FACULDADES INTEGRADAS CURITIBA - FIC
MESTRADO EM DIREITO EMPRESARIAL E CIDADANIA
FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE:
CONFLITO DE INTERESSES E ABUSO DO DIREITO DE VOTO
NAS SOCIEDADES ANÔNIMAS ABERTAS
CURITIBA
2007
FLÁVIA BUB DE SOUZA
FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE:
CONFLITO DE INTERESSES E ABUSO DO DIREITO DE VOTO
NAS SOCIEDADES ANÔNIMAS ABERTAS
Dissertação apresentada como requisito parcial
para a obtenção do grau de Mestre em Direito
Empresarial e Cidadania do Programa de
Mestrado em Direito das Faculdades Integradas
Curitiba.
Orientador: Prof. Dr. Carlyle Popp
CURITIBA
2007
TERMO DE APROVAÇÃO
FLÁVIA BUB DE SOUZA
FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE:
CONFLITO DE INTERESSES E ABUSO DO DIREITO DE VOTO
NAS SOCIEDADES ANÔNI MAS ABERTAS
Dissertação apresentada como requisito parcial para a obtenção do grau de Mestre em
Direito Empresarial e Cidadania do Programa de Mestrado em Direito das Faculdades
Integradas Curitiba.
__________________________
Prof. Dr. Carlyle Popp
__________________________
Prof. Dr. Paulo Nalin
__________________________
Prof. Dr. Fábio Tokars
Curitiba,
de fevereiro de 2007.
SUMÁRIO
RESUMO
vii
ABSTRACT
Vii
INTRODUÇÃO
1
PARTE I – O Direito de Propriedade e a Função Social da Pr opriedade
7
Notas Introdutórias
7
Capítulo 1 – O direito de propriedade e a função social: fundamento jurídico
7
e breve relato histórico
Seção 1 – Noções de teorias sobre seu fundamento jurídico
7
Seção 2 – Breve relato histórico
10
Capítulo 2 – O direito de propriedade e a função social da propriedade
21
Seção 1 – Conteúdo do direito de propriedade sob a ótica constitucional
21
Seção 2 – O princípio constitucional da função social da propriedade
26
Seção 3 – Da efetividade dos princípios constituc ionais
34
Capítulo 3 – A propriedade sob a ótica do direito civil
45
Seção 1 – Breve notícia sobre as principais características do direito de
45
propriedade sob a ótica do direito civil
Seção 2 – Direitos reais e pessoais: a natureza da titularidade da s ações
49
para o Direito Civil
Seção 3 – Direitos absolutos e relativos: a natureza da titularidade das ações
52
para o direito civil
Capítulo 4 – Aplicabilidade da função social às deliberações sociais: a
57
propriedade (ou titularidade) de ações
Notas introdutórias
57
Seção 1 – A titularidade de ações: relação de propriedade
58
Conclusões parciais
63
PARTE II – INTERESSE SOCIAL
67
Notas introdutórias
67
Capítulo 1 – O interesse da companhia
67
Seção 1 – Noções preliminares
67
Seção 2 – O interesse social
70
Capítulo 2 – Noções acerca das principais teorias institucionalistas a respeito
71
do interesse social
Seção 1 - A teoria da empresa em si
72
Seção 2 - A teoria do direito da empresa acionária
76
Seção 3 - A teoria da pessoa em si
76
Seção 4 - A teoria da instituição
78
Seção 5 - As concepções norte-americanas
81
Capítulo 3 – Noções acerca das principais teorias contratualistas a respeito
82
do interesse social
Seção 1 – O interesse comum dos sócios
83
Seção 2 - O interesse comum como o “interesse dos sócios atuais e futuros
84
à eficiência da empresa social”
Seção 3 - O interesse comum como o “interesse dos sócios atuais à
85
eficiência da empresa social ”
Seção 4 - O interesse comum como o “interesse dos sócios à eficiência da
85
empresa e à distribuição de lucros e dividendos ”
Seção 5 - O interesse comum como “conceito relativo ”
86
Seção 6 - O interesse comum como “qualquer relação de solidariedade entre
86
interesses individuais”
Seção 7 - O papel do interesse social nas deli berações de assembléias
87
Seção 8 - O controle jurisdicional das deliberações assembleares
88
Capítulo 4 – Outras teorias
89
Seção 1 – A empresa e o interesse social na análise econômica do Direito
89
Seção 2 – A teoria do contrato organização
92
Capítulo 5 – A atual concepção de interesse social e o exercício do direito
94
de voto nas sociedades anônimas abertas
Seção 1 – Considerações iniciais
94
Seção 2 – A concepção de interesse social e a Lei 6.404/76
97
Seção 3 – A função social no Código C ivil de 2002
112
Conclusão Parcial
125
PARTE III - A TUTELA DO INTERESSE SOCIAL NAS DELIBERAÇÕES
130
Notas introdutórias
130
Capítulo 1 – Abuso do direito de voto
132
Seção 1 – O abuso do direito de voto
132
Seção 2 – Conseqüências do abuso do dir eito de voto
137
Capítulo 2 – A proibição do exercício do voto e o conflito de interesses
142
Seção 1 – A proibição do exercício do voto
142
Seção 2 – O conflito de interesses
151
Seção 3 – As conseqüências do divieto di voto e do voto em conflito de
160
interesses
Capítulo 3 – A posição do controlador e o acordo de acionistas
164
Seção 1 – A posição do controlador
164
Seção 2 – A responsabilidade da sociedade controladora
176
Seção 3 – O acordo de acionistas
178
Conclusão parcial
184
CONCLUSÃO
189
BIBLIOGRAFIA
196
RESUMO
A titularidade de ações de sociedades anônimas abertas constitui um direito de
propriedade e, como tal, é conformada pelo prin cípio da função social da propriedade.
Assim, o direito de voto – expressão da titularidade de ações – deve ser
exercido em observância a esta função social.
A Lei das Sociedades Anônimas prevê que o exercício o direito de voto deve
ser exercido em observância ao interesse social, veda o exercício abusivo do direito de
voto e estabelece que o co ntrolador deve usar seu poder (de controle) para que a
empresa cumpra sua função social. O exercício do direito de voto, para ser legítimo,
deve, portanto, observar o cumprimento desta função social.
ABSTRACT
The stock ownership (from opened stock compa nies) is a property right, and, as
that, must observe the property’s social function principle . Thus, the voting rights –
expression of the stock property – must be exerted in observance to this social
function.
The Brazilian Stock Companies Law foresees that the voting rights must be
exercised on the social interest, stands a prohibition for voting abuses and establishes
that the company must fulfill its social function. The voting rights, to be legitimate, must
observe
the
accomplishment
of
this
social
f unction.
INTRODUÇÃO
A vida é movida por interesses que em diversas ocasiões entram em conflito,
muito embora todos os interesses envolvidos, se isoladamente considerados, possam
ser tidos como legítimos ante a sua tutela abstrata. Nestas situações, um ou mais dos
interesses, imersos no contexto a que se referem, afiguram -se ilegítimos em detrimento
de outros que, na ocasião, devem se sobrepor a eles.
Destes conflitos, importam ao Direito aqueles em que os interesses envolvidos
são relevantes e encontram -se na esfera de diversos sujeitos (envolvem relações
intersubjetivas). Assim, não têm importância ao direito as relações que permanecem no
plano meramente psicológico dos indivíduos, que se resolvem no foro íntimo de cada
um.
No presente estudo, que tem c unho estritamente jurídico, será objeto de análise
o conflito de interesses, vislumbrado quando de deliberações sociais (exercício do
direito de voto) nas sociedades anônimas abertas, e o abuso do direito de voto nestas
empresas.
Nesse sentido, de se obser var que o conflito de interesses nas sociedades,
apesar de há muito explorado pela doutrina estrangeira e de constar expressamente na
Lei das Sociedades Anônimas (Lei 6.404/76) desde 1976, foi pouco estudado pela
doutrina nacional e pouco aplicado pelos tr ibunais pátrios.
Sua interpretação com olhos voltados à função social era, senão inexistente,
inexpressiva no Brasil até o advento do Código Civil de 2002, atualmente vigente, que
trouxe à discussão, de forma contundente, as questões relativas à função so cial –
princípio constitucional - como limitação (ou conformação) ao direito privado 1.
Vale registrar que, em que pese a indiscutível relevância do atual Código Civil
para a atual crescente reflexão doutrinaria sobre a matéria, o presente estudo tem
como objetivo abordar os temas, conflito de interesses e abuso no exercício do direito
1
A este respeito, Henrique Ferraz de Mello ( Função Social da Propriedade e sua Repercussão no
Registro de Imóveis, p.308, nota 13) esclarece: “Ganha relevo, hoje, a função soci al da propriedade, com
a entrada em vigor do novo Código Civil, a tal ponto que o parágrafo único do art. 2.035 do novel Diploma
chegou mesmo a disciplinar que ‘nenhuma convenção prevalecerá se contrariar preceitos de ordem
pública, tais como os estabeleci dos por este Código para assegurar a função social da propriedade e dos
contratos’.”.
2
do voto, à luz da disciplina da Lei das Sociedades Anônimas e do princípio
constitucional da função social.
A opção de análise justifica -se. A sociedade anônima é a forma so cietária
usualmente adotada por grandes corporações e, mais recentemente, face sua estrutura
peculiar, por empresas de menor porte.
As grandes corporações têm substancial importância para o cenário sócio econômico, em vista, por exemplo, do papel que des empenham como empregadoras e
produtoras de bens e/ou serviços, e em virtude da proliferação de ações no mercado,
no caso das sociedades anônimas abertas. Estas questões ganham papel de destaque
nestas empresas, enquanto integrantes da ordem econômica, par a a comunidade e
para a proteção dos direitos individuais dos acionistas, revelando -se, assim, a
importância do cumprimento de sua função social, tornando ainda mais relevante a
disciplina dos conflitos de interesses e do abuso do direito de voto.
No que tange ao aspecto constitucional abordado, observa -se que, em que
pese a Constituição Federal atual estivesse vigente desde 1988, as disposições legais
infraconstitucionais de “direito privado” vinham sendo interpretadas, usualmente, de
forma eminentemente capitalista – e até mesmo dissonante de preceitos constitucionais
- quando, na verdade, a Constituição é o centro do sistema e deve conformar a
interpretação das demais normas (inclusive as por ela recepcionadas, que devem estar
consoante os seus preceitos ).
A Lei das Sociedades Anônimas, ao tratar do conflito de interesses, não
enumerou as situações que seriam consideradas como tal, firmando -se, de outro modo,
sob conceitos amplos, “tipos abertos” e vinculando -o à concepção de interesse social,
de forma a outorgar ao intérprete a incumbência de sua concretização.
Em decorrência disso, o conflito de interesses entre acionistas e a empresa
pode ser visualizado sob diversas óticas, conforme a teoria de abordagem à qual se filie
o intérprete. Sendo assim, o presente estudo trará considerações sobre algumas das
teorias mais relevantes desenvolvidas sobre o tema, com a pretensão, ainda, de
identificar qual concepção que, segundo a doutrina nacional, deva ser adotada no atual
cenário sócio-econômico e cultural pátrio.
3
Neste estudo, buscar-se-á, também, como dito anteriormente, denotar que os
conflitos de interesses nas sociedades podem decorrer da inobservância da função
social - função social que, vale dizer, constitui princípio constitucional norteador da
Ordem Econômica (artigo 170 da Constituição Federal) e garantia individual (art 5º da
Constituição Federal).
Deste modo, para esta linha de abordagem, na qual a Constituição é o centro,
será verificada, inicialmente, a possibilidade da titularidade de ações ser enquadrada
como direito de propriedade sob a ótica constitucional. Vencido este primeiro aspecto,
terão importância as ações com direito de voto, tendo em vista que o voto se traduz,
sinteticamente, no poder de direcionar a estrutura da sociedade – pessoa jurídica,
ficção do direito com estrutura patrimonial e existência própria – ao atendimento de
determinado interesse que poderá ser, ou não, legítimo, conforme exista, ou não, de
abuso de direito ou conflito de interesses.
Assim, objetiva-se permitir, senão a constatação, uma reflexão crítica, de que é
imprescindível à legitimidade do exercício do direito de voto que este esteja em
consonância com o interesse da sociedade empresária e em consonância com a função
social - princípio da ordem econômica.
Nesta ótica, procurar-se-á vislumbrar o direito de voto como expressão de
direito de propriedade e denotar que o exercício do direito de voto deve respeitar a
função social que lhe é inerente, direcionando a empresa para a realização da sua
própria função social.
Após estas constatações, pretende -se apresentar as principais conseqüências
jurídicas diretas, decorrentes do voto abusivo, ou de seu exercício em conflito de
interesses.
Diante disso, revelam-se como núcleos do tema o direito de voto 2, a função
social da propriedade, o interesse social, a relação entre interesse e função social, e a
tutela do interesse social e do exercício não abusivo do voto nas deliberações
assembleares de sociedades anônimas abertas.
2
Os aspectos concernentes ao direito de voto estarão adstritos àqueles relevantes para a análise do
tema, não sendo, portanto, objeto de apreciação as questões relativas ao quorum para deliberações, às
espécies de ações, ou outras mais que podem estar relacionadas ao direito de voto, mas que, embora
possam ser subjacentes, não tenham importância específica para o presente estudo.
4
Nesse cenário, vale observar que apesar de já se ter discorrido largamente
sobre a função social da propriedade imobiliária, apenas recentemente verifica -se um
movimento da doutrina pátria voltado à discussão e defesa da aplicação deste princípio
constitucional a outros tipos relações intersubje tivas (e, portanto, a outros direitos) 3
como, por exemplo, à empresa e aos contratos.
Desta forma, o estudo proposto tem como objetivo discorrer sobre a importância
do adequado exercício do direito de voto, buscando revelar, nos preceitos que regulam
o abuso do direito de voto e o conflito de interesses, instrumento para cumprimento da
função social.
Assim, a dissertação abrangerá noções tradicionais do abuso do direito de voto
e do conflito de interesses (no exercício do direito de voto) nas sociedades anônimas,
buscando revelar a leitura e aplicação destes institutos à luz do sistema constitucional
brasileiro, mais precisamente sob a ótica da função social da propriedade.
Por esse motivo, analisar -se-á a amplitude da concepção constitucional do
direito de propriedade, demonstrando -se a aplicabilidade da função social à relação de
titularidade (ou propriedade) de ações, para, na seqüência, identificar tal relação de
titularidade, como direito real ou pessoal no âmbito do direito civil. O posicionamento da
referida relação como direito real ou pessoal tem importância ao estudo proposto, tendo
em vista as conseqüências jurídicas que tal classificação pode apresentar no campo da
responsabilidade civil, que, embora não se vá analisar detidamente, merecerá m enção
neste estudo.
Para a identificação das situações de conflitos de interesses e de abuso do
direito de voto, pretende -se, como referido anteriormente, tecer breves comentários
sobre as principais teorias clássicas a respeito do tema conflito de intere sses, e, ainda,
sucintas considerações sobre o abuso do direito de voto.
Após, será analisada a aplicação dos artigos 115, 116 e 118 da Lei das
Sociedades Anônimas, buscando revelar nestes, como dito anteriormente, um meio de
operacionalização do princípi o constitucional da função social da propriedade.
3
A título de exemplo, observe -se, neste sentido, o livro “Função do Direito Privado no atual momento
histórico” (São Paulo: RT, 2006), de coordenação de Rosa Maria de Andrade Nery, no qual constam
diversos artigos sobre a aplicação deste princípio a empresa e aos contratos (p. 185 e segs.).
5
Assim, este estudo tem a pretensão de: (i) constatar que o voto constitui
expressão de um direito de propriedade – a titularidade de ações; (ii) que este direito de
propriedade é conformado pela função soc ial; e (iii) que esta função social tem
operatividade através de previsões da Lei das Sociedades Anônimas.
O voto constitui direito -poder que deve ser conformado pela aplicação da
função social. Como instrumento direcionador da empresa, deve ser exercido com a
consciência de que a dinâmica das relações hoje travadas pelas empresas (sobretudo
as grandes corporações) não pode ignorar a realidade social e a função que ocupam no
cenário sócio-econômico, principalmente em vista da necessidade de concretização d e
princípios de matiz constitucional. O voto deve ser exercido de forma responsável,
adequando-se os interesses estritamente capitalistas à nova ótica das relações sociais
que se impõem.
Nesta linha de abordagem, a análise implementada a seguir se divide em três
grandes partes.
Na “Parte I” busca-se demonstrar que o direito de propriedade e a função social
da propriedade constituem princípios constitucionais da ordem econômica, passíveis de
aplicação a toda espécie de direito de propriedade, material ou imaterial. Desta feita,
pretende-se demonstrar que a titularidade (ou propriedade de ações) constitui relação
de propriedade e, como tal, deve observar sua função social.
Ainda na “Parte I”, objetiva -se demonstrar que, também sob a ótica do direito
civil é possível considerar a titularidade de ações como direito de propriedade (ou seja,
direito real), sujeitando -se, portanto, à disciplina atinente ao direito de propriedade
prevista no artigo 1.228 do Código Civil.
Na “Parte II” pretende-se revelar alguns aspectos fundamentais a respeito do
conflito de interesse no exercício do direito de voto, buscando -se identificar, sobretudo,
o que constitui o aludido conflito de interesses e a possibilidade de sua leitura
(interpretação) à luz do princípio da função s ocial da propriedade.
Neste sentido, serão tecidas algumas considerações, ainda que breves, a
respeito do exercício do direito de propriedade em face do Código Civil de 2002 e sobre
o abuso de direito.
6
Finalmente, na “Parte III” do estudo, colima -se analisar a aplicabilidade dos
conceitos e parâmetros erigidos das regras de conflitos de interesses e do abuso do
direito de voto, à luz do princípio da função social da propriedade, quando da aplicação
do disposto nos artigos 115, 116 e 118 da Lei das Socieda des Anônimas.
Em síntese, objetiva-se, neste estudo, demonstrar ou, quando menos levar a
uma reflexão crítica de que os dispositivos da Lei das Sociedades Anônimas podem ser
aplicados com vistas à concretização da ordem constitucional.
7
PARTE I
O DIREITO DE PROPRIEDADE E A FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE
Notas Introdutórias
A função social da propriedade é, sem dúvida, tema bastante extenso, fazendo se necessário delimitar o campo de análise para fins deste estudo.
Neste sentido, cabe destacar, como referido anteriormente, que a presente
análise tem como objetivo discorrer sobre a importância do adequado exercício do
direito de voto, buscando revelar, nos preceitos que disciplinam o conflito de interesses,
instrumento para cumprimento da sua função s ocial – princípio constitucional. Sendo
assim, para se atingir os objetivos colimados, torna -se necessário tecer alguns
esclarecimentos acerca do aludido princípio, demonstrando que, atualmente, a
“propriedade” referida pela Constituição de 1988, não está adstrita à imobiliária.
Desta feita, é indispensável apresentar algumas considerações acerca da
evolução histórica, dos fundamentos e do conteúdo do direito de propriedade e da
função social da propriedade, com a pretensão exclusiva de se permitir vislumb rar que
a amplitude do conceito de “propriedade”, sob a ótica constitucional, engloba as
relações de propriedade representadas pela titularidade de ações.
Capítulo 1 – O direito de propriedade e a função social: fundamento jurídico e
breve relato históric o
Seção 1 - Noções de teorias acerca de seu fundamento jurídico
As justificativas utilizadas como fundamento jurídico do direito de propriedade,
evoluíram juntamente com a sociedade, de forma que embora pudessem se prestar a
justificá-la em determinada época, em outra não mais se apresentam como suficientes
para tal.
8
No campo do fundamento jurídico, conforme esclarece WASHINGTON DE
BARROS MONTEIRO, as principais teorias teriam sido sintetizadas por PLANIOL e
AHRENS, que as classificaram como: (i) Teori a da Ocupação; (ii) Teoria da Lei; (iii)
Teoria da Especificação; e (iv) Teoria da Natureza Humana 4.
A Teoria da Ocupação, tida como a mais antiga e equivocada, considera como
fundamento do direito de propriedade a simples ocupação de coisas (não ocupada s por
outrem).
Uma de suas principais críticas reside no fato de que embora pudesse se
prestar a justificar a propriedade primitiva, após o surgimento do ordenamento do
Estado, ampararia apenas uma situação fática: a própria ocupação - não constituindo
fundamento adequado à propriedade que, por ser um direito, pressuporia a existência
prévia de legislação que a reconhecesse como meio para obtenção da própria
propriedade. Ademais, a maioria das propriedades hoje existentes não decorreria de
uma ocupação primitiva, mas sim da violência contra povos 5.
A Teoria da Lei, por sua vez, considera que o direito de propriedade teria sido
instituído pelo direito positivo, sendo um instituto de direito civil.
4
MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de Direito Civil, v. 3, p. 77. HENRIQUE FERRAZ DE MELLO
(Função Social da Propriedade e sua Repercussão no Registro de Imóveis , p.308, nota 13) enumera
algumas doutrinas que buscaram explicar o instituto, a saber: “(i) d o contrato social (Locke, Hobbes,
Rousseau): ‘O Estado é senhor de todos os bens (...)’; (ii) sistema da lei (Bentham e Montesquieu): ‘a
propriedade só se tornou um direito propriamente dito, em virtude do decreto da autoridade’. Mirabeu: ‘O
que pertence igualmente a todos não pertence a realmente ninguém’. O proprietário é apenas um
usufrutuário. É a lei que cria a propriedade; (iii) sistema do trabalho: a propriedade deriva do trabalho da
terra. Trata-se de um prolongamento da personalidade do indivíduo; (iv) sistema da necessidade, da
liberdade (trabalhar é ser livre e ter a propriedade é uma maneira de ser livre) (SODRÉ, Ruy Azevedo.
Função social da propriedade. São Paulo: RT, [s.d.], p. 13, 17 -26). Segundo Planiol, os jurisconsultos
possuem uma tendência de erigir os preceitos da lei em princípios filosóficos e estacionaram na idéia da
ocupação, o que vem a ser por ele criticado, na medida em que a ocupação é um fato, (...)”.
5
Nesse sentido, WASHINGTON DE BARROS MONTEIRO ( Curso de Direito Civil, v. 3, p. 77-78.) afirma:
“A ocupação, modo de adquirir a propriedade, não basta assim para justificar o direito de propriedade,
porque os modos de adquirir um direito necessariamente pressupõem a preexistência desse direito,
capaz de ser adquirido por um daque les meios.”.
Alerta, ainda, o mesmo doutrinador, para o simples fato que a maioria das propriedades hoje existentes
não decorre de uma ocupação primitiva, mas sim da violência como, por exemplo, no caso do continente
americano que era habitado por povos pr imitivos (indígenas) que foram aniquilados e expulsos pelos
europeus. Destaca, também, o fato de que tal teoria hoje não teria quase aplicação (ressalvados casos
especiais), pois praticamente não existem coisas sem dono.
9
Esta teoria, que teve por adeptos inúmeros doutrinadores do século XVIII e da
primeira metade do século XIX - MONTESQUIEU, HOBBES, BOSSUET, MIRABEAU,
BENJAMIN CONSTANT, BENTHAM, ROUSSEAU –, foi criticada, sobretudo sob o
argumento de que o fundamento do direito de propriedade não poderia residir apenas
na vontade humana do legislador e que, conforme TAINE, não teria sido a sociedade a
criar a propriedade, mas esta àquela 6.
A par destas, a Teoria da Especificação, ou teoria do trabalho, segundo a qual
apenas o trabalho poderia ser o criador de bens - o título legítimo da propriedade.
Criada por economistas, recebeu críticas de PLANIOL que a considerava falsa,
pois: (i) a recompensa do trabalho deveria ser o salário, e não a própria coisa
produzida; e (ii) conteria um germe de negação da própria propriedade à med ida que o
trabalho de diversas pessoas sobre uma mesma coisa poderia levar a diversas
espoliações sucessivas ou à justaposição de múltiplas propriedades sobre o mesmo
objeto. Esta teoria, segundo RADBRUCH levaria, ainda, a conclusões socialistas: a
perda dos meios de produção pelo seu proprietário, que não executou o trabalho, a
favor dos funcionários que o executaram 7.
Por fim, a teoria da natureza humana , que teve como adepto LAURENT e a
própria Igreja Católica, considera que a propriedade é da própria natureza humana,
representando condição de existência e liberdade de todo homem, instrumento de seu
desenvolvimento e sustento: “(...) as coisas com valor econômico são apropriadas,
produzidas ou transformadas para servir aos fins individuais (...)” 8.
6
MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de Direito Civil, v. 3, p. 78.
A este respeito, CARAMURU esclarece: “Hobbes e Rousseau eram defensores intransigentes de que
somente com a fundação da sociedade política se poderia falar em direito de propriedade, que, assim
sendo, nada mais seria que mera concessão da coletividade.” (FRANCISCO, Caramuru Afonso. In.: A
propriedade e os direitos reais na constituição de 1988, p. 20)
7
Críticas de PLANIOL e RADBRUCH referidas por WASHINGTON DE BARROS MONTEIRO (Curso de
Direito Civil, v. 3, p. 79).
8
“O Direito Canônico incute a idéia de que o homem está legitimado a adquirir bens, pois a propriedade
privada é garantia da liberdade individual. No entanto, por influência de Santo Agostinho e São Tomás de
Aquino, ensina-se que a propriedade privada é imanen te à própria natureza do homem que, no entanto,
deve fazer justo uso dela.” (VENOSA, Direito Civil, vol. V, p. 175).
Esclarece WASHINGTON DE BARROS MONTEIRO ( Curso de Direito Civil, v. 3, p. 79): “Com efeito, a
exata concepção é a de que a propriedade é i nerente à própria natureza humana; ela representa
10
De todo modo, quer estas teorias tenham se prestado a justificar – ou ainda se
prestem a justificar – o direito de propriedade em determinado local ou contexto
histórico, fato é que, independentemente de sua justificação, o direito de propriedade se
apresenta hoje como uma tendência a ser conservada, sobretudo nas sociedades
capitalistas. A propriedade, como bem afirmou PLANIOL, é um fato histórico, anterior a
qualquer regulamentação legal, que evoluiu para sua forma atual, constituindo uma
força social – uma tradição - que não deve ser tocada irrefletidamente. Ela representa
uma necessidade econômica para a sociedade e, na sua concepção atual, deve
respeitar a sua função social 9.
Seção 2 - Breve relato histórico
É difícil precisar quando surgiu o direito de propriedade. Contudo, é possível
inferir que é ele um dos mais antigos direitos efetivamente reconhecidos aos homens.
Ao que consta, nos primórdios, a propriedade teria sido coletiva e gradualmente fora se
condição de existência e de liberdade de todo homem. No dizer de Laurent, constitui expressão e
garantia da individualidade humana, pressuposto e instrumento do nosso desenvolvimento intelectual e
moral. As coisas com valor econômico são apropriadas, produzidas ou transformadas para servir aos fins
individuais. Não poderia o ente humano realizá -los se não tivesse aquelas coisas a sua disposição, ou
sob seu domínio.”. Este doutrinador (op. cit., p. 79/80) cit a, como exemplo da adesão da Igreja Católica a
esta corrente doutrinária, PIO XI, na encíclica Quadragésimo Ano, e João XXIII, na Mater et Magistra.
A respeito do assunto, EROULTHS CORTIANO JR. ( O discurso jurídico da propriedade e suas rupturas ,
p. 91) afirma: “O indivíduo é proprietário de sua própria pessoa e tem capacidade de agir independente
dos outros. Essa autonomia significa liberdade de agir, e liberdade confunde -se então com a propriedade.
Ser proprietário significa ser livre. (...) Justifica -se a propriedade na liberdade, e a liberdade na
propriedade. Também por aqui vai a correlação que existe entre autonomia privada e direito de
propriedade: ambas são expressões jurídicas da liberdade humana.”
9
Conclusões de PLANIOL, mencionadas por MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de Direito Civil,
v. 3, p. 78. A este respeito, VENOSA (Direito Civil, vol. V, p. 176) argumenta: “O esfacelamento do mundo
comunista, com o desaparecimento da União Soviética, retratou o fracasso da experiência do capitalismo
do Estado, que buscava a negação da propriedade privada. Contrariava a própria natureza do ser
humano; sua vontade de ter algo para si. (...) De qualquer forma, ensina a história recente que, se a
negação da propriedade privada contraria o anseio inarredáve l do homem e conduz o Estado ao
fracasso, não é com o puro individualismo que serão resolvidos os problemas jurídicos e sociais. A
Encíclica Mater et Magistra do Papa João XXIII, de 1961, ensina que a propriedade é um direito natural,
mas esse direito deve ser exercido de acordo com uma função social, não só em proveito do titular, mas
também em benefício da coletividade.”.
11
tornando individual, inicialmente em relação à s coisas móveis de uso pessoal para,
somente depois, aplicar-se aos demais bens móveis e, finalmente, aos imóveis 10.
Tradicionalmente, inicia -se o estudo (histórico) do direito de propriedade na
sociedade romana, na qual é igualmente difícil precisar o mom ento em que surge a
primeira forma de propriedade territorial.
Segundo algumas fontes, a Lei das XII Tábuas foi precursora da
individualização da propriedade. Neste período, o indivíduo recebia uma porção de
terras para cultivar e, encerrada a colheita, a s terras voltavam a ser coletivas. Segundo
VENOSA, a Lei das XII Tábuas projetou “na verdade, a noção jurídica do ius utendi,
fruendi et abutendi”11.
Noticia-se que nos primeiros séculos da história romana era reconhecida
apenas a propriedade quiritária, conferida somente ao cidadão romano e que
pressupunha o concurso de diversos outros requisitos como, por exemplo, a idoneidade
da coisa e sua aquisição na forma do direito civil. Para a defesa da propriedade, o
proprietário era dotado do direito de reivindi cação12.
Posteriormente, surgiu, ao lado da propriedade quiritária, a propriedade
bonitária (ou pretoriana), do jus gentium, a qual, embora carecesse de alguns requisitos
da quiritária, passou a ser reconhecida pelo pretor. Por fim, Justiniano unificou -as,
ratificando o que já estava consagrado 13.
10
JEREMY WALDRON ( The Right to Private Property , p. 148 e seguintes) apresenta algumas teorias a
respeito da “privatização” dos bens, a pontando posicionamento de alguns doutrinados e de LOCKE sobe
o assunto. Na obra deste doutrinador é possível verificar também uma análise acerca de argumentos,
baseados em direitos gerais, para o reconhecimento/legitimação da propriedade privada.
ANDRÉ RAMOS TAVARES (Curso de Direito Constitucional , p. 468-469) reporta que no Código de
Hammurabi (2.300 a.C.) e no Êxodo já constavam referências ao direito de propriedade.
11
Direito Civil, vol. V, p. 174.
12
MONTEIRO, Curso de Direito Civil, v. 3, p. 80/81. VENOSA, Direito Civil, vol. V, p. 174. Para maiores
esclarecimentos a respeito: MALUF, Limitações ao Direito de Propriedade... , p. 19-22.
13
Noticia-se, ainda, a existência de um terceiro tipo de propriedade. Neste sentido, veja -se o que
esclarece ARNOLDO WALD (Direito das Coisas, p. 110) tratando a respeito das propriedades na
sociedade romana: “Mas, como existiam coisas que não eram res mancipi, e, por outro lado, certos bens
mancipi eram, em determinadas ocasiões, transferidos a terceiros de boa -fé, sem a observância das
solenidades necessárias, os pretores sentiram a necessidade de conceder uma proteção especial
àqueles que, embora não sendo titulares do dominium ex iure quiritum, estavam na situação de
verdadeiros proprietários. Surgiram assim as legis actiones, criadas pelos pretores em favor dos
proprietários de coisas não mancipi ou então de coisas mancipi não transferidas com as solenidades
necessárias. Essa nova propriedade, cujos fundamentos encontram -se na equidade aplicada pelos
magistrados, denominou-se pretoriana ou bonitária. Posteriormente, as províncias foram incorporadas ao
Senado, de modo que nelas havia duas espécies de domínio – um pertencente ao Senado ou ao
12
Na idade média conheceu -se a época dos senhores e vassalos, servos, semilivres – o feudalismo. Os senhores concentravam o direito de propriedade e a jurisdição
política, ao passo que os demais eram obrigados a co ntribuições onerosas em favor
daqueles e, por vezes, eram até mesmo despojados de suas terras 14.
Este estado de coisas foi objeto de longa luta. Com a Revolução Francesa em
1789, quando a nobreza e clero acabaram por renunciar a seus privilégios, foi
suprimida a condição de servo e a jurisdição senhorial 15.
Nesta época, nos termos da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão
de 1789, a propriedade constituía direito “absoluto”, limitado apenas pelo exercício do
direito de outrem - absolutismo que teria sido derrogado ou mitigado, gradativamente,
em virtude das diversas transições paradigmáticas, culminando com a concepção
Imperador e outro baseado em concessões feitas pelas autoridades àqueles que usav am e gozavam
realmente das terras. (...) Tivemos assim no direito romano três espécies de propriedade: a quiritária, a
pretoriana ou bonitária e a provincial. Com a Constituição de Caracala de 212, todos os habitantes do
Império passam a gozar da cidadania romana. (...) com Justiniano, extingue -se a distinção entre as
diversas espécies de propriedade. Surge então, no direito pós -clássico, um novo conceito unitário de
domínio, caracterizado pela sua exclusividade.”
MALUF (Limitações ao Direito de Propriedade ..., p. 18-25) cita, além da propriedade pretoriana e da
quiritária, a propriedade “peregrina” e a “provincial”que também teriam sido unificadas com as demais por
Justiniano.
14
WALD, Arnoldo. Direito das Coisas, p. 111. Sobre a propriedade medieval, veja -se: MALUF, Limitações
ao Direito de Propriedade..., p. 33-36.
15
MANOEL GONÇALVES FERREIRA FILHO ( Curso de Direito Constitucional, p. 281) menciona que “A
opressão absolutista foi a causa próxima do surgimento das Declarações. Destas, a primeira foi a do
Estado da Virgínia, votada em junho de 1776, que serviu de modelo para as demais na América do Norte
embora a mais conhecida e influente seja a dos ‘Diretos do Homem e do Cidadão’, editada em 1789 pela
Revolução Francesa.”
Quanto à Revolução Francesa afirma EROULTHS CORTIANO JR. ( O discurso jurídico da propriedade e
suas rupturas, p. 92-93): “A Revolução Francesa decretou a destruição do feudalismo e a supressão da
propriedade parcelada, criando um modelo proprietário de feição liberal -individualista que tem um
significado histórico de destruição dos institutos feudais que a imobilizavam e de construção de um
sentido de livre acesso e livre circulação da propriedade. Esse modelo encontra suas raízes teóricas no
jusnaturalismo racionalista e na filosofia libera l. O jusnaturalismo teve seu momento máximo na
Ilustração, mas suas bases vinham se formando de há muito, e permitiu a visualização da propriedade
como um direito natural do homem. O liberalismo permitiu que todos os interesses do indivíduo –
inclusive sua liberdade pessoal – fossem articulados na linguagem da propriedade. Por isso é que se
pode dizer que pensadores como HOBBES, LOCKE e KANT colaboraram, de uma forma ou de outra, e
apesar de eventuais discordâncias de pensamento, para a conformação do moder no direito de
propriedade. Sob forte influência de tais idéias, a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de
1789 iria conceituar a propriedade como um direito inviolável e sagrado, do qual ninguém poderia ser
privado, salvo se por necessidade públic a comprovada e mediante a devida indenização. (...) A
propriedade parcelada do feudalismo (...) foi abandonada, e a união do jusnaturalismo racionalista com o
pensamento liberal clássico transforma a propriedade no mais importante dos direitos naturais,
pressuposto de todos os outros.”
13
atualmente adotada por boa parte dos países: a da propriedade como direito
condicionado ao cumprimento de sua função social 16.
16
Neste sentido, confira-se: SILVA, José Afonso. Curso de Direito Constitucional Positivo , p. 263-264.
O artigo 17 da Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão (citada por FRANCISCO, Caramuru
Afonso. In.: A propriedade e os direitos reais na constituição de 1988 , p. 19) estabelecia: “Como a
propriedade é um direito inviolável e sagrado, ninguém dela pode ser privado a não ser quando a
necessidade pública legalmente comprovada o exigir evidentemente e sob condição de justa e prévia
indenização.”
Sobre o dispositivo esclarece BOBBIO ( A era dos direitos, p. 94/95): “Quanto à propriedade, que o último
artigo da Declaração considera ‘um direito inviolável e sagrado’, ela se tornaria o alvo das críticas dos
socialistas e irá caracterizar historicamente a Revolução de 1789 como uma revolução burguesa. Sua
inclusão entre os direitos naturais remontava a uma antiga tradição jurídica, bem anterior à afirmação das
doutrinas jusnaturalistas. Era uma conseqüência da autonomia que, no dir eito romano clássico era
desfrutada pelo direito privado em relação ao direito público, da doutrina dos modos originários de
aquisição da propriedade (através da ocupação e do trabalho) e dos modos – tanto uns como outros –
que pertenciam à esfera das rela ções privadas, que se desenvolviam fora da esfera pública”.
Conforme esclarece CARAMURU (In.: A propriedade e os direitos reais na constituição de 1988 , p. 19), a
Revolução Francesa e a Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão (artigo17) viam o direito de
propriedade como um direito natural, no mesmo sentido defendido por Jonh Locke (“(...) para Locke a
propriedade abarca todos os bens ínsitos à pessoa humana (...)” “(...) vida, saúde, propriedade dos bens,
segurança, liberdade (...)”). Embora existisse m afirmações de que a propriedade era, nesta época,
absoluta, CARAMURU (Op. cit., p. 20) destaca: “(...) como se pode observar da leitura do art. 17 da
Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, não se concebia a propriedade como direito ilimitado.”
O conceito de absolutismo poderia – e pode - ser visto de forma relativizada: “(...)o direito de propriedade
é absoluto dentro do âmbito resguardado pelo ordenamento” (VENOSA, Direito Civil, vol. V, p. 186.). A
propriedade é absoluta à medida que o proprietá rio tem o poder de dispor, de usar e gozar, desde que
observadas as limitações legais (dentre as quais a função social da propriedade) e regulamentares
impostas no interesse público ou em decorrência da co -existência com a propriedade de terceiros. Além
destas, o proprietário deve observar as limitações convencionais privadas, como é o caso dos ônus reais
(ANDRADE, In: O Novo Código Civil Comentado , v. 2, p. 1.152.). VENOSA ( Direito Civil, vol. V, p. 175)
afirma que “esse exagerado individualismo perde for ça no século XIX com a revolução e o
desenvolvimento industrial e com as doutrinas socializantes. Passa a ser buscado um sentido social na
propriedade.”. No conceito de BEVILACQUA, citado por JUAREZ COSTA ANDRADE (In: O Novo Código
Civil Comentado, v. 2, p. 1.151), “(...) a propriedade, considerada como direito, é o poder de dispor,
arbitrariamente, da substância e das utilidades de uma coisa, com exclusão de qualquer outra pessoa.”.
A respeito do assunto MALUF ( Limitações ao Direito de Propriedade... , p. 25-26) destaca que: “Em
termos gerais, essa absolutez só pode ser entendida enquanto oponível a todos os outros indivíduos.
(...)”. Assinala, na seqüência que a propriedade sofria à época diversas restrições.
Este absolutismo deve ser visto, portanto, de fo rma relativizada: ele existia dentro dos limites das normas
jurídicas e das restrições convencionais.
ANDRÉ RAMOS TAVARES ( Curso de Direito Constitucional , p. 468-469) refere, ainda, ao artigo 2º da
Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão – “A finalidade de toda associação política é a
conservação dos direitos naturais e imprescindíveis do homem. Esses direitos são a liberdade, a
propriedade, a segurança e a resistência à opressão.”.
CANOTILHO (Direito Constitucional... , p. 378) aponta, a par da Decla ração dos Direitos do Homem e do
Cidadão, como marco divisor histórico das concepções de direitos fundamentais o Viginia Bill of Rights,
de 1976. Neste esteio, tratando a respeito da evolução histórica, refere às conclusões de HOBBES (p.
382), expostas no Leviatham (1651), segundo as quais os indivíduos, ao celebrarem o pacto social
abririam mão de todos os seus direitos e liberdades em favor do soberano absoluto, e ao contraponto
apresentado por LOCKE, para o qual a teoria contratual (pacto social) levari a à defesa da autonomia
privada, cristalizada no direito à vida, à liberdade e à propriedade. Por fim, ao referir às Declarações de
Direitos, indica que estas buscaram com “coexistência integradora” dos direitos liberais e dos sociais,
econômicos e culturais.
14
“Essa nova concepção dos direitos fundamentais encontrou expressão solene
principalmente nas primeiras Constituições republicanas alemã e espanhola – a de
Weimar de 1919, a espanhola de 1932. Com menor repercussão que elas e
caracterizada por um nacionalismo ex acerbado está a Constituição mexicana de 1917,
talvez a primeira a incorporar essas novas idéias.”
17
Assim, no Brasil, “a primeira Constituição a adotar em seu texto, essa nova
inspiração foi a de 1934, no que foi seguida pelas posteriores. As anteriores – 1824 e
1891 – como era de se esperar, manifestaram em seu texto o apego à concepção
individualista dos direitos fundamentais.” 18
ZIPELLIUS (Teoria Geral do Estado, p. 419- 435) traz diversos esclarecimentos a respeito dos
antecedentes históricos dos direitos fundamentais – dentre os quais o de propriedade. Nesse sentido,
trata sobre a evolução na Inglaterra, referindo -se à Magna Carta Libertarum, do Rei João Sem Terra, e
depois do Bill of Rights (1689); na seqüência discorre sobre o desenvolvimento nos Estados Unidos da
América do Norte (Virginia Bill of Rights, de 1776); na França – Declaração do Homem e do Cidadão; na
Alemanha, a Constituição de Bismarck e a da República de Weimer; e, por fim, trata a respeito da
proteção internacional dos direitos humanos, e da Declaração Universal dos Direitos do Homem,
proclamada pela Assembléia Geral da ONU, em 10 de dezembro de 1948.
MANOEL GONÇALVES FERREIRA FILHO ( Curso de Direito Constitucional, p. 282-283) afirma que: “O
caráter individualista é o traço fundamental das declarações dos séculos XVIII e XIX e das editadas até a
Primeira Guerra Mundial. Marca -as a preocupação de defender o indivíduo contra o Estado, este
considerado um mal, embora necessário. (...)”. “A necessidade de proteção do economicamente fraco,
por intermédio do Estado, foi, assim, ganhando a opinião pública. Ainda na primeira metade do século
passado a Revolução Francesa de 1848 e sua Constituição reconheceram efetivamente o primeiro dos
‘direitos econômicos e sociais’: o direito ao trabalho, impondo ao Estado a obrigação de dar meios ao
desempregado de ganhar o seu pão. A afirmação in abstracto desse direito, porém, já se encontrava na
Declaração jacobina de 1783.”.
Vale a pena anotar a distinção trazida por BONAVIDES ( Curso de Direito Constitucional, p. 525-559) de
garantias e direitos: “A garantia – meio de defesa – se coloca diante do direito, mas com este não se
deve confundir”. “Direito é ‘a faculdade reconhecida, natural, ou legal, de praticar ou não praticar certos
atos’.” Este doutrinador faz longa abordagem a respeito das garantias e direitos, desdobrando as
garantias em constitucionais (qualificadas e simple s) e institucionais.
17
FERREIRA Filho, Manoel Gonçalves. Curso de Direito Constitucional, p. 284. CANOTILHO ( Direito
Constitucional..., p. 391) conceitua os direitos fundamentais como aqueles “(...) direitos do homem,
jurídico-institucionalmente garantidos e limitados espacio-temporalmente (...)” e, por sua vez, “(...) direitos
do homem são direitos válidos para todos os povos e em todos os tempos (...)”. Para este doutrinador (p.
405-406), a primeira função dos direitos fundamentais é a defesa da pessoa hu mana e de sua dignidade.
Assim, constituiriam normas de competência negativa para os poderes públicos, proibindo ingerências
neste campo, e o poder de exercer positivamente tais direitos e de exigir omissões do poder público
(liberdades positivas X liberda des negativas).
18
FERREIRA Filho, Manoel Gonçalves. Curso de Direito Constitucional, p. 285. ARNOLDO WALD
(Direito das Coisas, p. 112–113) esclarece quanto às Constituições anteriores à de 1988: “Assim, o art.
179, n. 22, da Constituição Imperial brasileir a de 1824 garantia o direito de propriedade em toda a sua
plenitude. Se o bem público, legalmente verificado, exigir o uso e emprego da propriedade do cidadão,
será ele previamente indenizado do valor dela. A lei marcará os casos em que terá lugar esta úni ca
exceção e dará as regras para se determinar a indenização. Se o texto da Constituição de 1891 foi
vazado em termos análogos, já a reforma de 1926 estabeleceu um regime especial para a exploração de
minas e jazidas (art. 72, § 17). A Constituição de 1934 , já salientando no art. 113, n. 17, o caráter social
15
Neste cenário evolutivo, verifica -se que o ordenamento pátrio contemporâneo
contempla o direito de propriedade, atribuindo a ele a condição de direito fundamental
do homem e de princípio da ordem econômica, garantido na Constituição Federal de
1988, através do artigo 5 º, XXII, e artigo 170, II, e limitado nos artigos 5 º, XXIII e 170, III,
pela indispensabilidade de atendiment o da sua função social 19.
da propriedade, frisou que esse direito ‘não poderá ser exercido contra o interesse social e coletivo’,
enquanto a Carta de 1937 relegou para a legislação ordinária a regulamentação do conteúdo e dos
limites do direito de propriedade (art. 122, n.14). A Constituição de 1946, após garantir o direito de
propriedade, assegurando, em caso de desapropriação, uma indenização justa e prévia (art. 141, § 16),
permitiu a intervenção do Estado no domínio econômico (art. 146), condicionando, outrossim, o uso da
propriedade ao bem -estar social e autorizando a lei ordinária a promover a justa distribuição da
propriedade, com igual oportunidade para todos (art. 147). (...) A Constituição de 1967 (EC 1/69) garantiu
o direito de propriedade, (...). No art. 150 fixou metas da ordem econômica, que tinha como fundamento e
princípios básicos ‘a função social da propriedade, a repressão ao abuso do poder econômico, o
desenvolvimento econômico e a harmonia e solidariedade entre os fatores de produção.”
Sobre a evolução do direito de propriedade (e sua função social) na legislação brasileira, veja -se,
também: MELLO, Henrique Ferraz de. Função Social da Propriedade e sua Repercussão no Registro de
Imóveis, p.311, nota 18.
19
A respeito da funcionalização da propriedade, leia -se SILVA, José Afonso da. Curso de direito
constitucional positivo, 11ª. ed., p. 273-274. ANDRÉ RAMOS TAVARES ( Curso de Direito Constitucional ,
p. 475): “Em função disso, não há mais como considerar a proprieda de como direito puramente privado,
ou mesmo como direito individual. Parte da doutrina tem sustentado que melhor teria sido tratar da
propriedade apenas como um dos elementos da ordem econômica, ‘como instituição de relações
econômicas’, nos dizeres de Jos é Afonso da Silva.”.
CARLOS ALBERTO DABUS MALUF ( Limitações ao Direito de Propriedade ..., p. 37-49) apresenta
esclarecimentos sobre o direito de propriedade no direito luso -brasileiro. Este autor alude, também, às
limitações ao direito de propriedade no di reito francês, alemão, italiano e argentino (p. 50 -60) e à função
social da propriedade no direito italiano (p. 72), referindo -se ao artigo 42 do Código Civil Italiano:
“Consagrado inicialmente no Código Civil de 1942, o princípio da função social foi ado tado pela vigente
Constituição italiana, no seu art. 42: ‘A propriedade é pública ou privada. Os bens econômicos pertencem
ao Estado, aos entes públicos ou privados. A propriedade privada é reconhecida e garantida pela lei que
determina os seus modos de aq uisição, gozo e limites com o escopo de assegurar -lhes função social e
torná-la acessível a todos’”. Também esclarece a importância da Igreja (p. 73 -74), no que diz respeito ao
reconhecimento da função social. Neste sentido afirma (p. 73): “Para a Igreja, ‘a propriedade não é uma
função social ao serviço do Estado, pois que assenta sobre um direito pessoal que o próprio Estado deve
respeitar e proteger. Mas tem uma função social, está subordinada ao bem comum. É um direito que
comporta obrigações sociais.’ .”.
CANOTILHO esclarece (Op. cit., p. 413) que a Constituição portuguesa de 1976 (até o texto resultante da
Lei 1/97) contém um regime geral dos direitos fundamentais (quer sejam eles direitos, liberdades e
garantias, ou direitos econômicos, sociais e cul turais), e um regime específico dos direitos, liberdades e
garantias. A ordem jurídica portuguesa pressuporia a “liberdade igual”, que aponta para igualdade real, e
que torna indispensável à distribuição/redistribuição de bens sociais, entre classes sociai s, nações e
gerações (p. 476). A Constituição portuguesa aponta a necessidade de eficácia horizontal dos direitos
econômicos, sociais e culturais, constituindo, esta, núcleo essencial à proteção da dignidade da pessoa
humana (p. 479).
16
A evolução da concepção do direito de propriedade e de sua função social fez se sentir, também, na legislação infraconstitucional. Neste sentido, RODRIGO MAZZEI
traz alguns esclarecimentos a respeito do Código Civil de 1916 e do C ódigo Civil de
2002, bem como sobre o tratamento constitucional destas questões, sob o ponto de
vista histórico. Vale sintetizar algumas de suas conclusões 20:
Entende o referido doutrinador que o Código Civil de 1916 tinha prestigiado as
idéias liberais da Codificação francesa de 1804, em que “o indivíduo, dentro de suas
liberdades pessoais, era o centro da preocupação do legislador”. Assim, o Código Civil
de 1916 teria sido criado sob a bandeira do liberalismo e prestigiando o direito
individual, inspirado pela Revolução Francesa e pelo Código de Napoleão, servindo, na
verdade, para acomodar a classe dominante 21.
O Código Civil de 1916, para MAZZEI, conteria, nesse cenário, artigos
casuísticos, e teria tido a impossível pretensão de alcançar a completude ao buscar
regulamentar todos os tipos de conflitos sociais, ou seja, “(...) a pretérita Codificação
tinha a idéia de que se bastava em si mesma (...)”. Neste esteio, em relação ao direito
de propriedade, afirma:
“Nestas condições, o enunciado que tratava do direito de propriedade (art. 524),
na esperada Codificação, reproduzia o entendimento tradicional e individualista
sobre aquele instituto jurídico e, por isso, não refletia qualquer risco de
alteração das linhas traçadas no art. 72, §17 da Constituição de 1891 (‘O direito
de propriedade mantém -se em toda sua plenitude, salvo desapropriação por
necessidade ou utilidade publica, mediante indenização prévia’).”
Nesse panorama, conforme observam LAURA BECK VARELA e MARCOS DE
CAMPOS LUDWIG, a doutrina civilis ta, até meados da década de 1950 não tratava
acerca da função social da propriedade:
20
A função social da propriedade..., p. 377 a 388.
CORTIANO JR. (O discurso jurídico da propriedade e suas rupturas , p. 99) afirma: “É o Código de
Napoleão que, além de fixar em termos legais o nascimento da propriedade moderna, vai colocá -la como
um modelo extensível a toda a sociedade organizada nas fronteiras da atividade mercantil/capitalista.”.
21
17
“Pontes de Miranda, Luiz da Cunha Gonçalves, Limongi França, Washington de
Barros Monteiro, Caio Mário da Silva Pereira, Silvio Rodrigues ou Maria Helena
Diniz abordam a questão, a não ser de modo um tanto temeroso. Carvalho
Santos chega a mencionar a idéia do interesse social, e Clóvis Bevilaqüa, na
quinta edição do seu Código Civil comentado, alude brevemente à função social
da propriedade prevista no art. 113 da Consti tuição de 1934. (...) É Orlando
Gomes que, em 1970, em artigo pioneiro na civilística pátria, traz a lume a
discussão sobre a superação do modelo individualista da propriedade,
propondo então a categoria da ‘propriedade -empresa’. Consultando as fontes
doutrinárias de nosso país vemos que são os publicistas que iniciam o debate
sobre a função social. (...)” 22.
Feita esta breve anotação quanto à doutrina da época, vale a pena prosseguir
na síntese das conclusões de RODRIGO MAZZEI. Este doutrinador atenta p ara o fato
de que o processo de elaboração do Código Civil de 1916 foi demasiado lento, o que o
tornou a certo ponto obsoleto, em vista das concepções do Código de Napoleão já não
serem mais tão atuais. No período transcorrido entre a data de apresentação e de
aprovação do Código (1900 -1916), acentuaram-se as discussões sobre a função social
da propriedade, com destaque à dicção de LEÓN DUGUIT, “(...) a quem se atribui a
concepção embrionária da função social da propriedade (...)”, a respeito do que anota 23:
22
Da propriedade às propriedades... , p. 774 ss.
Neste sentido informam: RODRIGO MAZZEI ( A função social da propriedade... , p. 382 a 383) e
MALUF (Limitações ao Direito de Propri edade..., p. 68 e p. 76-79).
MAZZEI (op. cit. p. 383) afirma: “Desta forma, quase que simultaneamente, enquanto nas ordenações
mais modernas era reconhecida a função social da propriedade, o Código Civil de 1916 desprezava tal
faceta, sendo impossível qua lquer ajuste, diante do desenho fechado do art. 524 da Codificação que,
repita-se, era marcada pela pretensão de ser completa.”
Para MALUF (p. 76): “Este autor [DIGUIT] elaborou tese arrojada de caráter muito amplo; a negação dos
direitos subjetivos é sim ples desdobramento dessa tese geral que leva o autor, negando à propriedade
também o caráter de um direito subjetivo, a defini -la como uma função social.”.
ANDRÉ RAMOS TAVARES ( Curso de Direito Constitucional , p. 478) entende que “Pode -se afirmar que a
defesa da concepção funcional exclusiva só pode ter guarida na teoria socialista, Não é possível ignorar
o direito subjetivo à propriedade. Mas também é igualmente inadmissível apenas admitir o direito
subjetivo, como excludente da função social.”.
Acerca de críticas à concepção de DUGUIT de que a “(...) propriedade é uma função social (...)” leiam -se
os comentários de LAURA BECK VARELA e MARCOS DE CAMPOS LUDWIG ( Da propriedade às
propriedades..., p. 767 e 768), para os quais tais concepções já teriam sido cr iticadas à época por
JOSSERAND.
23
18
“Segundo o ilustre jurista francês, a propriedade deveria ser vista nela mesma,
como função social, não havendo direito subjetivo do proprietário, que,
certamente, deveria ser considerado o detentor da riqueza, gerindo um bem
socialmente útil.”
A idéia original de LEÓN DUGUIT, embora não tenha vingado no seu desenho
original, foi fundamental para que se abandonasse – paulatinamente – a concepção da
propriedade apenas como direito individual, desapegada de uma função à sociedade premissa acaba por se co nsolidar pela Constituição de Weimar de 1919, da Alemanha
pós-guerra (“art. 153: A propriedade obriga. O seu exercício deve ser também um
serviço prestado ao bem comum.”) 24.
Nesse cenário, a Constituição de Weimar teria impulsionado a alteração da
concepção de propriedade nos ordenamentos jurídicos, inclusive no brasileiro, no qual
passou a constar a partir da Carta de 1934 (segunda Constituição republicana)
25
.
ANDRÉ RAMOS TAVARES ( Curso de Direito Constitucional , p. 472) cita DUGUIT: “Nas palavras do
próprio autor: ‘A propriedade implica, para todo detentor de uma riqueza, a obrigação de empregá -la em
acrescer a riqueza social, e, mercê dela, a interdependência social. Só ele pode cumprir certo dever
social. Só ele pode aumentar a riqueza geral, fazendo valer a que ele detém. Se faz, pois, socialmente
obrigado a cumprir aquele dever, a realizar a tarefa que a ele incumbe em relação aos bens que detenha,
e não pode ser socialmente protegido se não a cumpre, e só na medida em que a cumpre.”.
24
MAZZEI, A função social da propriedade... , p. 382-383.
No mesmo sentido: MALUF, Limitações ao Direito de Propriedade... , p. 68-69: “Assim, não obstante as
divergências provocadas pela obra de Duguit sobre a natureza específica do direito de propriedade –
dividindo juristas e filósofos -, parece hoje não haver mais dúvida de que a propriedade está investida de
preeminente função social, nela se e ntrosando e se harmonizando, num só todo, o interesse individual e
o público.”.
MALUF (p. 79) cita TELMA DE ARAÚJO, a qual afirma que: “(...) ‘A concepção elaborada por Duguit é
criticada, por grande número de civilistas, dentre eles Dabin, Savatier, Baras si e Messineo, que
entendem que a propriedade-função exige a existência de um dever jurídico de exercitar uma atividade
dirigida a atuar exclusiva e diretamente um interesse público, o que não se ajustaria aos ordenamentos
jurídicos não socialistas. Dabin é incisivo: ‘É melhor, em definitivo, renunciar à idéia da função social; o
direito não se converte em função social pelo fato de que esteja limitado ou condicionado ao interesse
social; essa suavização não modifica nem a função do direito, que continua em tudo o mais a serviço do
seu titular exclusivamente; apenas a extensão do direito será ampla, isso é tudo’( El derecho subjetivo,
Madrid, Revista de Derecho Privado, 1955, p. 274.).’.”.
MALUF indica, ainda, a existência de outras correntes doutrinárias co mo a de MORIN e THÉRY (p. 80 82), e a de JOSSERAND, PUGLIATTI e MESSINEO (p. 83 -87). Neste sentido, esclarece que: “Autores
como Josserand e Pugliatti afirmam que hoje não existe propriedade, mas várias formas de propriedade.
As suas afirmativas parecem te r aceitação generalizada por parte dos juristas.”.
25
Neste sentido: MAZZEI, Rodrigo. A função social da propriedade... , p. 377-388; VARELA, Da
propriedade às propriedades.... , p. 777.
19
Assim, como já referido, na Constituição de 1934, foi “(...) garantido o direito de
propriedade, que não poderá ser exercido contra o interesse social ou coletivo, na
forma que a lei determinar (...)” (artigo 113, ‘17’), “(...) criando inédito limite negativo no
ordenamento constitucional (...)”. A Constituição de 1937, “(...) projetou para a lei
ordinária o encargo de definir conteúdo e limites do direito de propriedade (...)”; a de
1946 anunciou “(...) que o ‘uso da propriedade será condicionado ao bem -estar social.
A lei poderá, com observância, (sic.) do disposto no art. 141, §16, promover a justa
distribuição da propriedade com igual oportunidade para todos’ (...).” A Constituição de
1967 solidifica a necessidade de se vislumbrar a propriedade como um “vetor social”
(artigo 160, III, textualmente, dispõe que ‘a ordem econômica e social tem por fim
realizar o desenvolvimento nacional e a justiça social, com base nos seguintes
princípios: (...) III – função social da propriedade – texto mantido em 1969) 26.
