públicas[...] Dessa comparação, surge a seguinte pergunta: por que priorizar o cinema? Das 71 produções beneficiadas pela lei, entre 1995 e 1998, apenas sete se pagaram. Os cineastas argumentam que os prêmios 57 FACOM - nº 16 - 2º semestre de 2006 Tabela 3: Maiores empresas captadoras 58 Produtora Captação (R$) Nº de filmes Total-Público 1 Diler & Associados 15.285.670,00 5 10.058.596 2 HB Filmes 15.504.342,00 2 4.680.016 3 O2 Filmes 8.787.558,00 2 3.208.708 4 Rio Vermelho Filmes 12.251.477,99 2 2.613.220 5 Video Filmes 14.218.409,08 6 2.163.936 6 Filmes do Equador 21.242.267,00 5 1.081.303 7 Conspiração Filmes 9.042.748,89 3 1.013.593 8 Sky Light Cinema 16.777.557,22 4 901.221 9 AF Cinema e Video 12.282.041,00 4 819.019 10 Morena Filmes 6.128.963,36 2 665.567 11 Ravina 5.731.286,44 5 346.338 12 Filmes de Brasília 4.017.781,43 1 230.972 13 Cinematográfica Superfilmes 5.451.605,40 5 203.994 14 Lagoa Cultural e Esportiva 4.935.000,00 1 177.401 15 Mapa Filmes do Brasil 3.931.438,98 1 138.032 16 Quimera 3.931.998,61 2 82.016 17 Bigdeni Filmes do Brasil 4.182.530,00 1 62.604 18 Meios de Produção e Comunicação 3.805.463,12 1 43.252 19 Raiz Produções Cinematográficas 3.860.639,40 3 16.272 3.969.633,79 1 2.302 175.338.411,71 56 28.508.362 20 Nova Era Produções de Arte Total obtidos no exterior como Central do Brasil e O quatrilho, indicado para o Oscar, atestam a vitalidade do setor no Brasil. Infelizmente, trabalho como esses, que são ótimos e merecem todo o prestígio e bilheteria que conquistaram são exceções. Pertencem ao grupo dos que se pagaram. A regra são os outros 64, entre os quais se incluem produções mambembes como O Guarany, de Norma Benguell, estapafúrdias como Tieta do Agreste, de Cacá Diegues, ou canhestras como For all - o trampolim da vitória, de Luiz Carlos Lacerda, orçado em 5,2 milhões e visto por apenas 61.000 pessoas.17 Neste momento, o fator retorno de público e de receitas se revelou como um dos pontos mais frágeis da Lei do Audiovisual e da política cinematográfica desenvolvida pelo Estado, através do seu braço executivo par o setor Minc-SDAv. O fato é que neste momento o custo médio de produção de um filme no Brasil era de US$ 1,5 milhão, enquanto países como o México, Argentina e Espanha apresentavam índices inferiores a este valor. A realidade cambial viria a mudar esta situação no caso do filme aqui produzido. brasileiros cada vez se pagam menos nas bilheterias das salas de exibição. Dividindo-se o número do valor da captação pelo número de espectadores, verifica-se que os valores arrecadados nas salas de exibição não cobrem os custos de produção e lançamento da média dos filmes. Percebe-se que grande a maioria das empresas captou mais de R$ 4,00 para gerar apenas 1 espectador. Tendo em vista que o preço médio dos ingressos do O custo da produção período abordado é maior do que a cinematográfica brasileira cifra de R$ 4,00, os filmes brasileiros não são exatamente lucrativos, O sistema de incentivo fiscal condição sine qua non num regime garantiu um alentado desenvolvimento econômico baseado no lucro. para a o ramo de produção de filmes Esta situação obriga que o sistema de longa-metragem. Detendo-se sobre de incentivo seja necessariamente a Tabela 3 Maiores empresas captadoras, revisto. Isto na medida em que ele não destaca-se o fato de que os filmes tem gerado uma política industrial FACOM - nº 16 - 2º semestre de 2006 para o setor propriamente dito. A configuração desta situação veio a mudar na medida em que as empresas majors, através do art.3º e a sua reorganização através do art. 39º da MP 2.228/01, combinadas com a atuação da Globo Filmes passaram a se inserir de maneira mais agressiva no mercado de exibição de salas comerciais brasileiras. Portanto, trata-se de uma situação que ainda não se encontra exatamente consolidada. Para se alcançar um estágio de auto-sustenção da indústria faz se necessário aumentar a participação