Finalmente, na Constituição de 1988, como dito anteriormente, a propriedade
passa a receber um tra tamento constitucional “de grande monta”, dentre os “direitos
individuais e coletivos” (artigo 5º, XXII e XXIII), “dos princípios gerais da atividade
econômica” (artigo 170, II e III), “e em vários outros dispositivos (mais casuísticos), por
exemplo, os arts. 156, §1º, 182, §§ 2º e 4º, 184, caput, 185 e 186.”.
Em vista dessas mudanças constitucionais, o Código Civil de 1916 foi tornando se e demonstrando-se obsoleto, inclusive no que diz respeito à falta de mobilidade na
sua estrutura. Nesse cenário, foi c oncebido o novo Código, sem a pretensão de
completude, presente no anterior 27.
26
MAZZEI, Op. cit., p. 377-388. “Segundo Luiz Edson Fachin, é consenso doutrinário que as
Constituições brasileiras, desde 1824 até 1969, consagram a propriedade como direito individual
inviolável, na linha do art. 17 da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão. ‘Como a propriedade
é um direito inviolável e sagrado, ning uém dela pode ser privado, a não ser quando a necessidade
pública legalmente comprovada o exigir e sob condição de justa e prévia indenização.’.” “A Constituição
de 1967 ressalvou entre os princípios fundamentais da ordem econômica e social, cuja finalida de é a de
realizar o desenvolvimento nacional e a justiça social, a ‘função social da propriedade’, mantida ipsis
literis pela Constituição de 17 de outubro de 1969, art. 160”. (MALUF, Limitações ao Direito de
Propriedade..., p. 88-95)
27
MAZZEI (A função social da propriedade..., p. 377 a 388) afirma: “Desse modo, a codificação ora em
vigor apresenta desenho mais móvel, para ter função participativa, reconhecendo expressamente 1. a
importância dos microssistemas; 2. a existência de diretrizes constitucionai s que devem ser seguidas
pelo direito privado.” “A rigidez do Código foi gradativamente demonstrando sua obsolescência (..). Com
a falta de mobilidade na sua estrutura, não havia como negar que o Código Civil anterior sofria processo
de esvaziamento (...) Assim, ratificando a idéia de que há utilidade na existência de um Código, mas
visando não cometer os erros do passado, o legislador pátrio concebeu o novo diploma para ser
instrumento de ressistematização, (...) não buscou alcançar a pretensiosa completu de intentada pelo
20
Desta
evolução,
parcela
da
doutrina
compreende
que
hoje
existem
28
“propriedades” e não “propriedade” .
A este respeito, afirma PUGLIATTI: “Na atual concepção e disciplina positiv a do
instituto não se pode falar de um só tipo de propriedade, mas se deve falar de tipos
diversos de propriedade, cada um dos quais assume o seu aspecto característico.”
29
.
A propriedade constitui uma relação jurídica complexa que engloba poderes,
como os de usar, gozar, dispor e reivindicar a coisa, e também deveres em relação a
terceiros, que tem como referência o sistema social.
Feitas essas considerações vale destacar que assim como a propriedade (e a
concepção de função social) evoluíram, a noção atu al de propriedade não é estanque e
absoluta - certamente sofrerá modificações 30:
antecessor, pelo contrário, tomando atitude diametralmente oposta à do legislador de 1916, o novo
Código foi desenvolvido para interagir abertamente com outras leis.”
28
GUERRERO (O fundamento científico..., p. 21): “O próprio Código de Na poleão de 1804 atribui à
propriedade noção unitária, tanto em relação ao seu conteúdo, quanto à sua fonte normativa (...). O
século XX deu margem ao reconhecimento da propriedade dinâmica, devido à contraposição de
interesses entre o empresário e o proprie tário, e com as idéias socialistas a concepção tradicional
(fundiária) de propriedade foi atacada, inclusive em sua justificação racional. O modelo tradicional não foi
à falência. Atualmente, porém, revela -se insuficiente para exprimir o conteúdo atual que a sociedade
fundada em valores de cooperação e vocação mútua de desenvolvimento requer para a propriedade.
Deixa-se de lado a restrição unitária que analisa a propriedade pelo enfoque físico de vocação fundiária,
para se reconhecer diversas outras situaçõ es de propriedade: ‘Os vários regimes de propriedade
comportam distinções qualitativas e quantitativas. Qualitativas como, por exemplo, os regimes jurídicos
diversos entre os bens de produção e de consumo. Quantitativas, no que toca às distinções jurídicas
entre a grande e pequena empresa, a grande e pequena propriedade. Algumas situações são dignas de
privilégios, outras, de limites e sanções.’”
MALUF (Limitações ao Direito de Propriedade , p. 83) cita JOSSERAND e PUGLIATTI como exemplos de
doutrinadores que reconhecem a existência de diversas propriedades: “Autores como Josserand e
Pugliatti afirmam que hoje não existe propriedade, mas várias formas de propriedade. As suas afirmativas
parecem ter aceitação generalizada por parte dos juristas.” ANDRÉ RAMOS TAVARES (Curso de Direito
Constitucional, p. 482): “A propriedade não consiste numa única instituição. Na realidade, compreende
várias instituições, que se distinguem em função da diferença de bens tutelados ou de titulares desses
bens. Assim, é perfeitam ente viável falar em propriedades, e não em propriedade.” HENRIQUE FERRAZ
DE MELLO (Função Social da Propriedade... , p.308, nota 13): “Não se pode falar num único tipo de
propriedade, pois existem tipos diversos de propriedade, como acentuado por Salvatore Pugliatti, apud
José
Barroso
Filhos,
Propriedade:
a
quem
serves?
Disponível
em
http://www1.jus.com.br/doutrina/texto.asp?id=2453 .”
29
Referido por MALUF, Limitações ao Direito de Propriedad e..., p. 85. Para GUERRERO ( O fundamento
científico..., p. 21) os diversos tipos de propriedades teriam um “(...) conteúdo essencial mínimo (...)”, que
“(...) segundo Francisco Eduardo Loureiro, baseado nas concepções de Stefano Rodatà, e que se verifica
historicamente (daí dizer ser aptidão natural da propriedade) é a possibilidade de fruição econômica da
propriedade, sendo que, no resto, os conteúdos variam conforme o modelo de propriedade analisada.” .
30
Neste sentido: CARLA OSMO, Pela Máxima Efetividade..., p. 265.
21
“No ordenamento jurídico brasileiro, pelo menos a partir da Constituição de
1988, já não é mais possível isolar a propriedade de sua função social, de
forma a reconhecer um s uposto núcleo conceitual infenso à funcionalização. A
função social penetra a estrutura do direito de propriedade de forma a que o
exercício dos poderes proprietários não diz respeito apenas a relação do
proprietário com a coisa, mas está subordinada a uma orientação que
considera o uso da coisa e a relação social e historicamente situada entre
proprietários e não-proprietários.” 31.
Capítulo 2 – O direito de propriedade e a função social da propriedade
Seção 1 - Conteúdo do direito de propriedade sob a ót ica constitucional
Do ponto de vista jurídico, o direito de propriedade possui no mínimo duas
acepções. Em um sentido amplo, recai tanto sobre coisas corpóreas (domínio) quanto
incorpóreas, de forma que a noção de propriedade apresenta -se mais ampla que a de
domínio, sendo gênero, do qual este é espécie 32. Em sentido estrito, por sua vez,
recairia apenas sobre coisas corpóreas.
31
OLIVEIRA, Francisco Cardozo. Hermenêutica..., p. 241-242.
MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de Direito Civil, v. 3, p. 83.
Vale anotar o ensinamento do professor DARCY BESSONE (In: O Novo Código Civil Comentado , vol. 2,
p. 1.155) acerca de serem ou não sinônimas as expressões propriedade e domínio: “Duas correntes
defrontam-se em relação ao problema. Uma pretende que são sinônimos os termos propriedade e
domínio. Outra sustenta que eles têm significados diferentes pois que a propriedade teria objeto mais
amplo do que o domínio: o objeto daquela seria tanto a coisa corpórea quanto a incorpórea, enquanto o
deste somente se aplicaria à corpórea. A diferença, como se vê, seria objetiva.”
Veja-se a respeito do assunto a definição trazida por MARIA HELENA DINIZ (Citada por GUERRERO, O
fundamento científico..., p. 190): “Propriedade. (...) 2. Direito civil. a) O que pertence a uma pessoa; b)
imóvel rural ou urbano; c) relação jurídica de apropriação de um bem corpóreo ou incorpóreo; d) poder
que se exerce sobre coisas; e) direito que tem uma pessoa de tirar diretamente da coisa toda a sua
utilidade (Tito Fulgêncio); f) poder assegurado pelo grupo social à utilização dos bens da vida psíquica e
moral (Clóvis Beviláqua); g) direito real que vincula à nossa personalidade uma coisa corpórea sob todas
as suas relações (Lacerda de Almeida); h) direito que a pessoa física ou jurídica tem, dentro de limites
normativos, de usar, gozar e dispor de um bem, corpóreo ou incorpóreo, bem como de reivindicá -lo de
quem injustamente o detenha; i) é o direito, excludente de outrem, que dentro dos limites do interesse
público e social submete juridicamente a coisa corpórea, em todas as suas relações (substância,
acidentes e acessórios), ao poder do sujeito, mesmo quan do injustamente esteja sob a detenção física
de outrem (R. Limongi França); j) é o direito real exercido de modo absoluto, exclusivo e em geral,
perpétuo (Cunha Gonçalves). (...)”
32
22
Reconhecendo o direito de propriedade em sua acepção lata e, portanto, sua
existência face bens corpóreos e/ou incorpóreos é pos sível citar diversos doutrinadores
como, por exemplo, WASHINGTON DE BARROS MONTEIRO, SÍLVIO DE SALVO
VENOSA, FRANCISCO CARAMURU (em obra coordenada por Carlos Alberto Bittar) e
LEIB SOIBELMANN.
WASHINGTON DE BARROS MONTEIRO, ao tratar a este respeito, esc larece
que o direito de propriedade terá, conforme seu objeto, um regramento próprio
33
. De se
inferir, portanto, que o direito de propriedade não está, necessariamente, disciplinado
pelo Código Civil, sendo possível afirmar, portanto, que em algumas oportun idades,
possa prescindir de alguns dos elementos que, segundo o Direito Civil, a
caracterizariam.
VENOSA, ao se referir à propriedade de bens incorpóreos aduz ao vocábulo
“titularidade”, em substituição a “propriedade”. Embora faça esta alusão, não repugn a,
entretanto, a utilização deste termo, ainda que se trate de bens incorpóreos. Neste
sentido, vale destacar que no presente estudo os termos propriedade e titularidade
serão utilizados indistintamente, quando se referir às ações 34.
33
“(...) Efetivamente, é possível distinguir diversos direitos de propriedad e, de acordo com o seu objeto,
cada um subordinado a regras próprias. Assim é que se depara com um direito de propriedade móvel e
imóvel; de coisas materiais e imateriais; de imóveis urbanos e de imóveis rurais. Com essa distinção,
talvez se torne mais fácil estabelecer regramento adequado à natureza, finalidade e importância de cada
tipo de propriedade.” (Curso de Direito Civil, v. 3, p. 83, nota 3.)
34
“O direito de propriedade, (...) engloba tanto os bens corpóreos e incorpóreos, como os móveis e os
imóveis. (...) Tem, portanto, como objeto, regra geral, todos os bens apropriáveis. A terminologia atual
aceita domínio e propriedade como sinônimos, embora, como acentuado, se reserve com maior uso o
termo propriedade para os bens imateriais, referindo -se o domínio de forma mais ampla aos bens
corpóreos e incorpóreos. Geralmente não se alude ao titular de direito e crédito, de patente de invenção,
de direito intelectual como proprietário, ‘ mas a amplitude semântica do vocabulário jurídico não repugna
designar a titularidade dos direitos sobre bens incorpóreos como ‘propriedade’.” (Direito Civil, vol. V, p.
188.)
CARLOS ALBERTO BITTAR ( Direitos reais, p. 4-5) afirma: “A nível dos direitos, deve -se enfatizar a
compreensão dos sobre certos bens incorpóreos, ou esta dos juridicamente reconhecidos (como a posse
dos direitos pessoais e a posse de estado ou de função). Admite -se ora, após inúmeras discussões
doutrinárias, a extensão da posse a direitos pessoais, ou seja, acolhem -se direitos como objeto de posse.
Ao revés, a idéia de propriedade vem sendo substituída pela de titularidade de direitos no plano dos
direitos intelectuais, que se submetem a tratamento legislativo especial, no qual se mesclam, em unidade
incindível, elementos morais e patrimoniais, que lhes empr estam qualificação própria, destacada da dos
direitos puramente reais. Ajusta -se, com isso, o âmbito dos direitos reais à evolução operada na doutrina
científica e aos progressos alcançados na vida de relações, diante, principalmente, da expansão
tecnológica e da conseqüente necessidade de conferir -se proteção mais adequada a esses interesses,
que envolvem direitos transcendentes da estrutura social e individual.”.
23
LEIB SOIBELMAN assever a que sob a ótica constitucional o direito de
propriedade deve ser considerado segundo sua concepção lata e esclarece 35:
“Em direito Constitucional o conceito de propriedade é mais amplo que o do
direito civil. Abrange todo bem que pode ser objeto de um di reito, tudo o
que o Estado reconhece como pertencente ao particular , seja de natureza
corpórea ou incorpórea. Isto se explica porque o direito constitucional se
preocupa menos com o objeto do que com o direito de propriedade reconhecido
como esfera pessoal da vida de cada um. Utiliza a palavra propriedade com o
mesmo sentido de direitos ou garantias individuais. Daí autores dizerem que,
constitucionalmente falando, a propriedade se confunde com o patrimônio
privado do cidadão por oposição ao Estado, e ela é real, pessoal ou mista.”
(destacou-se)
PONTES DE MIRANDA, por sua vez, ensina: “(...) em sentido amplíssimo,
propriedade é o domínio ou qualquer direito patrimonial. Tal conceito transborda o
direito das cosias. O crédito é propriedade. Em sentido amplo , propriedade é todo
direito irradiado em virtude de ter incidido regra de direito das coisas. (...)”.
35
36
.
Enciclopédia do Advogado . MANOEL GONÇALVES FERREIRA FILHO ( Comentários à constituição
brasileira de 1988, p. 45): “A primeira inclinação é dar ao termo o sentido com que o toma o direito civil:
direito de usar, gozar e dispor de alguma coisa. Entretanto, se essa fosse a definição verdadeira, os
demais direitos patrimoniais, os créditos, por exem plo, não seriam constitucionalmente protegidos,
podendo ser expropriados sem indenização. Ora, isso seria absurdo, na medida em que a propriedade
imóvel não é mais a única fonte de riqueza almejada e em que créditos constituem a fortuna de muitos
ricos e o pecúlio de alguns pobres. (...) Assim, no texto em exame, a Constituição consagra o direito
fundamental de não ser alguém despojado de direito de seu patrimônio sem justa indenização.”
36
Tratado de Direito Privado, t. XI, p. 9.
EROS ROBERTO GRAU ( Elementos..., p. 123): “(...) a propriedade não constitui uma instituição única,
mas o conjunto de várias instituições, relacionadas a diversos tipos de bens. Não podemos manter a
ilusão de que à unicidade do termo – aplicado à referencia a situações diversas – corresponde a real
unidade de um compacto e íntegro instituto. A propriedade, em verdade, examinada em seus distintos
perfis – objetivo, subjetivo, estático e dinâmico – compreende um conjunto de vários institutos. Temo -la,
assim, em inúmeras formas, subje tivas e objetivas, conteúdos normativos diversos sendo desenhados
para a aplicação de cada uma delas (...)”.
24
No esteio da doutrina acima, esclarece CARAMURU: “Dentro dessa perspectiva
(constitucional), direito de propriedade significa direito a ter um patrimô nio de conteúdo
econômico, a ter algo como próprio, seja este algo corpóreo ou não.” 37.
A noção de patrimônio, referida por CARAMURU (e que poderá ser utilizada no
decorrer deste estudo) pode ser sintetizada na seguinte fórmula: patrimônio é o
conjunto dos direitos reais e das obrigações, ativos e passivos, pertencentes a uma
pessoa. Engloba, portanto, o direito de propriedade 38.
Feitas estas considerações, vale destacar, o entendimento de CARLA OSMO
39
:
“O regime jurídico da propriedade conferiu, na sua o rigem, maior atenção à
proteção dos direitos sobre bens imóveis. (...) No entanto o conceito de
propriedade atingiu ao longo da história realidades diversas, como a de bens
móveis, imóveis, urbanos ou rurais, públicos ou privados, propriedade artística,
literária, científica e industrial, e propriedade de crédito. Com a dinamização da
propriedade em propriedades torna -se possível a concepção da empresa
também como uma espécie de propriedade.
A propriedade passou também a ser percebida não apenas como a rel ação do
sujeito com a coisa, mas como uma relação jurídica complexa, envolvendo
diversos sujeitos – (...). A coletividade, por exemplo, (...). E nas sociedades
37
Expressão entre parênteses inexistente no original. In.: A propriedade e os direitos reais na
constituição de 1988..., p. 20. A este respeito, pr ossegue, afirmando que a propriedade em sentido estrito
pode ser definida com clareza em três aspectos, “(...) como muito bem delineou o Prof. Orlando Gomes a
saber:”
“a) Sintético – submissão de uma coisa, em todas as suas relações, a uma pessoa (Windsche id);
b) Analítico – direito de usar, fruir e dispor de um bem e de reavê -lo de quem injustamente o possua (art.
524);
c) Descritivo – direito complexo, absoluto, perpétuo e exclusivo pelo qual uma coisa fica submetida à
vontade de uma pessoa, com as limita ções da lei. Esta tríplice caracterização do direito de propriedade
abarca em realidade toda a extensão deste conceito estrito. É este o direito de propriedade objeto do
direito civil.” (op. cit. p. 25 -26)
38
VENOSA, Direito Civil, vol. V, p. 190. CARLOS AL BERTO DA MOTA PINTO ( Teoria Geral do Direito
Civil, p. 342 e segs.) trata a respeito da noção de patrimônio, esclarecendo que este pode ser visto como
o patrimônio global, o qual consiste num “(...) conjunto de relações jurídicas activas e passivas (direit os e
obrigações) avaliáveis em dinheiro de que ma pessoa é titular. 1) Trata -se do conjunto de relações
jurídicas; (...) O patrimônio é integrado por direitos sobre as coisas (propriedade, usufruto, etc.), direitos
de crédito, obrigações e outros direitos patrimoniais. 2) Não fazem parte do patrimônio certas realidades,
susceptíveis de ter grande relevância para a vida econômica das pessoas, mas que não são relações
jurídicas existentes, (...). 3) Só fazem parte do patrimônio as relações jurídicas susceptív eis de avaliação
pecuniária.”.
25
anônimas, são proprietários os acionistas, que apenas possuem poder
sobre parte do capital da em presa representado por títulos passíveis de
simples e rápida transferência.” (destacou -se)
Neste esteio, mencione -se a existência de inúmeras obras tratando sobre a
proteção da propriedade intelectual (patentes, direito autoral, e, mais recentemente, a
biotecnologia, dentre outras) 40.
Diante da doutrina citada, cabe observar que o artigo 5º, incisos XXII e XXIII, da
Constituição Federal, ao tratar das garantias individuais, bem como o artigo 170, II e III
da Carta, ao tratar dos princípios da ordem econôm ica, refere à propriedade (e sua
função social) de forma ampla, sem fazer qualquer alusão acerca dos bens que seriam
seu objeto. De outro modo, vê -se, que existem outros dispositivos específicos tratando
acerca da função social das propriedades urbana e ru ral41.
Sendo assim, pelo exposto, de se concluir que a Constituição Federal, ao tratar
da propriedade (e sua função social) nos artigos 5º, XXII e XXIII e 170, II e III, está a se
referir à propriedade lato sensu, englobando, portanto, não apenas os bens corpóreos
passíveis de apropriação.
39
Pela Máxima Efetividade da Função Social da Empresa, p. 268-269.
Como exemplos confiram -se as seguintes obras que, por seu título já deixam clara a abordagem dos
direitos como “de propriedade”: (i) TACHINARDI, Maria Helen a. A guerra das patentes. São Paulo: Paz e
Terra, 1993. (ii) DEL NERO, Patrícia Aurélia. Propriedade intelectual A tutela jurídica da biotecnologia.
São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1998. (iii) SILVEIRA, Newton. A propriedade intelectual e as
novas leis autorais. 2ª. ed. São Paulo: Saraiva, 1998. (iv) BARBOSA, Denis Borges. Uma introdução à
propriedade intelectual. Biotecnologia e Propriedade Intelectual. Topografias, Know how e Segredos
Industriais. Anotações à Lei 9.456, de 25 de abril de 1997. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 1998.
“Há várias definições de bem. Aquela que mais se aproxima da matéria relativa à propriedade intelectual
é a que afirma que bem é tudo aquilo, corpóreo ou incorpóreo, que, contribuindo direta ou indiretamente,
venha propiciar ao homem o bom desempenho de suas atividades, que tenha valor econômico e que seja
passível de apropriação pelo homem.” (DI BLASSI, Gabriel. GARCIA, Mario Soerensen. MENDES, Paulo
Parente M. A propriedade industrial: os sistemas de marcas patentes e de senhos industriais analisados a
partir da Lei n. 9.279, de 14 de maio de 1996 , p. 16.)
41
Neste sentido, veja-se: SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo , p. 743.
A par destas previsões genéricas, a Constituição contém outras previs ões, referindo-se à função social
da propriedade. A maioria – senão a totalidade – destas demais disposições vincula -se à propriedade
material, imobiliária (por exemplo, artigo 184 – desapropriação; artigo 5º XXV – ocupação temporária da
propriedade privada em caso de eminente perigo público; artigo 5º, XXVI - impenhorabilidade da pequena
propriedade rural trabalhada pela família, para a satisfação de débitos relacionados a sua atividade
produtiva).
40
26
Desta forma, embora alguns doutrinadores vinculem seus estudos à concepção
de propriedade apenas aos bens imóveis 42, nos capítulos subseqüentes referir -se-á à
concepção ampla do direito de propriedade (e de sua função s ocial).
Seção 2 - O princípio constitucional da função social da propriedade
A Constituição reconhece, conforme já esclarecido anteriormente, o direito de
propriedade (artigo 5º, XXII), o qual é conformado pela função social da propriedade
(artigo 5º, XXIII), de forma que não pode existir propriedade que não cumpra sua função
social.
O direito de propriedade e a função social da propriedade são também
princípios da ordem econômica (artigo 170, II e III da Constituição Federal), sendo que
a ordem econômica tem por finalidade assegurar a todos existência digna, conforme os
ditames da justiça social 43.
42
Neste sentido, ARNOLDO WALD ( Direito das Coisas, p. 115-116) afirma: “São objetos do direito de
propriedade os bens corpóreos, ou seja, as coisas móveis, imóveis ou semoventes. O direito hodierno
refere-se todavia à propriedade literária, científica e artística (...). Tecnicamente, devemos reconhecer a
ausência de fundamentos dessa extensão do conceito de propriedade, em virtude da natureza diversa
dos direitos que se quer incluir sob uma única rubrica. (...)”.
43
MANOEL GONÇALVES FERREIRA FILHO (Curso de Direito Constitucional, p. 350-351) sintetiza a
linha histórica que culminou com a inclusão da função social da propriedade dentre os princípios da
ordem econômica: “Até a Primeira Guerra Mundial, como já se assinalou anteriormente, as Constituições
só se preocupavam com a organização política. A essa regra abre exceção a revolucionária Constituição
mexicana de 1917 cuja influência imediata foi pequena. Na verdade, foram as Constituições do após guerra, Weimar (1919) e outras, que procuravam acrescentar às Constituições, normas que estendessem
aos campos econômico e social os valores, se não os mecanismos democráticos. Daí em diante no
Brasil, a partir de 1934, em geral se abriu espaço nas Constituições para a ordem econômica e social.
Assim, ao lado dos preceitos sobre a organização política – (...) – as Constituições modernas passaram a
conter também um complexo de regras auto -aplicáveis e princípios programáticos destinados a dar
raízes, nos planos econômico e social, à democracia política.”. E prossegue: “A Constituição vigente, ao
fixar os princípios fundamenta is do ordenamento econômico, não fugiu à linha traçada pela Lei Magna
anterior. Seguindo-a, embora, não a copiou. Antes, explicitou o que na obra dos constituintes anteriores
fora, talvez, sintetizado demais. Como as Leis Fundamentais de 1946 e 1967, a nov a Carta nesse ponto,
como noutros, revela influência nítida da doutrina social da Igreja e particularmente dos documentos
pontifícios mais recentes, como a Mater et Magistra. Atenta, porém, às idéias do seu tempo, não olvidou
de sublinhar o desenvolvimento econômico e a repressão aos abusos do poder econômico, erigidos,
hoje, em pilares de nossa ordem econômica.”.
A respeito da funcionalização do direito de propriedade, CORTIANO JÚNIOR ( O discurso jurídico da
propriedade..., p. 137-162): “A visão da função social da propriedade passa pelo redimensionamento
mesmo do direito de propriedade, e não como mais um limite aposto aos poderes proprietários. A
concepção de que a propriedade deve ser utilizada de forma solidarística ‘ incide sulla strutura tradizionale
della proprietá dall’interno ’, a tal ponto que se pode sustentar que a função social é a razão mesma pela
qual o direito de propriedade é atribuído a certo sujeito. Com a função social, a idéia de condicionamento
27
Como visto em capítulo antecedente, a propriedade prevista nos artigos 5º,
XXII, e 170, II, não está adstrita à propriedade física. Igualmente, a função soc ial,
constante dos artigos 5º, XXIII, e 170, III, da Constituição Federal, não se limita à
funcionalização da propriedade material 44.
Ao lado da função social, a liberdade de iniciativa também encontra resguardo
enquanto princípio (fundamento) da ordem eco nômica, devendo estar voltada, tal qual a
propriedade e a função social da propriedade, a assegurar a todos existência digna.
A este respeito EDUARDO TEIXEIRA FARAH afirma que “Fundamentada no
princípio da livre iniciativa, a Carta Magna brasileira recon hece a propriedade privada e
a reserva da atividade econômica aos particulares, porém condiciona -as à dignidade da
pessoa humana e à valorização do trabalho, e as dirige à construção de uma sociedade
livre, justa e solidária. Isso deve ocorrer porque propr iedade e livre iniciativa são apenas
princípios-meios, e desta forma devem estar balizados no reconhecimento do valor da
pessoa humana como fim.” 45.
“Reconhecendo a função social da propriedade, sem a renegar, a Constituição
não nega o direito exclusivo do dono sobre a coisa, mas exige que o uso da coisa seja
condicionado ao bem-estar geral.” 46.
Assim, pela unidade da Constituição, tem -se que, ao estipular a função social
da propriedade, o direito de propriedade e a livre iniciativa, a Carta manteve o siste ma
econômico capitalista e, simultaneamente, conformou -o à justiça social 47.
de um direito a uma finalidade, geralmente adstrita ao direito público, ingressa no direito privado e
conforma o direito de propriedade: (...)”.
Para VARELA (Das propriedades à propriedade... , p. 730-731): “(...) equivoca-se a ‘tendência
publicizante’ ao situar todo o direito de propriedade, desde que funcionalizado, sob o manto do direito
público. O olhar sobre a história do direito de propriedade revela que o dever de aproveitamento
econômico dos bens não é inovação do recente princípio da função social, antes constitui fundamento
constante na evolução das relações jurídicas reais, expressão humana da necessidade econômica de
sobrevivência.”.
44
GUERRERO (O fundamento científico..., p. 216) afirma: “É assim que a análise da propriedade,
mesmo na esfera constitucional, extrapola as coisas corpórea s.”.
45
FARAH, Disciplina da Empresa..., p. 676. Este doutrinador entende (p. 677): “Quanto aos fundamentos
constitucionais vinculados à ordem econômica, e que submetem a disciplina da empresa e suas relações,
em ordem de prevalência, são: dignidade da pe ssoa humana; a construção de uma sociedade livre, justa
e solidária; garantir o desenvolvimento nacional; erradicação da pobreza e da marginalização e a redução
das desigualdades sociais e regionais; liberdade de associação profissional ou sindical; a suje ição da
ordem econômica aos ditames da justiça social.”.
46
MANOEL GONÇALVES FERREIRA FILHO, Curso de Direito Constitucional , p. 353.
47
A este respeito observa CARLA OSMO ( Pela máxima efetividade..., p. 263): “Assim, embora a
Constituição, em seus preceitos genéricos e abstratos, não admita contradições, apresenta dimensões
28
Desta forma, é possível conceber a função social como um princípio que “traça
uma linha de ajuste entre a liberdade e a subordinação ao interesse coletivo”
48
. “Não
se nega a fruição econômica da propriedade, mas não se admite que os interesses
econômicos – e aí compreendam-se os que produzem vantagens a determinado grupo
de indivíduos – possam gerar prejuízos para o todo social. (...) A funcionalização não é
limitadora, é delineadora dos direitos. Exerce a conformação jurídica dos diversos
institutos que em sua essência têm seu conteúdo amoldado à função que o
ordenamento jurídico lhes atribui. Os institutos apenas o são enquanto atendam a
função social que lhes é inerente.”
49
.
A função é um dos fundamentos essenciais ao direito de propriedade, mas
deve, também, ser preservado um núcleo mínimo de liberdade no exercício dos
diversas, mutuamente relacionadas e condicionantes, como a liberdade de iniciativa e a busca da justiça
social. (...) Não é fácil a manutenção de equilíbrio, que demanda a composição da t ensão entre liberdade
e igualdade. No momento da concretização das normas constitucionais, quando elas são interpretadas
visando a sua aplicação ao problema concreto, e diante das reivindicações de cada grupo social que
possui equivalente proteção ao seu i nteresse, ressurgem as antinomias. Para a resolução dessa espécie
de problemas, a nova teoria da interpretação constitucional desenvolveu princípios auxiliares à atividade
do intérprete. Dentre eles, o princípio da unidade da Constituição (...)”. A respeit o deste princípio, cita J.J.
GOMES CANOTILHO: “(...) ‘com ele se quer significar que a constituição deve ser interpretada de forma
a evitar contradições (antinomias, antagonismos) entre as suas normas. Como ‘ponto de orientação’,
‘guia de discussão’ e ‘fac tor hermenêutico de decisão’, o princípio da unidade obriga o intérprete a
considerar a constituição na sua globalidade e a procurar os espaços de tensão existentes entre as
normas constitucionais a concretizar’ ( Direito constitucional e teoria da Constitu ição, p. 1.223)”.
EDUARDO TEIXEIRA FARAH ( Disciplina da Empresa e Princípio da Solidariedade Social , p. 675)
destaca: “Observa-se que o legislador, ao enumerar estes princípios de forma aleatória, estabeleceu a
necessária complementaridade entre eles, uma vez que nenhuma ‘ordem’ pode ser considerada como
um fato, mas apenas como uma construção normativa. Ademais, estes princípios políticos constitucionais
conformadores do referido art. 180 devem assegurar a efetividade das normas reitoras estabelecidas no
art. 1º da mesma Carta Política. Estes princípios que regulam a ordem econômica devem estar em
harmonia com as diretrizes estabelecidas nos artigos 1º e 3º, da própria Constituição Federal brasileira,
principalmente em face da dignidade da pessoa humana e d a solidariedade social.”.
48
Neste sentido: CARLA OSMO, Pela máxima efetividade..., p. 264.
49
GUERRERO, op. cit., p. 252.
“Sem dúvida, a propriedade não é sagrada como afirmava a Declaração de 1789. É um direito
fundamental que não está nem acima nem abaix o dos demais. Deve, como os demais, sujeitar -se às
limitações exigidas pelo bem comum.” (FERREIRA Filho, Manoel Gonçalves. Curso de Direito
Constitucional, p. 299).
29
poderes dominiais, sob pena de perder sua característica privada e passar ao domínio
(possivelmente autoritário) do Estado 50.
Vale citar a análise de ZIPELLIUS sobre a questão da liberdade 51:
“Um excesso de liberdade ameaça a igualdade, uma equiparação excessiva
aniquila a liberdade. Por outro lado, uma certa medida de igualdade, e também
de oportunidades fáticas de desenvolvimento, é imprescindível para preservar
duradouramente a liberdade como liberdade universal. Analisando o problema
mais em pormenor, revela -se, pois, rapidamente que atrás de palavras de
ordem, aparentemente tão simples, se ocultam inter -relações subtis e,
sobretudo, também questões de justa medida. Mesmo quando se analisa
separadamente um dos elementos – a ‘liberdade’- está-se perante um conceito
multifacetado:
‘liberdade’
significa
não
só
preservar
um
espaço
de
desenvolvimento individual livre d e interferências do Estado mas também
participar na formação da vontade comunitária. Designa não só a defesa contra
intromissões do Estado mas também a delimitação e protecção das esferas de
liberdade e interesses na relação entre os próprios membros da co munidade.”.
E prossegue 52:
“À liberdade juridicamente garantida de um corresponde, necessariamente, a
vinculação do outro. A vinculação de todos é o preço das liberdades de cada
um. (...) O problema jurídico da liberdade radica, portanto, desde logo, nã o na
50
CARLA OSMO, Pela máxima efetividade... , p. 278.
“Em suma, o direito de propriedade deve ser analisado, sob essa perspectiva renovada, pelos valores
constitucionais, como um dos instrumentos básicos de manutenção (ou mesmo de implemento) de um
grau mínimo de dignidade de cada pessoa.” (VARELA, Da Propriedade às Propriedades…. , p. 785).
“Propriedade não é função social, seu exercício, sim, deve atender a essa função social, pautada pelos
limites taxativamente enumerados na legislação. Esse é o primeiro aspecto da função social da
propriedade. (...)”.(MELLO, Henrique Ferraz de. Função Social..., p.355).
51
Teoria Geral do Estado, p. 445.
52
Teoria Geral do Estado, p. 449.
30
determinação de direitos de liberdade para indivíduos isolados, mas no
estabelecimento de princípios de acordo com os quais se poderá conciliar a
liberdade de um com a liberdade do outro.”.
Mais adiante conclui, ainda 53:
“Em harmonia com os princíp ios constitucionais já referidos, a propriedade está
sujeita a vinculações sociais (‘A propriedade obriga. O seu uso deve, ao mesmo
tempo, servir o bem-estar geral’. A expropriação e a socialização são lícitas.)
Segundo um outro princípio, todos são obriga dos a participar dos encargos
públicos. Em tais princípios, e em especial no princípio geral do Estado social,
torna-se manifesto que sobre o Estado recai também a missão de distribuir, de
modo justo, as liberdades, e também as condições materiais para o
desenvolvimento da personalidade.”.
Neste esteio, vale anotar o entendimento de GUERRERO segundo o qual: “A
função social resulta como inerente ao direito enquanto expressão da vocação
axiológica humana, instrumento para a persecução e perpetuação do bem comum
(...)”54. A função social não é externa ao direito de propriedade, mas o integra: não se
pode interpretar o ordenamento infraconstitucional sem recurso à Constituição
55
.
A função social, diz RODOTÀ refere -se “(...) tanto ao fundamento da atribuição
deferida ao particular como ao modo em que concretamente vem a ser determinado o
conteúdo.” 56.
Assim, a propriedade pode ser vista como uma relação jurídica complexa, como
bem esclarece CAMILO AGUSTO AMADIO GUERRERO 57:
“Fala-se, então, em propriedade como r elação jurídica complexa para exprimir
não a concepção individualista que historicamente informou a propriedade e
53
Teoria Geral do Estado, p. 451.
Op. cit., p. 216.
55
Neste sentido: GUERRERO, op. cit., p. 249.
56
Conclusões de RODOTÀ referidas por MALUF, Limitações ao Direito de Propriedade. .., p. 98.
54
31
que se caracterizava pela possibilidade de fazer tudo o que o sistema não
vedava, mas sim para reconhecer a propriedade conformada (e não limi tada)
pelo sistema, quer dizer, integrada não apenas pela potestade, mas também
pela delimitação que lhe foi atribuída fática e essencialmente e que integra o
próprio instituto da propriedade (daí haver a atividade conformativa do
legislador, ao invés da l imitativa em que se poderia pensar). É nesse sentido
que se reconhece a função social da propriedade como inerente à estrutura da
própria propriedade, sendo considerada ‘fonte de estímulo e sanções de
determinadas condutas’ que opera ‘tanto no sentido de v incular o legislador
infraconstitucional como também o intérprete.”
À propriedade é, portanto, inerente a função social, que retira o seu caráter
estritamente individualista, conformando -a, enquanto direito e garantia individual e
princípio da ordem econô mica, voltando-se ao fomento da dignidade da pessoa
humana.
“O proprietário deixa de ser visto como individuo, a quem a ordem privilegia,
com a outorga do poder usar e gozar da coisa de forma absoluta, e passa a ser
considerado cidadão que, ao se tornar ti tular do direito de propriedade, paralelamente
às faculdades próprias dos poderes proprietários, assume também obrigações que
devem ser satisfeitas no exercício concreto do direito. Está implícito na função social,
portanto, a valorização do exercício efet ivo dos poderes proprietários em detrimentos
de outorga formal do titulo de propriedade ao proprietário, sem compromisso, neste
caso, com a exploração socioeconômica efetiva da coisa objeto a propriedade. A
função social, neste sentido, é elemento finalíst ico que obriga o conceito de propriedade
a assimilar os valores da realidade em que exercidos os poderes proprietários.”
58
.
Neste sentido, observe -se que decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal
na Ação Direta de Inconstitucionalidade 1950/SP (DJ 02 /06/06), cuja Ementa
transcreve-se a seguir:
57
58
O fundamento..., p. 195.
FRANCISCO CARDOZO DE OLIVEIRA, Hermenêutica..., p. 245.
32
“AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI N. 7.844/92, DO
ESTADO
DE
SÃO
ESTUDANTES
PAULO.
MEIA
REGULARMENTE
ENTRADA
ASSEGURADA
AOS
MATRICULADOS
EM
ESTABELECIMENTOS DE ENSINO. INGRESSO EM CASAS DE DIVERSÃO,
ESPORTE, CULTURA E LAZER. COMPETÊNCIA CONCORRENTE ENTRE A
UNIÃO, ESTADOS-MEMBROS E O DISTRITO FEDERAL PARA LEGISLAR
SOBRE
DIREITO
ECONÔMICO.
CONSTITUCIONALIDADE.
LIVRE
INICIATIVA E ORDEM ECONÔMICA. MERCADO. INTERVENÇÃO DO
ESTADO NA ECONOMIA. ARTIGOS 1º, 3º, 1 70, 205, 208, 215 e 217, § 3º, DA
CONSTITUIÇÃO DO BRASIL.
1. É certo que a ordem econômica na Constituição de 1.988 define opção por
um sistema no qual joga um papel primordial a livre iniciativa. Essa
circunstância não legitima, no entanto, a assertiva d e que o Estado só intervirá
na economia em situações excepcionais.
2. Mais do que simples instrumento de governo, a nossa Constituição
enuncia diretrizes, programas e fins a serem realizados pelo Estado e pela
sociedade. Postula um plano de ação global no rmativo para o Estado e
para a sociedade, informado pelos preceitos veiculados pelos seus
artigos 1º, 3º e 170.
3. A livre iniciativa é expressão de liberdade titulada não apenas pela empresa,
mas também pelo trabalho. Por isso a Constituição, ao contempl á-la, cogita
também da "iniciativa do Estado"; não a privilegia, portanto, como bem
pertinente apenas à empresa.
4. Se de um lado a Constituição assegura a livre iniciativa, de outro
determina ao Estado a adoção de todas as providências tendentes a
garantir o efetivo exercício do direito à educação, à cultura e ao desporto
[artigos 23, inciso V, 205, 208, 215 e 217 § 3º, da Constituição].
Na
composição entre esses princípios e regras há de ser preservado o
interesse da coletividade, interesse público primá rio.
5. O direito ao acesso à cultura, ao esporte e ao lazer, são meios de
complementar a formação dos estudantes.
33
6. Ação direta de inconstitucionalidade julgada improcedente.” (destacou -se)
O conteúdo da função social da propriedade pode ser determin ado pela
consideração dos demais princípios constitucionais conformadores da ordem
econômica, dentre os quais a livre concorrência (artigo 170, IV), a proteção do
consumidor (artigo 170, V), do meio ambiente (artigo 170, VI) e do empregado (artigo
170, VIII)59.
Com a funcionalização do direito de propriedade passa a ser importante saber a
concreta situação do sujeito nas suas relações de propriedade. O não proprietário deixa
de ser apenas o sujeito passivo universal, titular de um dever genérico de abstenç ão,
passando a se inserir numa situação jurídica subjetiva complexa, tendo direito de exigir
de quem proprietário é o cumprimento da função social da propriedade 60.
Apesar da doutrina majoritária se apresentar no sentido exposto acima (pela
observância da função social), CARLOS ALBERTO DABUS MALUF assinala que “(...)
ainda hoje alguns autores insurgem -se contra a concepção da função social,
entendendo-a como formula ambígua, na qual se exprime a contradição dogmática de
inserir o conceito de direito subjet ivo o de função, que pressupõe obrigações e ônus.” 61.
A este respeito, MALUF comenta: “O que passa despercebido de tais autores,
adverte Eros Roberto Grau, é o fato de que, na medida em que se verifica a integração
da função social nos modernos conceitos d e propriedade, consuma -se na fórmula, a
conciliação do individual e do social. Passa o princípio assim, inserido naqueles
conceitos, a determinar profundas alterações estruturais na sua interioridade.
Expressão das modernas tendências que caracterizam o tr atamento conferido pelo
direito de nossos dias à realidade social – na busca de uma integração entre os ideais
individuais e sociais -, as modernas concepções de propriedade são aplicadas à
preservação de uma situação de equilíbrio entre o individual e o s ocial.”62.
59
CARLA OSMO, Pela máxima efetividade... , p. 183.
CORTIANO JÚNIOR, O discurso jurídico..., p. 152-154.
61
Limitações ao Direito de Propriedade... , p. 70.
62
Limitações ao Direito de Propriedade... , p. 70-71.
60
34
Embora se faça a ressalva acima, para o presente estudo, adotar -se-á a
corrente doutrinária majoritária, que defende a aplicação da função social ao direito de
propriedade.
Vale a pena concluir citando FRANCISCO CARDOZO DE OLIVEIRA 63:
“A definição de relação proprietária concreta, deste modo, conforme ressalta
Anna de Vita, deixa de ser quantitativa e passa ser qualitativa. Ou seja, não se
trata de impor limites abstratos ao exercício dos poderes proprietários. Exige -se
dos proprietários utiliza ção do bem objeto da propriedade condizente com os
valores tutelados pelo principio da função social. E a utilidade social surgida da
funcionalização é aferida pela valoração do exercício dos poderes proprietários,
considerada a relação entre proprietários e não-proprietários.”
Seção 3 – Da efetividade dos princípios constitucionais
“Em síntese, pode-se afirmar: a Constituição
jurídica
está
condicionada
pela
realidade
histórica. Ela não pode ser separada da
realidade concreta de seu tempo. A pretensão
de eficácia da Constituição somente pode ser
realizada se levada em conta esta realidade.”
(KONRAD HESSE) 64
“A idéia de efetividade, conquanto de desenvolvimento relativamente recente,
traduz a mais notável preocupação do constitucionalismo nos últimos tempo s. Ligada
ao fenômeno da juridicização da Constituição, e ao reconhecimento e incremento de
sua força normativa, a efetividade merece capítulo obrigatório na interpretação
constitucional.” 65.
63
Hermenêutica..., p. 271.
A força normativa..., p. 24.
65
BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição, p. 246.
64
35
Preliminarmente, observa -se que, no campo da eficácia constituci onal,
usualmente distingue-se entre princípios e regras 66.
CANOTILHO considera “regras” as normas que “(...) verificados determinados
pressupostos, exigem, proíbem ou permitem algo em termos definitivos, sem qualquer
excepção (...)” e princípios, aquelas q ue “(...) exigem a realização de algo, da melhor
forma possível, de acordo com as possibilidades fáticas e jurídicas. Os princípios não
proíbem, permitem ou exigem algo em termos de ‘tudo ou nada’; impõem a optimização
de um direito ou de um bem jurídico, tendo em conta a ‘reserva do possível’, fática ou
jurídica” 67.
Segundo DWORKIN, as regras e os princípios distinguem -se em função de
duas diferenças fundamentais 68.
A primeira delas é sob a perspectiva lógica, em razão da solução que oferecem:
as regras são ou não aplicáveis por completo, ao passo que os princípios não
estabelecem de maneira clara a quais circunstâncias da realidade são aplicáveis, nem
quais as suas exceções, não determinam, também, as conseqüências jurídicas que
devem decorrer de sua apli cação.
A segunda distinção fundamental, para DWORKIN, reside no critério de
importância e de peso específico. Enquanto os princípios devem ser sopesados pelo
julgador na sua aplicação, em caso de “conflitos”, as regras são aplicadas, ou não,
segundo critérios de superioridade, posterioridade e especialidade.
ALEXY critica parcialmente as justificativas apresentadas por DWORKIN. Neste
esteio, afirma que as regras são aplicadas pela subsunção, ao passo que os princípios
são aplicados pela ponderação. No caso de conflito de princípios, um princípio deve
66
No dizer de BARROSO ( Interpretação e Aplicação da Constituição, p. 151) “normas-princípio” e
“normas-disposição”.
67
Direito Constitucional..., p. 1239.
68
Síntese extraída das observações de CARLOS BERNAL PULIDO ( El Principio de proporcionalidad y
los derechos fundamentales, p. 570–572) acerca das conclusões de DWORKIN sobre o tema. PULIDO
esclarece ainda que: “Esta circunstancia se produce, porque la tesis principal de Dworkin sostiene que el
ordenamiento jurídico no sólo está conformado por reglas – según pretendería el positivismo -, sino
também por reglas este modo, cuando no existe uma regla específica para solucionar um caso dado o
cuando la regla pertinente es indeterminada – los casos dificíles -, el juez no se encuentra em una
situacíon em la que pueda tomar una decisión enteramente discrecional. Por el contrario, la de cisión
debe provenir de la aplicación rigurosa de los principios jurídicos.”.
36
ceder em face de outro (ponderação). No conflito de normas, uma é declarada inválida
segundo critérios de hierarquia, posterioridade e especialidade 69.
CANOTILHO apresenta distinções entre regras e princípios “( ...) segundo vários
critérios, seguindo autores norte -americanos (Dworkin), alemães (Esser, Larenz e
Canaris) e italianos (Guastini)”. Dentre estas distinções, apresenta diferenças quanto
ao70:
(i)
Grau de abstração: os princípios apresentam elevada abstração e as
regras, baixa;
69
Referência a idéias de ALEXY, extraídas da síntese efetuada por CARLOS BERNAL PULIDO ( El
Principio de proporcionalidad y los derechos fundamentales, p. 572–575). “Alexy critica el primeiro de
estos criterios [de Dworkin], con el argumento de que resulta poco verossímil que teóricamente puedan
reconocerse siempre todas las excepciones que incluyen las reglas. (...)” (expressão entre [] não
constante no original)
Para maiores informações sobre a concepção de Alexy a respeito das distinções entre regras e princípios
vejam-se comentários de PAULO BONAVIDES, na obra Curso de Direito Constitucional , p. 277 e
seguintes.
LUÍS ROBERTO BARROSO ( Interpretação e Aplicação da Constituição, p. 351), destaca: “A Constituição
passa a ser encarada como um sistema aberto de princípios e regras, permeável a valores jurídicos
suprapositivos, no qual as idéias de justiça e de realização dos direitos fundamentais desempenham
papel central. A mudança de paradigma nessa matéria deve especial atributo às concepções de Ronald
Dworkin e aos desenvolvimentos a ela dados por Robert Alexy. A conjugação das idéias desses dois
autores dominou a teoria jurídica e passou a constituir o conhecimento convencional na matéria.” Na
seqüência (p. 351-356), trata da distinção entre princípios e normas e, a seguir (p. 356 -369) discorre
sobre a aplicação das normas. Afirma o referido autor que deve haver uma ponderação de interesses,
bens, valores e normas quando a simples s ubsunção (através da qual a premissa maior – norma – incide
sobre a premissa menor – fato – produzindo assim conseqüências) não se afigurar suficiente. Por força
da unidade da Constituição não se pode simplesmente desprezar uma norma em favor da outra – daí
porque é cabível a ponderação. Indica que para esta ponderação é possível descrever um processo de
três etapas: (i) a de detecção das normas e identificação de eventuais conflitos; (ii) a de análise dos fatos;
e, (iii) a ponderação propriamente dita, fas e na qual será possível graduar a intensidade de cada princípio
e da solução escolhida. Alerta, entretanto, que a ponderação ainda não atingiu, no estágio atual, um
padrão desejável de objetividade, dando lugar à discricionariedade (por ele referida apenas a judicial). A
ponderação deverá ser fundamentada e, diante da dita discricionariedade, será possível examinar -se a
ponderação com base na argumentação.
70
Conclusões extraídas da obra de GISELA MARIA BESTER, Direito Constitucional..., p. 266-267. A este
respeito, veja-se também: BONAVIDES, Paulo ( Curso de Direito Constitucional , p. 257-258).
BONAVIDES (p. 257) traz a definição de CRISAFULLI a respeito de princípios: “Princípio é, com efeito,
toda norma jurídica, enquanto considerada como determinante de um a ou de muitas outras
subordinadas, que a pressupõem, desenvolvendo e especificando o ulteriormente o preceito em direções
mais particulares (menos gerais), das quais determinam, e portanto resumem, potencialmente, o
conteúdo: sejam, pois, estas efetivamen te postas, sejam, ao contrário, apenas dedutíveis do respectivo
princípio geral que as contém.”. Este doutrinador apresenta relato acerca da evolução histórica da
hermenêutica dos princípios (p. 258 -295), que não será objeto de abordagem neste estudo.
37
(ii)
Ao grau de determinabilidade: os princípios carecem, por sua vagueza, de
“mediações concretizadoras” - “(...) do legislador? do juiz? (sic.) (...)”, ao
passo que as regras tem aplicação direta;
(iii)
Caráter de fundamentalidade: os princípi os “(...) são normas de natureza
ou com um papel fundamental no ordenamento jurídico devido à sua
posição hierárquica no sistema das fontes (...)”;
(iv)
“Proximidade da idéia de direito”: as normas podem ter conteúdo
vinculativo meramente funcional, ao passo qu e os princípios são padrões
vinculantes “(...) radicados nas exigências de ‘justiça’ (Dworkin) ou na
‘idéia de direito’ (Larenz) (...)”;
(v)
Natureza normogenética: os princípios são fundamentos de regras, “(...)
desempenhando, por isso, uma função normogenéti ca (...)”.
Assim,
embora
ambos
tenham
simultaneamente
caráter
finalístico
e
comportamental, as regras prescrevem, descritivamente, comportamentos, ao passo
que os princípios instituem a obrigação de adotar os comportamentos que forem
necessários para alçar o fim por ele colimado. As regras prevêem condutas, enquanto
os princípios prevêem fins, cuja realização depende de condutas necessárias
71
.
BOBBIO escreve a este respeito: “Os princípios gerais são, a meu ver, normas
fundamentais ou generalíssimas do sist ema, as normas gerais. O nome de princípios
induz em engano, tanto que é velha a questão entre juristas se os princípios são ou não
normas. Para mim não há dúvida: os princípios gerais são normas como todas as
demais. E esta é a tese sustentada também pelo estudioso que mais amplamente se
ocupou da problemática, ou seja, Crisafulli. (...)” 72. No mesmo sentido, DWORKIN
reconhece que os princípios devem ser tratados como direito, passíveis de impor
obrigação legal 73.
71
Neste sentido, veja-se CARLA OSMO, extraindo conclusões de HUBERTO ÁVILA ( Pela máxima
efetividade..., p. 292). GISELA MARIA BESTER ( Direito Constitucional..., p. 267) assevera que os
princípios jurídicos “(...) possuem qualidade de verdadeiras normas, qualitativamente distintas das outras
categorias de normas (das regras jurídicas)”. Nesta oportunidade distingue os princípios hermenêuticos
dos jurídicos, afirmando que aqueles possuem “(...) função argumentativa e funcionam como cânones de
interpretação (...)”.
72
BOBBIO, Principi..., p. 888, citado por BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional , p. 263-264.
73
BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional , p. 265.
38
Na Constituição não existem normas merament e indicativas ou de intenção:
todos os enunciados constitucionais têm estrutura e sentido de normas jurídicas, e,
assim, vinculam sujeitos, atribuem direitos e obrigações, ou, quando menos, situações
de vantagem, de vínculo ou de desvantagem 74.
Neste cenário, assevera CARLA OSMO 75 que apesar da quase totalidade da
doutrina se posicionar pela efetividade dos princípios constitucionais, existem os que
defendam que estes seriam intenções, que não acarretam direitos e obrigações
pleiteáveis 76.
Apesar desta ressalva, para os fins do presente estudo, adotar -se-á a corrente
doutrinária tida por majoritária – avalizada por ALEXY, CRISAFULLI, DWORKIN,
Neste esteio, PAULO BONAVIDES ( Curso de Direito Constitucional , p. 271 e p. 288-289) conclui que,
“(...) a exemplo de Esser, Alexy, Dworkin e Crisafulli, que os princípios são normas e as normas
compreendem igualmente princípios e as regras.” Mais adiante prossegue o mesmo doutrinador: “(...) não
há distinção entre princípios e normas, os p rincípios são dotados de normatividade, as normas
compreendem regras e princípios, a distinção relevante não é, como nos primórdios da doutrina, entre
princípios e normas, mas entre regras e princípios, sendo as normas o gênero, e as regras e os princípios
a espécie. (...) As regras vigem, os princípios valem; o valor que neles se insere e se exprime em graus
distintos. Os princípios, enquanto valores fundamentais, governam a Constituição, o regímen, a ordem
jurídica. Não são apenas a lei, mas o Direito em toda a sua extensão, substancialidade, plenitude e
abrangência.”
No entendimento de GISELA MARIA BESTER ( Direito Constitucional..., p. 266): “(...) importa marcar que
os princípios têm um caráter de abstração e de generalidade maior do que as normas, sendo que eles
nem sempre são escritos; as normas, ao contrário, sempre devem ser escritas.”
74
CARLA OSMO (Pela máxima efetividade... , p. 290), referindo a conclusões extraídas de JOSÉ
AFONSO DA SILVA. A doutrinadora ressalva, contudo, que a atribuição desta vi nculação não é suficiente
para que os objetivos previstos nos princípios sejam alcançados, e que, por isto, PAULO BONAVIDES
afirmara que “(...) o drama jurídico das constituições contemporâneas assenta, como se vê, na
dificuldade, se não impossibilidade de passar da enunciação de princípios à disciplina, tanto possível
rigorosa ou rígida, de direitos acionáveis, ou seja, passar da esfera abstrata dos princípios à ordem das
normas.”
75
“Existe quem defenda que princípios dessa natureza expressam intenções, que informam todo o
ordenamento jurídico, mas não têm o condão de gerar situações jurídicas subjetivas imediatamente
pleiteáveis (...)” e que “Do lado oposto, estão aqueles que entendem que a Constituição optou por utilizar
uma expressão imprecisa, para que seu conteúdo fosse avaliado diante da situação concreta. Estes
sustentam que a imposição de um objetivo contém, ainda que de forma implícita, obrigações em relação
aos meios para atingi-lo (...)”. (OSMO, Carla. Pela máxima efetividade..., p. 287).
76
Pela máxima efetividade..., p. 287.
“As normas constitucionais possuem a natureza de ser as normas primárias do ordenamento jurídico , isto
é, constituem a fonte primária, o alicerce, de qualquer ordenamento jurídico. (...) Elas possuem caráter
imperativo, mandamental, não constituindo meros conselhos, avisos ou lições. Isto já proclamava Rui
Barbosa em interpretação à Constituição de 1891. Do mesmo modo adverte -nos Celso Antônio Bandeira
de Mello que mesmo as normas que facultam têm caráter imperativo, porque, se facultam algo a alguém,
impõem a todos os demais o dever de respeitar o exercício da faculdade. Assim, nada do que está nas
normas constitucionais é mera recomendação, anseio, desejo ; não são sonhos ou aspirações as normas
constitucionais, mas imposiçõe s! Desde que passaram ao texto positivado são comandos!” (BESTER,
Gisela Maria. Direito Constitucional..., p. 118).
39
CANOTILHO, JOSÉ AFONSO DA SILVA, CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO,
PAULO BONAVIDES, VITAL MOREIRA e GISELA MARIA BESTER -, segundo a qual
os princípios constitucionais possuem efetividade.
Os princípios exprimem um fim a ser atingido e têm força normativa: impõem a
efetiva utilização dos meios/condutas necessários para seu alcance 77:
“Os princípios instituem o dever de adot ar comportamentos necessários à
realização de um estado de coisas ou, inversamente, instituem o dever de
efetivação de um estado de cosias pela adoção de comportamentos a ele
necessários. Essa perspectiva de análise evidencia que os princípios implicam
comportamentos, ainda que por via indireta e regressiva. Mais ainda, essa
investigação permite afirmar que os princípios, embora indeterminados, não o
são absolutamente. Pode até haver incerteza quanto ao
conteúdo do
comportamento a ser adotado, mas não há qu anto à sua espécie: o que for
necessário para promover o fim é devido.”
78
.
Assim, pela posição e importância que ocupam no sistema, violar um princípio é
bem mais grave do que violar uma norma 79.
Tratando a respeito da ordem econômica, EDUARDO TEIXEIRA FA RAH
constata que esta “(...) não denota uma idéia tão -somente naturalista, mas
77
A análise abstrata do conteúdo de um princípio constitucional deve partir do próprio princípio
constitucional – isso sem olvidar que essa norma não esgota as implicações do princípio. O princípio da
função social, por estar previsto com certa “vagueza semântica”, permite inúmeras significações,
deixando ao intérprete a tarefa de atribuir -lhe conteúdo preciso. Ocorre que, em virtude da previs ão
constitucional não trazer elementos suficientes para que se determinem as implicações concretas, o
princípio corre o risco de permanecer sem eficácia (concreta). Assim, adquirem máxima importância, as
normas infraconstitucionais direcionadas à realizaçã o da referida função social. (Neste sentido, CARLA
OSMO (Pela máxima efetividade... ,, p. 271-272.)
78
HUMBERTO ÁVILA, Teoria dos Princípios, p. 64-65.
79
Neste sentido: CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO (Criação de Secretarias Municipais, RDP 15,
p. 285, 1971, citado por BESTER, Gisela Maria. Direito Constitucional..., p. 264-265). Este doutrinador
esclarece ainda que (MELO, Celso Antonio. Elementos..., p. 230): “Princípio, é, por definição,
mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele, disposição fundamental que se irradia
sobre diferentes normas compondo -lhes o espírito e servindo de critério para sua exata compreensão e
inteligência, exatamente por definir a lógica e a racionalidade do sistema normativo, no que lhe confere a
tônica e lhe dá sentido harmônico.” “A desatenção ao princípio implica ofensa não apenas a um
específico mandamento obrigatório, mas a todo o sistema de comandos. É a mais grave forma de
ilegalidade ou inconstitucionalidade, conforme o escalão do princípio atingido, porque re presenta
insurgência contra todo o sistema, subversão de seus valores fundamentais.”.
40
fundamentalmente normativa, por isso é objeto de regulamentação. Toda Constituição
deve ser vista, assim, como um ‘quadro coerente de respostas normativas’.”
80
.
Neste esteio, abordando o princípio da função social da propriedade,
CORTIANO JÚNIOR entende que: “(...) a função social da propriedade atua como fonte
da imposição de comportamentos positivos – prestação de fazer, portanto, e não,
meramente, de não fazer – ao detentor do poder que deflui da propriedade.”
81
.
A respeito deste mesmo princípio LAURA BECK VARELA e MARCOS DE
CAMPOS LUDWIG afirmam que 82:
“Como ocorre com a cláusula geral da boa -fé objetiva, fonte de criação de
deveres para as partes na relação obrigacional, ta mbém da função social
emanariam deveres para os titulares de direitos de natureza real, além de
deveres para o legislador e o administrador, na execução de políticas públicas
relacionadas à propriedade. A tríplice função atribuída à cláusula da boa -fé
objetiva, como cânone hermenêutico e integrativo, fonte de deveres jurídicos e
limite ao exercício de direitos subjetivos, também guarda semelhanças para
com os efeitos normalmente imputados à função social da propriedade.”.
Diante do exposto, observa -se que segundo a doutrina apresentada, os
princípios exprimem um ideal a ser atingido, implicando, portanto, em obrigações
inicialmente indefinidas, tendentes a alçar o referido ideal.
Pode-se,
então,
vislumbrar
que
os
princípios
prescindem
de
complementaridade, a qual compete não apenas ao Poder Político, mas se faz tendo
em vista o problema concreto, por meio da valoração dos objetivos e condutas
praticadas para a realização destes - ou seja, a efetividade do princípio independe da
legislação regulamentar que a especifique 83.
80
Disciplina da Empresa e Princípio da Solidariedade Social , p. 674.
O discurso jurídico da propriedade e suas rupturas , p. 144. ANDRÉ RAMOS TAVARES ( Curso de
Direito Constitucional, p. 477) cita esclarecimentos de ROGÉRIO ORRUTEA: “Para Rogério Orrutea, ‘em
face do princípio da função social fica o proprietário jungido a observar desde o papel produtivo que deve
ser desempenhado pela propriedade – passando pelo respeito à ecologia – até o cumprimento da
legislação social e trabalhista pertinente aos contratos de trabalho’.”.
82
Da propriedade às propriedades , p. 778.
83
A este respeito, veja-se: CARLA OSMO (Pela máxima efetividade..., p. 295).
81
41
A este respeito, observando os princípios previstos no artigo 5º da Constituição
– dentre os quais a função social da propriedade – GISELA MARIA BESTER esclarece
que “Nossa Constituição de 1988 é expressa sobre o assunto, quando estatui q ue ‘as
normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata’ (art.
5º, §1º)”.
FRANCISCO CARDOZO OLIVEIRA afirma 84:
“A função social enriquece a propriedade, porque confere ao exercício dos
poderes proprietários valor que ultrap assa a relação entre o proprietário e a
coisa.
(...)
O princípio da função social, portanto, direciona o conceito de propriedade para
a recepção de valores ligados à realidade social e histórica em que inseridos a
situação proprietária concreta e o conflit o entre proprietários e não -proprietário.
Através do princípio da função social, supera -se a concepção individualista da
propriedade que evolui para a idéia de propriedade que considera a dinâmica
da vida em sociedade.”.
Desta forma, no caso concreto, au sentes disposições normativas específicas, o
juiz pode – e deve – dar cumprimento ao princípio da função social da propriedade: o
direito privado deve ser interpretado à luz dos princípios constitucionais, como
EROULTHS CORTIANO JÚNIOR ( O discurso jurídico da propriedade e suas rupturas , p. 147-148)
afirma: “A função social da propriedade remete, sempre, a uma visão concreta das relações em que
incide o fenômeno proprietário, cujo balizamento será feito a partir da normativa, mas cujo objet ivo é
garantir a melhor utilização social da propriedade. (...) Pode -se argumentar que a função social da
propriedade é uma fórmula vaga – e o conteúdo da função social é também uma das grandes discussões
contemporâneas –, por traduzir um princípio feral, e não arrolar uma séria de comportamentos
proprietários obrigatórios, o que manteria o problema trazido pelo modelo proprietário e individualístico liberal. E de fato a função social não pode ser entendida de modo unívoco, já que a utilidade social de
certos comportamentos e situações não pode ser medida ou colocada a priori, exigindo uma constante
reconstrução por parte do aplicador. (...) A superação da indeterminação do conteúdo da função social,
que envolve a atividade legislativa e interpretativa, tem como ponto de partida que o direito de
propriedade não é mais auto -referente e, portanto, não é individualístico. Ademais, a operacionalização
da função social terá sempre como medida, impulso e orientação os valores eleitos como mais relevantes
pela comunidade em seu pacto político.”.
84
Hermenêutica..., p. 243.
42
instrumento de sua concreção 85. BARROSO destaca a “necessidade” do Poder
Judiciário “(...) se libertar de certas noções arraigadas e assumir, dentro dos limites do
que seja legítimo e razoável, um papel mais ativo em relação à concretização das
normas constitucionais.” 86.
O Estado poderá intervir no d omínio econômico, conforme autorizado no art.
174 da CF, até para assegurar a eficácia dos princípios da ordem econômica
constitucional, bem como concretizar os valores dispostos nos objetivos fundamentais
da República 87, conforme já reconheceu o Supremo Tr ibunal Federal na Ação Direta de
Inconstitucionalidade 1950/SP (DJ 02/06/06), cuja Ementa foi transcrita no tópico
anterior.
É esperada certa tensão entre realidade e norma, senão não existiria razão da
norma existir, e o equilíbrio entre o ser e o dever -ser que torna um ordenamento eficaz:
“No nível lógico, nenhuma lei, qualquer que seja sua hierarquia, é editada para
não ser cumprida. Sem embargo, ao menos potencialmente, existe sempre um
antagonismo entre o dever-ser tipificado na norma e o ser da realidade social.
Se assim não fosse, seria desnecessária a regra, pois não haveria sentido
algum em impor-se, por via legal, algo que ordinária e invariavelmente já ocorre.
85
Um instrumento para diminuir a vagueza do princípio é cotejar suas inter -relações com outros
princípios de índole constitucional. Outro instrumento é analisar a jurisprudência a respeito, analisan do o
objetivo visado pelo princípio e os meios utilizados para atingir tal fim.
CANOTILHO, discorrendo a respeito do direito português ( Direito Constitucional..., p. 1274), entende que:
“Os juízes, embora vinculados em primeira linha pela mediação legal d os direitos, liberdades e garantias,
devem também dar operatividade prática à função de prestação (objetiva) dos direitos, liberdades e
garantias”. E prossegue: “ a) Em primeiro lugar, devem fazer uma aplicação do direito privado legalmente
positivado em conformidade com os direitos fundamentais pela via da interpretação conforme a
constituição; b) Se a interpretação conforme os direitos, liberdades e garantias for insuficiente cabe
sempre na competência dos tribunais a desaplicação da lei (por inconstitucio nal) violadora dos direitos
(subjectivos) ou dos bens constitucionalmente garantidos pelas normas consagradoras de direitos
fundamentais; c) A interpretação conforme os direitos, liberdades e garantias das normas de direito
privado utilizará como instrumen tos metódicos não apenas as clássicas cláusulas gerais ou conceitos
indeterminados (ex.: boa-fé, abuso de direito) mas também as próprias normas consagradoras e
defensoras de bens jurídicos constitucionalmente protegidos através de normas de decisão judiciais
(captadas ou ‘extrinsecadas’ por interpretação -integração pelo direito judicial).”
86
Interpretação e Aplicação da Constituição, p. 257.
87
EDUARDO TEIXEIRA FARAH, Disciplina da Empresa e Princípio da Solidariedade Social , p. 679.
Dispõe o artigo 174 da Constituição Federal: “Art. 174. Como agente normativo e regulador da atividade
econômica, o Estado exercerá, na forma da lei, as funções de fiscalização, incentivo e planejamento,
sendo este determinante para o setor público e indicativo para o setor priv ado. §1º A lei estabelecerá
43
(...) De outra parte, é certo que o direito se forma com elementos colhidos da
realidade, e seria condenada ao insucesso a legislação que não tivesse
ressonância no sentido social. O equilíbrio entre esses dois extremos é que
conduz um ordenamento jurídico socialmente eficaz.” 88.
Desta forma, o direito privado transforma -se para atender à finalidade conferida
a todo o sistema jurídico: de promover o interesse social 89.
Concretizando esta tendência harmonizadora, o Código Civil de 2002, foi
editado com base em três princípios: operabilidade (praticidade); eticidade (privilegiar o
julgamento ético pelo operador do direito) e socialidade (nos conflitos será dada maior
importância ao conjunto, do que aos interesses individuais) 90.
A função do direito privado passa a ser, desta feita, a de materializar os
princípios e valores fundamentais na vid a das pessoas, exigindo, para tanto, uma
interpretação voltada a este fim. O interesse social passa a ser conformador da
autonomia da vontade, ficando valores como justiça, liberdade, igualdade e
solidariedade como base das relações jurídicas 91.
As Constituições assumem o papel de transformadoras das velhas estruturas e
instituições privadas, tornando essencial que se questione a função social dos institutos
jurídicos, pois elas são o fundamento de legitimidade do ordenamento e fonte do novo
diretrizes e bases do planejamento do desenvolvimento nacional equilibrado, o qual incorporará e
compatibilizará os planos nacionais e regionais de desenvolvimento. (...)”
88
LUÍS ROBERTO BARROSO, Interpretação e Aplicação da Con stituição, p. 251.
89
Neste sentido, destaque-se a compreensão de CARLA OSMO ( Pela máxima efetividade..., p. 274) de
que “Se todo o ordenamento jurídico se torna ideológico, seus valores não poderiam deixar de informar
também o direito privado. Dessa maneir a, o direito privado transforma -se para atender à finalidade
conferida a todo o sistema jurídico: de promover o interesse social.”.
90
RENZO GAMA SOARES ( Breves comentários sobre a função social dos contratos, p. 443-444),
aludindo a conclusões de MIGUEL RE ALE.
Anote-se que até mesmo antes do atual Código Civil de 2002 vigorar, PIETRO PERLINGIERI defendia
que o direito privado deveria ser harmonizado com os princípios fundamentais e GUSTAVO TEPEDINO
afirmava que o direito privado deveria ser lido à luz da C onstituição, levando o interprete à obtenção de
uma solução mais justa e humana para os conflitos (VELTEN, Paulo. Função social do contrato: cláusula
limitadora da liberdade, p. 414).
VELTEN (op. cit., p. 415) refere, ainda, que diversos doutrinadores diz em existir hoje uma nova disciplina,
o direito civil constitucional (p.ex. Joaquim Arce y Flórez -Valdés). A este respeito, destaca a advertência
de GUSTAVO TEPEDINO de que esta adjetivação apenas serve para ressaltar a funcionalização dos
institutos de direito privado, com a elevação do princípio da dignidade humana.
44
paradigma do direito privado: o norte que leva à interpretação ampla e aplicabilidade
imediata dos direitos fundamentais às relações jurídicas 92.
Assim, conclui-se dos aspectos abordados nesta seção e nas anteriores, que a
concepção de direito de propriedade adotado pelo direito constitucional é, segundo a
doutrina majoritária, a concepção lata na qual se incluem bens materiais ou não que
possuam valor patrimonial. Diante disso, estes bens, ainda que não sejam imóveis, se
sujeitam ao princípio da função social da propried ade, o qual é dotado de efetividade.
Vale citar esclarecimento trazido por FRANCISCO CARDOZO OLIVEIRA a
respeito da matéria 93:
“A propriedade não é o prius a que se conecta o posterius da função social. A
propriedade contém a função social sem que o fato de contê-la venha a reduzila à mera propriedade-função, em que são diluídos os poderes proprietários .”
Desta feita, apesar de adotar -se neste estudo a concepção mais ampla,
seguem algumas considerações, ainda que breves, a respeito do direito de proprie dade
sob a ótica estrita do direito civil.
Capítulo 3 – A propriedade sob a ótica do Direito Civil
Seção 1 – Breve notícia sobre as principais características do direito de
propriedade sob a ótica do direito civil
Um dos caracteres atribuídos ao dir eito de propriedade é o de direito absoluto.
Hoje este absolutismo deve ser visto como existente “(...) dentro do âmbito resguardado
91
Nesse sentido: VELTEN, Paulo. Função social do contrato: cláusula limitadora da liberdade, p. 414416. A autonomia da vontade “(...) marca o poder da vontade de um modo objetivo e concreto (. ..)”
(VELTEN, Paulo. Op. cit., p. 417).
92
Nesse sentido: VELTEN, Paulo. Função social do contrato: cláusula limitadora da liberdade, p. 412413. Veja-se também: SOARES, Renzo GAMA. Breves comentários sobre a função social dos contratos,
p. 445-446.
45
pelo ordenamento (...)” 94: a propriedade é absoluta à medida que o proprietário tem o
poder de dispor, de usar e gozar, dentro da conformação constitucional (na qual inserese a função social da propriedade), das limitações legais e regulamentares impostas no
interesse público ou em decorrência da co -existência com a propriedade de terceiros 95.
Além destas, o proprietário deve observar as limitações convencionais privadas, como é
o caso dos ônus reais 96. A par do dito “absolutismo”, existem outras características
usualmente atribuídas à propriedade:
(i)
Exclusividade: exclui o direito de outrem sobre a mesma coisa. Neste
sentido, define o Código Civil, em seu artigo 1.231: “A propriedade
presume-se plena e exclusiva, até prova em contrário.”
(ii)
97
;
Perpetuidade ou irrevogabilidade: adquirida, só se perde por vontade do
próprio proprietário ou por causa legal extintiva 98; e,
93
Hermenêutica..., p. 241.
VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil, vol. V, p. 186.
95
ARNOLDO WALD (Direito das Coisas, p. 106) esclarece: “A propriedade é um direito real absoluto, no
sentido de haver plenitude nas faculdades de usar, gozar e dispor que o propr ietário tem sobre o objeto
de sua propriedade (...). Essa característica não significa que o proprietário possa exercer os seus
direitos de qualquer maneira, podendo usar e abusar; (...). A ilimitação significa, pois, apenas que inexiste
outro direito real sobre o mesmo objeto quando a propriedade é plena.”.
96
ANDRADE, Juarez Costa de. In: O Novo Código Civil Comentado , v. 2, p. 1.152.
97
ANDRADE (In: O Novo Código Civil Comentado , v. 2, p. 1.152) esclarece: “Esta característica, trazida
do Direito Romano, tem por significado a autonomia do direito de propriedade em relação a cada titular
sobre o bem, mesmo nas relações de co -propriedade o que há a incidência de dois ou mais domínios
diversos sobre a mesma coisa indivisa, convencional ou legal”.
De forma diversa, esclarece ARNOLDO WALD ( Direito das Coisas, p. 106): “A propriedade é exclusiva,
por não se admitir que mais de uma pessoa possa exercer o mesmo direito sobre determinado objeto. No
caso do condomínio, o que ocorre não é a propriedade de diversas pes soas sobre o mesmo objeto, mas
a de cada condômino sobre uma fração ideal do objeto em condomínio. A exclusividade é considerada
como característica do direito de propriedade desde o direito romano, embora na concepção medieval se
admitisse a existência de propriedades superpostas sobre o mesmo objeto. (...).”.
Embora seja válida esta nota, não se adentrará mais profundamente no estudo desta característica, por
fugir ao objeto do presente estudo.
Vale a pena anotar que o artigo 527 do Código Civil de 1916 previa a exclusividade do domínio (e não da
propriedade): “O domínio presume -se exclusivo e ilimitado até prova em contrário.” Sobre a exclusividade
veja-se ainda MALUF, Carlos Alberto Dabus. Limitações ao Direito de Propriedade ..., p. 26-27.
98
ANDRADE, Juarez Costa de. In: O Novo Código Civil Comentado , v. 2, p. 1.153.
ARNOLDO WALD (Direito das Coisas, p. 104/107): “A propriedade normalmente é perpétua. Poderá,
todavia, excepcionalmente ser revogável ou resolúvel. Será revogável quando se extinguir por f ato
posterior inexistente e imprevisto no momento em que se constituiu o direito. (...) É resolúvel quando o
próprio ato constitutivo da propriedade previu sua resolução pelo advento de termo ou condição.”.
Para VENOSA (Direito Civil, v. V, p. 187), a usucapião “(...) traduz atitude ativa do usucapiente que
adquire a propriedade, não se destacando a atitude passiva daquele que a perde.”.
94
46
(iii)
Elasticidade:
pode
sofrer
fragmentações
de
seus
poderes
(ou
faculdades), como no caso do usufruto, que retira do proprietário
faculdades que possui sobre a coisa e, uma vez extinto, lhe confere,
novamente, a propriedade plena 99.
Vistas estas características tradicional mente aceitas, convém observar a
dificuldade de se definir o que constitui propriedade, pois, como afirma ELIO VITTUCI,
não é possível enumerar todas as faculdades atribuídas ao proprietário, e em algumas
situações podem faltar algumas das faculdades sem q ue seja desnaturado o direito de
propriedade 100.
Nesse cenário, nossa legislação civil, seguindo a orientação de códigos de
outros países 101, optou por descrever de forma analítica os principais poderes do
proprietário 102. O artigo 524 do Código Civil de 1.916 : “A lei assegura ao proprietário o
Sobre a perpetuidade, veja -se: MALUF, Carlos Alberto Dabus. Limitações ao Direito de Propriedade ..., p.
27-28.
99
A este respeito: WALD, Direito das Coisas, p. 108.
100
Referido por MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de Direito Civil, v. 3, p. 84, nota 4.
101
O Código Civil Brasileiro seguiu a orientação de outros códigos, não conceituando a propriedade, mas
sim indicando as faculdades que o proprietário possui. Como exemplo, cite -se o Código Civil Suíço (art.
461), o Alemão (art. 903) e português (art. 1.305). JUAREZ COSTA DE ANDRADE (In: O Novo Código
Civil Comentado, v. 2, p. 1.155-1.158) faz algumas citações a respeito d o direito comparado, das quais se
extraem os seguintes excertos:
“CODICE CIVILE (Código Civil Italiano) - TITOLO II – DE LA PROPRIETÀ - CAPO I – Disposizioni
generali
Art. 832. Contenuto del diritto
Il proprietario há diritto di godere e disporre delle cos e in modo pieno ed esclusivo, entro i limiti e com
l’osservanza degli obbliighi dall’ordinamento giuridico .”
“REAL ORDEN DE 29 DE JULIO DE 1889 (Código Civil Espanhol) - De la propriedad - CAPÍTULO
PRIMERO
De la propriedad em general
Artículo 348
La propriedad es el derecho de gozer y disponer de uma cosa, sin más limitaciones que las establecidas
em las leyes. El proprietario tiene acción contra el tenedor y el poseedor de la cosa para reivindicarla.”.
“CODE CIVIL (Código Civil Francês) - TITRE II: DE LA PROPRIETÉ
Article 544
La proprieté est le droit de jouir et disposer dês choses de la manière la plus absolute, pourvu qu’on nén
fasse pás um usage prohibé os les lois ou par lês règlements.”.
102
Conforme esclarece CORTIANO JR. ( O discurso jurídico da propr iedade e suas rupturas, p. 103-104):
“A lei brasileira reúne os elementos da definição da propriedade do Código Francês e da não -definição do
Código Alemão – que, entretanto, especificou o conteúdo do direito de propriedade. De fato, o legislador
brasileiro utilizou o rol dos podres proprietários que baseou a conceituação da propriedade no Code,
sem, entretanto conceituá -la. De outro lado, seguiu a orientação alemã de especificar o conteúdo da
propriedade, mas arrolando os podres do proprietário, como fez o legislador francês. O Código Civil
Brasileiro fez sua opção: uma definição analítica e estrutural da propriedade.”.
47
direito de usar, gozar e dispor de seus bens, e de reavê -los do poder de quem
injustamente os possua.” . Redação semelhante consta no caput do artigo 1.228 do
atual Código Civil, o qual, em seus parágrafos traz algumas li mitações voltadas ao
atendimento da função social da propriedade e da dignidade da pessoa humana, veja se:
“Art. 1.228 - O proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e
o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a poss ua ou
detenha.
§ 1º – O direito de propriedade deve ser exercido em consonância com as
suas finalidades econômicas e sociais e de modo que sejam preservados,
de conformidade com o estabelecido em lei especial, a flora, a fauna, as
belezas naturais, o equil íbrio ecológico e o patrimônio histórico e artístico, bem
como evitada a poluição do ar e das águas.
§ 2º. – São defesos os atos que não trazem ao proprietário qualquer
comodidade, ou utilidade, e sejam animados pela intenção de prejudicar
outrem. (...)”. 103 (destacou-se)
Os parágrafos 3º, 4º e 5º do artigo 1.228 do Código Civil, não transcritos nesta
oportunidade, referem -se à propriedade imobiliária. Por sua vez, os parágrafos 1º e 2º,
reproduzidos acima, à propriedade em geral, havendo, disposições semel hantes a
estes últimos na Lei das Sociedades Anônimas (Lei 6.404/76) - a respeito da qual se
tratará em tópico posterior.
Do caput do artigo 1.228 pode-se extrair o conteúdo positivo do direito de
propriedade – ou os “poderes” do proprietário - quais sejam: o de usar, de gozar e de
dispor da coisa, bem como o direito de reavê -la de quem quer que injustamente a
E prossegue (nota 233, pág. 105): “Nas legislações em geral, a definição de propriedade se faz a partir
de seus elementos constitutivos: ‘À indagação de seu conceito [da propriedade] são geralmente
contrapostos os elementos que compõem o seu conteúdo, a exemplo de como procedem as legislações.
Busca-se, assim, conceituar tendo em vista a amplitude do direito real de propriedade.’ (FACHIN, Da
propriedade como conceito jurídico.. ., Revista dos Tribunais, São Paulo, ano 76, v. 621, p. 27, jul. 1987).”
103
Apenas o caput do artigo encontra correspondente com o Código Civil anterior, de 1.916 (ANDRADE,
Juarez Costa de. In: O Novo Código Civil Coment ado, v. 2, p. 1.149).
48
possua ou detenha. Esses poderes são os mesmos reconhecidos pelo direito romano
(ius utendi, fruendi et abutendi 104).
Em breves linhas, o direito de usar comporta o poder de se exigir da coisa suas
utilidades, serviços, sem alterar -lhe a substância (p.ex., a habitação do imóvel pelo seu
proprietário, ou simplesmente o de manter a coisa em seu poder, sem utilização
dinâmica); o de gozar, em fazer fruti ficar a coisa e auferir o respectivo produto (p.ex.
aluguéis, rendimentos); e o de dispor, o de consumi -la, aliená-la, onerá-la e de
submetê-la a serviço de outrem.
Conforme o artigo 1.232 do Código Civil, os frutos e os produtos das coisas
pertencem, regra geral, ao proprietário salvo se, por previsão legal pertencerem a
outrem (p.ex. uso, habitação, usufruto, locação, etc.).
Se todos os elementos positivos do direito de propriedade (“poderes”) estiverem
reunidos em um só titular, diz -se que a propriedade é plena, de outro modo, será
limitada105, revelando-se a elasticidade da propriedade, já referida anteriormente.
Vistos em breves linhas, com o intuito de contextualizar, os conceitos acima,
vale a pena destacar que o direito de propriedade é um direito r eal, distinguindo-se,
portanto, dos direitos pessoais. Desta forma, revela -se como instrumento útil à
identificação da existência de direito de propriedade, sob a ótica civilística, a
compreensão das principais distinções existentes entre os direitos reais e pessoais,
sobre as quais se tratará a seguir.
Seção 2 – Direitos reais e pessoais: a natureza da titularidade das ações para o
direito civil
104
A expressão abutendi é traduzida por “abusar da coisa”. Contudo, o abutendi não tem – e não teve – o
significado de se abusar, nem de consumir a coisa, sendo mais adequado chamar tal poder de
“disposição”. (VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil, v. V, p. 186)
105
WASHINGTON DE BARROS MONTEIRO ( Curso de Direito Civil, v. 3, p. 88) esclarece, quanto a
presença destes elementos: “Há quem assevere que a propriedade não constitua uma soma de direitos
separáveis, mas direito único, com a fa culdade de comprimir-se ou de reduzir-se a um mínimo de
poderes, permanecendo, todavia, potencialmente unida, ante a possibilidade, que lhe é imanente, de
volver à sua máxima e normal compreensão, logo que se eliminem ou se removam os pesos e restrições
que a comprimam. É o que se chama de princípio da elasticidade do domínio, mercê do qual, como
verdadeira mola, retoma a propriedade, automaticamente, sua primitiva extensão, tão logo venha a
cessar a compressão do direito menor que sobre ela estava a incidi r.”
49
As relações desenvolvidas no mundo jurídico se revestem ora de caráter
pessoal (com a interação de pessoas em torno de diferentes interesses da vida comum
como, por exemplo, as relações de família), ora de caráter patrimonial, “(...) reunindo
entes entre si na órbita negocial e em referenciamento à coletividade, com respeito a
coisas suscetíveis de apropriação ju rídica.”106. Assim, de um lado estão as “(...)
106
BITTAR, Direitos Reais, p. 1-6.
Diversas concepções foram desenvolvidas acerca do direito real, e teriam sido resumidas por EDMUND
GATII, cujas conclusões são sintetizadas a seguir, para fins ilustrativos (Conclusões de EDMUND GATTI
- Teoria general de los derechos reales. 3ª ed. Buenos Aires: Abeledo-Perrot, 1984, p. 41 e seguintes sintetizadas por GUERRERO, O fundamento cientifico da função social da propriedade intelectual , p. 192
e seguintes):
Para a doutrina clássica (ou dualista) o direito r eal consiste numa relação voluntária, direta e imediata,
firmada entre um sujeito e a coisa, havendo o “(...) ‘dever geral de respeito ao ordenamento jurídico’ (...)”.
A teoria unitária personalista busca unificar os direitos reais e os pessoais, reduzindo aquelas obrigações
a um sujeito passivo universal (PLANIOL, ROUGIN, JHERING e WINDSCHEID). Esta teoria é refutada
pelos defensores do dualismo, que invocam a existência de um direito geral de obediência ao
ordenamento.
Ao lado desta, também negando a dist inção anteriormente referida, a teoria unitária realista propõe que
os direitos reais seriam reais apenas por recaírem sobre alguma coisa , ao passo que os direitos pessoais
recairiam sobre o patrimônio do devedor (SALEILLES, GAUDEMET, RIGAUD, BONNECASE). Esta
teoria é criticada “pela atribuição de individualização presente no direito real, que não se tem no
patrimônio enquanto garantia legal ( Haftung) das obrigações e que, como um todo, responde pelas
dívidas contraídas ou imputadas ( Schuld).”.
A teoria institucional “considera que os direitos só podem ser diferidos conforme seu conteúdo
institucional, agravado (se não dominante) nos direitos reais, presente nos direitos personalíssimos e nos
direitos de família, mas minorada (ou mesmo residual) nos direitos tão-somente de crédito.” Esta teoria
teria tido como adeptos HAURIOU, RIGAUD e RENARD.
A teoria de Demogue critica as distinções entre direitos pessoais e reais, mas apresenta distinções entre
os direitos, segundo o grau de maior (real) ou menor (pessoal) comodidade seu exercício ou de força de
oponibilidade face terceiros.
A par destas teorias, apresenta -se o Critério de Ginossar, que coincidiria com o entendimento de Teixeira
de Freitas, e considera a existência de direitos patrimoniais, divisíveis em c orporais ou incorporais. Os
direitos patrimoniais incorporais se dividiriam em direitos relativos ou intelectuais. Os incorporais
relativos, por sua vez, se dividiriam em reais, pessoais e mistos. Os direitos reais (exceto a propriedade e
o condomínio) e os direitos pessoais estariam inseridos no patrimônio incorporal “e a inclusão do direito
real sobre coisa alheia na concepção de patrimônio incorporal relativo é a conseqüência de se admitir o
critério que propõe a existência de sujeito passivo determinado nos direitos reais”. Seriam defensores
desta concepção: ARANGIO RUIZ, DE BUEN, LEGÓN.
A teoria eclética (ou integral, ou harmônica) parece de certa forma conciliar a teoria clássica dualista e a
unitária personalista. Reconhece a existência de uma relação de fato – e não relação jurídica (como
pretendia a teoria clássica) – entre o sujeito e a coisa, relação de fato, esta, que é protegida pelo direito e
deve ser vista como conteúdo, modo de exercício ou exteriorização do direito real (a teoria unitária
limitava-se ao aspecto externo ou absoluto do direito real - sujeito passivo universal -, desconsiderando a
relação interna de poder - relação de fato). Esta teoria reconhece, assim, o sujeito ativo, a relação de
imediata exercida com a coisa (poder), o recon hecimento pelo ordenamento jurídico e o sujeito passivo
universal (sociedade). São partidários desta teoria BEKKER, RIGAUD, PLANIOL -RIPERT, PLANIOLRIPERT-BOULANGER, CASTAN TOBEÑAS, BARASSI e ALLENDE.
Além destas, vale citar, ainda a teoria de Gatti, que parte da insuficiência das teorias anteriores,
reconhecendo a divisão dos direitos civis em potestades e facultades. Os primeiros (direitos reais) são
direitos absolutos, à medida que podem ser opostos a todos, e todos devem respeitá -los, ao passo que
50
relações humanas determinadas a realização de comportamentos de interesse jurídico
(...)” e, de outro “(...) relacionamentos diretos, em contraposição à comunidade, com
coisas disponíveis, para efeito de apropri ação e fruição de riquezas (...).” 107.
As relações patrimoniais podem ser obrigacionais ou reais, sendo o contexto
dos Direitos Reais composto por todas as ações de aquisição, de exercício, de
conservação, de manutenção, de recuperação e de perda de direit os sobre bens
jurídicos disponíveis, no âmbito das relações privadas 108.
Distinguindo entre direitos obrigacionais e reais, BITTAR esclarece alguns
aspectos distintivos normalmente realçados pela doutrina, a saber 109:
“a) quanto à sua natureza, os direitos r eais são absolutos, importando na
inflexão direta e imediata sobre a res, em oposição a todos os demais membros
da coletividade; já os direitos obrigacionais são relativos, consubstanciando -se
na exigibilidade de prestação positiva, ou negativa, à pessoa v inculada por
laços legais ou voluntários; daí, b) quanto ao sujeito, há bipolaridade na relação
obrigacional e unicidade na de direito real, referenciada apenas à coletividade
como um todo; c) quanto ao exercício, o direito real é fruído pelo titular
diretamente sobre as utilidades da coisa, dependendo o pessoal da ação da
outra parte; d) quanto ao seu alcance, os direitos reais são em número limitado
(numerus clausus) enquanto os pessoais não se submetem a comportamentos
estanques, dado o princípio básico da autonomia da vontade; e, quanto à
duração, tendem os reais à perenidade, transmitindo -se por sucessão,
enquanto os obrigacionais se extinguem por diferentes causas, legais ou
voluntárias; f) quanto à extensão, alcançam os reais eficácia absoluta,
constrangendo-se eventuais terceiros para a satisfação dos direitos do titular
os segundos (direitos pessoais) são direitos relativos, pela ótica de sua oponibilidade, podendo ser
exigido o cumprimento da obrigação apenas da pessoa obrigada.
107
BITTAR, Direitos Reais, p. 1-6.
108
BITTAR, Direitos Reais, p. 2-4. Carlos Alberto Bittar ( Direitos reais, p. 2-6) afirma: “Esses direitos
assumem cunho patrimonial, na medida exata da possibilidade de integração ao acervo econômico do
titular e da faculdade de fruição resultante. Desse modo, as relações entre o agente e o bem são de
inerência da coisa ao patrimônio, permitindo-lhe retirar as utilidades e os proventos naturais que de sua
manutenção, ou de sua exploração, podem advir. (...) restringe -se a seara dos Direitos Reais à regência
das relações jurídicas com bens corpóreos e desenvolvidas, prin cipalmente na área urbana.”
109
Direitos reais, p. 4-5.
51
(direito de seqüela, que permite a reivindicação do bem em mãos de quem o
detenha), ao passo que os obrigacionais atingem apenas as pessoas
envolvidas (credor e devedor), com poucos r eflexos quanto a terceiros, dentre
outras distinções, que, como corolários das orientações assinaladas, podem ser
extraídas.”
Neste esteio, afirma, ainda, que nas relações reais podem figurar bens e
direitos, presente ou futuros, “(...) desde que aptos a preencher finalidade econômica e
sujeitar-se, juridicamente, com exclusividade, a domínio particular (...)” 110.
A distinção entre direitos pessoais e reais é usualmente equiparada à distinção
entre direitos relativos e absolutos, respectivamente. Aqui val e anotar que não se está a
tratar dos direitos absolutos, na concepção do Declaração dos Direitos do Homem e do
Cidadão de 1789, mas sim de um absolutismo dentro do âmbito resguardado pelo
ordenamento, dentro das limitações constitucionais , legais e regulamentares impostas
no interesse público ou em decorrência da co -existência com a propriedade de
terceiros . Hoje não só a propriedade – como também os contratos – devem observar o
princípio da função social.
Desta feita, em vista da equiparação referida ac ima, cumpre traçar alguns
esclarecimentos sobre a distinção entre direitos relativos e direitos absolutos, estes na
concepção apontada acima.
Seção 3 - Direitos absolutos e relativos: a natureza da titularidade das ações para
o direito civil
Preliminarmente se faz necessário esclarecer que o vocábulo “absoluto”, ora
utilizado, não quer significar a inexistência de limitações internas, externas ou de
conformações sobre os direitos assim caracterizados, sendo, de outro modo, utilizada
para expressar a vinc ulação, destes direitos, à vontade de terceiros, para sua
realização.
110
Direitos reais, p. 15.
52
TEIXEIRA DE FREITAS considera que a distinção entre os direitos absolutos e
relativos constitui o elemento central da contraposição dos direitos reais e pessoais, na
qual repousa todo o sistema do direito civil 111.
Neste sentido, afirma que “A condição distinctiva dos direitos absolutos é que a
sua correspondente obrigação [ lato sensu] affecta a massa inteira das personalidades,
com as quais o agente de direito possa estar em contacto. A qualidade propria dos
direitos relativos, ao invés, é recahir sua peculiar obrigação sobre pessoas certas e
determinadas.” 112.
Assim, nos direitos absolutos, vislumbra -se a existência de uma obrigação de
todos, essencialmente negativa, desde sua origem 113. De outro modo, a obrigação de
um direito relativo reconhecido é sempre positiva 114.
Neste sentido, observa -se que no direito absoluto a obrigação de não fazer é
inata. Neste tipo de obrigação não se reconhece primeiro o direito de agir para depois
111
GUERRERO, op. cit., p. 195 -196, sintetizando conclusões de TEIXEIRA DE FREITAS. Vale a pena
transcrever citação de TEIXEIRA DE FREITAS, feita por esse doutrinador (op. cit., p . 197, nota 37):
“Teixeira de Freitas (...). Mais tarde é peremptório: ‘[os direitos reais] são os únicos que imediatamente
recahem sobre objectos corpóreos. Os direitos pessoaes não recahem sobre objectos corpóreo, têm por
objecto pessoas com abstracção d os factos destas, e só por intermédio das pessoas referem -se ás
cousas’ (p. XCVII). E mais: ‘as noções de direitos reaes e pessoaes são subordinadas ás dos direitos
absolutos e relativos, são noções generalisadas por modelo das geraes, por isso mesmo que n ’aquellas
dividio-se a extensão, e nas outras a comprehensão. Para os direitos sêrem pessoaes tem relação, como
relativos; para serem reaes não tem relação pessoal, como os absolutos’(p. C). Ou ainda: ‘Quando os
direitos pessoaes não são encarados em rela ção á pessoa individualmente obrigada, mas em relação –
adversus omnes -, já não exprimem a mesma relação, a mesma obrigação. São absolutos, exprimem
relação diversa’(p. CIII). É justamente em virtude destes posicionamentos que Gatti aponta a
originalidade do esboço da distinção entre direito pessoal (relativo) e real (absoluto) com base na
existência de sujeito passivo determinado ou universal.”
112
TEIXEIRA DE FREITAS, citado por GUERRERO, op.cit., p. 197.
113
“(...) a abstenção é imposta como tutela e manut enção do direito conferido pelo ordenamento, nos
limites por ele estabelecidos, desde a origem ( ob ovo) – quer dizer, desde o reconhecimento do direito
absoluto pela sociedade.” (GUERRERO, op.cit., p. 197). A este respeito, prossegue GUERRERO na nota
38, in fine (p. 198): “Sempre que se houver a possibilidade de um direito ser desrespeitado por outrem,
deverá haver garantias que instrumentalizem o direito protegido, atribuindo -lhe efetividade. O exercício
da garantia, no caso de desrespeito ao direito abso luto, não exprime o exercício daquele direito. É, ao
contrário, medida assecuratória que tende à sua consagração. Aí, então, o argumento que reitera a
diferenciação dos direitos absolutos dos direitos relativos: a forma de exercício.”.
114
No dizer de GUERRERO, “(...) caracteriza, grosseiramente, numa prestação ( agir) de um pólo em
favor do outro que vivencia a situação precariamente privilegiada. Mesmo que o núcleo obrigacional seja
uma ‘ação negativa’ (...). Na obrigação, o indivíduo que se obriga a prestar um não fazer tolhe sponte
propria o direito que, num primeiro momento, lhe era atribuído e resguardado pelo sistema.”
(GUERRERO, op. cit., p. 198). Neste sentido, esclarece GUERRERO (nota 39) que, in casu, fala-se de
“(...) situação precariamente privileg iada (...)” por que as obrigações pessoais têm caráter precário, são
constituídas para atingir sua finalidade “(...) e, automaticamente, livrar as partes relacionadas do nexo
que as colocou naquela situação relacional (...)”, não sendo constituída, portant o, para a perpetuidade.
53
se constituir a vedação. A vedação geral sempre existiu, não é constituída
voluntariamente 115.
Nessa ótica, seria possível vislumbrar que os direitos pessoais corresponderiam
aos relativos, e os reais, aos absolutos 116.
Seguindo esta linha de análise, vale observar que TEIXEIRA DE FREITAS
enfatiza o caráter situacional do direito absoluto, o qual enquanto potestade é passível
de ser exercido independentemente de outras vontades.
Nesse sentido, vale observar a situação jurídica revelada, em não -relacional, no
caso dos direitos absolutos, ou relacional, no dos relativos. A este respeito,
GUERRERO esclarece: “(...) a análise de uma situação jurídica relacional ou não relacional é consoante a dependência que há entre o exercício da vantagem imputada
pelo ordenamento para quem ocupa a posição privilegiada e a coordenação de vontade
alheia à do titular. Se independente, o que se nota é a atribuição de poder e sujeição, e
o direito que decorre da situação jurídica ativa é absoluto. Se sujeito à colaboração, o
que se tem é a verificação de pretensão e prestação, e o direito é relativo.” 117.
Em outras palavras, se o exercício das prerrogativas determinadas pelas
situações jurídicas é realizado de forma autônoma pelo seu titular (independem da
anuência de quem se encontre em posiç ão de sujeição), está-se diante de uma
situação não-relacional (ou situação jurídica strictu sensu). Se, de outro modo, é
necessária a intervenção da parte correlata para viabilização do seu exercício, trata -se
de situação relacional ou relação jurídica 118.
115
GUERRERO, op. cit., p. 198.
Nesse sentido, vale indicar ressalva de TEIXEIRA DE FREITAS, mencionada por GUERRERO (op.
cit., p. 198, nota 43 e p. 199) de que nem todos os direitos absolutos seriam, necessariamente direitos
reais: “‘Certamente o caracter commum dos direitos reaes, e dos direitos absolutos, é sua existência
independentemente de qualquer vinculo pessoal; porém, se os direitos reaes neste aspecto, são
absolutos, não se-segue que os direitos absolutos sejão os reaes’”. Neste sentido, destaca que
“independentemente destas ponderações sobre a relação de parte e todo que há entre os direitos reais e
a propriedade (no sentido visto) na teoria apresentada, e ainda sem se considerar a ampla variação de
significados expostos para os conceitos de patrimônio, coisas, bens incorpóreos e seus influxos na noção
de propriedade e direito real, Teixeira de Freitas forneceu as bases para a análise que acima se propôs.
Assim, pode-se buscar sentido em ‘direito real’ e ‘propriedade’ - mesmo que diverso do apresentado pelo
autor no desenvolvimento de sua teoria – e, então, analisar tais conceitos a partir daquela divisão dos
direitos versada na compreensão e extensão do objeto.”.
117
GUERRERO, op. cit., p. 207.
118
Neste sentido: GUERRERO, op. cit., p. 206. As relações jurídicas caracterizam direito relativo, posto
que exigem a junção de esforços para que as atribuições (ou “privilégios”) sejam exercidas. Nas
116
54
A análise dos fenômenos de direito real é mais complexa que a das relações
obrigacionais. Quanto a esta complexidade, veja -se, como exemplo, que um direito real,
para existir, pode exigir, previamente, a concretização de uma relação jurídica (ou seja,
obrigacional) – pode, portanto, constituir uma manifestação hibrida.
A título ilustrativo, veja -se a situação do uso, do usufruto e do direito de
superfície: todos necessitam da manifestação de vontade para sua constituição, e, uma
vez constituídos, não requ erem outra vontade além da do usuário, usufrutuário,
superficiário, para que sejam exercidas as atribuições que lhes foram conferidas.
Assim, admite-se que um direito real pode exigir condição autorizativa do poder
e da sujeição – nascendo relacionalmente – embora subsista situacionalmente
119
.
Nesta linha de análise, os direitos reais seriam direitos não -relacionais,
absolutos. Feitas estas considerações, vale a pena reproduzir quadro -resumo
elaborado por GUERREIRO a respeito do assunto em tela. Veja -se:
Fenômeno
Elementos
Grau de Investidura
Exercício
Taxonomia
jurídico
caracteriza-
proteção
Determinação
Auto-
Direitos reais e
exercício,
outras
dores
Situação
jurídica
Ativa: poder
Direito
sistemática
não-
Passiva:
absoluto
que atribui a independe de situações
relacional
sujeição
posição, sem qualquer
reconhecidas
(situação
deixar
pelo
jurídica
margem
strictu
sensu)
ingerência
(algumas
de
disposição
direito
de
para a parte,
família, os de
a não ser na
direitos
caracterização
personalidade).
e
de alheia.
sistema
de
direito
situações não-relacionais fala-se em poder (jurídico) e sujeição, e, nas relacionais, em pretensão e dever
(obrigação).
119
Neste sentido: GUERRERO, op. cit., p. 207 -210.
55
subjetivo
derivado
do
poder,
momento em
que
se
fala
em faculdade.
Situação
Determinação
Mediante
colaboração
a Direito pessoal
jurídica
Ativa:
Direito
sistemática
relacional
pretensão
relativo
que
(relação
Passiva:
aos indivíduos viabiliza
jurídica)
prestação
a
exercício
da patrimonial que
(dever/
possibilidade
vantagem
ou não
obrigação
de determinar desvantagem
situação
de prestar)
conexões
livremente
jurídica
referenciais
constituída ou sensu).
que
imposta
estabeleçam,
normativament
entre
e, sem que se
indivíduos,
perca
(relações
concede do alter que obrigacionais
situação
vantagem
o de
direito
constitua
strictu
o
de caráter
e relacional.
desvantagem
correlativas.
Feitas essas considerações, cumpre observar que, embora seja possível
considerar os direitos reais como numerus clausus, a indicação de que um direito
constitui é real não está adstrita à menção como tal no Código Civil. O direito real pode
estar indicado na legislação extravagante 120.
120
A este respeito, GUERRERO (op.cit., p. 211, nota 65) afirma: “Diversamente de Planiol e Ripert que
sustentam serem estes dois caracteres intrínsecos aos direitos reais (p ara eles, constituem formas
mesmas de sua realidade – Marcel Planiol; Georges Ripert, (...)), De Page julga -os especiais, mas não
56
Neste sentido, vale observar que a Lei das S/A faz expressa referência à
propriedade de ações, por exemplo, nos artigos 4º, §2º, 17, §7º, 31, 35, caput e §3º, 38,
41, caput e § 4º, 101,136, §2º, 244, § 2º, 254 -A.
Diante do exposto, é possível denotar que a titularidade das ações, num
primeiro momento – o da aquisição das ações ou da integração do potencial acionista à
sociedade – possa ser uma relação jurídica (situação jurídica relacional). Por sua vez, o
exercício do direito de voto pode ser considerado situação jurídica em sentido estrito,
pois independe da vontade alheia para seu exercício (da prerrogativa), a qual deverá,
entretanto, estar conformada pelas normas constitucionais, legais e/ou estatutárias que
regem seu exercício.
Assim, parece adequado considerar que o exercício do direito de voto, constitui,
sim, potestade autorizada pelo ordenamento jurídico, sendo, portanto, neste prisma,
passível de ser considerado um direito real.
Vistos em breves linhas, com o intuito de contextualizar, alguns conceitos que
poderão ser utilizados neste e studo, vale destacar que não se pretende apresentar,
nesta oportunidade, definição para direito de propriedade ou para o princípio da função
social da propriedade, os quais, conforme dito anteriormente, evoluem juntamente com
a sociedade 121.
Igualmente, não se objetiva, neste estudo se esgotar a matéria sob o ponto de
vista do direito civil, ficando a análise do conflito de interesses e do abuso do direito
inerentes, uma vez que podem ser destacados do direito real, constituindo meios técnicos que visam
ofertar uma proteção mais f orte ao direito.”
Como principais vantagens do direito real observam -se: o direito de seqüela (prerrogativa que permite ao
titular restaurar seu direito, se a característica de sujeição tiver sido violada - nem todos os doutrinadores
reconhecem a seqüela como elemento identificador do conteúdo mínimo e traço comum das diversas
manifestações de propriedade, como, por exemplo, Francisco Eduardo Loureiro); o direito de preferência;
e a oponibilidade perante terceiros (GUERRERO, op.cit., p. 212, e p. 212, nota 67).
121
Anote-se que também à posse se aplicam as noções de função social da propriedade, nos termos
constitucionais.
A este respeito, ZAVASCKI, Teori Albino. ( A tutela da posse na Constituição e no projeto do novo Código
Civil, p. 860) afirma: “(...) po sse e propriedade são institutos autônomos, tutelados sob enfoque de
distintos princípios constitucionais. Harmônicos no plano normativo, os princípios do direito de
propriedade e da função social das propriedades podem envolver -se em situações concretas d e tensão,
quando tracionam em direção oposta, a exigir solução de concordância prática que, fatalmente, importará
a necessidade de limitação de um deles em beneficio de outro, ou de ambos, em benefício comum do
sistema. A Constituição, embora não assegure, explicitamente, um genérico ‘direito à posse’,
inegavelmente tutela a posse quando necessário para atingir finalidades específicas, entre as quais a da
concretização do princípio da função social das propriedades.”.
57
quando do exercício do voto, adstrita à apreciação sob a ótica da Lei das S/A e da
Constituição Federal.
Desta feita, passa-se a tecer, a seguir, algumas considerações buscando
revelar que a titularidade das ações de sociedades anônimas constituem direito de
propriedade, tanto sob a ótica civilista como – e sobretudo – sob a ótica constitucional,
que interessa ao presente estudo.
Capítulo 4 - Aplicabilidade da função social às deliberações sociais: a
propriedade (ou titularidade) de ações
Notas introdutórias
Existe grande profusão de artigos e obras sobre direito de propriedade dos
recursos minerais, dos direitos autorais, de marcas, invenções, patentes, utilidades,
biotecnologia, dentre outros. Por outro lado, são escassas
– ou praticamente
inexistentes -, as obras doutrinárias que abordam o direito de propriedade em relação
às sociedades comerciais - que por ora será denominado de “propriedade das ações”
(ou titularidade), destacando -se, assim, a importância deste tema.
Neste sentido, este capítulo tem o objetivo de permitir a constatação de que a
titularidade das ações pode ser incluída na concepção constitucional e civil de
propriedade, esclarecida nos capítulos anteriores e que, portanto, o direito de voto deve
observar o princípio da função social.
Seção 1 - A titularidade das ações: relação de propriedade
Visto, anteriormente, que o conceito lato de propriedade é adotado nos artigos
5º, XXII e XXIII, e 170, II, III da Constituição Federal, observou -se que, enquanto direito
individual e princípio da ordem econômica, o referido direito (e sua função social)
engloba não apenas a propriedade imobil iária ou de bens móveis com existência
tangível, incluindo, também, bens de natureza imaterial (incorpórea).
58
O direito de propriedade constitucionalmente previsto corresponde à garantia, a
todos os indivíduos, da possibilidade de deterem um patrimônio in dividual, o qual pode
ser composto por toda sorte de ativos e passivos passíveis de avaliação pecuniária.
O caráter patrimonial das ações pode ser verificado no inegável valor
econômico e mercadológico que possuem atualmente, sendo negociadas livremente
em bolsa de valores (no caso das empresas de capital aberto).
Veja-se, ainda, que as ações podem, também, ser ofertadas em penhor (artigo
39 da Lei das S/A) 122, são passíveis de penhora 123 e podem, também, ser objeto de
usufruto124.
Do ponto de vista da legislaçã o tributária, a patrimonialidade das ações pode
ser facilmente verificada no fato de deverem ser informadas ao fisco pelas pessoas
físicas, anualmente, na Declaração de Imposto de Renda, no campo dos “bens e
direitos”; no fato de pessoas físicas e jurídica s que as detenham estarem obrigadas a
tributar o ganho decorrente de sua alienação.
De se notar que as ações (e sua titularidade) possuem, também, especial
interesse no âmbito da responsabilidade civil e tributária, permitindo -se, em
determinados casos, que se estenda a responsabilidade aos acionistas. Tal extensão
será possível, por exemplo, na hipótese dos acionistas agirem em desconformidade
com a lei, com excesso ou abuso de poderes, no caso de capital social não
integralizado, além de outras inúmeras situações que não cabe abordar neste
momento.
122
“No caso de serem as ações dadas em p enhor, nada impede que o acionista exerça o direito de voto,
a não ser que, na constituição do penhor, haja cláusula especial sobre o assunto; (...)” (MARTINS, Fran.
Curso..., p. 368). Neste sentido, afirma RICARDO NEGRÃO (Manual..., p. 408): “Por serem co isas
móveis, as ações podem ser objeto de penhor e de outros direitos e ônus reais, regulados pelos arts. 39
e 40 da Lei 6.404/76.”.
123
Não serão analisadas aqui as discussões existentes nas ditas “sociedades de pessoas”, em relação
às quais a doutrina e a jurisprudência discutem à longa data sobre a penhorablidade de quotas, a affectio
societatis e o poder de gestão da empresa. A respeito deste assunto veja -se: ABRÃO, Nelson.
Sociedade por quotas de responsabilidade limitada , p. 89; POPP, Carlyle (et ali). A arrematação ou
adjudicação das quotas sociais penhoradas e suas conseqüências jurídicas. Revista de Processo n. 55,
p. 224 e seguintes; Superior Tribunal de Justiça - Recurso Especial nº 148947 – Processo:
199700661741/MG - Órgão Julgador: 3ª Turma - Data da decisão: 15/12/2000; Superior Tribunal de
Justiça - Recurso Especial nº 327687 – Processo: 200100578736/SP - Órgão Julgador: 4ª Turma - Data
da decisão: 21/02/2002.
124
“Se a ação for gravada de usufruto, o direito de voto, se de modo contrário não for convencionado na
constituição do gravame, só poderá ser exercido mediante acordo prévio entre o proprietário e o
usufrutuário.” (MARTINS, Fran. Curso..., p. 368).
59
Neste sentido, vale destacar que a propriedade (ou titularidade de ações) é
referida em diversas oportunidades pela Lei das Sociedades Anônimas (por exemplo,
nos artigos 4º, §2º, 17, §7º, 31, 35, caput e §3º, 38, 41, caput e § 4º, 101,136, §2º, 244,
§ 2º, 254-A)125.
No âmbito doutrinário, é possível identificar a existência de referências ao
“acionato” ou “acionariato” como, por exemplo, no título da “I PARTE” da obra “A
propriedade privada na economia moderna”, de autoria de ADOLF A. BERLE JR. E
GARDINER C. MEANS - “A propriedade em contínua mudança. Cisão dos atributos da
propriedade nas sociedades por ações ” (destacou-se). Estes doutrinadores esclarecem
que: “Em seu aspecto moderno, o ‘acionariato’ é um meio a través do qual o patrimônio
de vários indivíduos se concentra em imensos blocos, ficando o controle dessa riqueza
entregue a uma direção.” 126.
RUBENS REQUIÃO tece algumas considerações a respeito do “acionato”,
como passa a denominar o sistema de propriedad e de ações 127:
“O acionato, como foi batizado o sistema de propriedade privada inaugurado
pela difusão das ações representativas do capital das sociedades anônimas,
revolucionou, na verdade, o antigo e clássico instituto da propriedade privada.”
Prossegue afirmando que, embora a civilização ocidental tenha herdado do
Corpus Juris Civilis e conservado no Código Napoleônico de 1803, o conceito de
propriedade do jus utendi, fruendi ac abutendi , no acionato existe a separação entre
125
Cumpre observar que, embora seja possível considerar os direitos reais como numerus clausus, a
indicação de que um direito constitui é real não está adstrita à menção como tal no Código Civil. O direito
real pode estar indicado na legislação extravagante.
126
BERLE JR., Adolf A. MEANS, Gardiner C. A propriedade privada na economia moderna, p. 18.
FRAN MARTINS (Curso..., p. 364) também reconhece o direito de propriedade nas relações em comento:
“O capital social das sociedades anônimas é dividido em partes denominadas ações os proprietários
dessas partes têm o nome de acionistas.”. Este doutrinador prossegue, mais adiante (p. 366): “Ao
adquirir ações, o acionista passa a participar da sociedade e, assim, a gozar dos vários direitos oriundos
dessa situação. (...) Um dos mais importantes direitos conferidos ao acionista é o de votar nas
deliberações sociais (...)”.
127
REQUIÃO, Rubens. Curso de Direito Comercial, p. 57
60
gestão e fruição dos bens. A gestão passa a ser da sociedade, ao passo que a fruição
permanece nas mãos do proprietário 128.
No mesmo sentido, segundo os ensinamentos de BERLE e MEANS, nas
sociedades anônimas há uma ruptura entre propriedade e gestão. Estes doutrinadores
analisam diversas situações concretas ocorridas nos Estados Unidos e afirmam
existirem basicamente os seguintes tipos de controle: (i) o controle através da
participação quase total; (ii) o controle da maioria; (iii) o controle através de um
mecanismo jurídico, o pyramiding (participação em sociedades que detém participações
em outras sociedades, de forma que estas últimas ficam sobre o controle dos
controladores das primeiras); (iv) controle pela emissão de ações sem direito a voto; (v)
o voting trust (ou fideicomisso, o que parece equivaler ao acordo de votos); (vi) o
controle da minoria; e, por fim o (vii) controle da diretoria 129. Estas formas de controle
não serão abordadas no presente estudo, sob pena se alargar em demasiado o seu
objeto.
De outro modo, em que pese o entendimento doutrinário exposto acima, pode se observar que embora nem todos os acionistas isoladamente possuam poder de
controle, todos os detentores de direito de voto podem possuir de certa forma – em
maior ou menor grau - poder de gestão. Em sua obr a Curso de Direito Comercial ,
REQUIÃO cita o Professor HOUIN, extraindo trecho de um estudo por este realizado
(“Problèmes Juridiques Récents du Droit des Societés” )130. Veja-se:
“Se se tomar, antes de tudo, a sociedade anônima em si, em sua estrutura
interna e em seu funcionamento, todas as relações levam à famosa separação
seguidamente notada, entre a propriedade e a direção. Na empresa liberal
clássica, o empresário aplica seus capitais e corre riscos de perda, vendo -se
nisso a legitimação de seu poder de direção, propriedade e responsabilidade,
servindo de fundamento à habilidade do empresário. Nas grandes sociedades
anônimas de nossos dias, essa unidade, da propriedade e da direção, da
responsabilidade e do poder, se atenua, se não desaparece. Um grupo d e
128
129
REQUIÃO, Rubens. Curso de Direito Comercial, p. 57.
BERLE JR., Adolf A. MEANS, Gardiner C. A propriedade privada..., p. 98-122.
61
acionistas dirige a sociedade sem ser necessariamente majoritário, porque mais
as ações são difundidas no público, menos é necessário possuir frações
importantes do capital para ser chefe da sociedade”.
Como é possível observar, o Professor HOUIN, ao e sclarecer que, atualmente,
um grupo de acionistas acaba por dirigir a sociedade – o que significa exercer poder de
gestão -, de certa forma admite que o voto é determinante para as deliberações sociais
e, portanto, seu exercício corresponde a uma espécie de poder de gestão, de
manifestação do direito de propriedade.
O voto é poder. Poder que pode ser direcionado de forma a cumprir a função
social da propriedade ou violá -la131.
Embora o poder de gestão possa estar vinculado à propriedade, numas
situações em maior e noutras em menor grau, vale observar que o direito de
propriedade, ainda que sob a ótica do direito civil, pode prescindir de algum dos seus
caracteres positivados (princípio da elasticidade) sem, contudo, desnaturar o referido
direito de propriedade.
Neste sentido, argumente -se que o acionista teria, na medida de sua
participação e em conformidade com o tipo de ação por ele detida, o direito de usar,
gozar e fruir, que, como visto anteriormente, são elementos caracterizadores do direito
de propriedade para o Direito Civil.
O direito de fruir, mais fácil a ser visualizado, seria o direito de receber o
produto, os frutos civis da empresa (lucros). Se a empresa não produz frutos, não
haverá que se falar em frutos a serem colhidos (ou percebidos). O direito de dispor
poderia ser vislumbrado no direito do acionista de alienar suas ações, de dá -las em
garantia (onerá-las). O direito de usar - poder de se exigir da coisa suas utilidades,
serviços, sem alterar-lhe a substância – denotado, por exemplo, no direito do acionista
de votar de forma a garantir a lucratividade da empresa, observados, é claro, os limites
legais e convencionais (para os acionistas que possuem direito a voto).
130
Curso..., p. 57 ss.
A respeito do assunto, vale a pena citar o entendimento de CARLA OSMO ( Pela máxima efetividade
da função social da empresa , p. 269): “(...) E nas sociedades anônimas, são proprietário os acionistas,
131
62
Quanto ao poder de gestão, como já referido anteriormente, embora nem to dos
os acionistas (ou grupos) possuam poder de controle, todos os acionistas detentores de
direito de voto podem possuir de certa forma – em maior ou menor grau, ainda que
potencialmente - poder de gestão. Entretanto, de se inferir que, em que pese possa n ão
deter o controle, isto não exime o acionista de responsabilidades pelo exercício do
direito de voto.
Vale destacar que o simples não exercício do direito – ou de uma das
faculdades da propriedade – não torna inexistentes tais direitos ou faculdades, a menos
que a lei tenha previsto sua caducidade.