do cinema brasileiro nos mercados auxiliares e mercado nacional e externo. Entretanto, ainda não se dispõe de uma infra-estrutura ágil e moderna para dinamizar a atividade, que em tese caberia à Ancine, MinC, MDIC e outros órgãos governamentais. Além deste fator, a regulação do mercado através de uma política maior como aquela proposta embutida no projeto de criação da Ancinav ajudaria sobremaneira ao desenvolvimento da atividade. Esta que seria complementada com a regulamentação da regionalização da produção da televisão brasileira. A conjugação de fatores, como leis de incentivo, Ancinav e regionalização, promoveria um certamente um novo ciclo industrial para o audiovisual. NOTAS 1 Economia da Cultura, p.3. 2 Idem, p. 7. 8 A União também viria a investir diretamente na atividade de produção através do BNDES, além do fato de que muitas empresas estatais investiram nas leis de incentivo. 9 10 Weffort, F., Cinema arte e indústria. www.minc.gov.br/1995. Weffort, F. Op. cit. www.minc.gov.br/1995. Decia, P. “Weffort prepara intervenção no mercado”. Folha de S. Paulo, p. 4-3. 11 12 Decia, P. Op. cit., p. 4 – 4. De acordo com Quem é quem no cinema, Jorge Peregrino; vicepresidente da UIP da América Latina, desde 1998, e presidente do Sindicato de Distribuidores do Rio de Janeiro, o maior banco de dados sobre o mercado de cinema no Brasil. Começou em 1974 em funções burocráticas do governo federal, no antigo Instituto Nacional de Cinema (INC), no Concine e na Embrafilme, onde foi superintendente de controle da indústria, encarregado da fiscalização e cumprimento da obrigatoriedade e da instalação do sistema de ingressos e do banco de dados da empresa [...] Em 2000 a UIP iniciou a operação de co-distribuição de filmes brasileiros com títulos como Villa-Lobos, uma vida de paixão [...], p.103. 13 Decia, P., “Mercado se divide sobre taxar filmes estrangeiros”, Folha de S. Paulo, p. 4–4. 14 Decia, P., “Mercado vê erro em taxa do “lixo cultural”, Folha de S. Paulo, p. 8 –1. 15 Esta matéria foi escrita quando pipocou na imprensa o escândalo do filme O guarany, cuja prestação de contas teria apresentando uma “nota fria” de cerca de 800 mil reais, e Chatô, de Guilherme Fontes, que apesar de ter captado expressivos valores se encontra ainda inconcluso. 16 17 Masson, C., “Caros, ruins e você paga”, Veja, p.114. Esta situação foi consubstanciada através da medida provisória n.º 151/90. O ex-cineasta e então secretário de Cultura, Ipojuca Pontes, também se incumbiu de reduzir a obrigatoriedade de exibição de filmes em 50%, através de ato de desregulamentação da indústria cinematográfica. 3 Após a publicação desta MP, a Embrafilme passará pelo seguinte trajeto legal: em 12 de abril de 1990, com a edição da lei n.º 8.029 ficava autorizada a dissolução ou privatização da empresa, e logo depois, em 27 de abril, é a vez do decreto n.º 99.226. Ainda um último ato legislativo afeta a Embrafilme: trata-se do Decreto n.º 575, de 23 de junho de 1993, que dispõe sobre a transferência de bens e haveres e o contencioso judicial da distribuidora, concluindo a liquidação da mesma. 4 5 A Lei nº 6.865, de 20 de julho de 1993, trata da dedução do imposto de renda mediante aquisição de quotas representativas de direitos de comercialização de obras audiovisuais de produtoras independentes via do mercado de capitais e o Art. 3º trata da dedução de imposto de renda mediante aplicação em co-produção. Sobre a Lei do Audiovisual consultar o livro de Zaveruscha, V., Lei do Audiovisual passo a passo. 6 A lei nº 8.313 trata de incentivos fiscais através do Fundo Nacional de Cultura (FNC). O termo não tem um uso que pode ser considerado como confortável, entretanto o mesmo será utilizado no sentido de que o mesmo caracteriza a produção do período (1993-2003). 7 ANDRÉ PIERO GATTI Prof. de História do Cinema Brasileiro da FACOM-FAAP. Doutor em Cinema Brasileiro ECA-USP e pesquisador cinematográfico. 59