Feitas essas considerações, resta claro o aspecto patrimonial das ações e
constata-se o reconhecimento doutrinário do direito de propriedade na sua titularidade –
doutrina à qual se filia esta análise – diante do que se conclui que o exercício do direito
de voto deve observar o princípio constitucional da função social da propriedade, bem
como as determinações legais e estatutárias, enquadrando -se, também, nas
disposições do Código Civil atinentes à matéria de direito de propriedade.
Diante disso, o presente estudo terá seus olhos voltados à gestão da sociedade
pelos titulares de ações com direito de voto, os quais deverão observar em sua
atuação, ainda que não sejam controladores, as limitações de direito con stitucional
vinculadas à observância do princípio constitucional da função social.
CONCLUSÃO PARCIAL
A análise empreendida até este momento a respeito do direito de propriedade e
da função social teve como objetivo permitir vislumbrar que a amplitude d o conceito de
“propriedade”, sob a ótica constitucional, engloba as relações de propriedade
representadas pela titularidade de ações, o que se espera tenha sido efetuado
satisfatoriamente.
Num segundo momento, pretendeu -se esclarecer quanto à possibilidad e da
titularidade das ações, sobretudo no que tange ao exercício do direito de voto, poder
que apenas possuem poder sobre parte do capital da empresa, representado por títulos pa ssíveis de
simples e rápida transferência.”
63
ser enquadrada como direito real sob a ótica do direito civil. Tal constatação tem
implicações no campo da responsabilidade civil, sob a ótica civilista.
Desta feita, vale apresentar uma breve síntese das principais conclusões sobre
o que já foi exposto.
A Constituição reconhece como direitos individuais o direito de propriedade
(artigo 5º, XXII), conformado pela função social da propriedade (artigo 5º, XXIII), não
podendo existir propriedade que não cumpra sua função social. Reconhece -o, ainda,
juntamente com a função social, como princípio da ordem econômica (artigo 170, II e III
da Constituição Federal), a qual tem por fim assegurar a todos existência digna,
conforme os ditames da justiça social.
Como bem ensina FRANCISCO CARDOZO OLIVEIRA 132: “A funcionalização
confere relevância ao exercício dos poderes proprietários, à relação entre proprietários
e não-proprietários e à configuração do conflito em torno da produçã o social do
espaço.”.
Ao lado da função social, a liberdade de iniciativa também encontra resguardo
enquanto princípio (fundamento) da ordem econômica, devendo estar voltada, tal qual a
propriedade e a função social da propriedade, a assegurar a todos exi stência digna.
Estes dois princípios são coexistentes e conformam -se reciprocamente em
virtude da unidade da Constituição. Ao estipular a função social da propriedade, o
direito de propriedade e a livre iniciativa, a Carta manteve o sistema econômico
capitalista e, simultaneamente, conformou -o à justiça social.
Importante destacar que a função social não tem por objetivo erradicar o
capitalismo ou extinguir a possibilidade de obtenção de lucros, neste sentido, de se
observar que a ela faz contrapeso justam ente o princípio da liberdade de iniciativa,
anteriormente referido. A função social da propriedade tem por objetivo mitigar o
individualismo cego e o capitalismo excessivo.
Desta forma, é possível conceber a função social como um princípio que traça
uma linha de ajuste entre a liberdade e a subordinação ao interesse coletivo.
132
Hermenêutica..., p. 269.
64
No âmbito constitucional, o direito de propriedade e a função social da
propriedade não estão adstritos à propriedade física, material, englobando toda espécie
de bens que possua ca ráter patrimonial, dentre os quais é possível incluir as ações.
Reconhece-se, assim, para fins constitucionais, que a titularidade de ações é
direito de propriedade e, como tal, está conformada pela função social e pelos fins da
ordem econômica (assegurar a todos existência digna e objetivar justiça social).
Quanto à efetividade dos princípios, segundo a doutrina majoritária com a qual
se compactua, os princípios constitucionais devem ser vistos como normas efetivas,
dotadas de imperatividade. Embora não prescrevam obrigações precisas (o que é razão
distintiva entre princípios e regras), os princípios apresentam uma finalidade a ser
atingida, devendo ser adotados todos os meios necessários para a obtenção do fim por
eles colimado.
Ademais, vale destacar q ue os princípios constitucionais constituem o centro do
sistema jurídico e devem nortear a aplicação das normas infraconstitucionais, bem
como o processo de criação das mesmas.
Sob o ponto de vista do direito civil, no que diz respeito à caracterização da s
ações como direito de propriedade, é possível constatar que os titulares de ações
usualmente possuem o poder de usar, gozar e dispor das ações e de seus frutos. O
poder de gestão, embora possa estar presente, nem sempre pertence a todos os
titulares de ações (ainda que se refira a titulares de ações com direito de voto).
O fato do poder de gestão nem sempre estar centrado no titular da ação (com
direito de voto) 133, não implica na ausência de reconhecimento da titularidade em
questão como direito de propr iedade. O princípio da elasticidade permite que poderes
inerentes ao direito de propriedade sejam destacados, sem que, com isso, se desnature
a relação de propriedade propriamente dita.
Por sua vez, ainda no âmbito do direito civil, parece possível reconhe cer a
caracterização do direito de voto (pelos titulares das ações) como exercício de um
direito real, posto que o voto poderá ser exercido independentemente da anuência dos
demais acionistas ou de terceiros (desde que, é claro, se esteja diante de situaçã o que,
133
As ações sem direito a voto são alheias ao objeto do presente estudo.
65
nos termos da lei, possibilite o exercício de tal direito), sendo -lhe aplicável, portanto, o
artigo 1.228 do Código Civil.
O artigo 1.228 do Código Civil, por sua vez, refere expressamente que o direito
de propriedade deve ser exercido em consonânci a com as finalidades econômicas e
sociais. Sendo assim, estas finalidades passam a ser inerentes ao direito de
propriedade e, como tal, à titularidade das ações, vinculando o exercício do direito do
voto.
Resta claro, PORTANTO, que o direito de propriedad e deve ser visto
considerando a função social que lhe é ínsita (a função social da propriedade é interna
ao próprio direito de propriedade). Vale a pena finalizar com a lição de FRANCISCO
CARDOZO DE OLIVEIRA:
“A funcionalização da posse e do direito de p ropriedade insere-se no conjunto
de novos paradigmas contempladas pelas constituições contemporâneas para a
reorientação valorativa e finalística do exercício da posse e dos poderes
proprietários, de forma a preservar os interesses comunitários, sem
necessariamente negar o papel da iniciativa individual para o desenvolvimento
social e econômico dos povos.
No ordenamento jurídico brasileiro, pelo menos a partir da Constituição de
1988, já não é mais possível isolar a propriedade de sua função social, de
forma a reconhecer um suposto núcleo conceitual infenso à funcionalização. A
função social penetra a estrutura do direito de propriedade de forma a que o
exercício dos poderes proprietários não diz respeito apenas à relação do
proprietário com a coisa, mas est á subordinado a uma orientação finalística que
considera o uso da coisa e a relação social e historicamente situada entre
proprietários e não-proprietários.” 134.
134
Hermenêutica..., p. 242.
66
PARTE II
INTERESSE SOCIAL
Notas Introdutórias
Fixadas as premissas de que o direito do sóc io em face de suas ações consiste
expressão de direito de propriedade e que o direito de propriedade encontra -se
conformado pela sua função social que lhe é ínsita, concluiu -se que o direito de voto
deverá ser exercido em conformidade e objetivar o cumprim ento da função social.
Neste sentido, observa -se,
num primeiro momento, que o voto deve ser
exercido no interesse da companhia. Mas o que vem a ser o “interesse da companhia”?
Diante disso, faz-se necessário adentrar em alguns conceitos fundamentais a re speito
da matéria, buscando fornecer elementos para, na seqüência, analisar a questão do
conflito de interesses e do abuso do direito de voto.
Capítulo 1 – O interesse da companhia
Seção 1 – Noções preliminares
O homem vale-se de bens para a satisfação de seus interesses, de forma que
“interesse” pode ser compreendido como sendo a relação entre um sujeito, que possui
uma necessidade, e o bem capaz de satisfazê -la135.
135
Diversos conceitos procuram atender o significado de “bem”.
WASHINGTON DE BARROS MO NTEIRO (Curso de Direito Civil..., v. 1, p. 135) apresenta alguns destes
significados: “Filosoficamente, bem é tudo quanto pode proporcionar ao homem qualquer satisfação. (...)
Juridicamente falando, bens são valores materiais ou imateriais, que podem ser objeto de uma relação de
direito. O vocábulo, que é amplo em seu significado, abrange coisas corpóreas e incorpóreas, coisas
materiais ou imponderáveis, fatos e abstenções humanas.”.
ORLANDO GOMES (Introdução ao Direito Civil, p. 199) afirma: “A noção jurí dica de bem é mais ampla
que a econômica. Compreende toda utilidade, física ou ideal, que possa incidir na faculdade de agir do
sujeito. Abrange as coisas propriamente ditas, suscetíveis de avaliação pecuniária, e as que não
comportam esta avaliação, as qu e são materiais ou não. Todo bem econômico é jurídico, mas a
recíproca não é verdadeira, pois nem todo bem jurídico é econômico.”.
67
Nesse sentido, considerando que as normas do ordenamento jurídico
pressupõem uma pondera ção de interesses e se prestam a salvaguardar interesses 136,
o “interesse” pode ser visto como uma pretensão fundamentada em um direito e, assim,
como um elemento intrínseco do direito subjetivo protegido pela lei 137. Diz-se “interesse”
a “(...) relação íntima entre o indivíduo e o objeto de seu desejo.” 138.
Os interesses, por sua vez, relacionam -se entre si, em virtude das inúmeras
necessidades do homem. Essa relação pode ser relevante ou indiferente, conforme
haja, ou não, interferência de um interesse no outro . A relevância pode ser vista como
solidariedade (instrumentalidade) ou conflito (incompatibilidade). Veja -se o que trata
CARNELUTTI a respeito 139:
“Mesmo se no mundo existisse um único homem, as observações deste com o
resto dos entes não poderia limitar -se aos interesses simples. Pelo contrário,
quem prestar atenção notará que existem também relações do mesmo tipo, ou
seja, de complementaridade, entre interesse e interesse. Estas são relações de
segundo grau, cuja observação é mais delicada. Pode acontecer que um
interesse de uma pessoa assuma, a respeito de um outro seu interesse, uma
posição de relevância ou indiferença. Por sua vez, a posição de relevância
pode ser de solidariedade ou de conflito. Essas duas hipóteses tem particular
importância. Há necessidades cuja satisfação facilita a satisfação de outras
necessidades: assim, se um homem não comeu e portanto não restaurou suas
forças, não consegue construir a sua casa. Há necessidades cuja satisfação se
não obtém senão pela conquista de sucessivas posi ções: assim, para comer, o
136
Consideração extraída de BERTINI ( Contributto allo Studio delle Situazione Giuridiche degli Azionisti ,
Dott. A. Giuffrè Editore, Milão, Itália, 1951, p. 6, nota 1) por VALLADÃO (Conflito de interesses..., p. 15,
nota 4).
137
Segundo ORLANDO GOMES ( Introdução..., p. 107-108): “Na conceituação de direito subjetivo não há
unidade de vistas. R. Von Ihering definiu -o como o interesse juridicamente protegido. Windscheid, como o
poder ou domínio da vontade conferido pela ordem jurídica. As duas concepções são incompletas,
porque frisam um dos aspectos do direito subjetivo, pecando pelo unilateralismo. (...) O direito subjetivo
não é só poder ou vontade, como não é apenas interesse, senão poder atribuído à vontade do sujeito
para a satisfação dos seus próprios interesses protegidos legalmente. Jelinek integrou os dois elementos,
definindo o direito subjetivo como o interesse protegido med iante o reconhecimento do poder da vontade
individual.”.
138
NUNES, Pedro. Dicionário..., p. 511.
68
homem tem que primeiro obter os alimentos, ou, para construir a casa, arranjar
os materiais. Assim se explica que um interesse possa ser mais que, ou antes
que, uma posição favorável à satisfação de uma necessidade, uma posição
favorável à consecução de um interesse. Neste ponto de vista, distinguem -se
os interesses finais dos interesses instrumentais, ou ainda os interesses
imediatos dos interesses mediatos. Em conseqüência, no campo intersubjetivo,
a solidariedade traduz-se na necessidade de outrem; nessa hipótese, a posição
favorável para a satisfação de uma necessidade determina -se ao mesmo tempo
a respeito de um e de outro, aflorando assim a noção de interesse comum ou
coletivo, em antítese com o interesse singular ou individu al.”
As relações de solidariedade tornam -se claras quando os indivíduos devem
cooperar entre si porque somente com a satisfação do interesse do outro ocorrerá a
satisfação do seu interesse. Há, pois, um interesse comum ou coletivo, em
contraposição ao interesse individual. Observe -se, contudo, que esta idéia de
contraposição não é aceita por todos os doutrinadores, existindo afirmações no sentido
de que o interesse coletivo constitui a soma de interesses que, embora individuais,
sejam relativos ao grupo 140.
Os conflitos, por sua vez, podem ser totais ou parciais, sendo que estes se
darão quando é possível satisfazer parcialmente os interesses envolvidos.
Nesse cenário, interessam para a presente análise as situações de conflitos de
interesses de natureza int ersubjetiva (que estejam na esfera de vários indivíduos) - as
de natureza intrasubjetiva (psicológicos) usualmente não interessam ao Direito posto
que ocorrem estritamente no plano psicológico.
139
CARNELUTTI, Apud BULGARELLI, Waldirio. Sociedades comerciais..., p. 301. Na obra original do
autor (CARNELUTTI), Teoria Generale del diritto, p. 11.
140
Neste sentido, ensinamentos de CARNELUTTI e JAEGER referidos por ERASMO VALLADÃO
(Conflito de interesses..., p. 18).
VALLADÃO (p. 18, nota 10) esclarece o entendimento de JAEGER “Jaeger, porém, nega que o interesse
individual se contraponha ao coletivo, pois, se gundo ele, trata-se de conceitos não homogêneos. Para
Jaeger, o termo interesse coletivo contrapõe -se, sim, ao conflito de interesses e à indiferença entre os
interesses, exprimindo, a par destes, uma relação entre interesses de diversos sujeitos, e não um a
qualidade do interesse.”.
69
O conflito de interesses em sentido estrito, que interessa ao presente estudo,
traduz-se pela existência de interesses individuais de sócio que se contrapõem ao
interesse da sociedade e são revelados quando do exercício do direito de voto.
Cumpre, então, verificar, em que consiste o interesse social.
Seção 2 – O interesse social
A
legislação
societária
brasileira
em
diversas
passagens
refere -se
expressamente ao interesse social, ao interesse da companhia, aos interesses dos
trabalhadores, entre outros. Refere -se, também, ao conflito de interesses e ao legítimo
interesse da companhia.
Questão é saber em que consiste este interesse da sociedade (ou companhia),
ao qual se denomina “interesse social”.
Sobre esta proposição tem se debruçado a doutrina, sobretudo estrangeira. Em
que consiste o “interesse social”? O interesse coletivo dos sócios? O interesse da
sociedade como pessoa distinta da de seus sócios? Ou o interesse da empresa, dos
trabalhadores, dos credores, da comunidade, do país?
A questão é polêmica e traz implicações quando da identificação e tutela da s
situações de conflito e adquire maior relevo quando se tem em vista as grandes
corporações, face suas repercussões sociais. Há uma região de influência da empresa,
da organização da atividade econômica, que se separa e até se choca com os
interesses dos acionistas e mesmo da própria sociedade, esta enquanto organização
jurídica dos acionistas 141.
141
CORDEIRO (Da responsabilidade..., p. 498-513) esclarece que a empresa é produto de duas
tradições distintas: a alemã e a latina. A alemã vê a empresa sob uma ótica objetivada, capaz de
concorrer com a idéia de pessoa coletiv a ou, pelo menos, de objeto de comércio. A latina, que é mais
antiga, considera-a como uma atividade comercial, capaz de concorrer com o ato de comércio. Segundo
o autor, a tradição alemã teria prevalecido. Nesta, o negócio que faz o comerciante, e não o c ontrário – o
negócio é o suporte de crédito, um organismo que supera as pessoas que lhe deram origem, abrindo -se
as portas da subjetividade jurídica. Conforme informa CORDEIRO, ESCARRA teria afirmado que a teoria
latina teria de forma subjacente uma idéia rica, “(...) mas pouco praticável de direito comercial, assente
em profissões de comerciantes e não em atos isolados.”.
70
As principais teorias sobre o interesse social se dividem basicamente em dois
grandes grupos: as teorias institucionalistas e as contratualistas, a respeito das quais se
tratará sinteticamente a seguir 142.
Vale a pena citar, antes de prosseguir, um comentário de CALIXTO SALOMÃO
FILHO 143:
“Analisar os fundamentos do direito societário é analisar a função social das
sociedades.
Ora, a mera menção a função societária
traz à mente os clássicos
ensinamentos contratualista e institucionalista a respeito da razão de ser das
sociedades comerciais. (...)
Essas teorias não esgotam, no entanto, de modo algum, a matéria. Foram
elaboradas em ambiente econômico muito diverso dos atuais. Por isso é hoje o
direito societário invadido por novas teorias jurídicas e, sobretudo, novas
tentativas de explicação econômica de seus fundamentos.”
Assim, sem a pretensão de se chegar a conclusões definitivas a respeito do
assunto, nem mesmo d e esgotar matéria tão densa e complexa, passa -se a tecer
algumas considerações acerca das principais teorias sobre o interesse social.
Capítulo 2 – Noções acerca das principais teorias institucionalistas a respeito do
interesse social
VALLADÃO esclarece que a gênese das principais teorias institucionalistas
deve-se a RATHENAU, empresário, sociólogo e homem de Estado, um não jurista, que
142
A análise que se irá realizar acerca das doutrinas contratualistas e institucionalistas tem como ponto
de partida os estudos de JAEGER a respeito do assunto, apresentados por ERASMO VALLADÃO
AZEVEDO E NOVAES FRANÇA, quando da conclusão de sua dissertação de mestrado, publicada pela
Malheiros Editores com apresentação de WALDIRIO BULGARELLI, sob o título Conflito de interesses
nas assembléias de S.A., bem como, a obra de TELMA DE MESQUITA, Governança corporativa.
143
O novo direito societário... , p. 25.
71
escreveu durante a guerra uma obra, publicada em 1917, que teve grande repercussão
no âmbito jurídico 144.
Nesta obra, o referido autor alertara que o modo de ver a empresa familiar,
adotado pelos tribunais, não poderia ser aplicado à grande empresa – a qual não é
mais uma organização de direito privado, mas sim um fator da economia nacional, a
serviço dos interesses público s. Advertiu, também, que o grande acionista teria perdido
o significado, pois, como constatado por BERLE e MEANS, haveria uma dissociação
entre propriedade e gestão. Chamou atenção, ainda, para o fato de que as grandes
empresas dão origem a menores, forma ndo o conhecido fenômeno do grupo145.
Diante destas constatações, RATHENAU defendia uma visão mais publicista e
menos egoística da empresa, entendendo que a estrutura desta deveria se assemelhar
à do Estado 146.
Nesse cenário, a partir da 1ª Guerra Mundial até 1945, verifica-se uma inversão
na tendência individualista, evoluindo -se do contrato para o status, ou mais
precisamente da sociedade para a instituição (francesa), ou o organizacionismo dos
alemães, aceito pelos italianos.
Para BULGARELLI, “(...) a cr ítica à instituição é feita não só por se tratar de um
conceito ainda não suficientemente elaborado, mas também por suas implicações
político-sociológicas.” 147.
A teoria institucionalista se desenvolveu e se desdobrou em diversas vertentes
(ou fases) a respeito das quais se tratará, brevemente, a seguir.
Seção 1 - A teoria da empresa em si
A teoria da empresa em si ( Unternehmen an sich) é a mais conhecida das
teorias institucionalistas. Segundo THELMA DE MESQUITA, esta teoria desenvolveu a
144
Conflito de interesses..., p. 22.
VALLADÃO, Conflito de interesses..., p. 22-23.
146
VALLADÃO, Conflito de interesses..., p. 23.
147
BULGARELLI, Manual das sociedades anônimas..., p. 25. Não se adentrará, nesta oportunidade, nas
críticas específicas a respeito do assunto.
145
72
concepção de cunho publicista de RATHENAU 148. Foi inicialmente sustentada na
Alemanha por NETTER, GEILER, GÖPPERT, LUDWIG 149.
Para esta teoria, o interesse da própria empresa ( Unternehrneninteresse) seria
autônomo
e
hierarquicamente
superior
aos
interesses
dos
sócios
(Gesellschaftinteresse).
Nesta linha, BULGARELLI, ao tratar do “interesse da empresa”, afirma que este
é interesse distinto do interesse social e do interesse do acionista. O interesse social
estaria centrado no interesse dos acionistas, “(...) em comum, como um todo, sem
inclinações preferenciais, e na mantença do próprio grupo societário, com a superação
dos conflitos individuais (...)” ao passo que o interesse da empresa “(...) sobrepor -se-ia
ao interesse social e dos acionistas, constituindo, afinal, um int eresse em si.” 150.
As principais características da teoria da empresa em si foram resumidas por
JAEGER como sendo 151:
(i) visão publicista acentuada: os problemas e os interesses da empresa não se
resumem aos dos acionistas, incluindo os mais diversos, como por exemplo, o
dos trabalhadores e seus dependentes, os dos consumidores, o interesse
148
Governança..., p. 35. No mesmo sentido: SALOMÃO Filho, Calixto. O novo direito societário, p. 31.
Segundo MÓNICA ROIMISI ER (El interés..., p. 5) teve lugar na Alemanha, sobretudo na época
imediatamente posterior à Primeira Guerra. Para a época pós Segunda Guerra, MÓNICA (p. 9)
considera: “La moderna doctrina alemana institucionalista, es decir, la que se ha venido elaborand o com
posterioridad a la segunda posguerra, ha mantenido la teoria de la empresa en si como idea central de la
estructura societaria, si bien desprovista de las connotaciones propias de la ideologia nazi.”.
Para CORDEIRO (Da responsabilidade..., p. 500-501) RATHENAU não teria lançado o “mote” da
empresa em si, mas teria apenas afirmado que esta não representava a soma dos interesses dos
acionistas. Embora faça esta ressalva, não cabe, nesta oportunidade, investigar esta ao menos aparente
divergência, sob pena de alargar em demasiado o objeto deste estudo.
150
Sociedades..., p. 303.
151
VALLADÃO, Conflito de interesses..., p. 23-24.
MÓNICA ROIMISIER ( El interes..., p. 5-6) afirma a respeito: “La empresa, em cuanto instrumento de
influencia preponderante em la o rganización econômica, fue considerada de interes para la economia
nacional. (...) Consideró así, a los acionistas individuales los enemigos más peligrosos de la empresa, y
uno de los mayores obstáculos para la consecución de los fines y de la función que ella le cabía. Movidos
por el ánimo de lucro, ellos determinaban, em su opinión, que el interes general fuera sacrificado em aras
del suyo personal. La tutela de la empresa y la necessidad de sutraerla de los intereses de los acionistas,
lo llevó a imponer la cumulación de um máximum de poderes em las manos del órgano de
administración, que adquirió predomínio absoluto sobre el asambleario. (...) El poder desvinculado del
riesgo determino la eliminación del lucro como motor propulsor de la actividad econômi ca
estableciéndose, de esta manera, uma noción casi mística de la empresa, dotándose a los
administradores de poder carismático.”
149
73
coletivo ao desenvolvimento da economia nacional, todos merecedores de
tutela legal 152;
(ii) a existência de um interesse da própria empresa: que não é o lucro, mas sim
a melhor eficiência produtiva, o que justifica o autofinanciamento 153;
(iii) a tendência de se retirar a administração da empresa dos acionistas
meramente especuladores, para confiá -la a uma administração estável e
coesa154; e
(iv) a redução dos direitos dos ac ionistas em benefício do superior interesse da
empresa, à qual tem eles dever de fidelidade ( Treupflicht) 155.
Esta teoria foi largamente criticada, merecendo destaque as críticas de
HORRWITZ, HAUSSMANN, MESTMÄCKER, FISCHER e WELTER, resumidas por
JAEGER em sua obra, quais sejam 156:
(i) a sociedade anônima é instituto de direito privado, sendo os interesses dos
trabalhadores e a relevância da atividade econômica questões afetas a outros
ramos do direito, que não o societário – tais questões não seriam sufic ientes
para introduzir novos princípios ao direito societário;
(ii) apenas os indivíduos possuem interesses: é impossível a empresa ter
interesse autônomo, pois a pessoa jurídica é mera ficção;
(iii) é um absurdo defender a empresa contra seus proprietári os e, se assim
fosse, seu controle não deveria ser entregue a uma administração – grupo de
capitalistas privados – mas sim ao Estado;
(iv) a teoria fere o princípio democrático da igualdade entre os acionistas,
dividindo-os em “dinastias econômicas”, legi timando o controle de poucos e
subtraindo a atividade dos administradores;
(v) redução do acionista minoritário à condição similar à do debenturista; e
152
ROIMISIER, Mônica. El interés..., p. 7.
ROIMISIER, Mônica. El interés..., p. 7. SIMIONATO (Sociedades..., p. 137-143) comentando esta
teoria afirma que ela permite a constituição de diversas reservas (como prevê a Lei das S/A no Brasil),
dispensando (ou vedando) a distribuição integral dos lucros.
154
ROIMISIER, Mônica. El interés..., p. 7.
155
ROIMISIER, Mônica. El interés..., p. 7.
153
74
(v) a falta de definição, pelos defensores da teoria, do conceito de empresa o
que, segundo a doutrina c ontrária, estaria a defender um interesse destituído de
sujeito.
Segundo JAEGER, esta teoria teria ainda admitido a coexistência dos
interesses de todos os envolvidos na atividade produtiva, mas teria tutelado apenas os
da diretoria que, por não ter aut onomia suficiente, acabava cedendo aos interesses dos
controladores. Ao subordinar os interesses dos acionistas ao da empresa, restringiu
drasticamente seus direitos, como o de informação, de impugnação de decisões das
assembléias e de obtenção de rendimen tos de suas aplicações 157.
Neste sentido, reporta THELMA DE MESQUITA que a teoria da empresa em si
teve o mérito de valorizar o papel do órgão de administração da sociedade anônima,
“(...) atribuindo-lhe maior poder de controle da empresa, em detrimento do poder
conferido aos acionistas, cujos interesses deveriam estar sempre subordinados ao
interesse da empresa.”. Mas, ao fazê -lo, extrapolou os limites da ponderação e reduziu
excessivamente os direitos dos acionistas, sobretudo minoritários, contribuindo, assim,
para incitar as críticas que lhe foram feitas 158.
BULGARELLI critica esta teoria afirmando que o interesse da empresa, se
considerado superior aos demais na sociedade, implicaria na destinação dos lucros,
não para a distribuição de dividendos, mas sim para as reservas, “(...) uma vez que o
importante é o crescimento e expansão da empresa e não o interesse do acionista, que
é participar dos lucros.” , chegando a “(...) desdenhar dos acionistas e até mesmo da
própria sociedade.” 159.
156
VALLADÃO, Conflito de interesses..., p. 24-26.
THELMA DE MESQUITA, Governança..., p. 37.
158
THELMA DE MESQUITA, Governança..., p. 36.
159
Sociedades..., p. 303-305.
BULGARELLI (Regime Jurídico..., p. 73) alerta: “Em primeiro lugar, é necessário e sclarecer que bem
pesadas as coisas, a empresa não tem interesses, sob pena de se admitindo tal adotar -se a teoria de
Despax de que a empresa se desgarrou da sociedade, constituindo uma nova pessoa, o que é
inaceitável até para o próprio Paillusseau. (...) A empresa, reitere-se, não tem interesses; só as pessoas
os têm; a empresa não pode ser reconhecida como tal, embora para isso se esforcem alguns autores,
notadamente os institucionalistas, sendo que para muitos sequer é uma coisa, tratando -se de mero fato
como a qualifica Ghiron, ou mera abstração, como requer o nosso Rubens Requião.”.
157
75
Inobstante as severas críticas apresentadas, a teoria da empresa em si foi
amplamente consagrada na Alemanha e na França, influenciando diversos diplomas
legais160.
Seção 2 - A teoria do direito da empresa acionária
Formulada por HAUSSMANN, um dos principais opositores da teo ria da
empresa em si, a teoria do direito da empresa acionária nega a titularidade de
interesses pela empresa, preconizando a existência de um “interesse comum” com
diversos titulares – acionistas, membros da administração, credores, trabalhadores,
seus dependentes. Esses diversos titulares teriam seus interesses coordenados na
empresa 161. Independentemente de serem acionistas, os empregados tem assento no
conselho de administração de diversas empresas, para defender seus interesses (os
quais não se confundem com os interesses dos sócios)
162
.
Em breves linhas, a sociedade é, para esta teoria, “(...) um feixe de relações,
abrangendo todos os envolvidos na atividade corporativa, integrados pelo objetivo
comum.”. Dela adveio a experiência alemã da co -gestão163.
Seção 3 - A teoria da pessoa em si
Com a crise da teoria da empresa em si surgiu uma variante, a teoria da pessoa
em si164, ou da Person sich, a qual se baseia na concepção organizacionista de OTTO
VON GIERKE. Segundo esta teoria, o interesse social constit ui o interesse da
sociedade enquanto ente distinto de seus membros (sócios/acionistas)
160
165
.
VALLADÃO, Conflito de interesses..., p. 26. Bulgarelli, Sociedades, pg 303 -305
VALLADÃO, Conflito de interesses... , p. 28-29. VALLADÃO esclarece ser este também o
entendimento de LEÃES.
162
Entendimento de LEÃES referido por VALLADÃO ( Conflito de interesses..., p. 29).
163
THELMA DE MESQUITA, Governança..., p. 40.
164
THELMA DE MESQUITA, Governança..., p. 37.
MÓNICA ROIMISIER ( El interés..., p. 16-17) afirma que a teoria fra ncesa de HAURIOU (teoria
institucionalista) encontrou adeptos na Alemanha (após a Primeira Guerra), originando -se, então, a teoria
da pessoa em si, a qual, em vez de incluir como “(...) objeto de tutela los intereses generales, se limitaba
a hacer referencia al interes superior de la sociedad.”.
165
VALLADÃO, Conflito de interesses..., p. 26-27.
161
76
Neste sentido, esta teoria exigiria a tutela do bem comum, sem, contudo,
desrespeitar a individualidade de cada acionista (não o sacrificando tanto quanto a
teoria transpersonalista, ou da empresa em si). A personalidade jurídica, serviria, assim,
para os fins das relações do grupo com os terceiros, mas não incidiria no âmbito interno
da sociedade, cujo patrimônio é comum aos sócios 166.
Para JAEGER, embora normalmente a teoria da pessoa em si não seja
distinguida da doutrina da empresa em si, dela difere. Na da pessoa em si o interesse
não é externo à sociedade, ao passo que na teoria da empresa em si se reconhecem
os interesses públicos na sociedade anônima e a outorga
de poderes aos
administradores. Para esta, a administração tem ampla discricionariedade na condução
dos negócios sociais, e na teoria da pessoa em si (concepção de GIERKE) os direitos
da minoria são protegidos 167.
Ainda consoante este doutrinador, num grup o de empresas uma decisão que
beneficiasse uma das empresas do grupo seria justificável pela teoria da empresa em
si, mas seria insustentável para a teoria da pessoa em si, porque se referiria a
interesses externos à sociedade 168.
Para FÁBIO COMPARATO essa teoria retira a natureza contratual da
sociedade apresentando -a como ente autônomo que os sócios se limitam a instituir
através de um ato jurídico coletivo. Afirma, ainda, que constitui teoria em declínio face à
“crise da pessoa jurídica” – em direito não há interesses ou relações que não digam
respeito somente aos homens e o interesse social não pode ser outro senão o interesse
dos sócios 169.
166
MÓNICA ROIMISIER assim refere ( El interés..., p. 17 e seguintes): “En la normativa accionaria, los
partidarios de esta teoria exigen la tutela del bien común y defi enden el principio de autoridad; pero, al
mismo tiempo, respetan la individualidad de cada accionista sin sacrificarlo tan absolutamente a la
denominada totalidad del traspersonalismo. La personalidad jurídica es utilizada a los fines de las
relaciones del grupo com los terceros, pero no incide em el âmbito interno de la sociedad, cuyo
patrimônio es común de los sócios.”.
167
VALLADÃO, Conflito de interesses..., p. 27-28.
168
Conclusões referidas por VALLADÃO, Conflito de interesses..., p. 28.
169
VALLADÃO, Conflito de interesses..., p. 27.
COMPARATO, O poder de controle..., p. 258-293. THELMA DE MESQUITA ( Governança..., p. 37-40)
traz maiores considerações a respeito do assunto e destaca a crise desta teoria em face da “(...) revisão
crítica do conceito de pesso a jurídica, referida por Comparato.”. Neste sentido, esclarece que
COMPARATO, baseado na teoria de KELSEN e na de ASCARELLI, considera que a pessoa jurídica
nada mais é do que “(...) ‘uma técnica jurídica para se atingirem determinados objetivos práticos –
autonomia patrimonial, limitação ou supressão de responsabilidades individuais – não recobrindo toda a
77
Seção 4 - A teoria da instituição
A teoria da instituição tem seu nascimento marcado pelas elaborações de
HAURIOU que, tomando como ponto de partida instituições de direito público, projetou as no direito comercial para explicar a constituição das sociedades anônimas
170
.
Essa teoria foi inicialmente adotada pelos alemães publicistas e comercialistas,
“movimento” que foi seguido pela França, onde é possível encontrar, hoje, diversos
autores ligados à idéia de instituição 171.
Segundo o próprio HAURIOU, o conceito de instituição não é de fácil
compreensão, sendo definido como “(...) ‘uma organização social, estável, em rela ção à
ordem geral das coisas, cuja permanência é assegurada por um equilíbrio de forças ou
por uma separação de poderes, e que constitui, por si mesma, um estado de direito’
(...)”172. As instituições são, tanto em direito, como na história, “(...) categoria da
duração, da continuidade e do real, a operação da sua fundação constitui o fundamento
jurídico da sociedade e do Estado’ (...)” 173.
Na perspectiva desta teoria, os seguidores de HAURIOU identificaram dois
conceitos fundamentais de direito privado: a ins tituição, baseada no princípio da
colaboração, e o contrato, fundamentado no princípio da “pura especulação”
174
.
esfera da subjetividade em direito’ . Sustentando que os interesses e as relações sempre concernem a
indivíduos, deduz que, ‘nas sociedades, o chamado in teresse social corresponde ao interesse dos sócios
que as compõem, apenas ‘uti socii’, isto é, quando idêntico para todos, em função do objeto social’ ,
caracterizando-se o conflito, se houver incompatibilidade entre o interesse do acionista e o objeto soci al,
que considera a causa do negócio, ou seja, da constituição da sociedade, permitindo a separação
patrimonial para a consecução do fim comum, que seria o próprio objeto social.”.
170
REQUIÃO, Rubens. Curso..., vol. 1, p. 269. Segundo VALLADÃO ( Conflito de interesses..., p. 29) esta
teoria teria sido criada na França por HAURIOU e desenvolvida, posteriormente, por RENARD e por
SANTI ROMANO.
171
REQUIÃO, Rubens. Curso..., vol. 1, p. 269.
172
REQUIÃO, Rubens. Curso..., vol. 1, p. 269.
173
Apud VALLADÃO, Conflito de interesses..., p. 30. VALLADÃO (op. cit., p. 30) esclarece ainda que:
“Segundo o mestre francês, ‘uma instituição é uma idéia de obra ou de empresa que se realiza e dura
juridicamente em um meio social: para a realização dessa idéia, se organiza um poder q ue lhe procura os
órgãos necessários; por outra parte, entre os membros do grupo social interessado na realização da
idéia, se produzem manifestações de comunhão dirigidas por órgãos de poder e reguladas por
procedimentos’. Desta forma, as instituições rep resentam juridicamente a duração, e sua urdidura sólida
se cruza com a trama mais frouxa das relações jurídicas passageiras.”
174
VALLADÃO, Conflito de interesses..., p. 29-32.
78
Na instituição, o consentimento dos membros restringe -se à aceitação da
disciplina, sem preocupação imediata com os resultados de sua atividade, ao passo
que no contrato o consentimento tem por objeto os atos dos contratantes e, desta
forma, implica em resultados (objetivos especulativos). Nos contratos é possível a
resolução por inexecução das obrigações, o que não ocorre na instituição, que tem um
poder de evolução e adaptação às situações novas 175.
Para MÓNICA ROIMISIER o contrato daria origem a uma instituição, ou seja, a
um organismo que teria em mira um interesse intermediário entre os indivíduos e o
Estado176.
JAEGER, por sua vez, tenta aplica r a doutrina da instituição no direito privado
através da adoção da distinção entre interesses de grupo e interesses de série
177
.
Neste sentido, esclarece que no meio privado existem relações de duração
indefinida, como relações de direito de família, e rel ações cuja duração pode ser
definida pelas partes: as relações contratuais. Existem,
também,
manifestações
de
caráter associativo, originadas em atos de sujeitos privados, mas que só produzem
efeitos se acompanhados de atos do Poder Público. Nesses casos haveria uma
subtração da disponibilidade dos interesses particulares, tratando -se, pois, de
interesses de série 178.
175
ROIMISIER, Mónica. El interés..., p. 16. REQUIÃO, Rubens. Curso..., p. 269-270.
A este respeito, REQUIÃO esclarece (p. 269 -270): “Um característica fundamental distingue, na
exposição de Hauriou, a instituição do contrato. Na primeira, o consentimento dos membros se restringe
à aceitação da disciplina, sem preocupação imediata dos r esultados de sua atividade; no segundo, o
consentimento tem por objeto os atos dos contratantes e implica os resultados. ‘Não é bastante dizer que
a conservação de situação contratual está subordinada à execução dos atos que cada um dos
contratantes prometeu e uma condição resolutiva é para esse fim submetida nos contratos
sinalagmáticos. Ao contrário, na instituição a existência da organização criada não está subordinada à
execução de tais ou tais atos que um dos membros poderia ter prometido.’ Desta forma , nos contratos
admite-se a resolução pela inexecução das obrigações, o que não ocorre nas instituições (...)”.
VALLADÃO (Conflito de interesses..., p. 30) afirma “Mas o contrato, por sua vez, poderia estar ligado à
gênese de uma instituição, como admitia o próprio Hauriou: ‘... toda vez que de um contrato, de um
pacto, de um tratado, surja a criação de um corpo constituído qualquer, é conveniente admitir que uma
operação de fundação se mesclou à operação contratual. Se a sociedade anônima determina o
nascimento de um corpo constituído, é porque seus estatutos, apesar de sua aparência contratual,
contém uma fundação, porque o contrato em si mesmo não poderia engendrar mais do que obrigações
entre os associados, como ocorre no direito civil’.”
176
MÓNICA (El interés..., p. 16) afirma: “Lo que sucede es que tal contrato da nascimiento a uma
instituición, esto es, a um organismo que tiene em mira um interes intermédio entre el de los indivíduos y
el del Estado.”
177
VALLADÃO, Conflito de interesses..., p. 29-32.
178
VALLADÃO, Conflito de interesses..., p. 31, nota 47.
79
Desta forma, seria possível falar em instituição, ao tratar de interesses de série,
em oposição ao contrato, que regularia interesses de grup o179.
VALLADÃO considera que o interesse social, para os defensores da doutrina da
instituição, não pode ser identificado com o mero interesse coletivo dos sócios, sendo o
interesse superior da própria instituição, de forma a atingir -se, dessa forma, result ados
semelhantes aos da teoria da empresa em si 180.
RUBENS REQUIÃO critica esta teoria afirmando ser ela inapta a explicar a
natureza jurídica das sociedades comerciais, pois se possível se admitir que a
sociedade anônima configure, após sua formação, uma instituição, não deixaria ela de
ser formada por contrato (plurilateral). “Como instituição está ela voltada para a
consecução do ‘bem comum’, visando primacialmente aos altos interesses coletivos,
desvanecendo um tanto o interesse privado, perseguido pelos acionistas. Como
contrato regula os interesses pessoais de seus membros.” 181.
Contudo, apesar desta crítica, REQUIÃO considera que esta teoria teria sido
adotada no Brasil quando da elaboração da atual lei das S/A 182.
Seção 5 - As concepções norte -americanas
JAEGER, em sua obra, observa que o sistema norte -americano baseou-se nas
concepções de um sistema econômico liberal – grandes empresas, em geral prósperas,
179
VALLADÃO, Conflito de interesses..., p. 21, nota 47.
Conflitos de interesses..., p. 32.
181
Curso..., vol. II, p. 14. Para esta conclusão, remete à exposição de motivos da referida lei.
182
Curso..., vol. II, p. 14 e vol. I p. 270. Neste sentido esclarece (p.14): “Sustentou -se naquele documento
[exposição de motivos]: ‘Entre a sociedade anônima de há trinta anos atrás, concebida basicamente
como empresa familiar numa economia estagnada, e a moderna corpora ção em constante apelo ao
crédito público, a diferença não é apenas quantitativa, de aumento de tamanho: é qualitativa. Há muito a
S.A. deixou de ser um contrato de efeitos limitados para seus poucos participantes: é uma instituição que
concerne a toda a economia do País, ao crédito público, cujo funcionamento tem que estar sob o controle
fiscalizador e o comando econômico das autoridades governamentais. A síntese é da exposição de
motivos do projeto italiano: ‘a disciplina das sociedades por ações e sua mo dificação constituem,
sobretudo, um elemento de política econômica e mais genericamente um fato político.”.
180
80
e produção em larga escala - sem influência de ideologias totalitárias como o nazismo e
o facismo183.
Apesar do liberalismo capitalista, esta teoria considera que o interesse social
não se confunde com os interesses exclusivos dos acionistas e que os administradores
da companhia são, antes, fiduciários da empresa que mandatários dos acionistas
184
.
Reconhece, assim, que a companhia desempenha um papel na sociedade – é
instrumento, é órgão da sociedade, deve exercer um serviço social, e não
simplesmente distribuir lucros a seus acionistas, como esclarecem ADOLPH BERLE e
de DRUCKER 185.
BERLE, ao aderir à concepção institucionalista, deixando de lado a concepção
privatística, apontou inicialmente a existência de dois limites a este sistema originário,
independente e soberano. São eles: o sistema concorrencial (limite econômico), que
deve ser mantido, e o limite político – representado pelo controle da opinião pública. Ao
lado destes, indica mais um limitador, representado pela possibilidade de intervenção
estatal no caso de graves desvios de suas funções pela corporation, que coloquem em
risco o interesse público.186
O desenvolvimento da teoria de BERLE levou à doutrina do “ corporate
constitucionalism” (CHAYES, BREWSTER), que, partindo de conclusões no sentido de
que a grande corporação é uma estrutura semelhante ao Estado, “(...) advoga o
abandono do tradicional sistema privatístivo de meios de tutela dos acionistas,
postulando a sua substituição por um sistema de garantias ‘constitucionais’, cujos
contornos, todavia, segundo Jaeger, não soam muito claros.” 187.
Assim, reconhece-se, no direito norte-americano, caráter institucionalista às
empresas.
Sendo estas as principais considerações levantadas neste estudo sobre as
correntes institucionalistas, passa -se, agora, à apreciação de algumas das principais
correntes constitucionalistas a respeito da matéria.
183
ROIMISIER, Mónica. El interés..., p. 16. VALLADÃO, Conflito de interesses..., p. 29-32.
VALLADÃO, Conflito de interesses..., p. 34.
185
VALLADÃO, Conflito de interesses..., p. 34.
186
VALLADÃO, Conflito de interesses..., p. 34.
184
81
Capítulo 3 – Noções acerca das principais teorias contratualistas a respeito do
interesse social
A concepção contratualista foi largamente desenvolvida pela doutrina e
jurisprudência italianas 188 e compreende diversas teorias que defendem que a
sociedade anônima consiste numa relação contratual, na qual os únicos interesses
seriam os dos contratantes, ou seja, dos sócios. O interesse social consistiria, assim, no
interesse comum dos sócios 189. Esta concepção nega a existência da sociedade
anônima enquanto instituição.
Segundo CALIXTO SALOMÃO FILHO, JAEGER constitui um dos principais
defensores do contratualismo. Para ele, o interesse social não é um conceito abstrato,
mas sim, algo concreto, passível de definição somente quando comparado com o
interesse do sócio190.
Para SALOMÃO FILHO, JAEGER teria chegado a tal conclusão, “(...) a partir de
sua concepção particular do contrato de sociedade: como o contrato social é de
execução continuada e o interesse social é o interesse do grupo de sócios, aquele
interesse social pode ser constantemente revisto e eventualmente desconsiderado de
modo explícito quando se trata de decisão unânime dos sócios.” 191.
VALLADÃO
destaca,
entretanto,
que
JAEGER
contratualistas apontando três problemas fundamentais
192
critica
as
doutrinas
: (i) Se interesse social é o
interesse comum dos sócios, o que é “interesse comum dos sócios”? (ii) A função do
187
VALLADÃO, Conflito de interesses..., p. 35.
SALOMÃO Filho. Calixto. O novo direito societário... , p. 26-27.
A este respeito, vejam -se os comentários de FISCHEL e EASTBR OOK (Il contrato..., p. 330-364). Estes
doutrinadores analisam a questão do contrato de sociedade e questionam (p. 361): “Un approccio che
sttolinei la natura contrattuale di uma società elimina dal campo delle questioni interessanti un problema
che há tormentato molti autori: quale è lo scopo della società? Il profitto? A favore di chi? Il benessere
sociale inteso in senso più lato? Vi è qualcosa di sbagliato nella beneficenza operata dalle società? Lê
società dovrebbero cercare di rendere massimi i profit ti nel lungo o nel breve periodo? La nostra risposta
a tali domande è: a chi interessa?”
189
VALLADÃO, Conflito de interesses..., p. 35-36.
CALIXTO SALOMÃO FILHO ( O novo direito societário..., p. 14-15) define a existência de duas vertentes,
a primeira considera apenas os interesses dos sócios atuais, ao passo que a segunda inclui, ao lado
destes, os interesses dos sócios futuros. A segunda perspectiva fez, segundo o doutrinador, crescer a
importância do interesse social visto numa perspectiva de longo praz o.
190
O novo direito societário, p. 28. No mesmo sentido: SIMIONATO, Sociedades..., p. 85.
191
O novo direito societário, p. 28.
192
Conflito de interesses..., p. 36.
188
82
conceito de interesse social quando das deliberações societárias constitui um limite ou
um objetivo (teológico) para a atuação do acionista? É rele vante apenas quando a lei
assim o diz? (iii) Como pode ser exercido o controle jurisdicional? Pode ser apreciado o
mérito das decisões?
Embora não se pretenda neste trabalho responder definitivamente estes
questionamentos, passa -se a traçar, em breves lin has, os principais delineamentos das
diversas vertentes teóricas, desenvolvidas sob a ótica contratualista.
Seção 1 - O interesse comum dos sócios
Como visto acima, para os contratualistas, o interesse social é definido como
“interesse comum dos sócios” .
Ocorre que os sócios podem ter interesses individuais, interesses comuns não
ligados à condição de sócios, e interesses voltados aos objetivos da sociedade.
Diante disso, grande parte da doutrina entende que o interesse social é o
interesse comum dos sócios enquanto sócios (uti socii), não sendo a soma dos
interesses comuns dos sócios, nem a soma de seus direitos individuais. No dizer de
FÁBIO COMPARATO, o interesse social é interesse ex causa societatis decorrente do
status socii, sendo todos os demai s direitos considerados extra -sociais193.
Embora exista certa concordância na doutrina a respeito do esposado acima, a
significação que é dada a tal entendimento não é, entretanto, unânime. Alguns pregoam
como sendo “o interesse comum”:
 O “interesse dos sócios atuais e futuros à eficiência da empresa social”;
 O “interesse dos sócios atuais à eficiência da empresa social”;
 O “interesse dos sócios à eficiência da empresa e à distribuição de dividendos”;
 “Conceito relativo”; ou, ainda,
 “Qualquer relação de solidariedade entre interesses individuais”.
193
O poder de controle..., p. 303. No mesmo sentido: VALLADÃO, Conflito de interesses..., p. 37.
83
Seção 2 - O interesse comum como o “interesse dos sócios atuais e futuros à
eficiência da empresa social”
Segundo esta corrente doutrinária, ao se conceituar “interesse social” deve -se
ter em consideração a p ossibilidade de variação do quadro societário no tempo e,
ainda, o interesse não atual. Assim, o interesse social seria típico, não mudando com a
variação dos sócios – por isto, segundo JAEGER, esta teoria se assemelharia à
institucionalista: se o interess e social é típico (imutável) é irrelevante se ele é atribuído
ao conjunto dos acionistas ou à pessoa jurídica 194.
Assim, os sócios presentes, bem como os futuros, teriam interesse na eficiência
da empresa e na aptidão desta produzir lucros. Esta teoria ress alta, entretanto, o
interesse instrumental – a empresa como meio para se obter o fim desejado
(distribuição de lucros), relegando o escopo -fim (lucro) a segundo plano 195.
Como adeptos a esta corrente doutrinária, é possível citar SIMIONETTO e
ASQUINI, muito embora este seja, por vezes, classificado dentre os institucionalistas “(...) na verdade este doutrinador procurou fazer uma síntese superadora das duas
teorias (...)” 196.
CALIXTO SALOMÃO FILHO aponta como conseqüência prática desta teoria
“(...) o estímulo à busca desenfreada de aumento do valor de venda das ações por
todos os agentes do mercado” e afirma que esta preocupação exclusiva, dificilmente
controlada por instrumentos jurídicos, é hoje responsável “(...) pela forte tendência à
interpretação permissiva de regras contábeis, à mudança de regras contábeis ou até
194
VALLADÃO, Conflito de interesses..., p. 38.
Neste sentido, MÓNICA ROIMISIER ( El interés..., p. 31) comenta: “Esta concepción excluye,
necesariamente, la configuración de un interés social superior y diverso del interés de los sócios.
Partiendo de la causa del contrato de sociedad, u haciéndose hincapié en la distinción entre los intereses
sociales y los intereses extrasociales de sus participantes, el concepto de interes social há sido
sintetizado, por la doctrina italiana mayoritaria, como el interés comum de los sócios em su calidad de
tales. El interés social es así la tendência a la realización del fin último de la sociedad, que es la causa
del contrato, y que tienen los sócios em que mediante la actividad social se logre el máximo lucro
possible. Es el interés del sócio depurado de todo interés extrasocial; el interésdel sócio medio que
presumiblemente carece de otros intereses en su calidad de sócio. Es, em suma, ‘el mínimo comúm
denominador que une a los socios desde la constituición de la socied ad hasta su disolución’.”.
195
VALLADÃO, Conflito de interesses..., p. 38.
196
VALLADÃO, Conflito de interesses..., p. 38-39.
84
mesmo à maquiagem de balanços(...)”, levando a situações como a do caso Eron e dos
recentes escândalos com empresas de auditoria norte -americanas 197.
Seção 3 - O interesse comum como o “intere sse dos sócios atuais à eficiência da
empresa social”
Para JAEGER embora esta teoria, usualmente denominada de “contratualista
clássica”, assemelhe-se à anterior, dela se distingue, pois não inclui expressamente no
interesse social o interesse dos sócios futuros. Esta teoria restringe o interesse comum
dos sócios à maximização da empresa produtiva para que existam maiores lucros a
serem partilhados. Como os sócios futuros também têm interesse na lucratividade da
empresa, a distinção entre esta teoria e a anterior passa a ser mais aparente do que
real198. Como adeptos a esta teoria, cite -se, por exemplo, ASCARELLI, AULETTA e DE
MARTINI199.
Seção 4 - O interesse comum como o “interesse dos sócios à eficiência da
empresa e à distribuição de lucros e dividendos ”
Diferentemente das teorias anteriores, esta tese defende como interesse
comum dos sócios tanto o escopo -meio como o escopo-fim, ou seja, o interesse não
consiste apenas no caráter instrumental da empresa, mas também, no interesse final de
obter lucros, e, segundo sustenta ASCARELI, considera o interesse social como o
interesse dos sócios depurado de qualquer interesse extra -social. Esta tese é tida por
JAEGER como de pouca utilidade e, portanto, de pouco interesse 200.
Seção 5 - O interesse comum como “conc eito relativo”
197
O novo direito societário, p. 30.
VALLADÃO, Conflito de interesses..., p. 39. THELMA DE MESQUITA, Governança..., p. 32-33.
199
VALLADÃO, Conflito de interesses..., p. 39.
200
VALLADÃO, Conflito de interesses..., p. 39-40 e p. 40 nota 72.
198
85
Esta doutrina se aproxima da anterior, mas afasta a idéia de contraposição
rígida entre interesse social e extra -social. Afirma ser o interesse social aquele que seja
comum aos sócios em sentido “objetivo e abstrato”, não coincidente com a soma dos
direitos individuais dos sócios, embora estes configurem ponto de partida para a
determinação do interesse social. O interesse social seria, assim, um conceito relativo,
pois resultaria de uma valoração objetiva do interesse particular de que sej a portador o
sócio em um determinado momento 201.
Seção 6 - O interesse comum como “qualquer relação de solidariedade entre
interesses individuais ”
JAEGER coloca esta teoria em posição totalmente oposta a das anteriormente
citadas, pois ela considera que o interesse social não constitui interesse típico dos
sócios uti socii, identificando tal interesse em qualquer relação de solidariedade entre
os interesses individuais dos acionistas. Citam -se como adeptos desta teoria BERGIER,
PETTITI e LIBONATI 202.
Sob a ótica desta teoria seria impossível uma deliberação na qual todos os
acionistas entrassem em conflito com o interesse social, pois haveria interesse social
sempre que existisse coincidência de interesses entre os acionistas, ao passo que nas
demais teorias contratualistas (da tipicidade do interesse social), ao contrário, admite -se
a possibilidade de conflito 203.
Para JAEGER, os partidários da tipicidade do interesse social concebem
possíveis as deliberações que causem danos a alguns sócios, mas que estejam no
campo de “neutralidade do interesse social”, enquanto aos adeptos da teoria contrária,
haverá lesão ao interesse social em qualquer deliberação que sacrifique os interesses
da minoria 204.
Seção 7 - O papel do interesse social nas deliberações de assembl éias
201
VALLADÃO,
VALLADÃO,
203
VALLADÃO,
204
VALLADÃO,
202
Conflito de interesses...,
Conflito de interesses...,
Conflito de interesses...,
Conflito de interesses...,
p. 41.
p. 41.
p. 41-42.
p. 41-42.
86
Para uma primeira corrente, defendida por CARNELUTTI, CANDIAN, OPPO,
SALANDRA, VASELLI, AULETTA, DE GREGORIO, FRE, DE MARTINI, GRECO,
ASQUINI, PASTERIS, MESSINEO e ONDEI, o voto é instrumento de realização do
interesse social 205.
O sócio tem um dever jurídico de votar voltado à consecução dos interesses
sociais. O voto não é um direito subjetivo de tutela de interesse individual, mas sim de
um interesse coletivo, sendo, desta forma, um poder que repercute na esfera de
outrem. Sob esta ótica, o poder de voto é outorgado pela lei para determinado fim, que
deve ser respeitado. Disso decorre que o exercício do direito de voto não é livre, posto
que restrito à finalidade preconizada pela lei 206.
Para JAEGER, as conseqüências desse posicionamento se aproxima m em
muito das decorrentes das teorias institucionalistas, sobretudo no aspecto do
reconhecimento da aplicabilidade de regras de direito público às sociedades por ação
(por exemplo, a possibilidade de impugnação das deliberações assembleares por
excesso de poder) 207.
Esta vertente considera, portanto, o voto como instrumento para a consecução
de interesses sociais.
Outra corrente, defendida por MENONI,GHIDINI,FERRI, COTTINO, FILBINGER
e GOWER, considera o voto como direito subjetivo (o que decorre da compr eensão de
interesse social como um conceito relativo). Para tanto, compreende que o interesse
social é um limite externo ao exercício do voto (e não interno, não uma limitação
funcional), permitindo que o sócio busque a consecução de interesses extra -sociais,
desde que estes não conflitem com o interesse comum de todos.
Assim, segundo esta corrente, o sócio não está adstrito a perseguir o interesse
social – esta é a principal distinção em relação à corrente anterior. Considera o voto
como direito subjetivo, pois é um poder para a tutela de interesse próprio e não
alheio208.
205
VALLADÃO,
VALLADÃO,
207
VALLADÃO,
208
VALLADÃO,
206
Conflito de interesses...,
Conflito de interesses...,
Conflito de interesses...,
Conflito de interesses...,
p. 43.
p. 43.
p. 43-44.
p. 44-45.
87
JAEGER faz, contudo, a ressalva de que mesmo os direitos subjetivos
encontram limites: o voto não pode ser usado com o objetivo de lesar outras pessoas
ou o interesse comum, hipótese em q ue o voto será viciado, e, consequentemente,
viciada a deliberação que tenha se dado por maioria com base neste voto
209
.
Neste caso os doutrinadores (coerentemente com a teoria que adotam) para
fundamentar a ilicitude do voto, não recorrem à figura do exce sso de poder, mas sim a
outras figuras de direito privado como, por exemplo, a violação da boa -fé, o motivo
ilícito, o abuso do direito e a emulação 210.
Seção 8 - O controle jurisdicional das deliberações assembleares
Segundo JAEGER, os adeptos da teoria contratualista típica (interesse comum
dos sócios à máxima eficiência da empresa), na qual o voto deve ser exercido em
busca de tal interesse, e as deliberações assembleares são impugnáveis por excesso
de poder, em tese, deveriam admitir um controle jurisd icional de mérito (conveniência e
oportunidade).
Isso, contudo, não ocorre por duas razões 211: a preocupação em manter a
autonomia das sociedades na determinação de sua política econômica
e a falta de
adequação do judiciário para formular convicções que de pendem de preparo técnico
específico ao campo dos negócios, em que as decisões muitas vezes são tomadas
intuitivamente.
Neste
sentido,
JAEGER
afirma
que
a
doutrina
contratualista,
independentemente da vertente que defenda, tende a restringir a apreciação de mérito
apenas para identificar a existência de vício de legitimidade. Segundo ele esta
tendência se repetiria nas teorias institucionalistas 212. Para GALGANO, estas teorias
deveriam restringir-se a analisar o aspecto da razoabilidade da decisão (segundo a
209
VALLADÃO,
VALLADÃO,
211
VALLADÃO,
212
VALLADÃO,
210
Conflito de interesses...,
Conflito de interesses...,
Conflito de interesses...,
Conflito de interesses...,
p. 45.
p. 45.
p. 46.
p. 46-47.
88
jurisprudência inglesa deveriam ser anuladas as deliberações que nenhuma pessoa
razoável poderia considerar útil para a sociedade) 213.
Capítulo 4 – Outras teorias
Seção 1 - A empresa e o interesse social na análise econômica do Direito
CALIXTO SALOMÃO FILHO apresenta teorias mais modernas a respeito do
interesse social, afirmando que a fase intimista – auto-suficiente – do direito societário
está ultrapassada pela atual interdisciplinaridade, não só entre os ramos do direito,
como também com outras áre as, como a da economia 214.
Neste panorama, esclarece, iniciaram -se discussões sobre os efeitos
econômicos das regras societárias, ao que se denominou “(...) análise econômica do
direito (...)”. 215.
213
VALLADÃO, Conflito de interesses..., p. 46.
O novo direito societário... , p. 38 ss.
SADI FRANZONI (A propriedade..., p. 113) escreve: “Sob um enfoque especificamente econômico, com
a figuração da propriedade como direito fundamental, o proprietário passa a ser encarado como um meio
para cumprir uma função, enquanto a propriedade é estabelecida par a atender a uma necessidade
econômica. Ou seja, como detentor da riqueza, o proprietário se obriga a utilizar as prerrogativas próprias
do domínio, extraindo os frutos que a coisa pode produzir.”.
Para maior aprofundamento, vejam -se as considerações de DE NOZZA (Analisi..., p. 317-330) a respeito
da análise econômica e da dos custos de transação.
215
CALIXTO SALOMÃO FILHO, O novo direito societário , p. 38-39.
DECIO e RACHEL (Direito & Economia..., p. 96-100) referem que o Teorema de Coase é atualmente,
sobre o assunto em questão, um dos textos mais citados em Direito e possivelmente em Economia.
Segundo este teorema, afirmam, se não houver custos de transação, basta que os direitos de
propriedade sejam bem definidos, que a eficiência será atingida automatica mente, independentemente
de quem tenha o direito de propriedade. Segundo estes doutrinadores, a teoria em questão seria
analisada pela Nova Economia das Instituições (NEI), para a qual na realidade não existiriam situações
de custo zero – estas situações poderiam ser exploradas economicamente. Assim, exemplifica que a
firma seria uma forma de redução dos custos de transação com o mercado. Para a Análise Econômica do
Direito, por sua vez (p. 98 -100), “(...) a interpretação do Teorema de Coase depende do nív el dos custos
de transação que permeiam o caso específico. Quando os custos de transação são baixos, a
recomendação dessa literatura é que a lei deve ser estruturada de forma a remover os obstáculos à
negociação privada. A lei pode facilitar a negociação v oluntária entre as partes, reduzindo custos
informacionais, de monitoração e de comportamento estratégico. Nesse caso, não é importante à qual
das partes a lei dá o Direito de Propriedade, contanto que esteja claro. A estratégia da literatura de
direitos de propriedade em Análise Econômica do Direito é, portanto, perguntar ‘como e de que maneira a
regra ou instituição de propriedade lubrifica a transferência de recursos ao facilitar as barganhas
individuais’. Já quando os custos de transação forem altos, os ganhos de trocas decorrentes da
negociação direta entre as partes podem não ocorrer. Nesse caso, o resultado da invariância da alocação
final à dotação dos direitos de propriedade tenderá a não se realizar. (...) Para estas situações, a Análise
214
89
A partir do final da década de 70 e anos 80 a análise econôm ica do Direito
ganha conotação ideológica, passando até mesmo a ser confundida com a “teoria da
eficiência”, defendida pela escola de Chicago (cunho eminentemente liberal). Essa
identificação é indevida, e ocasionou diversas críticas à teoria da análise ec onômica216.
Esta teoria, diz-se, pretende “(...) erigir a parâmetro de orientação das normas
jurídicas o chamado ‘princípio da eficiência’ (...)”, segundo o qual as normas jurídicas
são eficientes “(...) ‘quando permitem a maximização de riqueza global, mes mo que
isso seja feito à custa de prejuízo a um agente econômico específico’.”
217
.
As teorias clássicas da análise econômica do Direito vêem a empresa como um
feixe de contratos, ou seja, como subscritora de uma gama de contratos com os sócios,
os fornecedores, os trabalhadores, etc 218.
Há uma clara preocupação em relegar a segundo plano as formas jurídicas
para centrar-se nas econômicas. Essa preocupação toma relevo na parte seguinte da
teoria: a determinação do fundamento do controle interno da empresa. Sob a ótica da
perspectiva econômica, o fundamento está na teoria dos custos das transações
219
:
“O controle interno da empresa, obtido através da propriedade de suas ações, é
naturalmente atribuído àquele grupo de pessoas com as quais transacionar no
mercado é excessivamente oneroso para a própria empresa ou para esse grupo
de pessoas, seja porque alguma delas mantém uma situação monopolista
(imagine-se, por exemplo, um sindicato de trabalhadores bastante forte), seja
porque o custo social ou o descontentamento gerado por uma determinada
situação pode ser extremamente negativo para a empresa.”
Econômica do Direito recomenda que a lei deve dar incentivos para que os agentes ajam da forma que
resulte na mesma alocação de recursos que resultaria caso custos de transação fossem baixos. (...) Ou,
como colocam Cooter e Ulen ( op. cit.) ao concluir o capítulo sob re a Teoria Econômica do Direito: ‘A lei
de propriedade (property law0 portanto estabelece no sistema legal uma estrutura de mercado para a
alocação de recursos. Criar, proteger e melhorar esta estrutura transacional é uma das suas funções
centrais.’.”.
A respeito da Análise Econômica do Direito, FARIA ( Interpretação..., p. 61) destaca o posicionamento de
DWORKIN: Direito e Economia são ramos diversos que apresentam problemas de modo bastante
diverso e com objetivos diferentes.
216
CALIXTO SALOMÃO FILHO, O novo direito societário, p. 39.
217
CALIXTO SALOMÃO FILHO, O novo direito societário , p. 39.
218
CALIXTO SALOMÃO FILHO, O novo direito societário , p. 41 e seguintes. Esta idéia, veja -se, já estava
presente na teoria institucionalista do direito da empresa acion ária.
90
Desta consideração, CALIXTO SALOMÃO extrai duas conseqüências: a relativa
irrelevância da forma societária escolhida e a “(...) equivalência substancial entre
controle interno e externo do ponto de vista jurídico (...).”. Neste sentido, a teoria dos
custos de transação pretenderia demonstrar que tanto o controle interno quanto o
externo podem ser úteis para os interesses da empresa
220
.
A função do controle interno seria a valiar quanto uma relação contratual com o
mercado (relação externa) é custosa, ou não. Já, ao controle externo, caberia na
medida em que “(...) interesses de eventual grupo de controle interno sejam tão
heterogêneos que levem a custos de transação (leia -se tomada de decisões)
altíssimos, acarretando virtualmente a paralise da empresa ou sua operação
ineficiente.”.
A análise econômica do Direito deve, entretanto, como alerta CALIXTO
SALOMÃO, ser restrita a um instrumento exclusivamente analítico (sem qualq uer
caráter valorativo) 221.
Seção 2 – A teoria do contrato organização
Além das teorias acima, CALIXTO SALOMÃO FILHO afirma que, nesta
perspectiva
jurídico-econômica,
a
forma
mais
adequada
de
se
sistematizar
juridicamente os problemas relativos à decisã o do interesse social é explicá -los a partir
da teoria do contato organização
222
.
O núcleo dos contratos associativos estaria na organização criada, e nos
contratos de permuta, na atribuição de direitos subjetivos, de forma que, adotada a
teoria do contrato organização, no valor organização, e não mais na coincidência de
interesses de uma pluralidade de partes ou em um interesse específico à
219
O novo direito societário, p. 41 e seguintes.
O novo direito societário, p. 41 e 42.
221
O novo direito societário, p. 40: “É, portanto, necessário restringir a análise econômica do direito a um
instrumento exclusivamente analítico, sem atribuir -lhe qualquer caráter valorativo. Então, assim, a teoria
tem verdadeira utilidade, inclusive no campo societário.” (Op. cit., p. 40)
222
CALIXTO SALOMÃO FILHO, O novo direito societário, p. 42-45.
220
91
autopreservação, que se passaria identificar o elemento diferencial do contrato
social223.
Desta feita, a teoria do co ntrato-organização, apesar de dar guarida a uma
crítica de ordem econômica, não se constitui numa teoria econômica, mas sim jurídica.
“O interesse social passa, então, a ser identificado com a estruturação e organização
mais apta a solucionar os conflitos entre esse feixe de contratos e relações jurídicas.”
224
.
Essa é a diferença fundamental ente essa teoria e as anteriores.
“Identificando-se o interesse social ao interesse à melhor organização possível
do feixe de relações envolvidas pela sociedade, esse jamais poderá se identificado com
o interesse à maximização dos lucros ou com o interesse à preservação da empresa”
225
.
Distingue-se, portanto, tanto do contratualismo, quanto do instuticionalismo
clássico, aproximando -se do institucionalismo integrativo , que tem nítido caráter
oraganizativo 226. Como conseqüência desta teoria, a regra de conflito tenderia a
eliminar o conflito e não a fazer o acionista descontente retirar -se da sociedade.
A teoria organizativa se demonstra apta a garantir a lucratividade dos sócios,
almejada pelos contratualistas, proporcionando a mesma capacidade de organização, e
de transformar a sociedade “(...) naquela célula social propulsora do desenvolvimento
tão almejada pelos institucionalistas de Rathenau.” 227.
Para CALIXTO SALOMÃ O FILHO a teoria organizativa e o institucionalismo
integracionista parecem fornecer resposta mais coerente para o mesmo problema:
“Afirmam que o objeto societário principal, o próprio interesse social, está na
integração de interesses e solução interna d e conflitos entre vários interesses
envolvidos pela atividade social. Não se negam a internalizar interesses não
redutíveis aos interesses dos sócios. Assim é que a participação dos
trabalhadores nas decisões sociais é incentivada e até mesmo o controle po r
223
CALIXTO SALOMÃO FILHO,
CALIXTO SALOMÃO FILHO,
225
CALIXTO SALOMÃO FILHO,
226
CALIXTO SALOMÃO FILHO,
224
O novo direito societário,
O novo direito societário,
O novo direito societário,
O novo direito societário,
p. 42-45.
p. 42-45.
p. 42-45.
p. 42-45.
92
esses grupos é favorecido quando isso possa ser um meio para eliminação de
conflitos de interesses. Não se nega, por outro lado, a externalizar interesses
internos à sociedade quando isso for mais conveniente para todos os
interessados que isso ocorra.
(...)
A teoria organizativa, quando bem aplicada, não é um retorno ao individualismo
dos contratualistas, mas sim um passo avante em relação ao institucionalismo
na defesa do interesse público. Possibilita a proteção dos interesses e a
solução interna de co nflitos, que podem ser bem atingidos por regras
organizativas internas, e a externalização daqueles que não podem,
acompanhada então de uma correta mediação legislativa do conflito (como
ocorre no direito ambiental, direito antitruste (...) ). Ela dá, port anto, por assim
dizer, a um só tempo, mais sinceridade e mais utilidade ao direito societário.
Particularmente no direito brasileiro sugere um caminho para a efetiva aplicação
do artigo 116 da lei societária e de seus princípios institucionalistas.” 228.
Neste sentido, é possível concluir que:
“O interesse da empresa não pode ser mais identificado como no
constratualismo, ao interesse dos sócios, nem, tampouco, como na fase
institucionalista mais extremada, à autopreservação. Deve – isso, sim – ser
relacionado à criação de uma organização capaz de estruturar da forma mais
eficiente – e aqui a eficiência é a distributiva, e não a alocativa – as relações
jurídicas que envolvem a sociedade.” 229.
227
CALIXTO SALOMÃO FILHO, O novo direito societário, p. 49-50.
CALIXTO SALOMÃO FILHO, O novo direito societário, p. 50-51.
229
CALIXTO SALOMÃO FILHO, O novo direito societário , p. 42.
As modernas teorias institucionalistas, afirma THELMA DE MESQUITA ( Governança..., p. 41): “(...)
focalizaram a sociedade anônima como uma organi zação, sem se aterem ao conceito de pessoa jurídica,
pressupondo não a contraposição de interesses, inerente a toda a sociedade, como a conceberam as
doutrinas contratualistas; mas a cooperação dos acionistas e dos empregados, orientada à preservação
da empresa. Dessa conjuntura de fatores, resulta o que Calixto Salomão Filho identificou como a nova
concepção de interesse social, que se traduz na criação de uma organização apta a integrar todos os
interesses envolvidos na atividade empresarial, visando à ma nutenção da empresa.”
228
93
Capítulo 5 – A atual concepção de interesse social e o exercício d o direito de
voto nas sociedades anônimas abertas
Seção 1 - Considerações iniciais
A sociedade anônima conheceu três sistemas distintos de formação. Nos
séculos XVII e XVIII, dependia de concessão do Estado. Após, evoluiu para o sistema
de autorização e, finalmente, ao de livre criação (atualmente vigente).
No Brasil, o primeiro texto normativo a tratar da sociedade anônima foi o
Decreto 575/1849, no qual se adotava o regime de autorização, que perdurou até 1882,
com a edição da Lei 3.150/1882 230.
A proteção da sociedade por meio de dispositivos limitadores da atuação dos
acionistas é questão que já se encontra consolidada em nossa história, existindo
previsões que remontam a 1882 (Lei 3.150/1882) 231.
Neste panorama histórico, o Decreto -lei 2.627, de 1940, veio inicialmente
regular a questão societária no Brasil. Contudo, embora tivesse sido diploma admirável
à época, já estava ultrapassado face à crescente industrialização do país, o predomínio
da grande empresa, a distinção das companhias abertas e fechadas , a difusão das
sociedades de economia mista e, entre outros fatores, a visão institucional de
sociedade que passou a ser cada vez mais patente 232.
Foi editada, então, a Lei 6.404, de 15 de dezembro de 1976, com o intuito de
suprir as crescentes necessidades do panorama econômico -societário, ainda não
regulamentadas pelo Decreto -lei 2.627/40.
Neste contexto, a Lei 6.404/76 refere -se em várias passagens ao interesse da
companhia, ao interesse comum, aos interesses dos trabalhadores, aos da
comunidade, etc., e ainda, ao conflito de interesses, e ao legítimo interesse da
companhia. Assim, refere-se a interesses particulares, coletivos, públicos e sociais.
LAMY FILHO, um dos autores do anteprojeto convertido na Lei 6.404/76,
advertia quanto à necessidade de concil iação entre o interesse da empresa, do
230
231
BORBA, José Edwaldo Tavares. Direito societário, p. 103-105.
BORBA, op. cit., p. 103-105.
94
acionista, do credor, do gestor e do próprio Estado, fiscal do interesse público em jogo.
Para solucionar este problema, sem adotar posicionamentos radicais (uma solução
privatística pura ou uma publicista radical), a firmou a necessidade de adoção de novas
regras que, no âmbito privado, visassem ao aperfeiçoamento do instituto e, no público,
a um controle mais eficaz pelas autoridades 233.
Neste sentido, esclarece LEÃES, quanto a Lei 6.404/76 234:
“(...) na Exposição de Mot ivos do projeto convertido na lei do anonimato: ‘ocorre
que a empresa, sobretudo na escala que lhe impõe a economia moderna, tem
poder e importância social de tal maneira relevantes na comunidade, que os
que dirigem devem assumir a primeira cena na vida ec onômica, seja para fruir
do justo reconhecimento pelos benefícios que geram, seja para responder pelos
agravos a que dão causa. (...) O princípio básico adotado pelo projeto e que
constitui o padrão para apreciar o comportamento do acionista controlador, é o
de que o exercício do poder econômico só é legítimo para fazer a companhia
realizar o seu objeto e cumprir sua função social, enquanto respeita e atende
lealmente aos direitos e interesses de todos aqueles vinculados à empresa – os
que nela trabalham, os acionistas minoritários, os investidores do mercado e os
membros da comunidade em que atua.”.
232
LAMY FILHO, A reforma da Lei de Sociedades Anônimas , Revista de Direito Mercantil (RDM), n.º 7.
Op. cit., p. 123/132.
A este respeito comenta VALLADÃO (Conflito de interesses..., p. 55): “É entre uma solução privatista
pura – aperfeiçoamento das regas de disclosure, balanço-padrão, fortalecimento da minoria, regras
estritas sobre a definição de objeto da sociedade, exigência de quorum elevado para decisões
assembleares, e outras mais – e uma solução publicista radical – nomeação, pelo Estado, de
administradores, mediante a representação legal de ausentes, ou de fiscais que submetessem a
sociedade à presença permanente do agente do poder pú blico e que, no interesse do crédito público,
e/ou da defesa dos investidores, zelassem para que a sociedade não infringisse normas prudentes de
administração – o co-autor do anteprojeto optava, declaradamente, por uma posição conciliatória:
‘Parece-nos certo, por tudo isso, que as novas regras devem visar no campo privado ao aperfeiçoamento
do instituto, e, no campo público, ao seu controle mais eficaz por parte das autoridades’.”
234
LEÃES, Conflito de interesses..., p. 19. Segundo BULGARELLI ( Regime jurídico..., p. 22) a exposição
de motivos do Anteprojeto da Lei 6.404/76 dispunha: “f) em contrapartida dessa liberdade de
organização, definir os deceres dos administradores e acionistas controladores, nacional e estrangeiro, e
instituir sistema de responsabil diade efetivo e apropriado à função social do empresário, de que resultem
deveres para com os acionistas minoritários, a empresa, os que nela trabalham e a comunidade em que
atua.”.
233
95
Quase trinta anos após à edição da lei de 1976, a globalização, os investidores
internacionais exigindo a implementação de práticas de governança corporativa, e o
efetivo crescimento de grandes empresas, deixavam clara a necessidade de sua
revisão. Neste contexto, foi promulgada a Lei 10.303/01, que acrescentou novos
preceitos à lei anterior, assimilando alguns conceitos de governança corporativa e
ajustando a lei de 1976 à nova conjuntura sócio -histórica e econômica 235.
A adoção de preceitos constitucionais compatíveis com o Estado Social
estabelece uma ordem econômica na qual se salienta o aspecto publicista e se
condiciona, de certa forma, a liberdade de iniciat iva aos fins sociais, apontando -se cada
vez mais a relevância da companhia em relação ao interesse da coletividade
236
.
Nesta esteira, vale assinalar que embora a Lei das Sociedades Anônimas tenha
sido editada sob a égide da Constituição anterior (de 1967), a ela são plenamente
aplicáveis os preceitos da Constituição de 1988 – uma vez recepcionada pela nova
ordem constitucional, a lei passa a estar a ela conformada. Ademais, de se obserar
que, já na Constituição de 1967 – e na própria Lei 6.404/76 – estava presente a
funcionalização da propriedade, inclusive enquanto princípio da ordem econômica
237
.
Vai perdendo importância a dicotomia entre direito privado e direito público, e
passa-se, também, a reconhecer a distinta importância da empresa de acordo “(...) com
o âmbito de sua atuação na economia e com o grau de influência por ela exercida no
mercado.”.
Nesse cenário, cumpre analisar a concepção de interesse social adotada
atualmente no Brasil para as sociedades anônimas de capital aberto.
Seção 2 – A concepção de interesse social e a Lei 6.404/76
235
THELMA DE MESQUITA, Governança..., p. 57-59 e p. 62-63.
THELMA DE MESQUITA, Governança..., p. 43.
237
Neste sentido, o artigo 157 da Constituição de 1967 dispunha:
“Art 157 - A ordem econômica tem por fim realizar a justiça social, com base nos seguintes princípios:
I - liberdade de iniciativa;
II - valorização do trabalho como condição da dignidade humana;
III - função social da propriedade; (...)”
236
96
A doutrina não é exatamente uníssona ao tratar das questões do interesse
social à luz da Lei 6.404/76. Contudo, observa -se uma tendência a se reconhecer, a
certo ponto, o caráter institucional (ou funcional) da socie dade anônima aberta.
A doutrina divide-se em duas correntes acerca da natureza do ato constitutivo
das sociedades anônimas: (i) a do contrato plurilateral; (ii) a do ato institucional
238
.
A sociedade, para REQUIÃO, consiste numa entidade, com objetivos
econômicos, formada pela manifestação de vontade de duas ou mais pessoas, que se
propõem a reunir esforços e cabedais para a consecução de um fim comum
239
.
FRAN MARTINS a considera como a união, em entidade, de capital e trabalho
para a obtenção de lucro, con stituída a através de ato institucional 240.
AMADOR PAES DE ALMEIDA, critica a definição de FRAN MARTINS, pois a
sociedade civil prestadora de serviços tem, igualmente, finalidade lucrativa
241
.
Considera mais adequada a definição de HERNANI ESTRELLA: “ ‘Socieda de comercial
é a entidade autônoma resultante de convenção, pela qual duas ou mais pessoas
conjugam esforços ou recursos para o exercício da atividade mercantil ( lato sensu),
debaixo de firma ou denominação, partilhando lucros e perdas daí advindas’.”
242
. Por
fim, conclui o conceito de sociedade comercial como “(...) a união de duas ou mais
pessoas, destinada à prática de atos do comércio com finalidade lucrativa.”
238
243
.
TOMAZETTE, Direito societário, p. 213-216.
Para a corrente adepta ao ato institucional, a sociedade anônima é uma instituição voltada ao exercício
de seu objeto social para o atendimento dos interesses dos acionistas, empregados e da comunidade. “A
idéia fundamental da instituição é a obra a realizar, possuindo menos importância a vontade dos sócios.
A vontade dos sócios é restrita a aceitação da disciplina, sem uma preocupaçã o maior quanto aos
efeitos, ao contrário do que ocorreria nos contratos, essa vontade dos sócios não seria tão determinante
na vida da sociedade, quanto à função social a ser exercida. Por isso, o ato constitutivo das sociedades
anônimas seria um ato insti tucional, o qual daria origem a uma instituição.” (TOMAZETTE, Direito
societário, p. 213-216).
239
Curso..., vol. I, p. 256 e 265. Este doutrinador considera a existência de dois tipos de sociedades: a
“(...) sociedade comercial para a prática constante de a tos de comércio (...)” e a “(...) sociedade civil, para
a prática de atos civis com fins econômicos (p. ex. uma sociedade imobiliária) (...)”.
240
Curso de Direito Comercial, p. 385. “(...) a entidade resultante de um acordo de duas ou mais pessoas,
que se comprometem a reunir capitais e trabalho para a realização de operações com fim lucrativo.”
(Curso de Direito Comercial, p. 186).
241
Manual das Sociedades Comerciais , p.9. Vale anotar que às sociedades civis equivalem hoje as
sociedades simples, do Código Ci vil de 2002.
242
Manual das Sociedades Comerciais , p.9.
243
Manual das Sociedades Comerciais , p.9.
97
O ato de criação da sociedade anônima, não é, entretanto, o que define de
forma categórica a natureza do seu interesse social. O ato de criação apenas constitui o
meio que formaliza a sua existência jurídica.
De toda feita, analisando as definições acima, é possível compreender a
existência de certo consenso entre os doutrinadores mencionados de que a sociedade
é a união voluntária, de duas ou mais pessoas (por ato institucional ou contrato), para o
exercício de atividade econômica voltada à obtenção de lucros, que deverão ser
rateados entre si.
Por ser voluntária a comunhão, a sociedade já cons titui uma comunhão de
escopo, e “(...), a comunhão de escopos, lembra Ascarelli, se coordena com um
interesse comum a todos os participantes, de maneira que nos confrontos de cada um
dos participantes pode -se distinguir um interesse extra -social e um interesse que,
embora próprio de cada um é comum a todos. (...)” 244.
Assim, na dicção de VALLADÃO, o interesse social seria o interesse comum a
todos os participantes.
Nesta esteira – do interesse comum dos sócios -, parcela da doutrina brasileira
tem compreendido o interesse social como o interesse comum dos sócios enquanto
sócios (uti socii), distinguindo este, portanto, do interesse dos sócios uti singuli e de
eventuais interesses comuns que não se refiram à condição de sócio (extra -sociais)245.
O interesse da companhia, segundo esta corrente da doutrina, que tem como
adeptos, por exemplo, COMPARATO 246, MODESTO CARVALHOSA 247 e TAVARES
244
Conflito de interesses..., p. 58.
Como destaca LEÃES (op. cit., p. 23), o interesse da companhia não é “(...) como somatória dos
interesses particulares dos sócios, ou como interesse autônomo desvinculado dos interesses dos sócios,
mas como o interesse comum dos sócios enquanto tais , norteados no sentido da realização do objeto
social (...)”
Além destes interesses, para CARVALHOSA ( Acordo..., p. 119) seria ainda “(...) lícito ao acionista, no
exercício de seu poder de voto, buscar a satisfação de seus interesses individuais, desde que estes não
conflitem com o social.”
246
O Poder..., p. 303.
247
Acordo de acionistas, p. 112. “Presume-se, neste particular, que o voto será proferido ex causa
societatis, exercendo-o o acionista, na condição de membro da comunidade acionária, visando ao
interesse comum. Atenderá o voto, além dos próprios interesses uti singuli, a outros, tais como os dos
acionistas futuros, os da emp resa e da comunidade em que atua, e o próprio interesse público. O voto
terá, assim, como causa a realização do fim perseguido pela sociedade, que, afinal de contas,
contemplará o interesse comum de todos os acionistas.” (CARVALHOSA, op. cit., p. 112).
245
98
PAES248, não constitui um interesse superior, ou o interesse da “empresa em si”
249
,
revelando-se como o interesse comum dos sócios, volta do à realização do escopo
social, “(...) abrangendo, portanto, qualquer interesse que diga respeito à causa do
contrato de sociedade, seja o interesse à melhor eficiência da empresa, seja à
maximização dos lucros e dividendos.” 250.
Desta feita, o interesse s ocial abrange, segundo a concepção acima, tanto o
escopo-meio - exercício da empresa, vista como objeto da sociedade -, quanto o
escopo-fim - produção e distribuição de lucros/dividendos – (qualquer outro interesse
estranho seria extra-social)251. Ou, ainda, em outras palavras, o interesse preliminar de
manutenção do patrimônio social para a realização da atividade econômica, objeto da
sociedade, o intermediário de obtenção de lucros com esta atividade e, finalmente, o
248
Responsabilidade dos administradores ..., p. 36.
A este respeito, veja-se o que esclarece LAMY FILHO ( Op. cit. , p. 238.): “O ‘interesse da companhia’
não é um ‘interesse superior’, estranho e acima da vontade comum dos sócios, ou um ‘interesse da
empresa em si’, a ser descoberto pelo juiz, e capaz de anular a deliberação social, mesmo unânime. (...)
A discussão sobre a matéria prosperou em sistemas legislativos que não tinham feito expressa opção por
um comando legal na matéria, como fez a lei brasileira, a exemplo do que já haviam feito a legislação
italiana, (...) a alemã (...) ou a espanhola (...). O voto deve, pois, ser exercido ‘no interesse da
companhia’, identificado como o ‘interesse comum dos sócios’.”
Neste sentido: LEÃES, Conflito..., p. 20. BULGARELLI (Regime Jurídico..., p. 73) alerta: “Em primeiro
lugar, é necessário esclarecer que bem pesadas as coisas, a empresa não tem interesses, sob pena de
se admitindo tal adotar-se a teoria de Despax de que empresa se desgarrou da sociedade, constituindo
uma nova pessoa, o que é inaceitável até para o próprio Paillusseau. (...) A empresa, reitere -se, não tem
interesses; só as pessoas os têm; a empresa não pode ser reconhecida como tal, embora para isso se
esforcem alguns autores, notadamente os institucio nalistas, sendo que para muitos sequer é uma coisa,
tratando-se de mero fato como a qualifica Ghiron, ou mera abstração, como requer o nosso Rubens
Requião.”
A doutrina francesa assim trata a questão do interesse social: “Finalité intéressée et intérêt soc ial – Toute
décision sociale doit être dictée par la volonté de préserver la vocation de chaque associe au partage dês
résultats financiers de la societé. De ce point de vue, la notion d’intérêt social, d’origine jurisprudentiell et
consacrée aujord’hui par les textes législatifs (79), n’est pas sans rapport avec la finalité intéressée de la
société. Dans ces conditions, toute décison qui compromet la vocation de tous les associés à obtenir une
fractiondes resultats sociaux, doit être considérée comme contr aire à l’intérêt social. Il em résultera, selon
lê cãs, soit la responsabilité de l’organe qui a accompli l’acte, soit, si l’acte contraire à l’intérêt social est
em Même temps générateur d’une inégalité entre associes, la nullité de l’acte fondée sir la t héorie de
l’abus de majorité (80).” (JEANTIN, Michel. Droit des sociétés, p. 41)
CARVALHOSA e EIZIRIK, compartilhando do entendimento de ASCARELLI, consideram que o interesse
social não é superior nem autônomo ao dos acionistas, mas sim uma comunhão de int eresses, voltados a
um fim comum (THELMA DE MESQUITA, Governança..., p. 46-47).
250
VALLADÃO, Conflito de interesses..., p. 62.
251
Fala-se, ainda, em interesses extra -acionários (LEÃES, op.cit., p. 20) que são os “(...) que residem na
empresa (“objeto da companhia”, art. 2º.), considerada esta de interesse para a ‘economia nacional’ (art.
117, §1º, a) e que desempenha uma função social junto aos ‘que nela trabalham’ e à ‘comunidade em
que atua’ (art. 116, parágrafo único). A esse segundo pólo de interesses dev em obediência aqueles a
quem cabe conduzir os destinos da companhia: os administradores e o acionista controlador.”
249
99
interesse final de distribuição dos lucr os252. Esta concepção, é possível denotar, parece
se aproximar da vertente contratualista.
THELMA DE MESQUITA, por sua vez, considera que a Lei 6.404/76 mescla
tendências contratualistas e institucionalistas 253 e que, portanto, o interesse social,
referido na lei das S/A, não equivaleria à soma dos interesses dos sócios, mas ao
interesse comum de todos eles “(...) que concerne, como objetivo imediato, à busca da
eficiência da atividade empresarial e, como objetivo mediato, à geração de lucros e à
distribuição de dividendos.” 254.
Entende, contudo, que nas companhias abertas haveria predomínio do caráter
institucional, marcado por disposições de ordem pública – inderrogáveis -, ao passo que
nas companhias fechadas prevaleceria o aspecto contratual, conferindo maio r liberdade
às partes para regular o funcionamento do organismo societário em prol de seus
interesses particulares 255. Neste sentido, afirma:
“Portanto, se a sociedade anônima fechada se identifica melhor com as
sociedades de pessoas, unidas pela affectio societatis, nas quais predomina o
aspecto contratual, deve ter tratamento jurídico diferente do aplicado às
sociedades de capital aberto, conferindo -se-lhe plena liberdade de estipulação,
de acordo com os princípios que regem o direito privado. Se, ao contr ário, se
252
VALLADÃO (Conflito de interesses..., p. 60) referindo a conclusões de GALGANO.
No mesmo sentido: CALIXTO SALOMÃO FILHO ( O novo direito societário, p. 36-38): “O sistema
societário brasileiro é uma interessante demonstração dos resultados, não de todo coerentes, a que a
convivência de ambas teorias em um mesmo sistema positivo pode levar. Os princípios contratualistas
permeiam o sistema societário brasileiro. (...) Sempre porém que se refere à sociedade fala de contrato
(...). (...) A lei acionária de 1976 introduz no ordenamento jurídico brasileiro objetivos diversos. O
legislador tentou incentivar a grande empresa de duas maneiras diferen tes: primeiro, o auxílio à
concentração empresarial. (...) Tentou -se, em segundo lugar, facilitar a organização da empresa através
do capital acionário. (...) Procurou -se criar um sistema de proteção das minorias acionárias, baseado,
entre outras coisas, na institucionalização dos poderes e deveres do sócio controlador e dos
administradores. Manifestação dessa tendência é o art. 116, parágrafo único, (...). (...) Ocorre que a
declaração de princípios do artigo 116 não pode ser tida como vã. Representa a ún ica declaração direta
dos princípios a ordenarem o interesse social. Consequentemente, a análise das regras supra exemplificadas deve ser temperada (...) pela perspectiva institucionalista, a qual ganha novas luzes com
a teoria organizativa, que será estud ada a seguir”.
254
Governança..., p. 60-61.
Diversamente, BORBA (op. cit., p. 105) reconhece na sociedade anônima uma verdadeira instituição.
255
Neste sentido: VALLADÃO ( Conflito de interesses... , p. 48-52) cita COMPARATO ( Novos Ensaios e
Pareceres de Direito Empresarial, Forense, Rio, 1981, p. 116 -131) e LAMY FILHO (A Reforma da Lei das
Sociedades Anônimas, RDM 7, p. 123-158, em especial p. 125-126).
253
100
trata de uma companhia aberta, em que predomina o aspecto institucional, a ela
se aplicarão ‘disposições de ordem pública, não derrogáveis por deliberação
dos acionistas, porque tendentes a proteger o interesse coletivo dos
investidores no mercado de capitais’, como adverte Comparato, ao apontar a
‘verdadeira distinção de natureza’ existente entre esses dois tipos sociais.
Reitere-se que não só a identificação da sociedade como aberta ou fechada
impõe o tratamento jurídico diferenciado, mas também as suas proporções e
sua conseqüente capacidade de influência no mercado, o que recomendaria
distinguir as pequenas e médias das grandes empresas, com a finalidade de
interpretação de seus atos (contratos, deliberações e estatutos) e aplicação das
normas legais pertinentes a cada caso.”
256
.
Assim, dependendo do tipo de empresa e de sua efetiva relevância no cenário
sócio-econômico, diferentes seriam as ponderações de interesses, sendo aplicável uma
visão mais institucionalista às sociedades anônimas abertas 257.
Neste sentido, tratando da questão contratual e da institucional, SIMIONATO
adverte que embora a sociedade seja constituída por um contrato plurilateral, após a
sua constituição, a vontade inicial se desloca para o estatuto social, que é determinado
pela lei. A sociedade não pode perseguir um interesse particular, sob pena de contrariar
o fundamento pelo qual foi instituída. Neste sentido, esclarece 258:
“A empresa como organização deve levar em consideração o aspecto externo
da atividade, e para isto o as pecto das relações intrasocietárias pode realmente
ser mitigado. Acontece que a relação empresa -coletividade deverá ser feita
colocando o homem no centro de sua existência (como destinatário único), e
256
THELMA DE MESQUITA, Governança..., p. 45.
Nesta oportunidade não se tratará a respeito de eventuais distin ções ou comparativos acerca do
interesse social em um ou outro cenário societário. A análise que aqui se propõe tem em consideração a
sociedade anônima aberta.
257
A coexistência do caráter contratual e do institucional levou alguns doutrinadores a concluíre m que
“(...) a classificação da sociedade como instituição depende da magnitude dos interesses por ela
atingidos, o que equivaleria a dizer que a natureza jurídica de uma empresa decorre de suas
proporções.” (THELMA DE MESQUITA, Governança..., p. 44).
258
Sociedades..., p. 174-175 e 179.
101
para ele a empresa deve existir, cumprindo a função que lhe foi entregue pelo
próprio capitalismo. (...) A perspectiva do indivíduo quanto à empresa não pode
ser confundida com a do sócio para com a sociedade. É neste passo que a
administração se institucionaliza, e a sociedade que foi fundada torna -se
organização. O contrato originário da vontade inicial dissipa -se diante da
atividade organizada.”.
Por fim, conclui que: “Com a teoria do contrato plurilateral começou a se levar
em consideração situações que antes poderiam ser esquecidas pela natureza que as
sociedades eram explicadas na doutrina tradicional, o que levou em tempos mais atuais
à construção da teoria do contrato -organização.”
CALIXTO SALOMÃO FILHO, aderindo ao “ contrato organização”, concebe o
interesse social como a criação de uma estrutura capa z de otimizar as relações
jurídicas que envolvem a sociedade. Foca a sociedade sob a ótica do institucionalismo
organizativo, pressupondo a cooperação de todos, acionistas e empregados, à
continuidade da empresa , viabilizando a defesa de diversos interesse s e a solução
interna de conflitos 259.
A solução organizativa de conflitos, referida acima, é admitida por alguns
adeptos da teoria do contrato plurilateral (COMPARATO e PAULO TOLEDO), que
consideram expressamente a aplicação da co -gestão260.
Para a doutrina do “contrato-organização” são, portanto, relevantes, não
apenas os interesses dos sócios, como também os dos empregados que deveriam ser
sopesados quando da resolução de conflitos: o
interesse social se voltaria à
continuidade da empresa.
259
THELMA DE MESQUITA, Governança..., p 50.
THELMA DE MESQUITA, Governança..., p 51-55.
Neste esteio, é possível concluir que a solução organizativa (co -gestão) se presta a resolver (ainda que
parcialmente) conflitos de int eresses, sejam eles vistos sob a ótica contratualista ou institucionalista. Isto
porque “(...) a reestruturação da sociedade anônima propiciará a separação e o equilíbrio entre
propriedade e gestão no direito societário, e a conseqüente independência do ór gão administrativo, o que
é valorizado por toda a doutrina como meio de democratização do poder nas companhias, que constitui
pressuposto da defesa dos direitos dos minoritários e da proteção do interesse coletivo, propugnada pela
governança corporativa.”. (THELMA DE MESQUITA, Governança..., p 55)
260
102
TAVARES BORBA dest aca que a sociedade anônima não pode ser vista como
mero instrumento de produção de lucros, tratando -se de instituição destinada a atender
os interesses dos acionistas, dos empregados e da comunidade e adverte 261:
“A sociedade anônima deixa de ser um mero i nstrumento de produção de lucros
para distribuição aos detentores do capital, para elevar -se à condição de
instituição destinada a exercer o seu objeto para atender aos interesses de
acionistas, empregados e comunidade.
Esses três interesses devem, por con seguinte, conviver equilibradamente no
âmbito da sociedade; as decisões tomadas terão, necessariamente, que
considerá-los, a fim de que nenhum deles seja sacrificado.”
Observa-se, portanto, que, ao lado do escopo -meio e do escopo-fim
anteriormente referidos, estariam os interesses dos empregados e da comunidade 262.
Com efeito, denota-se que, embora alguns doutrinadores tenham referido ao
interesse social como interesse comum dos sócios – escopo-meio (manutenção da
empresa) e escopo-fim (lucros) –, o entendimento que vem se revelando tendência
doutrinária é o do reconhecimento do papel da empresa na sociedade – como é o caso
do transcrito acima. Este parece ser o posicionamento mais razoável face à importância
da empresa na atualidade e ser o mais consentâne o com o princípio da função
social263.
Como alerta SIMIONATO, o interesse social não pode ser explicado apenas
pela unanimidade (ou pela maioria). O interesse social deve se coadunar com a
funcionabilidade da empresa, tendo em vista o papel econômico, socia l e cultural que
esta assumiu no mundo moderno 264:
261
Direito societário, p. 106.
CALIXTO SALOMÃO não considerou expressamente (em sua obra anteriormente referida) os
interesses da comunidade.
263
THELMA DE MESQUITA, Governança..., p. 46-47.
264
SIMIONATO, Sociedades..., p. 122-123.
ZANITELLI (Abuso da pessoa jurídica ..., p.717): “Só tem sentido, de fato, falar -se na pessoa jurídica
como sujeito de direito a medida que os direitos, deveres e situações de que ela é titular não se
confundam com os direitos, deveres e s ituações de seus membros.”
SIMIONATO (Sociedades anônimas..., p. 83) assevera: “Quando o Estado social surge como um dos
meios de se efetivar a igualdade, sua intervenção realiza -se tendo em mira um fim específico. (...) Não
262
103
“A atividade empresarial assumiu contornos de dominação coletiva e estatal. O
paralelo
sócio-sociedade
foi
modificado
para
empresa -coletividade.
A
organização, a estrutura e o funcionamento passaram a ser m uito mais
importantes que a figura do sócio, que, na legislação concursal mais moderna,
pode ser privado dos poderes de gestão das empresas em reorganização
econômica”.
Neste sentido, observe -se que também REQUIÃO reconhece que a sociedade
anônima deixou “(...) de constituir uma simples máquina de fazer lucros, agindo
abstratamente no meio social sem considerações de ordem ética. Nos dias presentes, a
companhia tem severos e graves deveres para com a coletividade em cujo meio
atua.”265. TAVARES BORBA assever a a este respeito 266:
“A comunidade, vivendo em estreito relacionamento com a empresa, merece
desta não só a permanência naquele meio social, como igualmente a adoção
de processos capazes de evitar danos ou prejuízos à população local.”.
Importante lembrar ainda, a concepção da empresa (e do Direito de Empresa),
trazido pelo novo Código. Neste sentido veja -se a definição de COELHO 267:
resta dúvida de que o apego à n oção de interesse social, que pode ser entendido como interesse geral,
consubstancia-se numa situação limitativa da esfera particular e também da esfera pública. (...) Com as
companhias a perspectiva é a mesma. (...) A Constituição Federal de 1988 apresent a para a atividade
econômica o manancial sistemático que se espira na complementaridade do liberal com os seus
aspectos finalísticos, ou melhor, com aqueles mesmos interesses em jogo. O controlador não é mais o
titular do interesse da empresa. Isso deve se r afirmado com toda a certeza.” Este doutrinador reconhece
(p. 87), ainda, que é inegável que a empresa não é mais uma organização de interesse particular, mas
sim um fator da economia nacional.
265
Curso..., vol II, p. 166.
266
Direito societário, p. 107.
267
Curso..., 2006, p. 5.
A este respeito, elucida ELOETE (A função..., p. 78) que, segundo a conceituação de MIGUEL REALE,
no relatório final da Comissão Especial do Código Civil, vol. 1, p. 36 a palavra ‘empresa’ teria sido
empregada no sentido de “(...) at ividade desenvolvida pelos indivíduos ou pelas sociedades a fim de
promover a produção e circulação das riquezas. É esse objetivo fundamental que rege os diversos tipos
de sociedades empresárias, não sendo demais realçar que, consoante terminologia adotada pelo projeto,
as sociedades são sempre de natureza empresarial, enquanto que as associações são sempre de
natureza civil. Parece uma distinção de somenos, mas de grandes conseqüências práticas, porquanto
cada uma delas é governada por princípios distintos . Uma exigência básica de trabalho norteia, portanto,
104
“Sociedade empresária é a pessoa jurídica que explora uma empresa. Atente se que o adjetivo ‘empresária’ conota ser a própri a sociedade (e não seus
sócios) a titular da atividade econômica. Não se trata, com efeito, de sociedade
empresarial, correspondente à sociedade de empresários, mas da identificação
da pessoa jurídica como o agente econômico organizador da empresa. Essa
sutileza terminológica, na verdade justifica -se para o direito societário, em razão
do princípio da autonomia da pessoa jurídica, o seu mais importante
fundamento. Empresário, para todos os efeitos de direito, é a sociedade, e não
os seus sócios. É incorreto considerar os integrantes da sociedade empresária
como titulares da empresa, porque essa qualidade é da pessoa jurídica e não
dos seus membros.”.
Nesse cenário, parece adequado inferir que o interesse social pode ser visto em
sentido estrito e em sentido amplo, lato. O estrito referir-se-ia ao interesse social
enquanto interesse comum dos sócios à realização do escopo -meio e do escopo-fim,
dos quais a empresa é instrumento, ao passo que o lato inclui, além destes, interesses
da empresa enquanto “bem públi co”, assim entendida pelos reflexos que produz na
sociedade.
Desta feita, é razoável considerar que havendo conflito de interesses, o
interesse dos sócios, ainda que comum, deve ceder face os interesses comunitários e
nacionais, conforme ensina COMPARATO 268. Em caso de
conflito de interesses o
interesse coletivo deverá se sobrepor ao individual 269.
Neste sentido, vale a pena referir à função social da empresa, que vem sendo,
nos últimos tempos (em especial depois da vigência do novo – e atual - Código Civil),
toda a matéria de Direito de Empresa, adequando -o aos imperativos da técnica contemporânea no
campo econômico- financeiro (sic.), sendo estabelecidos preceitos que atendem tanto à livre iniciativa
como aos interesses do consumidor.”.
268
O Poder..., p. 301.
269
THELMA DE MESQUITA, Governança..., p. 62-63.
No mesmo sentido, SIMIONATO, Sociedades..., p. 91.
105
objeto de freqüentes comentários na doutrina 270. Citem-se algumas considerações
trazidas por PAULO NALIN sobre o tema 271:
“A tendência constitucional é pela função social dos institutos jurídicos, do que
não escapa a empresa como operadora de um mercado tamb ém – socialmente
–
funcionalizado.
Aliás,
KONDER
COMPARATO,
10[10]
em
trabalho
denominado Função social da propriedade dos bens de produção, já havia
asseverado que “[...] a função social da propriedade não se confunde com as
restrições legais ao uso e goz o dos bens próprios; em se tratando de bens de
produção, o poder-dever do proprietário de dar à coisa uma destinação
compatível com o interesse da coletividade transmuda -se, quando tais bens são
incorporados a uma exploração empresarial, em poder -dever do titular do
controle de dirigir a empresa para a realização dos interesses coletivos.”
Mais adiante, NALIN afirma 272:
“A função social não significa necessariamente uma condição limitativa da
atividade empresarial, e tampouco implica o distanciamento entre
os
contratantes. É que se “ A propriedade obriga. Seu uso deve, ao mesmo tempo,
servir o interesse da coletividade” , 12[12] também, sob o mesmo aspecto
funcional,
é
fundamental
protegera
a
empresa
contra
a
voracidade
patrimonialista do mercado, porquanto se m ela – empresa – o mercado não
exista, apesar do mercado e do capital nem sempre se darem conta desta
indispensável simbiose. A função social da empresa, [...] que, segundo
BULGARELLI deve ser entendida como ‘[...] o respeito aos direitos e interesses
270
TOKARS (Função social da empresa , p. 77-96) dissente a respeito da questão da função social da
empresa e afirma: “Inicialmente, ainda no campo do subjetivismo, porque a crença na consciência da
função social de sua atividade salta à evidência como um excesso de otimismo quanto à superação do
individualismo que marca a vida brasileira, inoportuno em um es tudo científico-jurídico.”
271
Comentários disponíveis na internet:
http://www.juspodivm.com.br/novodireitocivil/direit o_empresarial/o_novo_direito_de_empresa_e_%20os_t
itulos_de_credito.pdf
272
Comentários disponíveis na internet:
http://www.juspodivm.com.br/novodireitocivil/direito_empresarial/o_novo_direito_de_empresa_e_%20os_t
itulos_de_credito.pdf
106
dos que se situam em torno da empresas (sic.) [...]’”. 13[13] encontra, ao nosso
ver, no princípio conservativo do ente e da empresa social, 14[14] que para
além de suas clássicas aplicações relativas à dissolução das empresas, revela se agora renovado, no se ntido de que os interesses da empresa devem
prevalecer em face de eventuais posturas divergentes (ilegais) de mercado.”.
No mesmo esteio, ELOETE CAMILLI OLIVEIRA escreve 273:
“A empresa, independente da constituição de seu capital, ou do tipo societário
adotado, estará sempre subordinada ao cumprimento de sua função.
Considerando os interesses que devem ser protegidos por ela, BULGARELLI
(2000, p. 126) destaca que o empresário como sujeito ativo da atividade
organizada é o centro de imputabilidade, sujeito a uma série de ‘ônusobrigações- responsabilidade- proteção’ (sic.). E, sob tal aspecto, ‘o
reconhecimento de que a função do empresário na atualidade implica em
maiores deveres para com terceiros, justificando -se por esse prisma atribuir -lhe
uma função social e, consequentemente, sua posição perante a empresa como
um poder- dever’.”.
“Não obstante classificada como pessoa de direito privado, CARVALHOSA
(1997, p. 7) ressalta a função social da sociedade anônima. Constituída por
meio de um contrato privado, na medida em que atua no meio social como
forma de organização jurídica de empresa, passa a ser considerada instituição
de interesse público, oportunizando a ingerência do Estado na sua constituição
e desenvolvimento.”
EDUARDO FARAH destaca a posição da empresa em face da ordem
econômica: “Como instrumento propulsor da economia, a empresa conjuga os fatores
de produção – trabalho, capital e recursos humanos – que associados aos elementos
273
A função..., p. 89 e 96.
107
ou agentes do processo econômico – consumidor, trabalhador e empres ário –
promovem o fluxo circular de negócios, que se desenvolve na ordem econômica.”
Assim, a empresa, como agente integrante da ordem econômica
275
274
.
, deve
observar a função social e, portanto, fomentar a existência digna. 276 A liberdade de
iniciativa só se legitima se observados os demais fundamentos da ordem econômica e
os objetivos aos quais ela se vincula: “(...) a preferência da empresa cede sempre à
atuação do Poder Público, quando não cumpre a função social que a Constituição lhe
impõe”.
277
Deste modo, ao lado do interesse de produzir lucros (núcleo intangível do
direito de propriedade dos bens de produção), o direito confere à empresa esta
responsabilidade.
MALUF afirma que é necessário “(...) reconhecer que o proprietário, no
exercício de seu direito , não obstante ter o dever de aproveitar -se, em seu benefício, da
propriedade, interessada como é a sociedade em que o indivíduo prospere, tem, por
sua vez, o dever de destiná -la ou fazê-la servir ao bem comum, não podendo, portanto,
deixá-la sem produzir, nem destruí-la.”278.
274
Disciplina da Empresa..., p. 673.
CARLA OSMO (Pela máxima efetividade... , p. 270) distingue entre bens de con sumo e bens de
produção. Os bens de consumo “tem seu ciclo esgotado na própria fruição”, ao passo que os bens de
produção “visam a produção de novos bens, portanto sua apropriação provoca ma repercussão na vida
social. Apenas estes detêm uma função social, alheia aos interesses particulares do proprietário. Os
primeiros têm como função social satisfazer a necessidade imediata do proprietário, garantir sua
subsistência; portanto podem apenas sofrer limitações externas, na forma da sua utilização, em nome do
interesse publico. Mas inexiste o dever de destinar o bem a fim diverso do consumo próprio.” E, neste
esteio conclui: “Desta maneira, é possível falar em função social da empresa, porque ela organiza os
bens de produção com a finalidade de produzir lucros, ou seja, é a gestora dos bens de produção em sua
fase dinâmica. Conforme leciona Eros Roebrto Grau, a empresa é a expressão da propriedade de bens
em dinamismo (propriedade dinâmica).”
276
Neste sentido veja-se SILVA, José Afonso da. Curso..., p. 744.
277
Neste sentido veja-se SILVA, José Afonso da. Curso..., p. 745.
278
Limitações ao Direito de Propriedade... , p. 70.
FARAH (Disciplina da Empresa..., p. 679-680) destaca, aludindo ao direito comparado: “Isso ocorre não
apenas entre nós. Entre as Constituições eu ropéias, a italiana é um bom exemplo no tratamento da
concepção de solidariedade social, em contraposição à autonomia privada e ao conceito de propriedade,
pois está fundamentada no trabalho e na soberania do povo que a exerce na forma e nos limites
estabelecidos naquela Constituição. Outrossim, expressamente reconhece e garante a inviolabilidade dos
direitos do homem, como indivíduo e como grupo social pelos quais se expressa sua personalidade, e
exige o cumprimento impecável dos deveres de solidariedade p olítica, econômica e social”. “No que se
refere à livre iniciativa, prescreve que esta não pode ser conduzida em desacordo com o interesse
público ou que possa causar danos à segurança, à liberdade e à dignidade da pessoa humana, assim
disciplinando o direito de propriedade e da empresa e suas relações com os trabalhadores pelo prisma
da solidariedade econômica, política e social.” FARAH ( Disciplina da Empresa..., p. 680) trata, ainda, da
Constituição portuguesa concluindo que esta é, igualmente, fundamenta da no princípio da solidariedade
275
108
Com a funcionalização do direito de propriedade passa a ser importante saber a
concreta situação do sujeito nas suas relações de propriedade. O não proprietário deixa
de ser apenas o sujeito passivo universal, titular de um dever genér ico de abstenção,
inserindo-se numa situação jurídica subjetiva complexa, podendo exigir de quem é
proprietário o cumprimento da função social da propriedade 279.
Nesse cenário, REQUIÃO alerta que nem sempre o acionista pode votar, pois o
voto deve ser exercido com lealdade, sem descurar do interesse da companhia. Não
pode ser impulsionado por espírito mesquinho, com abuso de seu direito, em reação,
por exemplo, por não se ver, o acionista, atendido em suas pretensões não justificadas
ou excessivas. O voto dev e ser exercido em atenção ao seu interesse harmonizado
com os interesses maiores da companhia, que se ajustam aos da comunidade social 280.
social e aponta a existência de previsão, na referida Constituição, acerca da co -gestão das empresas
pelos trabalhadores, “cujo interesse sobrepaira em relação aos dos sócios”.
CANOTILHO (Direito Constitucional..., p. 384) indica que a partir da década de 60 começou a se
desenhar uma nova categoria de direitos humanos, chamados de direitos de terceira geração, que seriam
os direitos de liberdade, de prestação (igualdade) e de solidariedade, nestes incluídos os direitos ao
desenvolvimento e ao patrimônio comum da humanidade, aos quais denomina de “direitos dos povos”. E
assim prossegue, afirmando que: “A primeira [geração] seria a dos direitos de liberdade, os direitos das
revoluções francesas e americanas; a segunda seria a dos direitos democráticos de participação política;
a terceira seria a dos direitos sociais e dos trabalhadores; a quarta a dos direitos dos povos.”
ELOETE CAMILLI OLIVEIRA ( A função social..¸p. 101-102) entende que a função social da empresa
ainda carece de aplicabilidade pela carência de legislação infra -constitucional que lhe parametrize: “Para
evitar que o princípio da função social transforme -se apenas em discurso constitucional, serão
necessárias leis que delimitem os seus contornos, estabeleçam os pa radigmas para as diferentes
atividades econômicas. A mera utilização do termo ‘função social’ inclusive pela legislação infra constitucional, conforme mencionado pela Lei n. 6.404/76, não garantem a sua efetividade. A delimitação
da função social da empres a possui apenas contornos doutrinários e não legislativos. Esse fato
impossibilita a fiscalização do seu efetivo cumprimento, pelos agentes da administração, já que a eficácia
de toda a atividade administrativa está condicionada à observância da lei. Ao Es tado foi atribuída, pelo
artigo 174 da Constituição de 1988, a atribuição de agente normativo e regulador da economia, através
do exercício das funções de fiscalização, de incentivo e de planejamento. E, no artigo 24, inciso I, atribui
competência concorrente à União, aos Estados e ao Distrito Federal, para legislar sobre matéria relativa
a Direito Econômico. Aludido artigo aplica -se igualmente a outras matérias, entre elas, a produção e
consumo, responsabilidade por dano ao meio ambiente, ao consumidor, a bens e direitos de valor
artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico. Ressalte -se que função social da empresa não pode
ser encarada penas como limites negativos à atividade, deve -se ter em mente também a participação do
Estado como incentivad or, para a obtenção do fim desejado. Caso em que, será necessária legislação
própria, para a sua implantação”.
279
CORTIANO JÚNIOR, O discurso..., p. 152-154.
280
Curso..., vol. II, p. 126.
109
O direito de voto – manifestação individual e unilateral de vontade – “(...) não se
destina a respaldar objetivos infe riores, determinando a lei que seja exercido no
interesse da companhia.” 281.
Como exemplo da necessidade de observância da função social, BORBA refere
que o interesse do empregado não pode ser sacrificado sob o argumento de que “(...) a
redução do quadro aumentará o lucro, ou como processo de substituição do empregado
antigo – de remuneração mais elevada – por empregado novo – de remuneração mais
baixa.”, pois, “Práticas desta natureza correspondem ao sacrifício dos interesses do
trabalho em proveito do capi tal e, como tal, conflitam com o já referido art. 116,
parágrafo único, que colocou o capital, trabalho e comunidade em posição de
equilíbrio.” 282
É inegável que os interesses que gravitam em torno da sociedade anônima não
são apenas os interesses particular es dos sócios, dizendo também respeito aos
interesses da comunidade, dos trabalhadores e da economia como um todo
283
. “A
empresa é uma realidade jurídica e constitui a conjugação dos vários interesses que a
formam. Ela supera a visão contratual das sociedade s, tendo nela verdadeira
instituição.
Sócios,
empregados,
consumidores,
estado
e
coletividade
estão
imanentemente ligados à sua atividade.” 284.
Assim, na atualidade, não parece mais aceitável se compreender o interesse
social sob uma ótica obtusa, egoística . Embora a empresa se destine à produção de
lucros – e isso é essencial – não deve e não pode descurar de outros interesses
necessários e relevantes. Neste sentido, SIMIONATO adverte que a administração das
empresas tende a um processo de socialização, po ssibilitando maior participação no
processo decisório 285.
281
BORBA, op. cit., p. 306.
CORDEIRO (Da responsabilidade..., p. 516-517) esclarece que no direito português a noção de interesse
não é dogmaticamente aproveitável na atualidade, pois falta a instrumentalização necessária para tornar lhe um conceito atuante e útil. Mais adiante (p. 519) que a doutrina portuguesa tem reconduz ido o
interesse da sociedade ao interesse comum dos sócios.
282
Direito societário, p. 108.
283
VALLADÃO, Conflito de interesses..., p. 48-52.
284
SIMIONATO, Sociedades..., p. 85.
285
SIMIONATO, Sociedades..., p. 91. Este doutrinador (fls. 128) afirma: “Com isto, o interesse da
empresa não pode ser alcançado sem se realizar a função social da companhia. Isto coloca limites como
a defesa do meio ambiente, proteção ao trabalhador e ao consumidor, distribuição da riqueza acumulada
110
A empresa – sobretudo a grande empresa (como é o caso, normalmente, das
S/A de capital aberto) - tem hoje deveres para com os empregados, com a comunidade,
com o meio ambiente. O voto, sobretudo do a cionista controlador, deve ser exercido
(motivado) com o fim de fazer a empresa realizar seu objeto e cumprir a sua função
social. Havendo conflito entre os interesses envolvidos, deverão prevalecer os
interesses da comunidade, dos trabalhadores e da econo mia como um todo 286.
Com os princípios da ordem econômica e da legislação societária, torna -se
evidente que a atividade empresarial não tem apenas uma finalidade, mas sim uma
função, que transcende aos limites da sociedade e alcança a coletividade em todos os
seus segmentos 287.
O comando da empresa – e o voto em geral – deve ser exercido, portanto,
tendo em consideração os demais interesses conexos à atividade (e à empresa).
Finalmente, considerando que o direito de voto é expressão de direito de
propriedade, cumpre tecer com fins ilustrativos algumas considerações a respeito da
função social no Código Civil de 2002.
Seção 3 – A função social e o Código Civil de 2002
O Código Civil atual marca uma profunda alteração da concepção individualista
presente no Código Civil anterior (de 1916). Embora nem todos os ditames do Código
sejam claros ao indicar a necessidade de observância da solidariedade social (na qual
se inclui função social), esta pode deles ser deduzida 288. O Código Civil atual se afasta
(pagamento digno dos salários) etc. Com acerto, Santoro-Passarelli afirmava que o ponto mais
importante da disciplina da empresa é certamente constituído pela definição do dever jurídico
286
SIMIONATO, Sociedades..., p. 168.
287
SIMIONATO, Sociedades..., p. 94-95. O interesse tem na função soc ial das companhias a sua
realização. Desta feita, conclui SIMIONATO ( Sociedades..., p. 129): “(...) o interesse social está na
função social das companhias. Qualquer medida administrativa que contrarie esta máxima fere a
legislação acionária, e pode ser an ulada, com a responsabilização do bloco de controle, ou dos
administradores.”
288
Neste sentido, FARAH ( Disciplina..., p. 683) comentando o Projeto do atual Código Civil.
SIMIONATO (Sociedades..., p. 93): “O novo Código Civil adotou a nova tendência sobre a atividade
empresarial, seguindo o excelente modelo jurídico italiano. Ele inova por trazer para o ordenamento
jurídico a noção de atividade econômica, dando ensejo também à aplicação das normas constitucionais.
A atividade tornou-se função.”
111
do conceito unitário do empresário comercial e se preocupa mais com o efetivo
exercício da atividade comercial 289.
Nesse cenário, sem descurar da importância de outras normas, passa -se a
analisar a previsão contida no §1º do artigo 1.228 do Código Civil, a qual trans creve-se,
novamente, a seguir 290:
“Art. 1.228 - O proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e
o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou
detenha.
§ 1º – O direito de propriedade deve ser exercido em consonâ ncia com as
suas finalidades econômicas e sociais e de modo que sejam preservados,
de conformidade com o estabelecido em lei especial, a flora, a fauna, as
belezas naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio histórico e artístico, bem
como evitada a poluição do ar e das águas. (...)” (destacou -se)
Como denotam LAURA VARELA e MARCOS LUDWIG, este dispositivo legal
introduziu no Código Civil o preceito da função social (embora não mencione a
expressão “função social”) ao inserir deveres na essência do direito de propriedade,
tornando claro tratar-se este de um poder-dever, um direito-função291. No mesmo
289
FARAH, Disciplina..., p. 684.
Espera-se que os paradigmas da socialidade, eticidade e operabilidade sejam capazes de implementar,
via do direito privado, os valores constitucionais. Nesse cenário, o atual Código, baseado em conceitos
legais indeterminados e cláusulas gerais confere maior mobilidade ao sistema. Neste sentido, VELTEN
(Função social..., p. 428) destaca que segundo a doutrina de NELSON NERY, os conceitos
indeterminados constituem expressões vagas e imprecisas que, se relacionadas com o fato concreto
possibilitam ao juiz declarar a norma diante do caso concreto; e que RUY ROSADO DE AGUIAR
alcunhou o Código Civil de 2002 como “Código dos juízes”.
290
A este respeito também prevê o Código Português, conforme esclarece FERNANDO SÁ ( Abuso do
direito, p. 103): “Diz o artigo 334º. que ‘é ilegítimo o exercício de um direito, quanto o titular exceda
manifestamente os limites impostos pela boa -fé, pelos bons costumes ou pelo social ou econômico deste
direito’.”
FERNANDO SÁ (Abuso do direito, p. 103) tratando a respeito da função econômica do direito, traz
diversos esclarecimentos, dentre os quais destaca -se o seguinte: “O conteúdo do direito real e, em geral,
de todas as relações jurídicas sobre coisas seria uma utilização, e assim, pois, como são abusivas certas
formas anti-económicas ou anti-sociais de exercício dos direitos, assim também a inércia no exercício, a
pura passividade ou omissão, ou, na expressão de Rotondi, ‘o direito anti -económico a ter infecunda e
inactiva a propriedade constituiria um abuso do respect ivo titular. (...)’.”.
291
Da Propriedade às Propriedades... , p. 787.
112
sentido, VENOSA considera que “Presentes estão nessas dicções princípios afastados
do individualismo histórico que não somente buscam coibir o uso abusivo d a
propriedade, como também procuram inseri -la no contexto de utilização para o bem
comum.”292.
Para o cumprimento desta função social, pode o julgador buscar toda legislação
especial que trate da temática, podendo, assim, se valer da “cláusula geral extensi va”
para buscar uma solução no sistema 293. Para VENOSA deve o legislador ordinário
equacionar o justo equilíbrio entre o individual e o social – tendo suas vigas mestras na
Constituição Federal – cabendo ao julgador, “(...) traduzir este equilíbrio e aparar os
excessos no caso concreto sempre que necessário. Equilíbrio não é conflito, mas
harmonização”.
Além da cláusula geral extensiva, referida acima, o parágrafo 1º do artigo 1.228
contém, também, uma cláusula geral restritiva, pois afeta as faculdades iner entes ao
proprietário (usar, gozar, dispor e reaver) 294.
Compreende, assim, o referido dispositivo legal, uma cláusula extensiva, para
fins de interpretação, e uma cláusula restritiva, conformando a propriedade, e dando
maior efetividade à regra constituci onal da função social 295.
ARNOLDO WALD (Direito das Coisas, p. 114-115): “Examinando e explicando essa socialização da
propriedade, os autores invocam o conceito do direito como função social, a teoria do abuso do direito e
outras a fim de submeter o interesse individual às exigências do bem -estar comum. Na realidade
assistimos a uma fase de predomínio do social sobre o individual. (...) Vimos, assim, a evolução do direito
de propriedade, diretamente vinculado às c ondições econômicas e políticas do momento, oscilando entre
a exclusividade romanista e a dispersão ou superposição medieval, ora com amplas garantias para o seu
titular, ora dependendo do interesse social representado pela vontade estatal. É, assim, um do s conceitos
mais maleáveis do direito, adaptando -se sempre às contingências do momento, como verdadeiro
instrumento do equilíbrio social, procurando conciliar as exigências, muitas vezes antagônicas, da
segurança e da justiça, dos interesses coletivos e in dividuais.”
292
Curso..., v. V, p. 174.
293
MAZZEI, Função Social..., p. 391- 393. As cláusulas gerais extensivas, para MAZZEI, são as que “(...)
permitem o alargamento da regulação jurídica, mediante o uso de regras e princípios de outros textos
legais, como ocorre na parte final do §1º do art. 1.228, ao remeter à conformidade do uso da propriedade
‘com o estabelecido na lei especial’.”
294
MAZZEI considera, para tanto, que as cláusulas gerais restritivas são aquelas que “(...) surgem para
delimitar ou restringir determinadas situações que decorrem de regra ou de princípio jurídico. (...)”. (Op.
cit., p. 391 e ss)
295
Nesse sentido, MAZZEI faz a seguinte citação: “ ‘Função Social da propriedade. Natureza jurídica. É
princípio de ordem pública, que não pode ser der rogado por vontade das partes. O CC 2.35 (sic.)
parágrafo único é expresso nesse sentido, ao dizer que nenhuma convenção pode prevalecer se
contrariar os preceitos de ordem pública, como é o caso da função social da propriedade e dos
contratos.’” E prossegue: “Fica clara a intenção do legislador em seguir a diretriz da Carta Magna, criando
113
Vale anotar que o Código Civil atual tem desenho mais móvel que o Código
anterior, de 1916, apresentando “ função participativa”, “reconhecendo expressamente:
1. a importância dos microssistemas; 2. a existência de diretrizes consti tucionais que
devem ser seguidas pelo direito privado.”
O Código Civil deixa de ser o centro,
passando a Constituição ser o foco de informação - como, aliás, sempre deveria ter
sido, em vista da organização de nosso ordenamento jurídico. O Código Civil pa ssa a
ser “vetor de efetividade para as regras constitucionais” 296.
Neste esteio, vale observar que o parágrafo único do artigo 2.035 do Código
Civil prevê que: “Nenhuma convenção prevalecerá se contrariar preceitos de ordem
pública, tais como os estabele cidos por este Código para assegurar a função social da
propriedade e dos contratos.”, deixando clara a intenção do legislador de dar
efetividade ao comando constitucional e “adotando -a explicitamente em todas as
relações privadas”, eliminando quaisquer ob stáculos neste sentido 297.
Diante dessas considerações, conclui -se que o parágrafo 1º do artigo 1.228
atua, assim, como um vetor para a concretização da função social da propriedade
(princípio constitucional), por permitir expressamente a comunicação de di versos
microssistemas e por ter natureza de ordem pública (artigo 2.035 do Código Civil),
sendo, portanto, inderrogável pelas partes.
A este respeito, comenta FRANCISCO CARDOZO DE OLIVEIRA 298:
“O §1º. Do artigo 1.228 do Código Civil Brasileiro de 2002 afir ma que o direito
de propriedade deve ser exercido em consonância com as suas finalidades
econômicas e sociais. A regra faz correlação entre o exercício dos poderes
proprietário e o conteúdo finalístico do direito de propriedade que, obviamente,
remete para a necessidade cumprimento do princípio da função social. Assim, o
uma fórmula para dar efetividade ao comando constitucional e adotando -a explicitamente em todas as
relações privadas.”
296
Neste sentido: MAZZEI, Função Social..., p. 387 ss. Vale transcrever esclarecimento trazido por este
doutrinador: “Assim sendo, apesar de enunciada na Constituição Federal, a função social da propriedade
– como cláusula geral na codificação – poderá ser implementada em larga escala, a partir do Código Ci vil
que, repita-se, tem grande interação com os microssistemas (por meio de cláusulas gerais extensivas) ,
havendo, ainda, o reconhecimento de que a matéria, pela sua importância, deverá ser tratada como de
ordem pública (cf. art. 2.035, parágrafo único, d o CC/2002).”
297
A este respeito: MAZZEI, Função Social..., p. 394-396.
298
Hermenêutica..., p. 291.
114
arranjo técnico de tutelas compreende a delimitação concreta das finalidades
sociais e econômicas a serem observadas pelo proprietário numa realidade
histórica. É na delimitação concreta da s finalidades sociais e econômicas,
surgidas do exercício dos poderes proprietários que se realiza a tutela
simultânea de interesses proprietários e não -proprietários. A tutela do direito de
propriedade, portanto, precisa assimilar as variáveis valorativas que conformam
o próprio direito e que decorrem da funcionalização. No caso do § 1º. Do artigo
1.228 do novo Código Civil, a tutela do direito de propriedade necessita lidar
com a identificação material de finalidade sociais e econômicas para o exercício
dos poderes proprietários.”
Desta forma, ainda que não desejem expressamente as partes envolvidas em
determinada relação jurídica ou o proprietário (ou titular) de determinado bem, a
propriedade, à luz do Código Civil, está conformada pela função social, enquanto
princípio constitucional, sendo nulas quaisquer limitações privadas que busquem
derrogar total ou parcialmente a referida função social.
A função social, em vista desses dispositivos do Código Civil é operativa e,
entende-se, constitui direito pleiteável, mesmo que não se considerasse auto -aplicável
ou auto-executável o preceito constitucional.
A respeito do assunto, vale anotar o entendimento de PAULO VELTEN: “Esse
o quadro atual: a vontade persiste como mero pressuposto, e a autonomia privada,
ganhando em importância, tem o seu campo de autuação cada vez mais delimitado
pelo Estado. Se a vontade individual como fonte produtora de direito, no dizer de
Orlando Gomes, conduz ao arbítrio, a autonomia privada deve ser delimitada e
encontrar no negócio jurídico o melhor instrumento para sua veiculação.” 299.
299
Função social..., p. 417.
Neste esteio, tratando das relações contratuais, PAULO VELTEN ( Função social..., p. 419 e 420)
compreende que: “(...) a primeira r azão que leva o estado a intervir na relação contratual é a
desigualdade estabelecida entre os contratantes, ao que a lei civil, visando assegurar a realização dos
valores fundamentais da igualdade e solidariedade, impõe limitações ao âmbito de atuação das partes, à
liberdade de estabelecer regras individuais, conforme a função social que todo e qualquer ajuste deve
atender, visando o exercício de atividades dignas e sociais, postas acima do mero interesse das partes
envolvidas e pautadas por critérios de r azoabilidade, equilíbrio e proporcionalidade”, “(...) essas
limitações e intervenções não negam, mas antes prestigiam, a autonomia privada, à proporção que
asseguram aos particulares determinada esfera de atuação, dentro de um ambiente de respeito, de
115
Além dos aspectos reportados acima, o artigo 1.228 do Código Civil apresenta,
em seu parágrafo 2º, cláusula que coíbe o abuso do direito de propriedade. Assim
dispõe300:
“Art. 1.228 – (...)
§2º - São defesos os atos que não trazem ao proprietário qualquer comodidade,
ou utilidade, e sejam animados pela intenção de prejudicar outrem .
(...)”.
A teoria do abuso de direito liga -se diretamente às alterações de composição
das estruturas sociais e, “(...) por tal motivo, não se esgotará o brilho de qualquer
esforço direcionado à sua compreensão, a exemplo dos destinados à captação de seus
desdobramentos na teoria das obrigações” 301.
lealdade, de solidariedade e de eticidade, valores que, aliás, inspiram a edição do atual Código Civil
brasileiro.”
MARIA HELENA DINIZ (Código Civil..., p. 975) assevera que: “Há limitação ao direito e propriedade com
o escopo de coibir abusos e impedir que se ja exercido acarretando prejuízo ao bem -estar social. Com
isso se possibilita o desempenho da função econômico -social da propriedade, preconizada
constitucionalmente, criando condições para que ela seja economicamente útil e produtiva, atendendo ao
desenvolvimento econômico e aos reclamos de justiça social. O direito de propriedade deve, ao ser
exercido, conjugar os interesses do proprietário, da sociedade e do Estado, afastando o individualismo e
o uso abusivo do domínio.”.
300
“Mas é o próprio Código Civil que qualifica a função social da propriedade, coibindo o abuso do direito:
(...).” (MELLO, Função Social..., p.310). É possível inferir que esta norma prestigia a boa -fé.
FERNANDO SÁ (Abuso do direito, p. 165-171) destaca que a boa-fé pode ser vista em dois sentidos
principais: (i) o primeiro deles seria essencialmente um estado ou situação de espírito – “estado subjetivo
relevante”; e (ii) o segundo, considerá -lo como princípio, pelo qual o sujeito deverá atuar como “pessoa
de bem, honestamente e com leal dade.” E, neste sentido, esclarece: “(...) enquanto no primeiro sentido
se visa uma actuação em boa-fé, agora o problema é antes o de uma actuação segundo a boa-fé e por
ele se alude e se exprime genèricamente o critério que deve presidir e orientar todo o comportamento do
sujeito de direito, nomeadamente no exercício de todo e qualquer direito subjetivo.”. Este doutrinador
destaca (p. 261) que os tribunais portugueses tem reconhecido o abuso do direito de propriedade quanto
ele for exercido com fim emulat ivo ou sem interesse próprio – posicionando-se, assim, na mesma linha
da previsão contida expressamente em nosso Código Civil brasileiro.
NISSEN (Panorama..., p. 65-73) fala da doutrina “de los proprios actos”, segundo a qual, quando uma
pessoa, dentro de uma determinada relação jurídica, tenha suscitado em outra, com sua conduta, uma
confiança fundamentada na boa -fé, não deve defraudar esta confiança e é inadmissível qualquer conduta
incompatóvel com ela. Para tanto, a conduta anterior deverá ser lícita, p ois se contrária à lei, não
produzirá vinculação segundo a referida doutrina.
301
MOACYR DA COSTA NETO, A interpretação..., p. 363. Este doutrinador ( A interpretação..., p. 364 –
368) traz algumas considerações históricas a este respeito: “(...) a época da R evolução Francesa
assinala o influxo de idéias individualistas. (...) as normas ditadas pelo Estado – alheio às vicissitudes da
economia – cumpriam papel subjacente às manifestações de vontade, e a justiça era concebida como
mínima intervenção na ordem pri vada, (...). Assim, o Estado liberal estava intrinsecamente ligado à
116
Assim, nesta análise, não se tem a pretensão de esgotar o tema, nem de se
discorrer sobre as teorias a respeito do abuso do direito. Tem -se, aqui, o singelo
objetivo de apresentar alguns delineamentos gerais que permitam vislumbrar uma
noção a seu respeito, em vista de ser passível de aplicação à propriedade (ou
titularidade) de ações, conformando o exercício do voto.
O abuso do direito, segundo FERNANDO SÁ, se traduz num ato ilegítimo, em
vista do excesso de exercício de um certo e determinado direito, em função das
condições previstas na lei (no caso do direito português, a boa -fé, os bons costumes e
o fim social ou econômico) 302. Para este doutrinador, não se confunde o abuso do
direito com a colisão de direitos 303, nem com a fraude à lei 304, nem com o desvio do
ascenção ao poder da burguesia, (...). No que concerne à teoria das obrigações, essas idéias marcariam
uma ideologia contratual intimamente ligada à expressão da autonomia da vontade, (.. .). Igualmente
importantes à consolidação deste modelo de pensamento as idéias de Kant, por conceberem a
expressão da autonomia da vontade como princípio regente de todas as leis morais e seus deveres
consectários. No mesmo sentido, fundamental a influênci a da teoria do contrato social de Rousseau, (...).
Ocorre que, diante do constatado fracasso do Estado liberal e seus consectários – miséria e desemprego
-, surge a necessidade de remodelação da própria concepção de direito para suprir deficiências
econômicas e, sobejamente, conciliar a liberdade de iniciativa conforme os ditames da justiça social. (...)
passa o Estado a desenvolver políticas compensatórias para mitigar os efeitos da injusta distribuição de
riquezas, ressaltando e valorando no corpo do orde namento jurídico disposições de natureza ética e
moral, (...). Essa ruptura com antigos padrões de pensamento é processo ainda em curso, não obstante é
possível que façamos algumas referencias com o propósito de sinalizar a cadência de um movimento. No
que concerne ao ordenamento constitucional, nas primeiras décadas do século passado ganha corpo
uma nova ideologia para conciliar a liberdade de iniciativa conforme os princípios da justiça social. Com
efeito, nas obras dos constituintes brasileiros de 1933 -1933 e 1946, foram ressaltados os direitos
fundamentais da pessoa humana, com destaque no aspecto social, o que alguns sustentam como
reflexos da Constituição alemã de 1919, dita de Weimar. (...) Como mencionado, a Constituição de 1946
conferiu a determinados dispositivos a grande orientação à utilização da propriedade, (...). (...) Pontes de
Miranda que chegou a considerar a natureza do art. 145 ‘mera recomendação’. Da mesma forma, A. de
Sampaio Doria, estabeleceu seus comentários criticando a natureza dos comandos contidos no art. 147
da CF/1946, (...). Com o posterior advento da Constituição Federal de 1988 – que consolidou direitos e
garantias fundamentais - resta consagrada a necessidade de instituição de ordem na utilização e
circulação de riquezas, (. ..). A propósito os ensinamentos de Rosa Maria Barreto Borrielo de Andrade
Nery: ‘E o princípio da dignidade da pessoa humana é o princípio fundamental do direito. É o primeiro. O
mais importante (...)’. (...) E num momento subseqüente, teremos o advento d o Código Civil (Lei
10.406/2002), para consagrar a necessidade de orientação nas relações negociais (dentre os quais os
arts. 421, 422 e 2.035), com o objetivo de garantir o equilíbrio nos processos de circulação de bens e
riquezas.”.
302
FERNANDO SÁ, Abuso do direito, p. 103. No direito português (p. 104) tal excesso deve ser manifesto
e pode se referir tanto a atitude omissiva, quanto comissiva, englobando tanto a disposição, quanto a
aquisição de direitos. Este doutrinador destaca (p. 113 -114) que o Código Civil português distingue entre
abuso de direito e conflito de direitos (ou de interesses).
303
Sobre o abuso do direito FERNANDO SÁ ( Abuso do direito, p. 518-519) esclarece: “(...) o abuso
consiste em exercer o direito subjectivo próprio por forma a lesar um direito ‘igualmente respeitável’.
Seria esta característica fundamental para a distinção do acto abusivo perante o acto lícito, que
consistiria no acto do exercício não danoso de qualquer direito e perante o acto ilícito, ou acto lesivo de
um direito por outro direito, mais correcto seria falar de conflito de direitos.” Mais adiante prossegue (p.
117
poder305. Atualmente, no Brasil, o Código Civil reconhece expressamente ( artigo 187)
que o abuso do direito constitui ato ilícito.
HELOÍSA MELLO destaca que a noção de abuso vincula -se à idéia de função e
de
relatividade
dos
direitos
subjetivos,
delimitados,
estes,
pelos
princípios
constitucionais. Desta feita, o abuso nasce j ustamente no interior do próprio direito,
manifestada sua disparidade com o sentido teleológico no qual ele se funda. No abuso
do direito, apenas aparentemente o comportamento do sujeito constitui exercício de
direito, “(...) ultrapassando -o justamente por violar seu sentido e seu fundamento
objetivo. A qualificação do comportamento não prescinde do fundamento próprio desse
direito.”. A essência do abuso do direito é interna e estrutural e se configura pela
discordância entre a direção de seu exercício e o valor que lhe é inerente. “O dever de
528): “Aceita, assim, a possibilidade da colisão de direitos, por a ela se não opor a intrínseca natureza
destes, há que explicá-la por forma diferente do abuso do direito. Na realidade, quem abusa do direito
próprio só formalmente exerce o seu direito (...), afinal, foi ultrapassado no seu fundamento axiológico
pelo concreto comportamento do sujeito; ora, esta carência de direito, que só externamente se encobre
na forma de um certo e determinado direito subjectivo e que se nos foi revelando como a essência do
acto abusivo, não pode lògicamente, em boa verdade, ser encontrada na colisão de direitos – e isto sob
pena de termos de vir a negar esta figura. Pois que, para haver colisão de direitos, têm de estar frente a
frente dois direitos subjectivos, ou seja, o comportamento de cada titular tem de preencher, por hipótese,
o seu direito, não só estruturalmente, na forma que lhe cabe, mas também na valoração jurídica que em
concreto lhe dá sentido. De outro modo, poderíamos ter um conflito entre um direito, materialmente
actuado, e um outro e diverso fenômeno, que poderia até consistir no abuso de um direito – mas não já
uma colisão de direitos, porque um dos sujeitos actuaria sem direito ou para lá do seu direito.”.
304
FERNANDO SÁ (Abuso do direito, p. 530-536), quanto à fraude à lei, afirma que existe quem entenda
que a fraude à lei é espécie de abuso de direito, em vista de que com este se parece ou, por vezes, se a
este se assemelha. “Fundamentalmente, pode dizer -se que estamos perante a fraude à lei quando
alguém procura subtrair-se à aplicação de certo preceito imperativo, mas ao mesmo tempo realizar o
interesse que por ele é proibido prosseguir, através do recurso inusitado a outros tipos legais. O não
preencher a hipótese da norma cujo imperativo seria normalmente aplicável, assumindo um
comportamento que se vai acolher à previsão de uma outra norma, em vista da produção do mesmo
efeito, é que distingue precisament e o acto in fraudem legis do acto contra legem: a actividade fraudatória
está na fuga do preceito imperativo para, através do recurso a uma norma diferente daquela a que se
pretende escapar, lograr a obtenção do efeito que ela imperativamente proíbe, enqua nto que o acto
contra legem viola directamente, frontalmente, a mesma específica proibição normativa. Por aqui vem
também a fraude à lei diferenciar -se da simulação relativa, onde por detrás do negócio simulado existe
um outro que as partes quiseram realiz ar (artigo 241º., no. I) e que, esse, viola directamente uma norma
imperativa.”.
305
FERNANDO SÁ (Abuso do direito, p. 541) informa: “Ilegalidade por desvio de poder existe, assim,
tanto no acto administrativo que visa um fim específico diverso do designado pela lei, ainda que também
de interesse público mas por ela não contemplado ou dela não deduzido, como no acto administrativo
destinado, pura e simplesmente, a alcançar fins de mero interesse particular.”.
118
não abusar traduz-se no dever de atuar segundo a boa -fé, consentâneo com os bons
costumes ou conforme a finalidade econômica ou social do mesmo direito (...)”.
306
.
A boa-fé, anteriormente referida, não é conceito estáti co, e sofre mutações em
função das transformações econômicas, culturais e sociais por que passa a sociedade.
Este princípio é prestigiado no Código Civil, constituindo uma cláusula geral que se
materializa num conceito jurídico indeterminado, servindo de e lemento interpretativo
das normas jurídicas, de criação de deveres jurídicos laterais.
Para MORACYR NETO, a teoria do abuso de direito demonstra certa abertura,
levando à necessidade de adequação de conceitos e prescrições ao sentimento de
justiça307. A este respeito, vale a pena considerar os ensinamentos de MIGUEL MARIA
SERPA LOPES 308:
“(...) o desequilíbrio se traduz em fatos materiais que serão apreciados através
de um sentimento de Justiça. (...) As obrigações não nascem simplesmente para
peso de uns de benefício de outros. Elas nascem e se desenvolvem numa
destinação patente de ordem moral e econômica, mantendo o equilíbrio da
própria vida. O suor que corre da nossa fonte deve ser convertido em pão, este
mesmo suor que irá proporcionar a outros membros d a coletividade aquilo que
não podem obter por esforço próprio, dadas as limitações de espaço e tempo.”
Esta razão de justiça pode ser vista como a boa -fé, que norteia todo o nosso
sistema.
306
A boa-fé..., p. 314-315. A este respeito afirma (p. 314): “A teoria do abuso do direito passa então a
rever o próprio conceito de direito subjetivo. Seja entendido como poder ou soberania da vontade
individual (Savigny, Windscheid), ou como interesse juridicamente protegido (Jhering), ou ainda como
poder a serviço de um interesse, o direito subjetivo caracteriza -se essencialmente como qualidade ou
faculdade o sujeito, isto é, como uma liberdade ou possibilidade de agir que lhe é inerente.”. Cita lição de
FERNANDO CUNHA DE SÁ: “(...) ‘o abuso de direito n ão pode ser encarado em termos formalistas, pois
em certa e determinada situação podemos descobrir concordância com a estrutura formal de um dado
direito subjetivo e, simultaneamente, discordância, desvio, oposição, ao próprio valor jurídico que daquele
comportamento faz um direito subjetivo. Neste encobrir, consciente ou inconscientemente, a violação
material do fundamento axiológico de certo direito com o preenchimento da estrutura formal do mesmo
direito é que reside o cerne do abuso de direito.’.”.
307
COSTA NETO, A interpretação..., p. 368.
308
Curso..., v. 5, p. 69.
119
Para coibir o abuso de direito, é fundamental a participação at iva do Poder
Judiciário. Neste sentido, MOACYR DA COSTA NETO 309, referindo a conclusões de
DARCY BESSONE, afirma que “(...) competiria ao Estado -juiz chegar à conclusão de
que o direito fora exercido irregularmente ou de que seu titular dele abusou.”, e que
para fixar os paradigmas destinados a servir de base à análise das situações concretas
“(...) qualquer relação jurídica deve estar atenta à sua finalidade ou função social, pois,
de outro modo, o exercício das liberdades individuais seria antifuncional e c ontrário à
razão determinativa de sua instituição.”
Além desta previsão legal acerca da observância do interesse social existe uma
previsão afeta ao direito de propriedade tratando a respeito do abuso do direito. Em que
pese já se tenha, no presente estud o, situado o direito de voto como decorrente de
direito de propriedade 310, vale a pena observar que, no Código Civil, existem dois
dispositivos que referem expressamente ao abuso do direito: o parágrafo 2º do artigo
1.228, ao tratar do direito de propriedade , e a cláusula geral do artigo 187. Para facilitar
a análise, transcrevem-se no quadro abaixo, os dois dispositivos em questão 311:
Abuso de Direito (Parte Geral)
Abuso de Direito
(Direito das Coisas – propriedade)
“Art. 187 – Também comete ato ilícito o
“Art.
1.228
–
O
proprietário
tem
a
titular de um direito que, ao exercê -lo, faculdade de usar, gozar e dispor da coisa,
excede
manifestamente
os
limites
impostos pelo seu fim econômico ou
social,
pela
boa-fé
ou
pelos
e o direito de reavê-la de quem quer que
injustamente a possua ou detenha (..)
bons §2º - São defesos os atos que não trazem
costumes”
ao proprietário qualquer comodidade, ou
(destacou-se)
utilidade, e sejam animados pela intenção
de prejudicar outrem.” (destacou-se)
309
COSTA NETO, A interpretação..., p. 369.
Sob o ponto de vista do exercício do direito de voto, optou -se por reconhecer este direito como um
direito real, que pode ser exercido independentem ente da anuência de outrem (desde que, é claro,
observadas as condições e os limites da lei).
310
120
Dos excertos, infere-se, numa leitura inicial, que o artigo 1.228, §2º,
prescreveria hipótese de abuso do direito de propriedade (direito real), que exigiria,
para sua concretização, ânimo voltado a este fim, e o artigo 187, regra geral (aplicável
aos direitos pessoais), que, par a se realizar, prescindiria em princípio da intenção do
agente.
Em outras palavras, o artigo 187 do Código Civil referir -se-ia à boa-fé objetiva,
ao passo que o §2º do artigo 1.228, à boa -fé subjetiva, vinculando -se, portanto, a um
estado psíquico de conh ecimento, intencionalidade, ao passo que a boa -fé objetiva
pauta-se segundo standards 312.
Em vista da, ao menos aparente, distinção entre estes dispositivos, discutiu -se
na Jornada de Direito Civil, promovida pelo Centro de Estudos Judiciários do Conselho
da Justiça Federal, o entendimento que deveria ser dado ao §2º do artigo 1.228, tendo
sido aprovado o Enunciado 49, nos seguintes termos: “A regra do art. 1.228, § 2º, no
novo Código Civil, interpreta -se restritivamente, em harmonia com o princípio da funçã o
social da propriedade e com o disposto no art. 187 da mesma lei.”
Comentando este Enunciado, MAZZEI afirma 313:
“Apesar de o texto do Enunciado em tela não ter ficado absolutamente límpido,
sem indicar seu preciso alcance, parece -nos que a solução de impr imir
interpretação restritiva importa na retirada da parte final do §2º do art. 1.228,
abolindo-se a necessidade de intenção para fins de caracterização do abuso de
direito de propriedade. De fato, a interpretação restritiva, segundo Francesco
Ferrara, pode ocorrer ‘1º se o texto, entendido no modo tão geral como está
redigido, viria a contradizer outro texto de lei; 2º, se a lei contém em si uma
contradição íntima (é o chamado argumento ad absurdeum; 3º, se o princípio,
311
Vale a pena citar, ainda o artigo 186 do Código Civil: “Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão
voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causa r dano a outrem, ainda que exclusivamente
moral, comete ato ilícito.”.
312
A boa-fé objetiva deve estar presente em todas as fases da relação jurídica: na pré -contratual,
contratual e pós-contratual. A fase pré-contratual ocorre quando as partes encontram -se nas
negociações preliminares, com manifestação de intenção e execução de medidas compatíveis; a
contratual, quando já firmado o contrato e em fase de sua execução; e, a pós -contratual, com a
subsistência de efeitos após cessada a relação.
313
A Função Social..., p. 402-403.
121
aplicado sem restrições, ultrapassa o fim que foi ordenado’, e, na situação em
destaque, não é possível se manter a parte final do §2º, do art. 1.228, pois
conspira contra toda idéia de critério finalístico -objetivo que envolve a figura do
abuso do direito e a função social da propriedade.”
Assim, vislumbra-se que o parágrafo 2º do artigo 1.228 poderia ser entendido
de duas formas opostas 314:

vinculado ao ânimo do agente – responsabilidade subjetiva; ou

desvinculado ao ânimo do agente – responsabilidade objetiva.
MARIA HELENA DINIZ 315 parece admitir a necessidade de dolo para o artigo
1.228, §2º do Código Civil: “O proprietário não pode praticar dolosamente, no exercício
normal do direito de propriedade, ato com firme intenção de causar dano a outrem e
não de satisfazer uma necessidade sua ou interesse seu. (...) O artigo 1.228 deve ser
interpretado restritivamente, e em harmonia com o princípio da função social da
propriedade e com o disposto no artigo 187 do Código Civil (Enunciado n. 49, aprovado
na Jornada de direito civil, promovida, em setembro de 2002, pelo Centro de Estudos
Jurídicos do Conselho da Justiça Federal).” (destacou -se).
Analisando-se, ainda, a doutrina observa -se que diversos doutrinadores são
simplesmente silentes a respeito da questão (a exemplo, VENOSA 316 e MALUF 317).
Nesta esteira, vale a pena referir que o artigo 927 do Código Civil, ao tratar a
respeito da responsabilidade civil dispõe que a responsabilidade será objetiva apenas
quando a lei assim o determinar. Confira -se:
“Art. 927. Aquele que, por ato ilícito (arts. 18 6 e 187), causar dano a outrem,
fica obrigado a repará-lo.
314
A teoria do abuso do direito pode ser vista basicamente sob duas óticas: (i) uma subjetivista, que se
constitui no exercício doloso de um direito (ato emulativo), e (ii) outra objetiva, para a qual o abuso
prescinde de culpa para sua c aracterização, nesta é suficiente que o direito seja exercido pelo seu titular
de maneira contrária ao seu fim. (ZANITELLI, Abuso da pessoa jurídica..., p. 719).
315
Código Civil..., p. 976.
316
Curso..., vol. V, p. 173-190.
122
Parágrafo único. Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de
culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente
desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os
direitos de outrem.”
Não se pretende trazer, aqui, solução a esta celeuma, ou posição definitiva a
respeito do tema. Contudo, parece razoável compreender a necessidade do elemento
subjetivo para a aplicação do artigo 1.228, §2º do Código Civil 318. Esta
linha
de
entedimento se coadunaria com a decorrente da análise do artigo 957, retro, e do caput
do artigo 115 da Lei das Sociedades Anônimas (Lei 6.404/76), que estabelece:
“Art. 115. O acionista deve exercer o direito a voto no int eresse da companhia;
considerar-se-á abusivo o voto exercido com o fim de causar dano à companhia
ou a outros acionistas, ou de obter, para si ou para outrem, vantagem a que
não faz jus e de que resulte, ou possa resultar, prejuízo para a companhia ou
para outros acionistas.(Redação dada pela Lei nº 10.303, de 2001) ” – destacouse
Como é possível observar, este dispositivo legal prevê que será abusivo o voto
exercido com o fim de causar dano – aí está presente o elemento subjetivo: o fim
visado no exercício do direito de voto.
Estas questões merecem, entretanto, maior apreciação, o que não se fará,
nesta oportunidade, sob pena de se alargar em demasiado o objeto do pr esente estudo,
que tem como pretensão analisar a questão do conflito de interesses e do abuso do
direito de voto em face da lei das sociedades anônimas.
317
In: FIÚZA, Novo Código Civil..., p. 1096-1100.
MARIA HELENA DINIZ ( Curso..., p. 125) assevera que a responsabilidade civil do proprietário “(...)
rege-se, concomitantemente , por normas inspiradas na teoria clássica da responsabilidade,fundada na
culpa (art. 927) e por normas inferidas da moderna teoria objetiva da responsabilidade, que elimina o
conceiro subjetivo, para fundá -la na idéia de que o risco da coisa deve ser suportado pelo seu
proprietário, pelo simples fato de ser ele o titular do domínio (CC, art. 927, parágrafo único).”.
318
123
Assim, vista, ainda que de forma breve, esta, ao menos aparente, semelhança,
passa-se à análise, na Pa rte III deste estudo, das previsões que referem
expressamente à função social, na Lei das Sociedades Anônimas.
CONCLUSÃO PARCIAL
A vida é movida por interesses que, por vezes, entram em conflito. Estas
situações de conflito podem ser relevantes para o d ireito, como é o caso dos conflitos
de interesses quando do exercício do direito de voto nas assembléias das sociedades
anônimas abertas.
Como o direito de voto deve ser exercido no interesse da companhia, torna -se
relevante identificar o que seria o “int eresse social”, paradigma para a identificação de
eventual situação de conflito.
“Interesse”, neste contexto, pode ser considerado como a “(...) relação íntima
entre o indivíduo e o objeto de seu desejo.” 319.
Nesta Parte II, observou -se que diversas concep ções foram desenvolvidas a
respeito do interesse social.
Tais concepções se dividem em duas grandes principais vertentes teóricas - as
teorias contratualistas e institucionalistas - que, por sua vez, se subdividem.
Para as vertentes institucionalistas, a grande empresa não é mais uma
organização de direito privado, mas sim um fator da economia nacional, a serviço dos
interesses públicos, devendo, portanto, ser vistas sob uma ótica mais publicista e
menos egoística.
Dentre as vertentes institucionalistas é possível citar: (i) a teoria da empresa em
si; (ii) a teoria da pessoa em si; (iii) a teoria da instituição, propriamente dita; e (iv) as
concepções norte-americanas.
A teoria da empresa em si ( Unternehmen na sich) é a mais conhecida das
teorias institucionalistas. Considera que o interesse da própria empresa é autônomo e
hierarquicamente superior aos interesses dos acionistas – e esta é a razão das maiores
críticas que esta teoria sofreu.
319
NUNES, Pedro. Dicionário..., p. 511.
124
A teoria da empresa acionária nega a titularidade de interesse s pela empresa,
preconizando a existência de um “interesse comum” com diversos titulares – acionistas,
membros da administração, credores, trabalhadores, seus dependentes. Esses
diversos titulares teriam seus interesses coordenados na empresa.
A teoria da
pessoa em si (Person sich) se baseia na concepção
organizacionista e considera o interesse social como o interesse da sociedade
enquanto ente distinto de seus membros (acionistas), exigindo também a tutela do bem
comum. A personalidade jurídica, serviria, assim, para os fins das relações dos grupos
com os terceiros, mas não incidiria no âmbito interno da sociedade, cujo patrimônio é
comum aos sócios. Não considera, entretanto, o interesse da empresa como externo à
sociedade (distinguindo -se, assim, da teoria da empresa em si).
A teoria da instituição propriamente dita projeta instituições de direito público no
direito comercial para explicar a constituição das sociedades anônimas. A instituição
seria uma organização social, estável, em relação à ordem gera l das coisas, cuja
permanência é assegurada por um equilíbrio de forças ou por uma separação de
poderes, e que constitui, por si mesma, um estado de direito. A instituição se distinguiria
do contrato, pois nela o consentimento dos membros restringe -se à aceitação da
disciplina, sem preocupação imediata dos resultados de sua atividade, ao passo que no
contrato o objeto são os atos dos contratantes, implicando, desta forma, em resultados
(objetivos especulativos).
As concepções institucionalistas norte -americanas consideram que o interesse
social não se confunde com os interesses exclusivos dos acionistas e os
administradores da companhia são, antes, fiduciários da empresa que mandatários dos
acionistas. A companhia desempenha um papel na sociedade – é instrumento, é órgão
da sociedade, deve exercer um serviço social, e não simplesmente distribuir lucros a
seus acionistas.
As teorias contratualistas, por sua vez, defendem que a sociedade anônima
consiste numa relação contratual, na qual os únicos interesses s eriam os dos
contratantes, ou seja, dos sócios.
Das teorias contratualistas, por sua vez, podem ser destacadas: (i) a do
interesse comum dos sócios (atuais); (ii) a do interesse comum dos sócios atuais e
125
futuros à eficiência da empresa social; (iii) do i nteresse comum como o “interesse dos
sócios à eficiência da empresa e à distribuição de lucros e dividendos”; (iv) do interesse
comum como “conceito relativo”; e (v) do interesse comum como “qualquer relação de
solidariedade entre interesses individuais”.
A primeira vertente acima defende que o interesse social seria o interesse
comum dos sócios atuais, enquanto sócios ( uti socii), ou seja, o interesse comum ex
causa societatis decorrente do status socii dos sócios atuais. Outra corrente defende
que tal interesse comum seria tanto o dos sócios atuais quanto futuros, de forma que o
interesse social seria típico, não mudando com a variação dos sócios.
A par destas, existe a que defende que o interesse comum dos sócios é aquele
voltado à eficiência da empresa e à distribuição de lucros e dividendos, considerando
relevante tanto o escopo -meio (caráter instrumental da empresa) como o escopo -fim
(lucros). A que compreende o interesse comum como “conceito relativo”, afastando a
idéia de contraposição rígida entre interesse social e extra -social.
Ainda nas correntes contratualistas, existe uma vertente que defende a visão do
interesse comum como qualquer relação de solidariedade entre interesses individuais.
O interesse social não constituiria interesse típico dos sócios uti socii, identificando-se
tal interesse em qualquer relação de solidariedade entre os interesses individuais dos
acionistas.
Fala-se, ainda, a par das teorias anteriormente referidas, na “análise econômica
do Direito” e na teoria do “contrato or ganização” (ou institucionalismo organicista).
As teorias clássicas da análise econômica do Direito vêem a empresa como um
feixe de contratos, ou seja, como subscritora de uma gama de contratos com os sócios,
os fornecedores, os trabalhadores, preocupando -se, claramente, em relegar a segundo
plano as formas jurídicas para centrar -se nas econômicas. Essa preocupação toma
relevo na parte seguinte da teoria: a determinação do fundamento do controle interno
da empresa.
Nesta perspectiva jurídico -econômica, surgiu a análise a partir da teoria do
contato organização, que considera que o interesse social é o interesse à melhor
organização possível do feixe de relações envolvidas pela sociedade, esse jamais
poderá se identificado com o interesse à maximização dos lucros ou com o interesse à
126
preservação da empresa. Como conseqüência desta teoria, a regra de conflito tenderia
a eliminar o conflito e não a fazer o acionista descontente retirar -se da sociedade.
Cada uma destas teorias (e suas subdivisões), por suas peculiaridades, quando
aplicadas, levam a conclusões distintas quanto à existência e a solução de conflitos de
interesses nas sociedades anônimas abertas.
Atualmente, no Brasil, tem despontado as teorias (ou concepções) que
consideram o interesse social co mo o interesse comum dos sócios, enquanto tais,
sendo relevantes a manutenção da empresa, a lucratividade, a distribuição de lucros
(ou a formação de reservas, conforme a situação econômica da empresa), e, ainda, os
interesses dos empregados, da comunidade , do desenvolvimento regional, da
preservação e recuperação do meio ambiente, dentre outros, revelando assim, a
importância da empresa no cenário sócio -econômico, e reconhecendo -lhe a
necessidade de observância da sua função social 320.
A empresa, sobretudo as grandes empresas de capital aberto, deixam de ser
vistas como mero instrumento especulativo ou voltado à satisfação de interesses
meramente
egoísticos,
passando
a
ser
reconhecidas
como
essenciais
e
funcionalizadas.
Desta forma, sendo o interesse social visto tanto em sentido estrito (interesse
comum dos sócios enquanto tais) quanto lato (interesse social funcionalizado), revela se que a condução da atividade da empresa deve estar voltada também à
concretização da função social, e o voto – elemento fundamental ao direcionamento da
empresa – ser exercido em observância a tais interesses, sob pena de restar
configurada situação de conflito de interesses ou, conforme o caso, abuso do direito de
320
Neste sentido, SIMIONATO ( Sociedades..., p. 145) esclarece: “A Lei das S.A., procurou conciliar os
interesses dos acionistas com o interesse social na área de distribuição de dividendos, reservas, e o
direito de voto. Foi, portanto, través da legislação acionária que se ampliou a responsabilização do
controlador, responsabilizando -se, inicialmente o administrador – como no Dec.-lei 2.627/40, para
alcançar o regime atual, que acresce deveres a serem cumpridos pelo con trolador, através da função
social da empresa e do bem público.”. Mais adiante afirma: “No Brasil a legislação societária tende à
consagração da teoria do Fuhrerprinzip. Isto não significa a adaptação completa da teoria da instituição
ou da empresa em si. Quando a Lei das S.A. coloca o controlador no centro da questão, ela esta
aderindo ao perfil subjetivo da empresa, e não ao perfil institucional ou corporativo. Isto decorre,
obviamente, do sistema capitalista da livre -iniciativa em que é garantindo (sic.) o direito de propriedade
particular (CF, art. 5º, XXII; e 170, II). O empregado e a coletividade não foram chamados a participar da
empresa, internamente, e são meros destinatários de normas protetoras, as quais devem ser cumpridas
pelo próprio controlador, se ele assim desejar.”.
127
voto. Neste sentido, vale registrar que a Constituição de 1967, t al qual a Constituição de
1988, já consagrava o princípio da função social da propriedade quando da edição da
Lei das Sociedades Anônimas (Lei 6.404/76).
Por sua vez, sob a ótica do direito civil, observou -se que o direito de
propriedade – no qual, como visto na Parte I deste estudo, insere -se a titularidade de
ações – é também funcionalizado, devendo observar suas finalidades econômicas e
sociais, restando coibido seu exercício abusivo 321.
Assim, tendo como paradigma esta concepção funcionalizada da empresa e da
titularidade de ações, para o prosseguimento deste estudo, passa -se a analisar alguns
dispositivos da Lei 6.404/76, que versam sobre o abuso do direito de voto e o conflito
de interesses.
321
GABER (El cesarismo..., p. 80) esclarece que a invocação da fraude, da má -fé, do abuso de poder e
do conflito de interesses aumentam a possibilidade dos tribunais analisarem as condutas opressivas.
128
PARTE III
A TUTELA DO INTERESSE SOCIAL NAS DELIBERAÇÕES
Notas Introdutórias
As sociedades por ações não constituem “(...) simples instrumentos de ordem
legal, através dos quais se realizam transações de natureza privada.”. Embora a
sociedade por ações ainda seja utilizada para esse fim, ela “(...) adquiriu signif icação
muito mais ampla. O acionariato, com efeito, tanto constitui uma forma de domínio da
propriedade, como, por outro lado, um modo de se organizar a vida econômica” .322.
Estas assertivas, feitas por BERLE e MEANS em 1957, retratam a importância
das sociedades anônimas no cenário econômico da época - importância que foi
potencializada, a partir de então, passando as sociedades anônimas, sobretudo as
abertas, a estarem cada vez mais no centro da economia, revelando uma função social
a ser cumprida.
Assim, conforme esclarecido nas Partes I e II deste estudo, a empresa não é
mais uma simples produtora ou transformadora de bens que coloca no mercado. “É,
antes de tudo, um poder. Representa uma força sócio -econômica-financeira
determinada, com uma enorme pot encialidade de emprego e expansão que pode
influenciar de forma decisiva o local em que se encontra.” 323.
Não se pode, portanto, conceber uma total e completa liberdade dos
proprietários de bens de produção, pois “(...) o uso desses bens não mais configura
exercício de poder sobre uma coisa, mas passou a se colocar como domínio da
vontade do proprietário sobre outras pessoas.” 324.
Desta forma, ao se definir o que constitui interesse social, deve -se ter em mente
a função social da empresa, que deverá ser obse rvada quando do exercício do direito
322
BERLE JR., Adolf A. MEANS, Gardiner C. A propriedade privada..., p. 17
PAULO ARNOLDI, citado por CARLA OSMO ( Pela máxima efetividade..., p. 279).
324
Pela máxima efetividade..., p. 279.
323
129
de voto325. E é sobre o exercício do voto, à luz da Lei das Sociedades Anônimas, que
versa a Parte III deste estudo.
O direito de voto 326 é regulamentado por diversos dispositivos da Lei das S/A,
dos quais interessam para a análise proposta (sem descurar da importância de outras
normas) os artigos 115, 116 e 118 da referida lei 327.
O artigo 115 da Lei das Sociedades Anônimas trata a respeito do abuso do
direito de voto, da vedação ao exercício do voto, e do conflito de inter esses, dirigindo-se
aos acionistas em geral (detentores de ações com direito de voto), inclusive
controladores.
O artigo 116, por sua vez, trata a respeito dos deveres do acionista controlador,
dentre os quais o de direcionar o seu poder (de controle) para o atendimento da função
social da empresa.
O artigo 118, por seu turno, trata a respeito do acordo de votos.
Não serão objeto de considerações questões específicas vinculadas à
responsabilidade dos administradores das sociedades anônimas tendo em vista a
vastidão do tema, que merece ser abordado em oportunidade específica.
Assim, passa-se, a seguir, a tratar do abuso do direito de voto e do conflito de
interesses, à luz do artigo 115 da Lei das S/A, e, na seqüência, a apresentar algumas
considerações sobre o artigo 116 e o artigo 118 da aludida lei.
325
Importante destacar que não apenas no direito brasileiro são vistas restrições e até mesmo veda ções
ao exercício do direito de voto. No direito português, por exemplo, EDUARDO DE MELO LUCAS
COLEHO (A formação das deliberações... , p. 59-60) observa: “Situações particulares podem, de resto,
determinar a quiescência e, mesmo, a exclusão do direito de voto. (...) O mesmo se diga quando na
deliberação vai implicado um conflito de interesses entre a sociedade e o acionista. O Código define
quatro casos típicos de conflito no n. 6 do artigo 384º (...)”.
326
Quanto às ações gravadas, segundo BULGARELLI ( Manual das sociedades..., p. 203), o tratamento a
ser dado em vista da lei seria o seguinte:
“1. ações empenhadas; (sic.) o acionista conserva o seu direito de voto, admitindo -se, contudo,
estabelecer no contrato que o acionista não poderá, sem consentimento do credor pignoratício, votar em
certas deliberações;
2. ações alienadas fiduciariamente ; (sic.) o credor não poderá exercer o direito de voto, e o devedor, que
será obviamente o acionista, somente poderá exercê -lo nos termos do contrato;
3. ações gravadas com usufruto; (sic.) somente se poderá exercer mediante prévio acordo entre o
proprietário e o usufrutuário, se não for regulado no ato de constituição do usufruto.”
327
As normas procedimentais para o exercício do direito de voto, para a realização de assemb léias, e
outras que não as aqui mencionadas não serão objeto de considerações, nesta oportunidade, por
extrapolarem o objeto deste estudo.
130
Capítulo 1 - O abuso do direito de voto
O caput do artigo 115 328 da Lei das S/A (mantido pela reforma da Lei
10.303/01) prevê a vedação ao exercício abusivo do direito de voto e, ainda, que o voto
deve ser exercido no interesse da companhia não podendo, portanto, ser emitido em
conflito de interesses (a respeito do qual se tratará em capítulo subseqüente).
Seção 1 – O abuso do direito de voto
A análise dos casos de abuso no exercício do direito de voto deve ser feita à luz
da teoria do abuso do direito 329, a respeito da qual já se tratou brevemente na Parte II
deste estudo (ao se abordar a aplicação do artigo 1.228, § 2º do Código Civil).
O abuso do direito é, em síntese, nas palavras de LEÃES, “(...) um desvio no
seu exercício regular, seja por faltar ao titular legítimo interesse para exercê -lo daquele
modo; seja porque a sua destinação econômica e social tenha sido frustrada.”
330
.
O conceito de abuso de direito “(...) prende -se à noção do exercício dos direitos
e resulta de uma concepção dos direitos subjetivos que não mais os vê como
absolutos, quando podem ser utilizados pelos titulares como lhes aprouver, certo de
que aquele que age dentro de seu direito a ninguém prejudica ( neminem laedit qui suo
iure utitur). Não se admite, na verdade, que o indivíduo conduza a utilização de seu
direito até o ponto de transformá -la em causa de prejuízo alheio. (...) Daí a regra da
relatividade dos direitos , encarados como prerrogativas que, por sua função social, o
Direito protege, mas que ‘só os protege quando exercidos segundo a sua finalidade
social’. Imprimida uma direção contrária ou disforme com a função e o espírito desse
328
“Art. 115 – O acionista deve exercer o direito a voto no interesse da companhia; considerar-se-á
abusivo o voto exercido com o fim de causar dano à companhia ou a outros acionistas, ou de obter, para
si ou para outrem, vantagem a que não faz jus e de que resulte, ou possa resultar, prejuízo para a
companhia ou para outros acionistas. (...)” – destacou-se.
329
A respeito da qual são tecidas breves considerações, sem a pretensão de esgotar a matéria.
Vale a pena registrar que até o advento do Código Civil de 2002, existiam discussões doutrinárias acerca
de ser o abuso do direito uma ilegalidade. Hoje não existem mais dúvida s acerca de ser o abuso do
direito um ato ilícito, tendo em vista a previsão contida no artigo 187 do Código Civil: ´ Art. 187. Também
comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê -lo, excede manifestamente os limites impostos
pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.”
330
Conflito de interesses..., p. 16.
131
direito ocorre o abuso, visto que o autor excedeu o limite do exercício regular desse
direito (art. 160, I, a contrário).”331.
O direito subjetivo “(...) implica na conjugação desses dois elementos: é o
interesse protegido que dá alguém o poder de agir, em conformidade com o fim
econômico e social que lhe foi atribuído. Daí dizer Josserand que ‘todos os di reitos
subjetivos não são mais, afinal, do que direitos-função, que devem permanecer no
plano da finalidade a que correspondem sob pena de o seu titular cometer um desvio
ou abuso do direito.” 332.
Assim, a teoria do abuso do direito parte da premissa de que nenhum direito é
absoluto – todo direito deve respeitar sua finalidade social, sob pena de se configurar o
abuso. Ademais, o direito deve ser exercido de forma legítima, sem excessos e
observando a finalidade para o qual foi concebido (sua destinação soci al e econômica).
Existem basicamente duas correntes doutrinárias a respeito da teoria do abuso
do direito: a corrente subjetiva e a objetiva 333.
Para a primeira, há abuso quando o ato é praticado com mera intenção de
prejudicar terceiro e sem qualquer inter esse para o agente. Para a segunda, ocorre
abuso quando o titular do direito o utiliza em desacordo com a finalidade social para a
qual o direito foi reconhecido.
Assim, deixadas de lado as diversas discussões teóricas a respeito do tema
334
,
o abuso do direito pressupõe basicamente o desvio de finalidade ou a transgressão de
limites impostos pela boa -fé e/ou pelos bons costumes (conforme delineado pelo
Código Civil de 2002), ou ainda pela transgressão da sua função social, podendo
prescindir, ou não, da subje tividade do agente para sua configuração.
Neste sentido, observa -se que o caput do artigo 115 da Lei das S/A (mantido
pela reforma da Lei 10.303/01), ao tratar do abuso do direito, estabelece genericamente
duas condutas que, se perseguidas pelos acionista s votantes, configuram o referido
abuso. São elas, o exercício do voto com o fim de: (i) causar dano à companhia ou a
331
LEÃES, Conflito de interesses..., p. 16.
LEÃES, Conflito de interesses..., p. 17.
333
Sem prejuízo de outras classificações e teorias desenvolvidas a respeito da ma téria.
334
Este estudo não tem por finalidade dissertar sobre o abuso do direito, que mereceria análise
específica, tendo em vista a vastidão do tema.
332
132
outros acionistas; e de (ii) obter, para si ou para outrem, vantagem a que não faz jus e
de que resulte (ou possa resultar) prejuízo para a companhia ou para outros acionistas.
A primeira hipótese trata do voto emulativo, ou seja, do voto que tem o
propósito de causar prejuízo a terceiros, no caso, à companhia ou a outros acionistas.
Tal prejuízo pode ser real ou potencial, material ou moral .
THELMA DE MESQUITA, analisando o assunto, pondera a respeito do
posicionamento de COMPARATO de que embora o dispositivo fale em prejuízo à
companhia ou a outros acionistas, em relação a estes a lesão seria apenas indireta, e
dissente deste entendimento, pois, por exemplo, um aumento de capital injustificado
pode causar prejuízo ao acionista que não o subscrever 335. A rigor, parece que nada
impede que o voto possa trazer prejuízos a outros acionistas, dependendo do abuso
que seja cometido.
A segunda situação prevista é a obtenção de vantagem indevida pelo votante,
para si próprio ou para terceiro, que acarrete ou possa acarretar prejuízo à companhia
ou a outros acionistas.
Assim, exige-se, cumulativamente, para a caracterização do abuso, além da
vantagem indevida, a existência de prejuízo, ainda que potencial, à companhia ou a
outros acionistas.
Note-se que a vantagem indevida pode ser tanto para o acionista votante,
quanto para um terceiro, ainda que alheio à sociedade 336. VALLADÃO esclarece, com
base no entendimento de COMPARATO, que 337:
“As vantagens indevidas que tendem a derivar do voto abusivo consistem, para
Comparato, em ‘vantagens que não são normalmente atribuídas a todos
quantos se encontram na mesma situação jurídica perante a companhia; ou
seja, uma violação do princípio de igualdade relativa que consubstancia a
justiça distributiva, como assinalamos’. ‘Assim é que’, exemplifica o mestre, ‘o
335
Governança..., p. 66-67.
VALLADÃO (Conflito de interesses..., p. 85-86) comenta: “No tocante aos benefi ciários do voto
abusivo, a norma legal também indica pessoas alternativas, o próprio votante ou terceiros, evitando,
assim, no dizer de Mauro Penteado, ‘as objeções que soem ser levantadas nos casos freqüentes em que
a opressão aos minoritários é realizada através de interpostas pessoas, físicas ou jurídicas’.”
337
Conflito de interesses..., p. 85-86.
336
133
acionista controlador pode auferir, como resultado da deliberação impugnada,
benefícios econômicos diversos da simples distribuição de dividendos ou
bonificações em dinheiro. Ora, embora seja controlador, ele não deixa de ser
acionista, não podendo portanto pretender, nessa qualidade, vantagens
diversas das que competem, por lei, aos demais acionistas.’.”
As vantagens indevidas são, portanto, aquelas que implicam em desequilíbrio,
em violação ao princípio de igualdade relativa. Contudo, não basta que a vantagem seja
indevida. Para a caracterização do abuso do direito de voto deve existir prejuízo – ou
potencialidade de prejuízo – para a companhia e/ou para outros acionistas.
Analisando as duas situações apresentadas acima (previstas no artigo 115 em
comento), CARVALHOSA observa que a lei fala em “ fim de causar dano (...)”, o que
significa que a lei leva em conside ração a finalidade, ou seja, “(...) a intenção do
acionista no exercício do direito de voto.”, mas considera que a intenção do votante não
deve ser subjetivamente perquirida, bastando que a deliberação vise alcançar fins que
repugnam ao sentido jurídico 338.
BORBA considera que o voto abusivo, “(...) envolve sempre um elemento
subjetivo – o dolo – caracterizando-se pela intenção deliberada do acionista de causar
dano à companhia ou a outros acionistas ou de obter vantagem indevida para si próprio
ou para terceiros, em detrimento da companhia ou outros acionistas.”
339
.
VALLADÃO pondera 340:
“No que diz respeito ao elemento subjetivo do voto abusivo, há uma diferença
no regime legal, como já se salientou: no caso do voto ser exercido ‘com o fim
de causar dano à comp anhia ou a outros acionistas’ – voto ad aemulationem –
338
Comentários..., vol. II, p. 404.
“Conforme observa ainda Carvalhosa ao tachar de abusivo o voto proferido com o fim de causar dano à
companhia, com o fim de obter vantagem sem justa causa, ‘a lei leva em conta a finalidade, ou seja, a
intenção do acionista no exercício do direito de voto’. Em todos os casos, pois, em que houver desvio de
finalidade do voto, ou seja, quando o acionista votar de modo contrário a o interesse da companhia, que
não é senão, como se viu, o interesse comum dos sócios uti socii, aliado ao prejuízo atual ou potencial
para aquela ou para outros acionistas, dá -se o abuso do direito (ou se se preferir, do poder) de voto.”
(VALLADÃO, Conflito de interesses..., p. 83-84).
339
BORBA, Direito societário, p. 306-307.
340
Conflito de interesses..., p. 85-86.
134
verifica-se, segundo Comparato, ‘uma situação em tudo análoga ao abuso no
exercício do direito de propriedade, em que prevalece, sobre o desejo de auferir
vantagens pessoais, o intento de prejudicar te rceiros’; na hipótese de o voto ter
sido exercido com o fito de obter, ‘para si ou para outrem, vantagem a que (o
votante) não faz jus e de que resulte, ou possa resultar, prejuízo para a
companhia ou para outros acionistas’, a tônica é colocada na vantage m
indevida visada, assumindo o votante, entretanto, o risco de produzir o prejuízo
para o patrimônio social e individual dos sócios.”
Assim, na dicção deste doutrinador, é possível considerar que, na hipótese do
voto emulativo a responsabilidade é subjet iva, ao passo que, no caso de auferir
vantagem indevida, seria de certa forma “culposa”, no que trata da possibilidade de
dano e objetiva no que diz respeito à obtenção da vantagem.
Para BATALHA, esta segunda hipótese (vantagem indevida) constitui um “(.. .)
desvio intencional da finalidade do direito de voto para prejudicar a sociedade ou outros
acionistas, não apenas um intuito emulativo, mas precipuamente para auferir vantagens
com o anormal exercício do legítimo direito de voto” – destacou-se341.
THELMA DE MESQUITA, por sua vez, considera que, nesta situação, bastaria,
em princípio, a obtenção do benefício (a que não se faz jus) para que esteja
configurado o abuso, não havendo necessidade de se comprovar a existência de
intenção lesiva 342.
Observa-se, portanto, que, quanto ao voto emulativo, a doutrina tende a
considerar a necessidade de presença do elemento subjetivo para a caracterização do
abuso do direito. Já na segunda situação descrita (vantagem indevida) parece não
existir uma uniformidade de entendi mentos, havendo corrente que entenda tratar -se de
(i) fato objetivamente apreciável, (ii) que compreenda a necessidade de presença de
elemento subjetivo e, ainda, (iii) que considere que este elemento subjetivo deva ser
considerado de forma objetiva (verif icando se a deliberação visa fins que repugnam ao
sentido jurídico).
341
342
BATALHA, Comentários..., p. 557.
Governança..., p. 66-67.
135
Em que pese as divergências doutrinárias existentes, parece razoável
considerar que, em vista da dicção da lei - “com o fim de causar dano (...) ou de obter
(...) vantagem a que não faz j us e de que resulte ou possa resultar prejuízo (...)” - tanto
no caso do ato emulativo, quanto no da obtenção da vantagem indevida deva estar
presente o elemento subjetivo.
Seção 2 – Conseqüências do abuso do direito de voto
Prosseguindo na análise do ar tigo 115, observa-se que ele contém quatro
parágrafos (vigentes), dentre os quais, destaca -se, no tema do exercício abusivo do
direito de voto, o parágrafo 3º, que dispõe que: “O acionista responde pelos danos
causados pelo exercício abusivo do direito de voto, ainda que seu voto não haja
prevalecido”.
Assim, determina a lei que nos casos de exercício abusivo do direito de voto,
seja por qualquer uma das hipóteses previstas (voto emulativo ou visando a obtenção
de vantagem a que não faz jus e de que resulte ou possa resultar prejuízo para a
companhia) o votante responderá pelos danos que tenha causado.
Os danos, destaque-se, podem ser materiais e/ou morais. Em qualquer dos
casos existirá a obrigação de indenizar 343.
A legitimidade para propor a ação de respon sabilidade civil é daquele que tiver
sofrido o dano 344.
Analisando o dispositivo em questão,
BULGARELLI questiona: “(...)como
indenizar um prejuízo que não causou, quando a matéria de deliberação tenha sido
rejeitada?”. Neste esteio, afirma que o dispositi vo teria “(...) se afastado da boa doutrina
italiana, que só considera, sob este aspecto, o voto quando haja contribuído para
formar a maioria (...)” acabando por criar motivo para confusão 345.
343
Não se adentrará, aqui, na análise de questões afetas à teoria da responsabilidad e civil, nem à
questão dos prazos prescricionais para a propositura de ações de responsabilidade civil.
344
BORBA (Direito Societário, p. 318) : “O titular da indenização será aquele que sofreu as perdas e
danos: em alguns casos, a própria sociedade; em outr os, os acionistas minoritários, os empregados, a
comunidade, os investidores.”
345
Manual das sociedades..., p. 203.
136
Tal dispositivo, comenta BULGARELLI, não apresenta “soluções” pa ra o
problema apontado, sendo possível considerar, à luz da legislação civil, que inexistindo
dano a reparar, não haverá que se falar em responsabilidade civil, ou seja, em
reparação.
Ocorre que pode, por exemplo, ocorrer que um acionista ao votar em abuso do
direito de voto (ainda que seu voto não venha a prevalecer), acaba divulgando notícia
inverídica a respeito de posição ou situação da companhia e, com esta notícia, acaba
prejudicando o resultado da empresa ou sua posição e confiabilidade no mercado.
Neste sentido, CAVALHOSA 346 afirma:
“Pode o acionista, no interesse próprio ou de alguma sociedade concorrente,
argüir em assembléia abusivamente contra a administração ou de forma
contrária à condução da política empresarial adotada pelos controladores (a rt.
118). Essas manifestações, ainda que sumariamente constantes da ata (art.
130), podem trazer prejuízos morais e materiais à companhia, inclusive
repercutindo no seu crédito ou nas suas operações comerciais.
Do mesmo modo, poderá o acionista, com o intu ito de especular com as ações
da companhia, apresentar objeção ou proposição para o efeito de voto na
assembléia geral, com o fito de provocar a alta ou a queda da cotação das
ações no mercado.
Por sua vez, o voto não prevalecente abusivo pode também visar a induzir a
compra das ações pela companhia (art. 30) ou pelo grupo majoritário
controlador (art. 118).”.
Como
se
vê,
embora
aparentemente
não
tivesse
funcionalidade
a
responsabilidade para os casos em que a deliberação não tenha prevalecido, observa se que nem sempre há a necessidade de sua prevalência para que reste configurado
algum dano e que, portanto, tenha lugar a aplicação da disciplina da responsabilidade
civil.
346
Comentários..., 2003, p. 460-461.
137
De outro modo, seria possível perquirir, ainda, quanto à utilidade da previsão do
abuso do direito de voto para os casos em que não restar configurado dano (ou
prejuízo), mas em que este seja potencial (vê -se, do caput, que no caso de vantagem
indevida exige-se ao menos a potencialidade de dano). Afinal, se só é indenizável o
dano existente – e dano potencial não é dano existente – seria sem aplicabilidade
prática a disposição do abuso do direito de voto no caso de existir apenas
potencialidade de prejuízo?
O Superior Tribunal de Justiça, no Recurso Especial 10836 (DJU 23/03/92), que
teve como relator o Ministro Cláudio Santos, proferiu a seguinte ementa:
“Direito societário. Assembléia. Ratificação de atos praticados em reunião
anterior. Possibilidade. Abuso de poder. Falta de prova do dano. Não contraria
os arts. 145 e 148 do Cód. Civil d ecisão assembleial de ratificação de
deliberação anterior de assembléia realizada com irregularidades. Para a
caracterização de abuso de poder de que tratam os arts. 115 e 117 da lei das
sociedades por ações indispensável a prova do dano .” (destacou-se)
De fato, parece que, na hipótese de inexistir dano, restaria prejudicada a
responsabilização civil, a menos que o dano – hipotético e futuro – viesse a se
concretizar, tornando-se, assim, indenizável 347. Poderia, entretanto, ser avaliada no
caso concreto, a possibilidade de se compelir o acionista votante a tomar as cautelas
necessárias (se possíveis) para que o dano não venha a se concretizar ou, ainda, a
eventual configuração de dano moral (ainda que sem prejuízo material)
348
.
347
“(...) Ora, tenho o entendimento de que neste momento - o da distribuição - é que haveria que se caract erizar os alegados lucros
cessantes, posto que, por óbvio, é aí que se dá a venda do produto, ou o seu faturamento. Até esse momento, a meu sentir, só se poderia
falar em dano potencial, mas não concreto e indenizável, como exige a ação proposta. Danos fut uros ou hipotéticos, não são indenizáveis.
(...)” (excerto de decisão proferida pelo Tribunal de Justiça do Estado do Paraná, no julgamento da Apelação Cível n. 126.517 -2, tendo como
Relator o Juiz convocado Cunha Ribas).
348
Súmula 227 do STJ – “A pessoa jurídica pode sofrer dano moral”.
“(...) 1. Como se trata de algo imaterial ou ideal, a prova do dano moral não pode ser feita através dos
mesmos meios utilizados para a comprovação do dano material. Por outras palavras, o dano moral está
ínsito na ilicitude do ato praticado, decorre da gravidade do ilícito em si, sendo desnecessária sua efetiva
demonstração, ou seja, como já sublinhado: o dano moral existe in re ipsa. Afirma Ruggiero: ‘Para o dano
ser indenizável, 'basta a perturbação feita pelo ato ilícito nas relações psíquicas, na tranqüilidade, nos
sentimentos, nos afetos de uma pessoa, para produzir uma diminuição no gozo do respectivo direito.’
(...)” (STJ – RESP 608918/RS – Relator: Ministro José Delgado – DJ 21/06/04, p. 176)
138
A respeito do assunto seria possí vel ponderar, ainda, a exigência de que o
acionista entregasse as vantagens indevidas à empresa ou aos demais acionistas.
Contudo, a Lei das Sociedades Anônimas não prevê expressamente esta obrigação e,
parece, de todo modo, que não seria o caso de se perm itir o “rateio” das vantagens
ilegitimamente obtidas, locupletando -se, todos, com elas.
Além da responsabilidade civil, referida acima, VALLADÃO destaca a existência
de entendimento no sentido de que o voto abusivo não acarretaria a anulação, mas tão
somente a responsabilização do acionista – opinião da qual discorda 349. Neste sentido,
afirma350:
“A sanção estabelecida pela lei, portanto, é a anulação da deliberação tomada
em decorrência do voto abusivo ou conflitante, além da reparação dos prejuízos
causados e da transferência das vantagens auferidas para a companhia. Se o
voto não prevalecer na deliberação, então, sim, até por uma questão de lógica,
a sanção consistirá apenas na reparação dos prejuízos causados.”
LAMY FILHO informa que hoje não existem dúv idas no direito brasileiro quanto
à anulabilidade de deliberação da Assembléia Geral proferida com violação ao art. 115
da lei societária. As deliberações da Assembléia Geral são negócios jurídicos –
declarações coletivas de vontade destinadas a produzir e feitos jurídicos conforme a
lei351.
ULHÔA, por sua vez, pondera:
349
Que teria sido esposad o por GUERREIRO (vide nota 223 – VALLADÃO, Conflito de interesses..., p.
99).
350
Conflito de interesses..., p. 99.
351
LAMY FILHO, ob.cit., p. 240.
WILSON BATALHA (Op.cit., p. 558) esclarece: “Da mesma maneira, constitui ilegalidade o voto de
acionista em matéria em que se ache diretamente interessado (desde que esse interesse não seja
legítimo) ou em que tiver interesse conflitante com o da companhia. A existência de interesse em conflito,
objetivamente, cria o impedimento para votar. Não se trata de voto abusivo, mas de voto ilegal, por
ocorrente o impedimento. Aqui, infringe -se uma proibição legal, viola -se um impedimento; no voto
abusivo, deturpa-se o sentido do voto, desvia -se o voto de sua finalidade natural. O voto abusivo acha-se
eivado objetivamente e é nulo.”.
Quanto às causas de anulabilidade, a doutrina distingue entre vícios objetivos – que referem ao objeto ou
conteúdo da deliberação – e subjetivos – relativos às manifestações de vontade individual que compõem
a deliberação, entre os quais se inclu i o direito de voto que viola a lei (LAMY FILHO, op.cit., p. 241).
139
“Em qualquer das duas modalidades de exercício irregular do direito de voto, o
acionista responde, civilmente, pelos prejuízos que ocasionar. A propósito,
consigna a lei que o voto abusivo ge ra responsabilidade civil, mesmo que não
tenha prevalecido, sendo certo que a mesma circunstância também se poderia
estender ao conflitante. Mas, se são iguais as conseqüências para o acionista
votante, tanto no caso de abuso como no de conflito de interes ses, no que diz
respeito à validade da deliberação assemblear, deve -se atentar à diferença de
tratamento da lei. O voto abusivo nunca é causa de invalidação da assembléia,
ou do resultado da votação; já o conflitante, se foi essencial para a deliberação,
pode comprometer a validade desta.”
Compreende ULHÔA, portanto, que o voto abusivo não enseja a anulabilidade
da deliberação assemblear.
Vê-se, assim, que a doutrina não é a respeito da possibilidade de anulação de
deliberação para a qual o voto abusivo t enha sido essencial. Uma corrente doutrinária
afirma que a deliberação assemblear constitui negócio jurídico anulável pela via judicial,
no prazo prescricional, ficando aquele que obteve o benefício indevido obrigado a
entregar à sociedade as vantagens per cebidas352. Outra corrente defende a
inaplicabilidade da anulação da deliberação, em vista de não ter sido ela prevista pela
lei para as hipóteses de abuso do direito de voto.
De toda feita, parece merecer razão a assertiva de ULHÔA: a Lei das S/A não
faz referência expressa à possibilidade de anulação de deliberação em função de voto
abusivo.
Sendo assim, “(...) Valverde vê a existência ou não de interesse contrário ou oposto como uma questão
de fato, a ser apreciada casuisticamente” (LEÃES, Conflito…, p. 32).
352
“Essa qualificação de anulabilidade importa em dizer que o negócio jurídico produzirá todos os seus
efeitos até ser declarada, em juízo, ineficaz, a partir da sentença ( ex nunc). Por outro lado, a
anulabilidade implica em que o negócio jurídico poderá ser ratificado, incl usive por outro órgão da
companhia, como a assembléia. Por outro lado, não sendo um princípio de ordem pública, mas de
interesse privado, faz-se mister, para lograr a anulação, que se provem “as vantagens que o
administrador dele tiver auferido, e que será obrigado a transferir para a companhia” (§ do art. 156), isto
é, se prove o interesse lesado (...)” (LEÃES, Conflito..., p. 32)
140
Capítulo 2 – A proibição do exercício do voto e o conflito de interesses
Seção 1 – A proibição do exercício do voto
O artigo 115 da Lei das Sociedades Anônimas prevê , conforme referido
anteriormente, vedação a que o voto seja exercido em conflito de interesses. A par
desta previsão genérica, constante do caput do artigo, estabelece, ainda, no parágrafo
1º, vedações específicas, determinando situações em que o acionist a está impedido de
votar353. São elas a vedação ao exercício do direito nas deliberações da assembléia geral relativas:
 ao laudo de avaliação de bens com que o acionista venha a concorrer para a
formação do capital social;
 à aprovação de suas contas como ad ministrador;
 em quaisquer outras que puderem beneficiá -lo de modo particular; ou, ainda,
 em que tiver interesse conflitante com o da companhia.
As duas primeiras hipóteses elencadas no §1º do artigo 115 - laudo de
avaliação de bens na formação do capital social e aprovação das contas como
administrador - constituem verdadeiras hipóteses de divieto di voto (vedação ao
exercício do voto) 354.
353
“Art. 115. (...)
§ 1º o acionista não poderá votar nas deliberações da assembléia -geral relativas ao laudo de avaliação
de bens com que concorrer para a formação do capital social e à aprovação de suas contas como
administrador, nem em quaisquer outras que puderem beneficiá -lo de modo particular, ou em que tiver
interesse conflitante com o da companhia. (...)”
354
Neste sentido: THELMA DE MESQUITA ( Governança..., p. 69).
Estas hipóteses não são, contudo, absolutas. Com relação ao laudo de avaliação de bens, por exemplo,
o próprio artigo 115, em seu parágrafo 2º, prevê que, no caso de todos os subscritores serem
condôminos de bem com que concorrerem para a formação do capital social, o laudo poderá ser por eles
aprovado. Caso venham a causar danos, por culpa ou dolo, à companhia, aos acionistas ou a terceiros,
os subscritores do aumento (e os avaliadores) poderão ser responsabilizado s civil e criminalmente,
responsabilidade que, no caso do condomínio, será solidária de todos os subscritores. É o que
estabelece o artigo 8º, § 6º da Lei 6.404/76:
“Art. 8º A avaliação dos bens será feita por 3 (três) peritos ou por empresa especializada, nomeados em
assembléia-geral dos subscritores, convocada pela imprensa e presidida por um dos fundadores,
instalando-se em primeira convocação com a presença desubscritores que representem metade, pelo
menos, do capital social, e em segunda convocação com qualquer número.
141
Para LEÃES 355 tratam-se de hipóteses de incompatibilidade formal entre os
interesses do acionista e da sociedade. Desta feita, é possível compreender que a
situação deva ser avaliada objetivamente.
Da infringência da abstenção de voto, decorreria a nulidade do voto, dado que o
sócio, nas hipóteses previstas, não tem legitimidade para votar 356.
Neste sentido, a decisão profe rida pelo Tribunal de Justiça do Estado do
Paraná, em 22/12/99, ao julgar a Apelação Cível 070658701, que teve como relator o
Desembargador Dilmar Kessler, deixa claro tratar -se de vedação ao exercício do direito
de voto no caso de bens a serem incorporado s ao capital social:
“Aumento de capital. Subscrição em bens. Necessidade de avaliação. Proibição
do acionista subscritor votar na deliberação da assembléia o laudo de
avaliação. Acionista que não poderia votar, posto que os bens foram
destacados do seu patrimônio. Descumprimento da regra do art. 115, parágrafo
1º, da Lei 6.404/76. Existência de interesse particular da acionista controladora,
conflitante com os da companhia (...) Impõe -se que a avaliação dos bens
conferidos ao capital social se realize da forma mais correta e transparente
possível, diante da importante função assumida pelo capital social da empresa.
Por este motivo, exige a lei requisitos formais imprescindíveis, na avaliação dos
bens, que devam incorporar na companhia, consoante art. 8º da Lei 6.404/76
(...) a disposição do art. 115, parágrafo 1º, da Lei das Sociedades por Acoes,
deve ser interpretada não somente no seu sentido literal, pois na citada nroam,
(...)
§ 6º Os avaliadores e o subscritor responderão perante a companhia, os acionistas e terceiros, pelos
danos que lhes causarem por culpa ou dolo na avaliação dos bens, sem prejuízo da responsabilidade
penal em que tenham incorrido; no caso de bens em condomínio, a responsabilidade dos subscritores é
solidária.”
Assim, há que se avaliar em cada situação a eventual existência de exceção que enseje o afastamento
da referida vedação.
WILSON BATALHA (Comentários..., vol. I, p. 558) afirma: “Constitui ilegalidade o voto de acionista em
deliberações de assembléia geral relativas ao laudo de avaliação de bens com que tenha concorrido para
a formação do capital social. Também constitui ilegalidade o voto de acionista aprovando suas próprias
contas como administrador. Nessas hipóteses, o acionista não tem direito de voto. Pouco importa
perquirir o intuito do acionista ao votar. O seu voto é ilegal, objetivamente e, portanto nulo.”
355
Conflito..., p. 25.
142
que trata do descer de abstenção do voto, veda -se o voto do acionista que
possuir conflito de interesses. Modesto Carvalhosa pontifica: Há proibição legal
para o acionista que tem conflito de itneresses com a sociedade votar em
qualquer sentido, nem que seja conforme o interesse social (Comentários à Lei
das Sociedades Anônimas, Saraiva, 2ª edição, 1997, v. 2, p. 408).”.
Analisando
COMPARATO
357
especificamente
a
questão
da
aprovação
das
contas,
levanta um problema que não pode ser esquecido: o ato de
aprovação das contas de administrador através de interposta pessoa, que, diga -se,
constitui o crime do art. 177 §1º, VII do Código Penal. Parece apreciar, no caso,
situação em que o administrador é sócio da empresa controladora, que votará na
aprovação de contas.
Para o ilustre autor, embora a doutrina entenda que, para caracterizar a figura
típica, a interposição deva ter sido criada especificamente para tal efeito, ainda que não
seja o caso, a deliberação da assembléia pode ser considerada como exercício abusivo
do voto (obter, para si ou para outrem, vantagem a que não faz jus e de que result e, ou
possa resultar, prejuízo à companhia ou a outros acionistas)
358
.
A este respeito, acrescenta COMPARATO que “(...) ainda que se considere que
a sociedade controlada pelo administrador não é seu alter ego, é bem de ver que, ao
votar abusivamente pela a provação das contas desse administrador, ela o fez com o
fito de obter para este uma vantagem a que não fazia jus, daí resultando, obviamente,
um prejuízo ou possibilidade de prejuízo para a companhia.”
359
.
Portanto, ao que parece, COMPARATO entende não ser aplicável à hipótese a
disciplina da vedação ao exercício do voto, devendo a questão solucionar -se ao amparo
da vedação ao voto abusivo, tratando -se de situação em que o exercício do voto deu -se
para a obtenção de benefício a que não fazia jus o acionista .
356
Conflito..., p. 25. Cabe observar, entreta nto, que em que pese a doutrina refira à nulidade do voto, a lei
fulmina com a anulabilidade – e não nulidade – a deliberação social para a qual tenha sido ele
determinante.
357
O Poder..., p. 320 ss.
358
COMPARATO, O Poder..., p. 320 ss.
359
COMPARATO, O Poder..., p. 320 ss (p. 305 e ss da 2ª ed.).
143
Apreciando a questão em tela, o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo,
em 03/06/98, ao julgar a Apelação Cível 039796 -4 (Relator Desembargador Leite
Cintra), decidiu que o administrador não pode votar, em nome de terceiro, na aprovação
de suas contas. Confira-se360:
“Anulatória. Deliberações tomadas em assembléia geral. Admissibilidade.
Desrespeito às normas cogentes previstas nos arts. 115, §1º, e 134, § 1º, da
Lei 6.404/76, as quais visam a proteção dos acionistas impedindo que o
administrador, em seu nome ou na condição de representante de outro
acionista, como aconteceu no caso sub judice, delibere acerca das próprias
contas.”.
Quanto à
questão apontada por COMPARATO (caso da
sociedade
controladora, constituída pelo administrador), é possível obse rvar que a jurisprudência
não é uníssona a respeito do assunto. Veja -se, a título de exemplo, as seguintes
decisões proferidas pelo Tribunal de Justiça de São Paulo:
“Sociedade anônima. Assembléia geral. Anulação. Assembléia que aprovou
contas. Alegada infração ao art. 134, par. 1º da Lei das S/A. Vedação aos
administradores de votar, como acionistas ou procuradores, as contas. Quorum
e aprovação obtidos com a participação de sociedade composta por três
administradores. Hipótese em que a alegada diferencia ção entre pessoa física e
jurídica engendra ato eivado de fraude e malícia. Ação procedente. Recurso
não provido.”.
(Apelação Cível 129414 -1, Rel. Des. Toledo César, data do julgamento:
04/12/90)
“Sociedade anônima. Ação anulatória de deliberação em assem bléia. (...)
Aprovação de contas com voto de sociedade controlada pelos diretores.
Alegação de impedimento legal. Inexistência. Ação procedente. Apelação
360
LAZZARESCHI, Lei das Sociedades..., p. 150.
144
provida para julgá-la improcedente (...) Regras de impedimento ao exercício de
direitos, como todas as normas restritivas deles, não podem ter interpretação
ampliativa. Regra semelhante é de direito excepcional, como ensina Carlos
Maximiliano em ‘Hermenêutica e Aplicação do Direito’, (...), exigindo
interpretação estrita. O parágrafo único da disposição ap ontada veda o voto do
acionista em quatro hipóteses determinadas, não se estendendo o impedimento
à hipótese de aprovação de contas de diretor proprietário ou controlador da
empresa votante. A lei não ignora a hipótese de uma sociedade ser controlada
por outra, tanto que em seu artigo 246 estabelece a obrigação da sociedade
controladora reparar os danos causados por atos praticados com infração ao
disposto nos artigos 116 e 117 do mesmo diploma, isso é, com abuso de poder,
ente eles, a aprovação de contas i rregulares. Fosse a intenção dela proibir voto
Dessa espécie, a vedação seria expressamente indicada. Por isso, deve
prevalecer a lição de Rubens Requião, referida pela ré na contestação,
segundo a qual ‘o fato de acionistas ou diretores estarem impedidos
eventualmente de votar, não impede que a sociedade limitada da qual façam
parte vote em assembléia geral matéria relativa àquela do impedimento. Uma
coisa é a incompatibilidade do acionista de votar quando impedido; outra coisa
é o direito da sociedade aci onista de exercer livremente seu direito de voto
correspondente
às ações de que é titular’ ( Aspectos Modernos de Direito
Comercial, 1º volume, págs. 264/265). Esse entendimento não prejudica os
interesses dos acionistas minoritários, porque, se houver abu so de poder no ato
discutido, eles podem ser indenizados (...) A lei protege os sócios minoritários,
mas assegura a direção da sociedade aos proprietários de sua maior parcela
acionária com responsabilização pelos seus atos nas hipóteses em que os
direitos dos demais sejam vulnerados. Não se argumente que essa orientação
torna inútil o intuito legal de evitar o conflito de interesses dos votantes. Na
verdade, a preocupação da lei tem caráter mais propriamente formal do que
material, uma vez que ela não dese ja, nem o poderia fazer, tirar da maioria dos
acionistas o controle dos atos da sociedade e não desconhece que, de certa
forma, os diretores eleitos por uma maioria são sempre delegados dela. Fosse
145
a intenção da norma extinguir por completo conflito real d e interesses,
obrigatoriamente deveria impedir que a maioria, que elegeu os diretores,
julgasse suas contas.”.
(Apelação Cível 263694 -1, Rel. Des. Maurício Vidigal, data de julgamento:
01/10/96)
As distinções entre as decisões acima possivelmente decorrer am de
peculiaridades dos casos, sendo possível inferir que cada situação concreta deva ser
analisada especificamente quando tratar -se da situação em comento. De toda feita,
observa-se que, quer em uma, quer em outra hipótese, os demais acionistas – e a
própria companhia - não ficam a descoberto, restando -lhes, quando menos, a
possibilidade de pleitearem a reparação dos danos sofridos.
Ainda a respeito da aprovação de contas do administrador, vale anotar que o
Superior Tribunal de Justiça, em decisão da qual foi relator o Ministro Barros
Monteiro361, observou que a exceção à aprovação das contas pelos próprios
administradores, no caso dos diretores serem os únicos acionistas de sociedade
anônima fechada (artigo 134, §6º da Lei das S/A 362), deve ser comprovada po r quem a
361
RESP 34.220 - EMENTA: “Sociedade anônima. Deliberações assembleares declaradas nulas por
infração aos arts. 115, parágrafo 1º, e 134, parágrafo 1º, da Lei nr. 6.404, de 15.12.76. Matéria de fato
oposta pela ré. Súmula nr. 07 -STJ. Honorários advocatícios. Agravação da situação da única parte que
havia recorrido. Reformatio in pejus.
1. Alegação de que os diretores da sociedade são os únicos acionistas (art. 134, parágrafo 6º, da Lei nr.
6.404/76). Matéria de prova insuscetível de reexame na instancia excepcional (Súmula nr. 07 -STJ).
2. Agravando a condenação da ré, única recorrente, quanto ao montante da verba honorária, o acórdão
recorrido incidiu nesse ponto em reformatio in pejus.
Recurso especial conhecido, em parte, e provido.”.
362
“Art. 134. Instalada a assembléia -geral, proceder-se-á, se requerida por qualquer acionista, à leitura
dos documentos referidos no artigo 133 e do parecer do conselho fiscal, se houver, os qua is serão
submetidos pela mesa à discussão e votação.
§ 1° Os administradores da companhia, ou ao menos um deles, e o auditor independente, se houver,
deverão estar presentes à assembléia para atender a pedidos de esclarecimentos de acionistas, mas os
administradores não poderão votar, como acionistas ou procuradores, os documentos referidos neste
artigo.
(...)
§ 3º A aprovação, sem reserva, das demonstrações financeiras e das contas, exonera de
responsabilidade os administradores e fiscais, salvo erro, dolo , fraude ou simulação (artigo 286).
(...)
6º As disposições do § 1º, segunda parte, não se aplicam quando, nas sociedades fechadas, os diretores
forem os únicos acionistas.”
146
alega, sob pena de nulidade da deliberação. Tal exceção, registre -se, não é aplicável
às sociedades anônimas abertas.
Para BATALHA, além das situações descritas acima (laudo de avaliação e
aprovação de contas), as deliberações que beneficiem pesso almente o acionista
também constituem ilegalidade do voto. Neste sentido afirma 363:
“Da mesma maneira, constitui ilegalidade o voto de acionista em matéria em
que se ache diretamente interessado (desde que esse interesse não seja
legítimo) ou em que tiver interesse conflitante com o da companhia. A
existência de interesse em conflito, objetivamente, cria o impedimento para
votar. Não se trata de voto abusivo, mas de voto ilegal, por ocorrente o
impedimento. Aqui, infringe -se uma proibição legal, viola -se um impedimento;
no voto abusivo, deturpa-se o sentido do voto, desvia -se o voto de sua
finalidade natural. O voto abusivo acha-se eivado subjetivamente e é anulável.
O voto impedido acha-se eivado objetivamente e é nulo.”.
No mesmo sentido, VALLADÃO conclui que “(...) na hipótese de deliberação
que beneficie o acionista de modo particular, está -se, também, tal como nas duas
primeiras hipóteses previstas no §1º do art. 115, diante de um caso de vedação ao
exercício do voto, sendo nulo o voto proferido em desr espeito à proibição,
independentemente de qualquer indagação acerca do conteúdo da deliberação ou de
eventual prejuízo, potencial ou atual, à companhia.” 364.
LEÃES parece ter um entendimento diferente a respeito do assunto. Embora
considere que as duas prime iras hipóteses (aprovação de contas e avaliação de bens
para integralização de capital) constituam hipóteses de vedação ao exercício do voto,
afirma que a legislação brasileira, inspirando -se na italiana, distingue entre vedação ao
exercício do voto e o conflito de interesses, apontando conseqüências jurídicas
diferenciadas para cada caso 365:
363
Comentários..., p. 558. Como já mencionado anteriormente, a lei comina a pena de anulabilidade para
a deliberação tomada com base em voto nulo, em qualquer dos casos.
364
Conflito de interesses..., p. 90-91.
365
Conflito..., p. 25-26.
147
“As expressões – abuso do direito e conflito de interesses – que estão na
epígrafe que encima o art. 115, são havidas como referências a conceitos
distintos e autônomos, tais como são concebidos no direito europeu. Por outro
lado, pela leitura do art. 115, §§1º. e 4º, se infere que a lei brasileira adota a
distinção feita pela doutrina e jurisprudência italianas entre vedação de voto e
conflito de interesses, com pressu postos distintos e distintas conseqüências
jurídicas. Haverá vedação de voto em duas hipóteses típicas: voto de acionistas
em assembléia geral que: a) aprovar o laudo de avaliação de bens com que
concorrer para a formação do capital social e b) aprovar sua s contas como
administrador. Nessas duas hipóteses, a suspensão do direito de voto depende
de fatores objetivos, legalmente tipificados, e que dizem respeito a um controle
ex ante de legitimidade, com base em precisos indícios formais, donde a
conseqüência da nulidade. Haverá, por sua vez, conflito de interesses em todas
as demais hipóteses em que for apurada efetiva conflituosidade, expressa em
uma vantagem experimentada pelo acionista ‘de modo particular’ (a lei
brasileira, como se vê, repete a locução da lei alemã). A conflituosidade deverá
ser apreciada em cada caso concreto, conforme as circunstâncias. Daí por que
dispõe o §4º., subseqüente, que ‘a deliberação tomada em decorrência do voto
do acionista que tem interesse conflitante com o da companhia é anulável’,
respondendo o acionista ‘pelos danos causados’, sendo ‘obrigado a transferir à
companhia as vantagens que tiver auferido’”.
Assim, considera este doutrinador que a vedação do voto é aplicável apenas
aos casos da aprovação de contas como adminis trador e da aprovação de laudo para a
integralização de capital com bens. Tratam -se de vedações meramente formais, nas
quais pode-se fazer e um controle ex ante, prévio, e constatada a situação descrita na
lei, estará configurada a vedação. Na terceira sit uação, por sua vez, pondera LEÃES,
se exige apreciação do caso concreto – trata-se de hipótese de conflito de interesses.
148
THELMA DE MESQUITA, comentando esta terceira hipótese, destaca que a
doutrina diverge a respeito dela constituir vedação ao exercício do voto ou conflito de
interesses. Neste sentido esclarece 366:
“A terceira figura, concernente à vedação do exercício do voto nas deliberações
que puderem trazer ao acionista vantagens pessoais, foi alvo de certa
divergência doutrinária. Leães sustenta que esse caso não cuida de proibição
de voto, mas de conflito de interesses strictu sensu, que só daria ensejo à
anulação da deliberação para a qual concorreu o voto conflitante se se
constatar que o voto conflitante sacrificou o interesse social em prol de s eu
próprio benefício, não se tratando de conflito formal, mas substancial, cuja
apreciação só pode ocorrer ex post. Comparato entende (...) como uma
proibição de voto, (...) por decorrência do mesmo princípio de que ninguém
deve ser autorizado e (sic.) jul gar em causar própria (...). Tanto o retrospecto
histórico como a interpretação sistemática e teleológica nos levam a concordar
com Comparato, (...)”.
CALIXTO SALOMÃO FILHO, EDUARGO A. T. BOULOS e FERNANDO
SZTERLING posicionam -se pela corrente do conflito formal. COMPARATO adota
posição intermediária, admitindo a análise casuística e a formal, esta quando se
identificar a priori a existência de conflito. LEÃES posiciona -se pela corrente
casuística 367.
Para THELMA DE MESQUITA todas as hipóteses do § 1º do ar tigo 115 são de
vedação de voto, caracterizada pelo conflito formal, sendo que, na última hipótese, não
existiria presunção absoluta, mas sim juris tantum de existência de abuso de direito de
voto368.
366
Governança..., p. 69-70.
THELMA DE MESQUITA, Governança..., p. 71.
368
THELMA DE MESQUITA, Governança..., p. 75-81. Quanto aos argumentos de LEÃES, esclarece (p.
76-79) que o artigo 276 da Lei das S/A admite que os interesses de uma sociedade sejam submetidos
aos de outra empresa do grupo, sendo que para se aplicar este dispositivo, é necessário conciliá -lo com
o artigo 245, que proíbe o favorecimento de interesses entre as sociedades coligadas, controladas ou
controladoras. O artigo 276 seria, assim, uma exceção, devendo ser interpretada restritivamente.
367
149
No mesmo sentido, BORBA considera que o voto conflitante se vincula a uma
colocação estritamente objetiva: “Ou seja, se o acionista, em dada matéria, tem
interesse pessoal diverso do da companhia, estará, ipso facto, impedido de votar” 369.
Vê-se, portanto, que a doutrina não é uniforme a respeito da caracterizaçã o de
vedação ao exercício do voto ou de conflito de interesses no caso do acionista votar em
assembléia na qual possa ser beneficiado de modo particular. Passa -se, assim, à
análise da quarta hipótese prevista na lei: o conflito de interesses.
Seção 2 – O conflito de interesses
“O acionista não tem o dever de comparecer às
assembléias gerais e exercer o direito de voto; se o
acionista comparece, é livre para abster -se de votar;
mas se vota, deve exercer esse direito no interesse
da companhia.” 370.
A lei prevê a proibição de exercício do direito de voto em conflito com os
interesses da companhia. Afinal, o direito de voto deve ser exercido no interesse da
sociedade, superando “(...) os interesses individuais dos acionistas, quando estes se
acharem em conflito com aquele” 371.
369
BORBA, Direito societário, p. 306-307. “O art.115, §1º, em enumeração meramente exemplificativa,
uma vez que termina em generalização, arrola algumas hipóteses em que o acionista se encontra em
situação de conflito de interesse com a companhia (...)”.
370
LAZZARESCHI, Lei das Sociedades por Ações... , p. 149.
371
BATALHA, Wilson de Souza Campos. Comentários..., p. 557
“Nem sempre pode o acionista votar. Motivos legais e éticos impedem -no. O acionista, com efeito deve
exercer o direito de voto com lealdade, sem descurar do interesse da companhia. Não pode nem de ve
agir com espírito mesquinho, com abuso de seu direito, em reação, por exemplo, por não vêr atendido
em suas pretensões não justificadas ou excessivas. Deve exercê -lo, enfim, em atenção ao seu interesse
harmonizado com os interesses maiores da companhia, que se ajustam aos da comunidade social.”
(REQUIÃO, Curso..., vol. II., p. 126)
NISSEN (Panorama.., p. 250) afirma quanto à violação do interesse social: “Confundir entre los derechos
individuales de las personas que integran um ente colectivo, com aquell os que le son otorgados
precisamente como integrantes del mismo, es dicir, como socios de una sociedad comercial, puede llevar
al peligro de tolerar la violación de normas inderogables establecidas en beneficio de los mismos, con la
simples excusa de priorizar la ‘marcha de la gestión social’, al ‘giro de la sociedad’ sobre el respeto pleno
e irrestricto en la legitimidad del funcionamiento de los organos sociales, el cual, dentro del esquema
societario, se encuentra en grado muy superior a la provechosa ge stión del patrimonio social. La
confusión entre el ‘interés exclusivo’ y particular del accionista impugnante, y el ‘interés’ del mismo como
150
A respeito do que vem a ser interesse da companhia, já se tratou na Parte II
deste estudo, tendo-se chegado à conclusão de que o interesse da companhia deve ser
visto como o interesse comum dos sócios, enquanto tais, sendo relevantes a
manutenção da empresa, a lucratividade, a distribuição de lucros (ou a formação de
reservas, conforme a situação econômica da empresa), e, ainda, os interesses dos
empregados, da comunidade, do desenvolvimento regional, da preservação e
recuperação do meio am biente, dentre outros, revelando assim, a importância da
empresa no cenário sócio -econômico, e reconhecendo -lhe a necessidade de
observância da sua função social.
Constatou-se a possibilidade de ser o interesse social visto tanto em sentido
estrito (interesse comum dos sócios enquanto tais) quanto lato (interesse social
funcionalizado).
integrante de la sociedad há llevado al extremo de serle exigido la acreditación de que: el perjuício
alegado es apreciablemente mayor al que se seguiria para la sociedad y a los socios com la paralizaión
de la giro de la sociedad, que superen incluso, los que preventivamente se procura evitar...’ Tales
exigencias, requeridas por numerosos precedentes jurisprudenciales resultan intolerables pues de no
distinguirse entre el interés individual del accionista con el interés del mismo como socio, se llegan a
conclusiones tan equivocadas como exigir al accionista impugnante que debe acreditar los prejuicios que
le ha ocasionado la probada violación a su derecho de información en el seno de una assemblea, como si
la violación a tan importante e inderogable derecho no causare um perjudicio a la propria sociedad (pues
con ello se evita el control sobre los actos de administració n y, em definitiva, el mérito de la gestión de los
administradores) y no implicara, de por si, y sin otro tipo de demostración, la consumación de um
perjuicio irreparable.”
“Controle judiciaire de l’exercise du droit de vote – Si lê droit de vote est une p rérrogative attachée à la
qualité d’associée, la jurisprudenze admet que son exercise puísse être controle. Tout spécilament, il
convient que lê droit de vote soit utilisé non dans um but égoïst, mais dans l’intérêt de société. Il em
resulte qu’une décision réguliérment cotée par la majorité peut être remise em cause si elle manifeste um
abus de majorité, em d’autres termes si elle contrivient à l’intérêt social tout em créant une rupture dans
l’égalité dês asociés. Dans lê même ordre d’idées, on voit aujou rd’hui les tribunaux sanctionner lês abus
de minorité.” (Jeantin, Droit..., p. 109)
Para a doutrina francesa: Cas de nullité dês décisions dês assemblées générales – L’article L. 173
énumère différents cãs de nullité dês déliberations dês assémblées généra les, ce texte venant precise lês
dispositions de l’article L. 360. On sait que ce texte prévoit que la nulitté d’une délibération sociale ne peut
resulter que de la violation dúne disposition impértive d la loi du 24 julliet 1966 ou, ce qui ne saurit se
présenter fréquemment s’agissant de d’libérations d’assemblées, de la violation d’une régle impérative du
droit dês contrats. Lês dispositions de l’article L. 173 confèrent um caractère d’ordre public aux
dispositions elatives á la compétence (art. L. 157, al. 2). On y ajoure la violation dês dispositions relatives
à l’existence de l’odre du jour (art. L. 160) et à la feuille de présence (art. L. 167). Toute causes de mullité
sont obligatoires : lê juge qui constate une telle violation est tenu de prononcer l a nullité de l’assemblée.
De surcroît, les dispositions relatives au droit communication des actionnaires (art. L. 168 et L. 169) sont
sanctionnées par une nullité facultative, le juge appréciant si la gravité de la violation justifie ou non
l’annulation de l’assemblée générale. (Jantin, Droit..., p. 289)
151
Assim, adotou-se a concepção funcionalizada da empresa e da titularidade de
ações, devendo, pois, ser a concepção lata de interesse social aplicada para fins de
análise das regras de conflito de interesses.
LAZZARESCHI afirma a este respeito: “O voto é exercido no interesse da
companhia quando tem por finalidade fazê -la realizar o seu objeto e cumprir sua função
social. (...) Na situação de conflito de interesses, o acion ista não pode satisfazer seus
objetivos salvo sacrificando interesses da companhia. Daí o conflito, a colidencia, a
oposição ou incompatibilidade de interesses” 372.
Neste sentido, vale a pena citar excerto da ementa da decisão proferida pelo
Superior Tribunal de Justiça no Recurso Especial 247002/RJ, que teve como relatora a
Ministra Nancy Andrighi, no qual se analisou hipótese de deliberação pela dissolução
parcial de sociedade anônima (de capital fechado) 373:
“(...) Não é plausível a dissolução parcial de sociedade anônima de capital
fechado sem antes aferir cada uma e todas as razões que militam em prol da
preservação da empresa e da cessação de sua função social, tendo em vista
que os interesses sociais hão que prevalecer sobre os de natureza pessoal de
alguns dos acionistas. (...)”
372
Lei das Sociedades..., p. 149.
No mesmo sentido, vale a pena mencionar trecho da ementa de decisão proferida pelo Supremo
Tribunal Federal ao analisar a questão da proteção ao meio ambiente – que também é princípio
constitucional da ordem econômica, al lado da função social da propriedade. Confira -se (Medida Cautelar
na Ação Direta de Inconstitucionalidade 3540 – DJ 03/02/06):
“(...) A ATIVIDADE ECONÔMICA NÃO PODE SER EXERCIDA EM DESARMONIA COM OS
PRINCÍPIOS DESTINADOS A TORNAR EFETIVA A PROTEÇÃO AO MEIO AMBIENTE.
- A incolumidade do meio ambiente não pode ser comprometida por interesses empresariais nem ficar
dependente de motivações de índole meramente econômica, ainda mais se se tiver presente que a
atividade econômica, considerada a disciplina constitucional que a rege, está subordinada, dentre outros
princípios gerais, àquele que privilegia a "defesa do meio ambiente" (CF, art. 170, VI), que traduz
conceito amplo e abrangente das noções de meio ambi ente natural, de meio ambiente cultural, de meio
ambiente artificial (espaço urbano) e de meio ambiente laboral. Doutrina. (...)”.
Também a respeito do interesse da sociedade trata o julgado transcrito abaixo (STJ – RESP 602229 Relator Carlos Alberto Men ezes Direito):
“Sociedade anônima. Negociação com as próprias ações. Permuta com bem imóvel da companhia. Art.
30 da Lei nº 6.404/76. 1. A companhia não pode negociar com suas próprias ações sem que tenham sido
preenchidos os pressupostos do art. 30 e seu § 1º da Lei nº 6.404/76. No caso, não demonstrado que a
negociação considerou o interesse da sociedade, e que feita até o valor do saldo de lucros ou reservas,
exceto a legal, e sem diminuição do capital social (letra b), é inviável deferir -se o cumprimento do
contrato de permuta envolvendo ações de emissão da própria companhia. 2. Recurso especial
conhecido e provido.”
373
152
A decisão refere-se a sociedade anônima de capital fechado e, com maior
razão ainda, seria aplicável à sociedade anônima de capital aberto. Conforme se
observa do trecho transcrito, há de se observar a função social da empresa e os
interesses sociais, que não se confundem, mas sim prevalecem sobre os interesses
dos demais acionistas.
Como visto no tópico anterior, a respeito da vedação ao exercício do voto em
assembléia na qual o acionista possa obter vantagem pessoal, discute -se também em
relação ao conflito de interesses a natureza da proibição prevista na lei: se ela configura
uma vedação ao exercício do voto – conflito formal em que a violação gera
automaticamente a nulidade do voto -, ou uma proibição acautelatória, que ex ige um
conflito substancial de interesses para que haja nulidade (ou anulabilidade) do voto.
Neste sentido, CARVALHOSA, comenta definição de CARVALHO DE
MENDONÇA (que considera a melhor doutrina) sobre conflito de interesses,
denominando que tais conflito s, como definidos, poderiam ser chamados de conflitos
formais de interesses. Veja-se a definição de CARVALHO DE MENDONÇA por ele
referida374:
“(...) interesse oposto ao da companhia dá -se quando o administrador é parte
em negócio que a sociedade está para c oncluir com ele ou com outros
juntamente com ele; em negócio no qual tenha vantagem ou interesse, contrário
ou oposto como uma questão de fato, a ser apreciada em cada caso.”.
Para CARVALHOSA, a configuração do interesse conflitante só pode dar -se
pelo critério formal e o conflito de interesses pressupõe negócio jurídico lícito, podendo
ser conceituado como interesse contrastante 375. Neste sentido, afirma que “(...) o
conflito de interesses das partes, que existe em todo o contrato bilateral ou unilateral, é
a razão formal para a suspensão do exercício do voto pelo acionista pré -contratante ou
374
375
In CARVALHOSA, Comentários..., p. 272.
Comentários..., vol II, p. 272.
153
contratante com a sociedade. Daí, não poder o sócio – que é ou será parte no contrato
– formar a vontade da outra parte, que é ou será a companhia.” 376.
VALLADÃO, referindo ao posicionamento de CARVALHOSA sobre o assunto,
esclarece que: “Comentando a hipótese à luz da Lei 6.404, Carvalhosa rejeita
expressamente a lição de Valverde, sustentando ser ‘impossível encarar a questão
casuísticamente’. Para ele, ‘o conflito de int eresses das partes, que existe em todo
contrato bilateral ou unilateral, é a razão formal para a suspensão do exercício do voto
pelo acionista pré-contratante ou contratante com a sociedade. Daí, não poder o sócio –
que é ou será parte contratual – formar a vontade da outra parte, que é ou será a
companhia.” 377.
LEÃES, em opinião diversa à de CARVALHOSA, compreende que para a
disciplina do conflito de interesses existe a necessidade de apreciação do caso
concreto, não constituindo o conflito, na hipótese em a nálise, um vício meramente
formal (presente apenas na hipótese de vedação de voto) 378.
COMPARATO, na mesma linha de LEÃES, entende ser necessária a existência
de um conflito de fato, a ser apreciada concretamente 379. Acrescenta, entretanto, que
ocorrerá também o impedimento quando for possível identificar, a priori, a existência de
conflito de interesses da própria estrutura da relação ou negócio que se irá deliberar,
como, por exemplo, um contrato bilateral entre a companhia e o acionista
380
.
VALLADÃO compactua com o entendimento de LEÃES a respeito do
assunto381:
376
Comentários..., p. 410/411. CARVALHOSA ( Comentários..., p. 273) considera que “o impedimento não
decorre, pois, desses interesses contrastantes, mas da confusão das pessoas que serão parte no
contrato”. Para CARVALHOSA, o conflito substancial, diversamente daquele, configura interesse lesivo
ao da outra parte, adentrando no campo do ilícito (CARVALHOSA, Comentários, p. 273)
377
Conflito de interesses..., p. 92.
378
Neste sentido, esclarecimentos de VALLADÃO sobre a opinião deste doutrinador ( Conflito de
interesses..., p. 92).
LEÃES (Conflito..., p. 25) ensina: ”Já no c aso de conflito de interesses cabe uma indagação
relativamente ao mérito da incompatibilidade entre o exercício ao voto com a matéria submetida à
deliberação da assembléia geral, de onde deva ser encarado casuisticamente, para efeito da sua
anulação.”
379
O Poder..., p. 307.
380
Neste sentido, esclarecimentos de VALLADÃO sobre a opinião deste doutrinador ( Conflito de
interesses..., p. 92).
381
Conflito de interesses..., p. 93.
154
“Neste ponto, estamos com Leães (e, em parte, com Comparato). Em primeiro
lugar, parece evidente que o legislador brasileiro, ao disciplinar a matéria, não
teve em vista um conceito meramente formal de conflito de interesses, restrito à
hipótese em que o acionista se acha em situação contraposta à companhia,
como ocorre num contrato bilateral. O conceito adotado em nossa lei das
sociedades por ações deve ser extraído, a nosso ver, do caput do art. 115,
onde se define o voto abusivo.”.
Neste sentido, pondera:
“Com efeito, se o interesse da companhia consiste no interesse comum dos
sócios à realização do escopo social, como se demonstrou, o acionista que vota
com o fim de causar dano à companhia ou a outr os acionistas, ou vota com o
intuito de obter vantagem a que não faz jus, assumindo o risco de prejudicar a
companhia ou outros acionistas, está, em qualquer desses casos, votando
contrariamente àquele interesse comum . Ora, os casos de voto abusivo
previstos no dispositivo sob exame não se restringem, a toda evidência, à
hipótese de um conflito de interesses formal, a significar uma posição
contrastante entre as partes, como em um contrato. É suficiente lembrar, a
propósito, que a lei coíbe, na mencionada n orma, o mero ato emulativo (que,
obviamente, nada tem a ver com um contrato). É certo, por outro lado, que os
conceitos de abuso do direito de voto e de conflito de interesses são distintos,
mas, da maneira como o legislador dispôs, na Lei 6.404/76, eles s e interligam.
É o próprio Carvalhosa quem o diz: ‘Se a manifestação do voto não traduzir o
interesse coletivo, instaura -se o conflito de interesses e o abuso do direito de
voto’. Tem-se, assim, preliminarmente, que a noção de conflito de interesses
constante da nossa lei de sociedades por ações vincula -se a um conceito muito
mais amplo do que o simples conflito formal.” 382
382
Conflito de interesses..., p. 93-94.
155
VALLADÃO comenta, ainda, a argumentação de LEÃES (baseada em
MENGONI) no sentido de que as situações de vedação de voto ( divieto di voto) vem se
tornando cada vez mais restritas em face das necessidades do mundo econômico
moderno (relações entre empresas controladoras e controladas). Neste sentido, afirma
que: “Seria inconcebível que o legislador, ciente da realidade constituída pela
concentração empresarial no mundo moderno, a ponto de regulá -la na lei, tivesse
pretendido estabelecer um sistema formal de proibição de voto, o que praticamente
eliminaria a possibilidade da sociedade controladora votar nas assembléias da
controlada, dado o potencial conflito de interesses em que se acham.”
383
.
A este respeito, cita esclarecimento de LEÃES sobre o tema: “(...) ‘A lei
brasileira, ademais, em seu art. 245, regula as relações entre sociedades controladoras
e controladas, permitindo que, nesse caso, ‘as operações entre as sociedades’ possam
submeter o interesse de uma ao interesse de outra, desde que haja ‘pagamento
compensatório adequado’ (...) sendo ainda de se registrar que, em seu art. 276, admite
a possibilidade de subordinação das sociedades fil iadas ao interesse grupal, o que
exige outra leitura das regras relativas aos conflitos de interesses no seio das
assembléias’.” 384.
Menciona, ainda, como indicativo de que o legislador não pretendeu criar uma
proibição de voto, o artigo 117, § 1º, f, da Lei das S/A, que prevê a responsabilidade do
acionista controlador pelos danos que tenha causado em virtude de atos praticados
com abuso de poder, da qual é exemplo “contratar com a companhia, diretamente ou
através de outrem, ou de sociedade na qual tenha i nteresse, em condições de
favorecimento ou não eqüitativas.”
385
.
Por fim, conclui LEÃES que para o controle do voto deverá, no caso, ser
analisado como o acionista votou (se tiver votado), verificando se sacrificou o interesse
social, com prejuízo potencial ou atual à companhia ou a outros acionistas. Se existir
este sacrifício (ainda que potencial), seu voto será nulo e anulável a deliberação
tomada, se o voto tiver sido decisivo para a formação da maioria. “Em suma, a lei não
383
Conflito de interesses..., p. 95.
Conflito de interesses..., p. 95-96.
385
Conflito de interesses..., p. 96. No mesmo sentido: THELMA DE MESQUITA, Governança..., p. 71.
384
156
estabeleceu, para tal situação , uma vedação ao exercício do voto, como o fez para as
demais hipóteses do § 1º do art. 115.” 386.
Do exposto, parece mais adequada, para os tempos atuais, a concepção que
considera que o conflito de interesses referido pela lei é o conflito substancial de
interesses, sendo, portanto, imprescindível, para sua constatação, a análise do caso
concreto, o que deverá ser feito considerando -se a concepção lata de interesse social,
em observância à função social da propriedade.
A título de exemplo, veja -se questão interessante sobre conflito de interesses
que é a distribuição de dividendos e a retenção de receitas em favor da empresa
387
,
comentada por BULGARELLI nos seguintes termos 388:
“A propósito ainda dos fundamentos econômicos, políticos e jurídicos da
obrigatoriedade da distribuição de dividendos, tem -se alegado que afinal de
contas a decisão da maioria de não distribuir atende ao interesse social. (...)
Não é descabido a respeito invocar a idéia simples, mas bastante esquecida, de
que as sociedades anônimas, como as demais sociedades comerciais,
constituem-se para buscar o lucro. E, se aqueles que, contribuindo para isso,
como acionistas, correndo o risco da aplicação dos seus capitais, buscam obter
vantagens, fazendo o seu capital render, exigem receber parte de t ais lucros,
não se trata de nada despropositado. Nem se diga, como alguns desatinados,
que a finalidade da companhia é fazer os navios cruzarem o Reno (...). o que se
poderia dizer com propriedade é que a finalidade da sociedade – apesar das
críticas de Colombres, que acha que a sociedade não tem fins lucrativos, mas
objeto, sendo os fins, em geral, indiferentes ao direito – é a de produzir, com
lucros, ou de obter lucros, produzindo. (...) É evidente que os lucros
pressupõem a existência de uma empresa bem administrada, dotada de
recursos, de preferência pelo auto -financiamento. Daí a disposição legal
386
Conflito de interesses..., p. 97.
BORBA (Direito societário, p. 308) apresenta outra situação interessante: a do acionista que vo ta em
si mesmo para o cargo de administrador. Segundo BORBA, esta situação não constitui conflito de
interesses – constituirá, de outro modo, se vier a votar a respeito de sua remuneração – isto porque, no
primeiro caso, estará a serviço da companhia.
388
Regime Jurídico..., p. 70/73.
387
157
prevendo reservas, até mesmo obrigatórias. Ninguém há de negar que o
interesse particular dos acionistas casa -se assim com o interesse social. Não se
casa, porém, com o exagero, ou seja, a tendência de se criarem reservas
ilimitadamente, que se opõem aos interesses dos acionistas minoritários. É
justamente num conflito deste tipo que não são aceitáveis as razões de
Pailluseau, entendendo que se trata de um conf lito entre o interesse da
empresa e o interesse de um dos grupos que a compõem, e que portanto deve
prevalecer o interesse da empresa. (...) O que se tem, sim, no caso das
reservas facultativas, é o interesse do grupo majoritário, que pretende reforçar a
empresa através da constituição de reservas não previstas nos estatutos. Esta
posição, contudo, deve ser tomada com a aquiescência dos minoritários, pois
se trata de um sacrifício que se lhes exige. Neste ponto, aliás, é que a
jurisprudência francesa se ref ere ao interesse da empresa, como critério para
apreciação da justeza da medida, ou seja, se efetivamente é indispensável tal
constituição de reservas ou não, o que, afinal, não significa reconhecer um
interesse da empresa, mas aferir do acerto da medida t omada pelos
majoritários, isto é, se realmente a empresa necessitava de maiores recursos.”
Assim, parece ser adequado ponderar que as questões de conflitos de
interesses devam ser avaliadas diante de cada situação concreta, ademais, o interesse
social não constitui uma definição estanque, mas merece ser apreciada em cada
situação. A avaliação do interesse social contempla diversas variáveis, como a posição
da empresa no cenário sócio econômico. Desta forma, por todo o exposto, não parece
ser o caso de tratar-se o conflito de interesses como vedação ao voto, mas sim de
conflito substantivo de interesses, passível de apreciação e avaliação diante do caso
concreto.
Seção 3 - As conseqüências do divieto di voto e do voto em conflito de interesses
Como visto anteriormente, o parágrafo 1º do artigo 115 da Lei das Sociedades
Anônimas estabelece algumas situações que a doutrina considera como vedações ao
exercício do direito de voto, sujeitas, portanto, a um controle formal (e, inclusive, prévio)
158
e outras em relação as quais não é uniforme em considerar como sujeitas a controle
substantivo.
No âmbito das sujeitas (sem divergências doutrinárias relevantes) à vedação ao
voto estão: (i) a votação para aprovação de laudo de avaliação de bem com o qual o
acionista venha concorrer para a formação do capital social; e (ii) a aprovação das suas
contas como administrador.
Por sua vez, no âmbito de discussão doutrinária acerca de tratar -se de conflito
substancial ou formal, estão: (i) a participação em deliberação na qual pos sa o acionista
ser beneficiado de forma particular; e (ii) o caso do conflito de interesses.
A respeito destes vícios já se tratou anteriormente 389.
Para as situações descritas acima, prevê a Lei das Sociedades Anônimas (§ 4º
do artigo 115 da Lei das S/A):
“Art. 115 – (...)
§ 4º - A deliberação tomada em decorrência do voto de acionista que tem
interesse conflitante com o da companhia é anulável; o acionista responderá
pelos danos causados e será obrigado a transferir para a companhia as
vantagens que tiver auferido.”
Como se observa do excerto, prevê a lei que o acionista responderá pelos
eventuais danos causados e deverá transferir para a companhia as vantagens que
indevidamente tiver auferido 390.
389
LEÃES (Conflito..., p. 24) ensina que “No império do Dec. -lei 2.627/40, em escólio ao art. 95, Valverde
encarava a existência ou não de interesse contrário ou oposto como uma questão de fato, devendo ser
apreciada casuisticamente. Na esteira aliás de Carvalho de Mendonça que, citando Bing, dizia que é
difícil estabelecer uma regra absoluta para aferir se se trata de interesses conflitantes, repudiando, de
qualquer sorte, um critério meramente formal, como a significar a posição das partes contrastantes, que
de resto existe em todo o negócio bilateral ou sinalagmático. O art. 115 da lei 6.404 procura dar solução a
essa questão, inspirando-se no direito europeu, ou especialmente na lei de sociedade por ações alemã (§
243) e no Código Civil italiano (art. 2.373).” E prossegue: “(...) Assim disciplinando, não se pode, na lei
alemã, presumir a conflituosidades de interesses, com base em critérios formais: quando se afirma a
colidência de dois contrapostos do sócio e da sociedade é por que se apurou, no caso concreto, uma
efetiva conflituosidade, com a ocorrência de dano à companhia ou aos sócios, razão pela qual se
reconhece ao Judiciário, numa ação anulatória, competência para exame do mérito da deliberação
assemblear. O art. 2.373 do Código Civil italiano exprime a mesma idéia, embora com dicção distinta (...)”
(p.25)
159
Sem prejuízo das obrigações descritas acima, que a deliberaç ão tomada em
decorrência de voto em conflito de interesses com o interesse da companhia também
poderá ser anulada caso o voto tenha sido determinante para a decisão tomada
391
.
Esclarece ASCARELLI que o voto é concedido ao acionista para a tutela de seu
interesse como sócio; encontra sua justificação e seu limite na comunhão de interesses,
que se forma na sociedade, e só no limite de seu interesse como sócio é que os
acionistas são sujeitos à deliberação da maioria. Se o voto não é exercido nos estritos
limites do interesse da sociedade, vicia a deliberação que integra, em razão do que,
esta se torna anulável 392.
Neste sentido, vale observar, como bem destaca EDUARDO COELHO, existe
independência entre o voto e a deliberação dele resultante. Não é porque a delibe ração
está formada que o voto (vencedor ou vencido) deixa de ter relevância jurídica
393
.
No direito português, os votos favoráveis ou não à proposição apresentada e
também a abstenção do voto, com a presença do acionista contribuindo para a
390
“Neste caso, a deliberação tomada em decorrência do voto de acionista que tem interesse conflitante
com o da companhia é anulável, e o acionista responderá pelos danos causados e será obrigado a
transferir para a companhia as vantagens que tiver auferido.” (BULGARELLI, Regime Jurídico..., p.124)
“Anulado o voto e, por conseqüência, a deliberação, o acionista responderá pelos danos causados e o
benefício, que ilegalmente auferiu, será transferido para a companhia.” (BATALHA, op. cit., p. 560)
Neste sentido também: REQUIÃO, Curso..., vol. II, p. 127.
391
Importante observação faz EDUARDO COELHO ( A formação das deliberações... , p. 153) no sentido
de que o direito de voto é do tado de unidade – não pode um acionista votar com parte de seus votos
favoravelmente, e a outra parte contrariamente e/ou se abster. A abstenção, o voto favorável ou não,
deverá ser uniforme e atingir todos os votos do titular.
BULGARELLI (Manual das sociedades..., p. 203) pondera que não pode o acionista votar nas hipóteses
em que tiver interesse particular conflitante com o da companhia, sob pena de ser a deliberação anulável
e o acionista responder pelos prejuízos causados e reverterem à sociedade os ben efícios que tenha
obtido.
FRAN MARTINS (Curso..., p. 368) trata a questão: “Finalmente, devendo o acionista exercer o direito de
voto no interesse da sociedade, será considerado abusivo o voto exercido com o fim de causar dano à
companhia ou aos outros aci onistas, ou de obter o acionista votante, para si ou para outrem, vantagem a
que não faz jus ou de que resulte ou possa resultar prejuízo para a companhia ou para os outros
acionistas. Por isso, a deliberação tomada em decorrência de voto do acionista que tem interesse
conflitante com a sociedade é anulável, respondendo o acionista pelos danos causados e sendo obrigado
a transferir para a companhia as vantagens que tiver auferido.”
392
TÚLIO ASCARELLI, in LAMY FILHO..., op. cit., p. 240
393
A formação das deliberações..., p. 153-177. Apesar de concluir neste sentido, EDUARDO DE
COELHO apresenta outras teorias que se posicionam pelo desaparecimento do voto com a formação da
deliberação. O presente estudo não contemplará com mais profundidade este tema.
160
formação de quorum, constituem manifestação de vontade e trazem efeitos jurídicos 394
(o voto constitui declaração receptícia de vontade) 395.
Desta feita, no direito português, as deliberações podem ser afetadas pela
anulação de votos – se estes tiverem sido determinantes para a decisão tomada. O
voto anulado deve ser considerado inexistente e, assim, sopesado seu impacto na
deliberação tomada 396.
Em que pese a Lei 6.404/76 trate apenas da anulabilidade da deliberação
tomada, há doutrinadores que distinguem as conseqüências jurídi cas decorrentes da
vedação ao exercício do voto, daquelas derivadas de conflitos substanciais. Neste
sentido, confiram-se esclarecimentos de LEÃES 397:
“(...) pela leitura do art. 115, §§1º e 4º, se infere que a lei brasileira adota a
distinção feita pela doutrina e jurisprudência italianas entre vedação de voto e
conflito de interesses, com pressupostos distintos e distintas conseqüências
jurídicas. Haverá vedação de voto em duas hipóteses típicas: voto de acionistas
em assembléia geral que: a) aprovar o lau do de avaliação de bens com que
concorrer para a formação do capital social e b) aprovar suas contas como
administrador. Nessas duas hipóteses, a suspensão do direito de voto
depende de fatores objetivos, legalmente tipificados, e que dizem respeito a um
controle ex ante de legitimidade, com base em precisos indícios formais, donde
a conseqüência da nulidade. Haverá, por sua vez, conflito de interesses em
todas as demais hipóteses em que for apurada efetiva conflituosidade, expressa
em uma vantagem experime ntada pelo acionista ‘de modo particular’ (a lei
394
A formação das deliberações..., p. 153-177. Embora apresente outras teorias sobre o tema o
doutrinador acaba por concluir que estes três tipos de manifestação constituem declarações de vontade.
Nesta oportunidade não se abordará com mais profundidade este tema.
395
A formação das deliberações... , p. 166-167. Este doutrinador afirma (p. 170): “A natureza do voto dos
accionistas na assembléia geral das sociedades anônimas configura -se, pois, genericamente e
abstraindo de situações singularíssimas, como declaração de v ontade de efeitos correlativos à violação
do agente, a que o direito confere tutela jurídica correspondente.”. O efeito jurídico produzido pelo voto
“(...) se traduz essencialmente na contribuição do votante, correspondente à sua posição orgânica, para a
formação de uma deliberação vinculante para o círculo de interessados. (...) Assim, constitui o voto
singular apenas um dos vários elementos concorrentes na formação do acto orgânico, dispondo
originalmente da mesma potencialidade na consecução deste efeito que qualquer dos outros
compartícipes elementos.” ( A formação das deliberações... , p. 163-164).
396
COLEHO, Eduardo de Melo Lucas. A formação das deliberações... , p. 175-177.
161
brasileira, como se vê, repete a locução da lei alemã). A conflituosidade deverá
ser apreciada em cada caso concreto, conforme as circunstâncias. Daí por que
dispõe o §4º., subseqüente, que ‘a deliberação t omada em decorrência do voto
do acionista que tem interesse conflitante com o da companhia é anulável’,
respondendo o acionista ‘pelos danos causados’, sendo ‘obrigado a transferir à
companhia as vantagens que tiver auferido’”.
A respeito do assunto, CARVALHOSA e FRAN MARTINS 398 consideram que
nos casos de violação do divieto há nulidade do voto, sendo anulável a deliberação se o
voto tiver sido determinante para a formação da maioria. Irrelevante perquirir, portanto,
se houve dano à sociedade, ou não. O qu e importa é a violação da determinação legal,
permitindo, assim um controle antecipado da questão.
Assim, observa-se que embora existam doutrinadores que considerem o voto
exercido em divieto como nulo, a conseqüência que atribuem à deliberação social é a
anulabilidade – e esta conclusão, como se viu antes, está em consonância com o que
determina a lei. De igual forma, para a doutrina que compreende pela anulabilidade do
voto, a deliberação social tomada com base nele será, igualmente anulável
399
.
Vê-se, portanto, de todo o exposto, que nos casos de vedação ao exercício do
voto e de conflito de interesses existe a possibilidade de anulação da deliberação social
para a qual o voto tenha sido determinante, sem prejuízo, é claro, da responsabilidade
civil e da transferência, para a companhia, das vantagens que o acionista evenualmente
tenha auferido.
Capítulo 3 – A posição do controlador e o acordo de acionistas
Seção 1 – A posição do controlador
Como visto anteriormente, o direito de voto deve ser exercido no interesse da
companhia – é o que determina o art. 115 da Lei 6.404/76. Isto significa que, embora o
397
Op. cit., p. 25/26 (grifou-se).
Neste sentido: CARVALHOSA, Comentários..., p. 114/117; FRAN MARTINS, Comentários..., p. 80/82.
399
As condições para a ação de anulação de deliberação social encontram -se previstas no artigo 286 da
Lei das Sociedades Anônimas.
398
162
voto seja livre, o acionista tem o “dever legal” de perseguir o interesse social ao exercer
o direito de voto, ou seja, está obrigado a perseguir o interes se social 400.
O direito de voto é, portanto, não um direito subjetivo, mas sim um dever de
antepor ao seu interesse pessoal o interesse da companhia, muito embora o interesse
da sociedade também possa pertencer a cada acionista isoladamente.
Nesse cenário, verifica-se a existência da figura do acionista controlador, que,
nas palavras de FRAN MARTINS “(...) é a pessoa, natural ou jurídica, ou grupo de
pessoas vinculadas por acordo de voto, que é titular de direitos de sócio que lhe
assegurem, de modo permanent e, a maioria de voto nas deliberações da Assembléia
Geral e o poder de eleger a maioria dos administradores da companhia, usando,
efetivamente, o seu poder para dirigir as atividades sociais e orientar o funcionamento
dos órgãos da companhia.” 401.
Vale registrar, entretanto, a existência de entendimento doutrinário no sentido
de que no caso de controle majoritário seria dispensável o uso efetivo do poder, sob
pena de perder aplicabilidade a previsão de abuso do poder por omissão
400
402
.
CARVALHOSA, Comentários..., p. 257.
Curso..., p. 368.
Controladores são aqueles que detém a maioria nas deliberações. Assim, aquele que detém a maioria do
capital social, mas não exerce esta maioria, é sócio majoritário, mas não é controlador. O controle pode
ser exercido pela minoria, desde que ela seja a maioria presente na d eliberação social (assembléia).
(BORBA, Direito societário, p. 314-315).
COMPARATO (RDM 23, p. 91 e seguintes) esclarece: “Vê -se, pois, que no sistema da Lei 6.404/76 o
poder de controle ainda está ligado à propriedade de ações ou quotas de capital. (...) , não se reconhece
explicitamente o controle administrativo ou gerencial, nem o controle externo. Mas essa preponderância
fundada na titularidade de direitos de sócio pode ser de tipo minoritário; ou seja, a sociedade
controladora não precisa, necessariame nte, possuir mais da metade das ações votantes ou das quotas
de outra, para ser reconhecida como dominando esta ‘[ultima. O legislador brasileiro de 1976 afastou,
assim, no reconhecimento da posição de controle, o rígido critério percentual da Lei francesa 66-636,
sobre as sociedades mercantis. Essa preponderância nas deliberações sociais não deve ser o produto de
uma posição acionária ocasional e transitória, mas resultar de um status permanente. Vale dizer que as
ações de controle devem ser contabilizadas como investimento no ativo da sociedade controladora (art.
179, III).” A este respeito, veja -se também: BATALHA, A nova lei das S/A, p. 89.
BERLE e MEANS (BERLE JR., Adolf A. MEANS, Gardiner C. A propriedade privada..., p. 265.),
analisando as relações de controle, entendem que este pode agir de três modos: “Primeiro, exercendo
influência ou orientando diretores no exercício dos seus postos dentro da emprêsa. Segundo, o ‘controle’
pode, de acôrdo com suas prerrogativas legais, praticar certos atos sociais, - tais como escolher
diretores, votar as alterações estatutárias, ou ratificar os atos da diretoria. Terceiro, o ‘contrôle’ pode
praticar atos que, nominalmente, nenhuma relação têm com a empresa, mas que, de fato, afetam
extraordinàriamente, o destino da empresa. Por exemplo, o ‘contrôle’ pode ser vendido.”.
402
LAZZARESCHI (Lei das Sociedades..., p. 156-157) aponta a existência de entendimento no sentido de
que o poder de controle, se majoritário, não exige o efetivo exercício do referido poder, sob pena d e
tornar-se impossível a aplicação do abuso de poder de controle por omissão (art. 117 da Lei das S/A).
401
163
Seguindo esta lógica, COMPAR ATO afirma que o controle nada mais é que o
direito de dispor de bens alheios como proprietário. E, assim, controlar uma empresa
significa “(...) poder dispor dos bens que lhe são destinados, de tal sorte que o
controlador se torna senhor de sua atividade econômica” 403.
Em razão do poder que o acionista controlador tem de dispor de bens alheios
como se deles fosse proprietário e que a propriedade sob forma de empresa “é uma
função social” e não apenas “tem uma função social” 404 é natural que se exigisse do
controlador um dever adicional em relação ao atribuído aos demais acionistas.
Sendo assim, a Lei das Sociedades Anônimas prevê expressamente que o
controlador deve usar seu poder no interesse social. Deve ele agir de forma a perseguir
o interesse social, fazendo a companhia realizar seu objeto e função social, sem
infringir interesses dos demais acionistas, trabalhadores, comunidade e o interesse
nacional. É o que estabelece o artigo 116 da Lei das Sociedades Anônimas, in
verbis405:
“Art. 116 - Entende-se por acionista controlador a pessoa, natural ou jurídica, ou
o grupo de pessoas vinculadas por acordo de voto, ou sob controle comum,
que:
(...)
Parágrafo único. O acionista controlador deve usar o poder com o fim de fazer
a companhia realizar o seu objeto e cu mprir sua função social, e tem deveres e
responsabilidades para com os demais acionistas da empresa, os que nela
trabalham e para com a comunidade em que atua, cujos direitos e interesses
deve lealmente respeitar e atender.” (destacou -se)
403
O Poder..., op.cit., p. 91 ss. Nesse sentido, LAMY FILHO, op. cit., p. 242.
COMPARATO, O Poder..., p. 91 ss.
405
Nas alíneas “a” e “b” do caput do artigo, a Lei das S/A define o que vem a ser o acionista controlador:
“a) é titular de direitos de sócio que lhe assegurem, de modo permanente, a maioria dos votos nas
deliberações da assembléia-geral e o poder de eleger a maioria dos administradores da comp anhia; e
b) usa efetivamente seu poder para dirigir as atividades sociais e orientar o funcionamento dos órgãos da
companhia.”
404
164
De se notar, ainda, a possibilidade de controle indireto, conforme já reconhecido
pela jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (RESP 556265/RJ 406 e 784/RJ 407).
Assim, como afirma LEÃES, “(...) o direito do voto deve ser exercido no
interesse da companhia; já o poder de controle deve ser usado ‘com o fim de fazer a
companhia realizar o seu objeto e cumprir sua função social’, visto que o acionista
controlador ‘tem deveres e responsabilidades para com os demais acionistas da
empresa, os que nela trabalham e para com a com unidade em que atua, cujos direitos
e interesses deve lealmente respeitar e atender (...).” 408.
Além do artigo 116, a Lei das Sociedades Anônimas prevê, em seu artigo 117,
a responsabilidade do controlador por exercício abusivo do poder de controle,
enumerando, no parágrafo 1º deste artigo, algumas condutas que constituem
modalidades de abuso de poder 409.
406
“(...) Considera-se controlada a sociedade na qual a controladora, diretamente ou por meio de outras
controladas, é titular de direitos de sócios que lhe assegurem, de modo permanente, preponderância nas
deliberações sociais e o poder de eleger a maioria dos administradores.
– Ao controlador indireto é permitido apropriar -se do sobrevalor correspondente ao seu poder de controle,
bem de conteúdo econômico autônomo e independente. Inexistência no caso de venda a non domino,
tampouco da alegada subtração de oportunidade comercial, de que seriam titulares as holdings abertas.
Exercício regular da função de controlador. (...)”
407
“DIREITO COMERCIAL. SOCIEDADE ANONIMA. ACIONISTA CONTROLADOR. EM TESE, E
SUSCETIVEL DE CONFIGURAR A SITUAÇÃO DE ACIONISTA CONTROLADOR A EXISTENCIA DE
GRUPO DE PESSOAS VINCULADAS SOB CONTROLE COMUM, BASTANDO QUE UM OU ALGUNS
DE SEUS INTEGRANTES DETENHAM A TITULAR IDADE DOS DIREITOS DE SOCIO DE TAL ORDEM
QUE GARANTA AO GRUPO A SUPREMACIA NAS DELIBERAÇÕES DA ASSEMBLEIA GERAL E O
PODER DE ELEGER A MAIORIA DOS ADMINISTRADORES DA COMPANHIA. QUESTÃO DE FATO A
SER DESLINDADA NA OPORTUNIDADE DA PROLAÇÃO DA SENTENÇA. ALEGAÇ ÃO DE NEGATIVA
DE VIGENCIA DOS ARTS. 116 E 118 DA LEI DAS SOCIEDADES ANONIMAS E DO ART. 3. DO CPC
REPELIDA. RECURSOS ESPECIAIS NÃO CONHECIDOS.”
408
LEÃES..., Conflito..., p. 18-19. Este doutrinador afirma, ainda (p. 18 -19): “Direito subjetivo ou poder
jurídico são, como vimos, faculdades ou prerrogativas outorgadas para a realização de interesses
concretos, protegidos enquanto desempenham determinadas funções econômicas e sociais.”
409
“Art. 117. O acionista controlador responde pelos danos causados por atos pr aticados com abuso de
poder.
§ 1º São modalidades de exercício abusivo de poder :
a) orientar a companhia para fim estranho ao objeto social ou lesivo ao interesse nacional, ou levá -la a
favorecer outra sociedade, brasileira ou estrangeira, em prejuízo da p articipação dos acionistas
minoritários nos lucros ou no acervo da companhia, ou da economia nacional;
b) promover a liquidação de companhia próspera, ou a transformação, incorporação, fusão ou cisão da
companhia, com o fim de obter, para si ou para outrem , vantagem indevida, em prejuízo dos demais
acionistas, dos que trabalham na empresa ou dos investidores em valores mobiliários emitidos pela
companhia;
c) promover alteração estatutária, emissão de valores mobiliários ou adoção de políticas ou decisões qu e
não tenham por fim o interesse da companhia e visem a causar prejuízo a acionistas minoritários, aos
que trabalham na empresa ou aos investidores em valores mobiliários emitidos pela companhia;
d) eleger administrador ou fiscal que sabe inapto, moral ou tecnicamente;
165
Em vista da amplitude do tema do abuso do poder de controle, que envolve, por
exemplo, a questão dos atos ultra vires e o direcionamento da empresa a fim lesi vo ao
interesse nacional 410 – temas que, por si só, merecem ser objeto de abordagem
específica -, para que não se fuja do escopo inicialmente estabelecido para a análise
ora proposta, estas questões serão deixadas ao largo, para eventual apreciação futura.
Assim, em que pese não se vá analisar especificamente cada uma das
situações previstas no aludido artigo 117, vale a pena mencionar que, conforme
esclarecem AGUINIS e KLEIDMACHER, o abuso do poder de controle constitui
subespécie do abuso de direito, a resp eito do qual já se tratou anteriormente. Para
estes doutrinadores existe abuso do poder da maioria quando esta se considera a
intérprete da vontade social 411.
e) induzir, ou tentar induzir, administrador ou fiscal a praticar ato ilegal, ou, descumprindo seus deveres
definidos nesta Lei e no estatuto, promover, contra o interesse da companhia, sua ratificação pela
assembléia-geral;
f) contratar com a companhia, diretamente ou através de outrem, ou de sociedade na qual tenha
interesse, em condições de favorecimento ou não eqüitativas;
g) aprovar ou fazer aprovar contas irregulares de administradores, por favorecimento pessoal, ou deixar
de apurar denúncia que saiba ou devesse saber procedente, ou que justifique fundada suspeita de
irregularidade.
h) subscrever ações, para os fins do disposto no art. 170, com a realização em bens estranhos ao objeto
social da companhia. (Incluída dada pela Lei nº 9.457, de 1997)
§ 2º No caso da alínea e do § 1º, o administrador ou fiscal que praticar o ato ilegal responde
solidariamente com o acionista controlador.
§ 3º O acionista controlador que exerce cargo de administrador ou fiscal tem também os deveres e
responsabilidades próprios do cargo.” (destacou -se)
410
LAMY FILHO (Lei das S.A., p. 214) esclarece: “ATO LESIVO AO INTERESSE NACIONAL - (...)
Esses atos dizem respeito a infrações de inúm eras leis de ordem pública – remessa indevida de lucros,
sub ou superfaturamento, negociação com inimigo em caso de guerra, violação da lei antitruste, práticas
comerciais ilegítimas, etc – em que a responsabilidade civil e criminal atinge aos que as prati cam (os
administradores da sociedade) e que agora se estende aos que deles se beneficiam ou determinam que
sejam feitos (‘orientar a companhia para...’). A hipótese supõe, portanto, a existência de uma lei, de
ordem pública (‘interesse nacional’ ou da ‘eco nomia nacional’) violada por determinação do controlador
(‘orientar a companhia para o fim’).
411
El abuso..., p. 163-169. AGUINIS e KLEIDMACHER ( El abuso..., p. 174-182) consideram a empresa a
organização da atividade econômica e da produção de bens e servi ços para a qual a sociedade é a
estrutura. Para estes doutrinadores (p. 169 -171 e 182), existe abuso do poder da maioria quando esta se
considera a intérprete da vontade social. O abuso do poder não se confunde com a violação da lei ou do
estatuto, que se traduzem em formas de excesso de poder, do qual derivam decisões ilegítimas. O abuso
se caracteriza pelo afastamento da razoabilidade. A maioria tem a responsabilidade de eleger os meios
necessários ao atingimento dos fins sociais. Para a identificação de abuso de poder, a falta de identidade
entre interesse social e interesse da maioria. A ruptura da igualdade entre os acionistas controladores e
os mintoritários também caracteriza abuso de poder da maioria. O abuso do poder se manifesta nas
assembléias, porque é na assembléia que os interesses particulares são formadas, transformadas e
reduzidas à vontade do ente.
166
Sendo o abuso do poder de controle subespécie do abuso do direito, é possível
inferir que, ainda que se o considere exaustivo o artigo 117 ao descrever situações que
caracterizam abuso de poder - o que não parece ser o caso -, existe a possibilidade de
aplicação, no que tange ao exercício do direito de voto, das fórmulas gerais previstas
no artigo 115 ou de se considerar a existência de violação à lei 412.
AMADOR PAES DE ALMEIDA
trata respeito dos deveres do acionista
controlador:
“Ao acionista controlador a lei impõe determinados deveres consubstanciados
na utilização do seu poder, no sentido da efetiva realização do objeto da
companhia pondo em relevo a sua responsabilidade para com a comunidade
em que atua, cujos direito e interesses deve respeitar e atender. A utilização
abusiva do poder de comando fará com que o acionista controlador responda
por perdas e danos, nos precisos termos do art. 117.” 413
Afinal, o acionista controlador “(...) deve usar o poder com o fim de fazer a
companhia realizar o seu objeto e cumprir sua função social.” 414.
Como bem ensina COMPARATO, o controlador exerce uma função, não sendo
o exercício do direito de voto um direito subjetivo, diferentemente do que ocorre, no
entender deste doutrinador, com os sócios meramente capitalistas para os quais o voto
não constitui uma função, assemelhando -se à prerrogativa dominial 415.
Vale aqui fazer um parênteses: embora COMPARATO afirme que para os
sócios capitalistas o voto constitui uma prerrogativa patrimonial, não é possível
412
Desta forma, LAMY FILHO (op. cit., p. 238) trata o abuso de direito e o conflito de interesses como
decorrência da desobediência deste “dever l egal” do acionista – a que denomina “comando básico” -, e
acrescenta “se o voto não satisfaz a tal preceito não é direito é violação de direito”. Já CARNELUTTI (In:
Lamy..., op. Cit, p. 239) entende tratar-se de excesso de poder. Confira -se: “(...) em suma, a lei atribui um
poder à maioria a fim de que realize o interesse de todos os sócios, e, assim também a minoria, e não
para que realize o próprio interesse. Isto não está escrito em uma expressa disposição do Código: mas
quem pode negá-lo? Se um princípio geral se deduz do complexo de normas que constitui o regime das
anônimas, o princípio é este”. E conclui: “Repito porque a assembléia que, embora seguindo a forma
prescrita pelo direito, delibera contra o interesse da sociedade, não abusa de seu direito, mas excede seu
poder, e por isto viola a lei”. (destacou-se)
413
Manual das sociedades..., p. 249.
414
FRAN MARTINS, Curso..., p. 368.
415
O Poder..., p. 100 ss.
167
esquecer que, conforme dispõe o art. 115 da Lei 6.404/76, qualquer acionista deve
votar no interesse da companhia, so b pena de responsabilização por perdas e danos
(sem prejuízo da anulabilidade da deliberação, quando cabível) 416, e que o próprio
direito de propriedade (que confere a referida patrimonialidade) deve observar a sua
função social.
Neste sentido, LEÃES afirma : “Em suma: ao adentrar ao plenário de uma
Assembléia Geral, o acionista controlador não está adstrito apenas às regras de
natureza privada contidas no art. 115; carregará consigo, também, os deveres e
responsabilidades acima enunciados e é em função desse feixe de normas que deverá
orientar o seu voto.”. O controlador deve exercer seu poder para fazer a companhia
cumprir sua função social. Tem deveres e responsabilidade para com a comunidade, os
demais acionistas e os que nela trabalham 417.
Diante disso, segundo THELMA DE MESQUITA, seria possível deduzir que o
acionista em geral só pode cometer abuso do direito de voto por ato comissivo, ao
passo que o controlador pode fazê -lo tanto por atos comissivos quanto omissivos,
quando deixar de cumprir deveres aos q uais esteja obrigado seja em sentido estrito ou
na acepção de interesse social 418.
JOSÉ EDWALDO TAVARES BORBA assevera que 419:
“A norma que estamos analisando não tem natureza programática ou
simplesmente indicadora de critérios interpretativos. Trata -se de regra auto-
416
A regra do art. 115, frise -se, é de caráter geral, aplicável ao acionista majoritário e ao minori tário,
sendo que este será o principal beneficiado porque fica resguardado de eventuais abusos dos acionistas
majoritários por atos que beneficiem apenas a estes. Neste sentido: FRAN MARTINS, Comentários à Lei
das Sociedades Anônimas , p. 77-78. CARVALHOSA, Comentários..., p. 338.
A lei societária dirige-se a todos os acionistas ao determinar, no artigo 115, que o exercício do direito de
voto deverá dar-se no interesse da companhia, e especificamente aos controladores ao estipular, no
artigo 116, a obrigação de orientar a empresa em direção ao cumprimento de sua função social. Neste
sentido: THELMA DE MESQUITA, Governança..., p. 61-62.
417
LEÃES, Conflito..., p. 13. Segundo LEÃES ( Conflito...., p. 14), o artigo 115 da lei determina que “(...) o
acionista deve exercer o direito de voto no interesse da companhia (...)”, e o parágrafo único do artigo
116 que o “acionista controlador” deve exercer seu “poder”, “(...) com o fim de fazer a companhia realizar
o seu objeto e cumprir sua função social, e tem deveres e responsabilidades para com os demais
acionistas da empresa, os que nela trabalham e para com a comunidade em que atua, cujos direitos e
interesses deve lealmente respeitar e atender”
418
THELMA DE MESQUITA, Governança..., p. 64-65.
419
Direito societário, p. 107.
168
executável, com nítido caráter interpretativo, pois impõe ao acionista
controlador um determinado comportamento.
Coerentemente, ao tratar das atribuições dos administradores (art. 154) no
sentido de que estes, em sua atuação deverão satisfazer ‘a s exigências do bem
público e da função social da empresa’.
Encontram-se, portanto, jungidos os controladores e administradores à
obrigação de preservar esses interesses essenciais, cuja violação configurará
abuso de poder, propiciando ao interessado a pre rrogativa de obter
judicialmente a competente reparação.”
Com efeito, diante do exposto, conclui -se que o controlador desempenha o papel
de agente do bem comum “(...) cumprindo -lhe, no âmbito de atuação da sociedade,
velar para que ela não se afaste dos interesses básicos representados.” 420.
Tem-se, pois, toda uma gama de interesses que devem ser observados quando
do exercício do poder de controle: “(...) particular, dos acionistas e dos administradores;
coletivo, correspondente ao grupo na sua totalidade; da companhia, correspondente ao
da sociedade ou da empresa;
público, correspondente ao do Estado;
geral,
correspondente ao de toda a coletividade, neste caso, sinônimo do interesse social, que
também pode ser sinônimo do interesse da sociedade ou da compa nhia.”421.
Vale anotar que o controlador, tal como qualquer acionista, exerce o direito de
voto, em expressão ao direito de propriedade das ações de que é titular, o que já
determina, por si só, a necessidade de conformação do seu voto pela função social –
420
BORBA, Direito Societário, p. 316.
BULGARELLI, Sociedades..., p. 309.
EUGENE ROSTOW (Apud, LAMY FILHO, Lei das S.A., p. 209) afirma: “Today is generally recognized
that all corporations possess an element of public interest. A corporate director m ust think not only for the
stockholder but also of the laborer, the supplier, the purchase, and the ultimate consumer. Our economy
is but a chain which can be no stronger than any of this links.”
LAMY (p. 209-210) esclarece ainda que neste sentido se posic ionam EINMAHL e o XXI Congresso da
Câmara de Comércio Internacional (Montreal de 13 a 20 de maio de 1967). Neste congresso, uma das
posições aprovadas diz que: “O objetivo de lucro que visa tradicionalmente o homem de negócios é
perfeitamente compatível c om suas responsabilidade para com a comunidade. Não só a empresa não
poderá continuar a fazer face às suas responsabilidades se não tiver lucros, mas ainda sua rentabilidade,
a longo termo, impõe ao empresário respeito às finalidades da comunidade e partic ipação nos esforços
por ela feitos para atingir a tais fins.”
421
169
isto fica ainda mais evidente ao se vislumbrar que o seu voto é determinante para o
direcionamento da empresa.
Ademais, o dever de observar a função social, no caso do controlador, está em
expressa evidência pela própria Lei das Sociedades Anônimas 422.
Assim, é em face da função social desempenhada pela empresa e pelo
controlador que deve ser examinada a argüição de ocorrência de abuso de direito de
voto ou de abuso do poder de controle 423.
Afinal, a função social do poder econômico, corolário da função social da
propriedade, revela-se, no âmbito da sociedade anônima, na atribuição de deveres e
responsabilidades ao titular do poder econômico, que é o acionista controlador.
Sendo assim, constituem modalidades de exercício abusivo de poder os atos
praticados pelo acionista controlador, em detrimento dos demais acionistas ou dos que
trabalham na empresa, em orientação da companhia para fim estranho ao objeto social
ou lesivo ao interesse nacional. Segundo a Lei das Sociedades anônimas, como
destaca COMPARATO, exis te supremacia dos interesses comunitários e nacionais,
quando em conflito com o escopo lucrativo da companhia 424.
422
“A Lei 6.404/76 é bastante avançada neste aspecto, estabelecendo uma série de medidas para
impedir o abuso de poder de controle e o desvio de finalidade. Falta, porém, um órgão social nos mold es
do sistema alemão e francês para colocar a efeito esta sistematização.” (SIMIONATO, Sociedades
anônimas..., p. 83).
Neste sentido, LEÃES ( Conflito de interesses... , p. 13.) afirma: “Esse feixe de deveres e
responsabilidades do acionista controlador não pode ser por ele olvidado quando do exercício do direito
de voto nas assembléias gerais, visto que são a ela imputados na reunião assemblear e fora dela. A
omissão da norma legal atinente ao abuso do direito de voto nas assembléias a respeito da função so cial
da companhia (art. 115) é explicada pelo fato de que a Lei 6.404 trouxe para o proscênio legal essa
quarta instância societária, o controlador, que detém efetivamente o poder de mando na sociedade. No
tocante ao exercício do direito de voto na assembl éia (art. 115), a lei restringiu -se a compor os interesses
privados dos sócios na companhia, visto haver transferido para o real detentor do poder na sociedade o
encargo de bem fazê-la desempenhar sua função social, sem perder de vista os interesses dos qu e nela
trabalham, da comunidade em que atua e, principalmente, o interesse nacional.”.
423
LEÃES, Conflito de interesses..., p. 15.
424
LEÃES, Conflito de interesses..., p. 12-14.
BULGARELLI (Regime Jurídico da Proteção às minorias das S.A. , p. 43/44) faz considerações a respeito
dos abusos da maioria. Confira -se: “Dá-se, portanto, proteção à minoria contra os abusos da maioria.
Estes, inegavelmente, existem. Entre nós, ultimamente, vêm -se constatando vários tipos de fraudes ou
abusos que se devem acrescer aos clássicos já apontados pela doutrina. (...) Não pode, portanto, a
minoria ficar à mercê da maioria. Daí porque alguns limites são opostos aos poderes da maioria, sem,
entretanto, reitere-se, romper o princípio majoritário que é fundamental nas sociedades d e capital (hoje,
estendendo-se até as sociedades de pessoas). Contudo, há que se estabelecer limites ao poder da
maioria, criando-se o necessário equilíbrio. (...) Os direitos da minoria não se confundem assim com os
direitos dos acionistas, os quais, como já vimos, servem também a esse escopo”.
170
BERLE e MEANS asseveram que “Uma transação fundamentada na maioria
dos votos, realizada por processos tècnicamente corretos, geralmente se presu me que
seja válida. Quando a maioria é perfeitamente constituída de um ‘contrôle’ e quando se
pode demonstrar que tal ‘contrôle’ é ùnicamente para obter vantagens com a transação,
a presunção desaparece. A lógica é perfeita, porém a aplicação e extremament e difícil,
pois compete ao acionista dissidente provar os possíveis interesses que o ‘contrôle’
possa ter no caso.” 425.
Como exemplo de abuso do poder de controle, BULGARELLI cita descrição
feita por HERNANI ESTRELA, em conferência realizada no Instituto do s advogados de
São Paulo, na qual este indica alguns abusos postos em prática pelos dirigentes das
sociedades anônimas a fim de sonegarem lucros ou não os distribuir. Nesse sentido,
aponta426:
“A subavaliação do ativo, a sobre -estimação do passivo, as desv alorizações
exageradas dos bens instrumentais, e tantas outras, são formas, por assim
dizer, clássicas. Mercê delas têm -se as chamadas reservas latentes, ocultas ou
indiretas. Mas se estas não bastarem para absorção dos lucros na medida
desejada, recorrer-se-á explicitamente a uma maior dotação aos fundos já
E continua (p. 56/57): “De modo geral, os direitos inderrogáveis dos acionistas, independentemente das
diversas classificações, têm -se consubstanciado no seguinte:
I – direitos que repercutem diretamente no patrimôn io:
a) recebimento de dividendos;
b) co-propriedade das reservas;
c) participação na liquidação do ativo;
d) transferibilidade das ações;
e) de preferência;
f) de recesso.
II – meios que a lei confere para manter incólumes e efetivos os primeiros:
a) direito de voto;
b) direito de assistir às Assembléias;
c) direito de informação;
direito de fiscalização e impugnação das decisões da administração e da própria Assembléia.”.
Vale observar, também, a possibilidade de abusos da minoria, como bem esclarece BULGARELLI
(BULGARELLI, Regime jurídico..., p. 42.): “Procura-se assim manter o equilíbrio que é fundamental na
vida societária. Deve-se portanto atentar bem para esse aspecto a fim de não fazer pender a balança
para qualquer dos lados, inclusive da própria minoria. Daí já ter sido posta em evidência a questão dos
abusos da minoria, e se pretendido tutelar a maioria contra a minoria, ou seja, a proteção contra a
minoria.”.
425
BERLE JR., Adolf A. MEANS, Gardiner C. A propriedade privada..., p. 269.
426
BULGARELLI, Regime jurídico..., p. 20.
171
existentes, ou à criação de novos. Se tanto for ainda insuficiente, acabar -se-á
propondo a indistribuição do que remanescer. E assim, encerrando -se o
exercício, vem tudo a ser aprovado pela Assembléia G eral, onde a maioria
domina discricionariamente. (...)”
BULGARELLI indica, ainda 427:
“Além dos abusos verificados ultimamente, em relação à venda do controle,
fusões e incorporações, podem ser alinhados ainda os decorrentes de má
administração (impostas p elos majoritários); a não distribuição de dividendos
por inúmeros exercícios; pelos conluios do grupo, através de compras, vendas,
assistência técnica e financeira, em jogos prejudiciais a uma ou alguma das
empresas pertencentes ao grupo, e também com a re tirada da sociedade da
Bolsa de Valores, através do não cumprimento das obrigações da sociedade
anônima de capital aberto junto ao Banco Central.”.
NISSEN428, por sua vez, afirma que uma das manobras mais comuns de abuso
do controle é a simulação de aument o de capital para liquidar as participações dos
acionistas minoritários, com o objetivo de lhes diminuir no exercício de seus direitos
patrimoniais e políticos. Neste sentido, destaca que o princípio da boa -fé leva a exigir
que as provas sejam produzidas p ela parte que se encontre em melhores condições de
obtê-la. Ressalta, assim, que parece ser evidente que se a sociedade invoca razoes
econômicas, comerciais ou financeiras para fazer o aumento de capital, deve a
sociedade comprovar esta conveniência, e não o impugnante da deliberação.
O Tribunal de Justiça de São Paulo já apreciou algumas questões relacionadas
aos excessos cometidos por administradores. Confira -se a título ilustrativo as ementas
a seguir transcritas 429:
427
BULGARELLI, Regime jurídico..., p. 43.
Panorama..., p. 211-214.
429
Vale apenas registrar também a seguinte decisão do mesmo Tribunal: SOCIEDADE ANÔNIMA Dissolução parcial - Pedido da lavra de sócios detentores de mais de 5 % do capital social - Fundamento
assentado na incapacidade de produção de lucros, na perda da affectio societatis e na prática de atos
abusivos e ruinosos de gestão, por administradores e controladores - Validade da citação editalícia de
428
172
“SOCIEDADE ANÔNIMA - Incorporação - Direito de retirada - Acionistas
dissidentes - Remuneração pelo valor econômico das ações afastada - Abuso
de poder caracterizado - Aplicação do critério que melhor remunere a poupança
captada no mercado, à luz do patrimônio da companhia - Indenização devida
pelo valor patrimonial das ações - Sentença procedente - Recurso desprovido.
(Apelação Cível n. 244.713 -4/9-00 - São Paulo - 6ª Câmara de Direito Privado Relator: Reis Kuntz - 27.10.05 - V.U. - Voto n. 16372)”
“SOCIEDADE ANÔNIMA - Acionista controlador que exclui a participação dos
minoritários, sob o argumento de que a pessoa indicada por eles poderá atuar
contra
a
companhia,
Inadmissibilidade
-
desvirtuando
Legislação
a
pertinente
finalidade
que
da
prevê
fiscalização
os
deveres
e
responsabilidades do administrador, munindo a empresa dos instrumentos
necessários para agir contra o faltoso (TJRJ) - RT 788/379”
Sendo assim, por todo o exposto, observa -se que o abuso do poder de controle
deverá ser avaliado em cada caso, ante a situação concreta e as p eculiaridades que
envolvem, em dado momento histórico, a empresa e a comunidade em que atua.
Feitas estas considerações, vale observar que, em que pese o artigo 116 da Lei
das Sociedades Anônimas não faça referência à responsabilidade civil do controlador ,
isto não significa que tal responsabilidade não seja passível de aplicação.
Primeiramente, observa -se que o artigo 117 da referida lei prevê a
responsabilidade civil para o caso de abuso do poder de controle. Neste sentido, este
alguns acionistas - Configuração de interesse p rocessual, bem como de possibilidade jurídica do pedido Viabilidade do pleito, quando se cuida de sociedade anônima de capital fechado, de característica
familiar, ademais - Quebra da affectio societatis, aliada à inexistência de lucros e de distribuição de
dividendos por longos anos, como elemento ensejador da dissolução parcial da sociedade - Dissolução
parcial decretada, com pagamento de haveres, consoante o que resultar de perícia, que determinará
valor real e atualizado, inclusive ativo imobilizado, para cálculo subseqüente da parte devida aos
retirantes - Admissibilidade do pagamento de haveres, parcelamento, em homenagem ao princípio
fundamental de preservação da sociedade - Entendimento do comando sentencial identificável em
harmonia com a respectiva fundamentação, situada em contexto que não permite supor ordem de
pagamento de uma só vez, incompatível com o suporte motivador da própria decisão (...) (Apelação Cível
n. 137.674-4/4 - Americana - 10ª Câmara de Direito Privado - Relator: Quaglia Barbosa - 04.11.03 - V.U.)”
173
dispositivo legal consid era expressamente diversas modalidades de condutas que
podem ser enquadradas como abuso do poder de controle, não parecendo ter a
pretensão de ser exaustivo a este respeito.
Além do artigo 117, teria aplicabilidade, ainda, o artigo 115 da Lei das S/A que
prevê a disciplina do conflito de interesses, da vedação ao exercício do voto e do
próprio abuso do direito, do qual, como visto anteriormente, o abuso de poder é
subespécie.
Cabe observar, ainda, a possibilidade de aplicação da disciplina civilista a
respeito da responsabilidade civil contratual e extracontratual, conforme a situação
concreta 430.
Por fim, cumpre mencionar, ainda, a aplicabilidade do artigo 246 da Lei das S/A,
sobre o qual se tratará, brevemente, no tópico abaixo.
Assim, conforme a situaçã o concreta de inobservância do disposto no artigo
116 da Lei das S/A, poderá ser, a conduta (comissiva ou omissiva) do controlador,
objeto de sua responsabilização civil.
Seção 2 – A responsabilidade da sociedade controladora
Cumpre registrar, ainda, qu e a responsabilidade da sociedade controladora na
reparação de danos que venha a causar à companhia por atos praticados em infração
aos artigos 116 e 117 da Lei das S/A, que tratam, respectivamente, dos deveres do
controlador e do abuso do poder de control e, encontra amparo no artigo 246 da aludida
lei.
Em síntese, prevê tal dispositivo que a responsabilidade da empresa
controladora, por infração ao previsto nos artigos 116 e 117 da Lei das S/A, pode ser
invocada: (i) pelos acionistas que representem no mín imo 5% (cinco por cento) do
capital social ou (ii) por qualquer acionista, desde que preste caução pelas custas e
honorários de advogado que sejam devidos no caso da ação ser julgada improcedente.
No caso de condenação da sociedade controladora, além da re paração do
dano, esta deverá arcar com as custas, pagar honorários advocatícios de 20% (vinte
430
A responsabilidade civil à luz da legislação civilista não será objeto de análise específica neste estudo.
174
por cento) e um prêmio de 5% (cinco por cento) ao autor da ação, calculados sobre o
valor da indenização.
É possível identificar ao menos um precedente do Superio r Tribunal de Justiça
no qual foi analisada a aplicação do artigo 246, em comento. No aresto (RESP
16410/SP), o Ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira reconhece a legitimidade dos
acionistas minoritários para propor a referida ação, inclusive no caso do co ntrolador
constituir o próprio administrador da companhia 431.
Este dispositivo, vale destacar, trata da responsabilidade em face dos artigos
116 e 117 da Lei das S/A, no que tange aos danos causados à empresa (e não a
acionistas ou terceiros). Assim, é possí vel inferir que nas demais hipóteses (tais como
as do artigo 115 da Lei), a responsabilidade deverá ser apreciada segundo as regras
gerais.
Note-se, ainda, que o referido dispositivo legal faz menção apenas às
sociedades controladoras, nada tratando a resp eito do controlador pessoa física. A
respeito deste tema, LESLIE AMENDOLARA 432 comenta:
“Waldirio Bulgarelli, entretanto, levanta dúvidas no que se refere ao acionista
controlador isoladamente, uma vez que a reparação de danos foi disciplinada
no art. 246, que se dirige à sociedade controladora, remetendo, então, a
matéria para a ação ordinária:
‘Não se tratando, evidentemente, da ação de reparação civil contra o
administrador pelos prejuízos causados ao patrimônio da companhia, nem de
sociedade controladora (prevista no art. 246), deve -se entender trata-se de
ação ordinária, possível de ser intentada por qualquer acionista. Perdeu o
431
Vale a pena referir, ainda, à decisão do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo que reconhece a
legitimidade dos acionistas para proporem ações individuais de reparação em face do administrador.
Confira-se:
“SOCIEDADE ANÔNIMA - Acionista - Promoção de ação individual diretamente contra o administrador
objetivando reparar lesão ou prejuízo pessoal - Admissibilidade, indepen dentemente de qualquer
deliberação da assembléia - Inteligência do art. 159, § 7º, da Lei 6.404/76 (TJRS) - RT 835/358”.
“Art. 159. Compete à companhia, mediante prévia deliberação da assembléia -geral, a ação de
responsabilidade civil contra o administrad or, pelos prejuízos causados ao seu patrimônio. (...)
§ 7º A ação prevista neste artigo não exclui a que couber ao acionista ou terceiro diretamente prejudicado
por ato de administrador.”
432
Os direitos..., p. 127.
175
legislador
a
oportunidade
de
disciplinar,
com
boa
técnica,
a
ação
correspondente aos atos inidôneos dos controladores, como ali ás o fez, com
muita propriedade, em relação à sociedade controladora.’ (Proteção às minorias
na sociedade anônima – Editora Biblioteca Pioneira de Direito empresarial fls.
100).
Apesar das dúvidas do eminente professor, entendemos que a ação é a de
responsabilidade civil para reparação dos danos e poderá ser promovida por
qualquer acionista.”
Assim, segundo o entendimento exposto, no caso de controlador pessoa física
será possível a interposição de ação de responsabilidade civil segundo as regras gerais
(de direito civil ou, ainda, segundo outros dispositivos da lei das S/A).
Diversamente, observa -se o entendimento esposado pelo Tribunal de Justiça
do Rio de Janeiro, ao julgar a Apelação Cível 2001.001.10.401 (data do julgamento:
28/08/01). Confira-se a ementa da decisão:
“A lei equipara a sociedade controladora ao acionista controlador (art. 116, da
Lei 6.404/76). Infere-se, pois, que acionista controlador pode ser pessoa física
ou jurídica, ou grupo de pessoas vinculadas por acordo de voto ou sob controle
comum, podendo ambos figurar no pólo passivo da ação prevista no art. 246,
da Lei das Sociedades Anônimas. (...)”
A ação pleiteando a responsabilidade civil poderá ser interposta por qualquer
acionista e, ainda, conforme o caso concreto, por terceiro q ue tenha legítimo interesse
em vista de dano sofrido.
Seção 3 – O acordo de acionistas
O acordo de acionistas com o fim de exercício do direito de voto e formação do
poder de controle era, inicialmente, repudiado pela doutrina estrangeira. Contudo,
gradativamente, veio a ser aceito, primeiramente pela doutrina e jurisprudência, tanto
176
no Brasil quanto no exterior, quando, finalmente, foi admitido na legislação brasileira
através do artigo 118 da Lei 6.404/76 433. Em sua redação original, o artigo 118 previa :
“Art. 118 - Os acordos de acionistas, sobre a compra e venda de suas ações,
preferência para adquiri -las, ou exercício do direito de voto, deverão ser
observados pela companhia quando arquivados em sua sede.
§ 1º As obrigações ou ônus decorrentes desse s acordos somente serão
oponíveis a terceiros, depois de averbados nos livros de registro e nos
certificados das ações, se emitidos.
§ 2° Esses acordos não poderão ser invocados para eximir o acionista de
responsabilidade no exercício do direito de voto (a rtigo 115) ou do poder de
controle (artigos 116 e 117).
§ 3º Nas condições previstas no acordo, os acionistas podem promover a
execução específica das obrigações assumidas.
§ 4º As ações averbadas nos termos deste artigo não poderão ser negociadas
em bolsa ou no mercado de balcão.
§ 5º No relatório anual, os órgãos da administração da companhia aberta
informarão à assembléia -geral as disposições sobre política de reinvestimento
de lucros e distribuição de dividendos, constantes de acordos de acionistas
arquivados na companhia.” 434.
Este dispositivo sofreu alterações em seu caput e a inclusão de 5 parágrafos
com a edição da Lei 10.303/01. Da redação atual do artigo 118, interessam ao presente
433
Para maiores esclarecimentos a este resp eito: CARVALHOSA, Acordo de acionistas, p. 91-109.
Neste sentido: REQUIÃO, Curso..., vol II, p. 127/128. Este doutrinador (p. 128) comenta brevemente
sobre distinções entre o acordo de votos e o voting trust dos norte-americanos (distinções estas que não
serão abordadas neste estudo) para, ao final concluir que “No fundo, ao nosso ver, importa num acordo
de acionistas”.
Maiores esclarecimentos sobre aspectos polêmicos a respeito do acordo de votos podem ser vistos em
LAMY FILHO, Lei das S.A., p. 284-297.
434
FRAN MARTINS (Curso..., p. 369-370), analisando o artigo 118 supra (na redação original da lei),
esclareceu que: “O acordo de acionistas visa, sobretudo, a orientar o direito de voto nas assembléias
gerais, podendo, também, regular as aquisições ou vendas de ações por parte dos contratantes.
Segundo a lei, para que os acordos possam ser observados pelas companhias é necessário que sejam
arquivados nas mesmas; as obrigações ou ônus decorrentes dos acordos somente serão oponíveis a
177
estudo os excertos a seguir transcritos (os demais parágrafos inclu ídos podem ser
visualizados em nota 435):
“Art. 118. Os acordos de acionistas, sobre a compra e venda de suas ações,
preferência para adquiri-las, exercício do direito a voto , ou do poder de controle
deverão ser observados pela companhia quando arquivados n a sua
sede.(Redação dada pela Lei nº 10.303, de 2001)
(...)
§ 2° Esses acordos não poderão ser invocados para eximir o acionista de
responsabilidade no exercício do di reito de voto (artigo 115) ou do poder de
controle (artigos 116 e 117).
(...)
§ 8o O presidente da assembléia ou do órgão colegiado de deliberação da
companhia não computará o voto proferido com infração de acordo de
acionistas devidamente arquivado. (Incluído pela Lei nº 10.303, de 2001)
(...)” (destacou-se)
terceiros depois de averbad os nos livros de registro e nos certificados das ações, se emitidas. As ações
assim averbadas não serão negociáveis em bolsa nem em mercado de balcão.” .
435
“Art. 118. (...)
o
§ 6 O acordo de acionistas cujo prazo for fixado em função de termo ou condição res olutiva somente
pode ser denunciado segundo suas estipulações. (Incluído pela Lei nº 10.303, de 2001)
o
§ 7 O mandato outorgado nos termos de acordo de acionistas para proferir, em assembléia-geral ou
especial, voto contra ou a favor de determinada deliberação, poderá prever prazo superior ao constante
o
do § 1 do art. 126 desta Lei.(Incluído pela Lei nº 10.303, de 2001)
(...)
§ 9o O não comparecimento à assembléia ou às reuniões dos órgãos de administração da companhia,
bem como as abstenções de voto de qualquer parte de acordo de acionistas ou de membros do conselho
de administração eleitos nos termos de acordo de acionistas, assegura à parte prejudicada o direito de
votar com as ações pertencentes ao acionista ausente ou omisso e, no caso de membro do conselho de
administração, pelo conselheiro eleito com os votos da parte prejudicad a.(Incluído pela Lei nº 10.303, de
2001)
§ 10. Os acionistas vinculados a acordo de acionistas deverão indicar, no ato de arquivamento,
representante para comunicar -se com a companhia, para prestar ou receber informações, quando
solicitadas.(Incluído pela Lei nº 10.303, de 2001)
§ 11. A companhia poderá solicitar aos membros do acor do esclarecimento sobre suas
cláusulas.(Incluído pela Lei nº 10.303, de 2001) ” (destacou-se)
Estas disposições não serão, nesta oportunidade, objeto de apreciação, sob pena de alargar-se por
demasiado o objeto deste estudo.
178
Inicialmente observa-se que o § 8º tornou compulsório o exercício do voto em
conformidade com o acordo de vot os que tenha sido arquivado (sob pena do voto não
ser computado).
Não é, entretanto, esta alteração mais relevante.
A alteração do caput do artigo 118 pôs fim a discussões acerca da possibilidade
de formular-se acordos para o controle da companhia, ao pr ever expressamente esta
possibilidade, ao lado de outros tipos de acordos (inclusive do acordo de votos, que já
constava na redação anterior).
Esta alteração tem grande relevância, tendo em vista que, conforme destaca
CARVALHOSA, a dispersão das ações em uma coletividade desorganizada permite o
exercício do poder, nas grandes companhias, por acionistas que representem
percentual pequeno do capital social, mas que se organizam para tal fim
436
.
Ao lado da nova redação dada ao caput, merece destaque, ainda, o parágrafo
2º do artigo 118, cuja redação é a vigente desde 1976.
Segundo este dispositivo, os acordos não podem ser invocados para eximir o
acionista de responsabilidade no exercício do direito de voto (artigo 115, anteriormente
referido) ou do poder de controle (artigos 116 e 117 da Lei das S/A). Para a lei
societária brasileira, nos acordos de acionistas é o próprio titular da ação que exerce o
voto437.
Por esta razão, WILSON BATALHA esclarece que é ilegítima “(...) a adesão a
acordos de votos de grupos em aberto ou em branco, devendo o acordo explicitar os
objetivos e o sentido do exercício uniforme do voto. A vinculação a acordos em aberto
ou em branco seria inadmissível porque equivaleria a conferir a certos acionistas a
faculdade de, indiscriminadame nte e sem limitação de tempo, exercerem o direito de
voto pelo grupo.” 438.
CARVALHOSA tece diversas considerações acerca do exercício do direito de
voto, mediante acordo de acionistas, e a questão do interesse social. Embora não se
vá, aqui, analisar seu en tendimento específico sobre o que seria tal interesse, vale
436
CARVALHOSA, Acordo de acionistas, p. 103-104.
CARVALHOSA, Acordo de acionistas, p. 109.
438
A nova lei das S/A, p. 106.
437
179
mencionar algumas reflexões que efetua a respeito da contraposição: acordo X
interesse social.
Primeiramente, reflete o referido doutrinador que no acordo de acionistas (para
o exercício do voto) existe uma presunção de abuso de direito (e não de conflito de
interesses) 439. Desta forma, “(...) o voto proferido em assembléia, em consonância com
o acordo, se configurar um conflito substancial de interesses, será abusivo, porque
praticado com desvio de finalidade, que é precipuamente a de atender ao interesse
coletivo e, portanto, social. Esse abuso caracteriza -se não pela intenção de causar
dano aos demais acionistas e à própria companhia, mas pela conduta dos acionistas
convenentes, que poderá ser les iva, ao fazer prevalecer, em determinadas
deliberações, os seus interesses uti singuli, adredemente convencionados.”
440
.
A lesividade, destaca – e isto é aplicável a todos os temas anteriormente
abordados – pode ser verificada não apenas quando a própria co mpanhia sofre uma
perda imediata ou futura, mas também quando deixa de obter uma vantagem lícita
(ainda que tudo o posicionamento do voto tivesse sido acordado em outra conjuntura,
na qual ele não seria abusivo). Neste sentido, exemplifica:
“(...) os votos emitidos, em consonância com acordo de acionistas, no sentido
da distribuição maciça de dividendos, o que, diante de determinada conjuntura
econômica, leva à descapitalização da companhia, podem ser caracterizados,
na espécie, como contrários ao interess e social.
Inversamente, será lesivo aos interesses uti socii o voto dado, em assembléia,
por força o acordo de acionistas, que imponha uma política desnecessária de
reinvestimentos dos lucros apurados, em momentos de prosperidade, nos quais
se permita a eqüitativa distribuição de dividendos. Haverá, no caso, lesão aos
439
CARVALHOSA, Acordo de acionistas, p. 112-114. “A presunção, por isso mesmo, inverte-se: dispõe a
lei que o sufrágio decorrente da existência de acordo de acionistas está sujeito à verificação da ausência
de abuso de direito. (...) A presunção, portanto, é de abuso e não de conflito de interesse. Essa
observação impõe-se pelo fato de que conflito de interesses constitui um conceito formal inconfundível
com a noção de abuso de direito.” Neste esteio, considera (p. 112 -114) que o “Conflito de interesses, em
sentido formal, é sinônimo de impedimento legal que se impõe ao sócio, que é ou será parte na avença,
para formar a vontade do outro contratante, no caso, a companhia.”
440
CARVALHOSA, Acordo de acionistas, p. 112-114.
180
interesses dos demais acionistas, porque lhes tolhe a realização de legítima
expectativa de direito.” 441.
A questão do abuso de poder deve ser examinada, no caso do acordo de votos
para o controle da companhia, “(...) levando -se em conta a finalidade do ato, ou seja, se
o controle está ou não sendo exercido em conformidade com os objetivos legais”, pois,
como alerta CARVALHOSA, trata -se de um direito-função atribuído ao controlador para
a consecução de finalidades precisas, expressamente fixadas na lei societária 442.
Na hipótese de controle exercido através de acordo de acionistas, todos os
seus participantes serão considerados controladores, tendo, assim, responsabilidade
solidária, perante os prejudicados.
Vale a pena lembrar que, mesmo sendo o ato abusivo praticado através de
deliberação da assembléia geral, não se pode considerá -lo como praticado pela própria
sociedade, com o objetivo de responsabilizá -la, pois o desvio de poder do controlad or,
ao determinar a decisão lesiva, desnatura a legitimidade formal da deliberação
443
.
Desta feita, no caso de ação de responsabilidade civil, poderá ela ser proposta
contra todos os acionistas participantes do acordo, que serão solidários.
Aos acionistas convenentes, caso desejem estabelecer efeitos meramente
suspensivos do acordo, e não resolutórios, deverão comunicar à administração geral tal
contingência, antes da assembléia geral, atendendo, assim, a função do controle, sob
pena de não o fazendo, sere m responsabilizados 444. Fazendo isto, em vista da
suspensão do acordo, poderão votar em sentido diverso do que fora inicialmente
pactuado, sem incorrer em abuso de direito ou conflito de interesses.
441
CARVALHOSA, Acordo de acionistas, p. 114-115.
CARVALHOSA, Acordo de acionistas, p. 127-128.
443
CARVALHOSA, Acordo de acionistas, p. 127-128. Conforme alerta CARVALHOSA (p. 130) o fato do
acordo de votos ser um acordo lícito não pode ser invocado como exceção no curso da ação judicial.
444
CARVALHOSA, Acordo de acionistas, p. 128-129.
FÁBIO ULHÔA (Curso..., 2006, p. 318) afirma serem três os tipos de votos infringentes ao acordo de
acionistas: “A lei distingue três situações em que acordo de acionistas sobre o exercício do direito de voto
não é observado: voto em preto infringente do acordo, voto em brando e ausência à assembléia ou
reunião. Na primeira, é proibido computar o voto infringente, mas a alteração de seu conteúdo para
garantir os objetivos do acordo depende de decisão judicial ou arbitral. Nas duas últimas, o direito ao voto
poderá ser exercido por outro acio nista ou administrador, baseado no acordo.”.
442
181
Por fim, vale registrar que o que o Código Penal capitula como crime a
negociação do voto pelo acionista, nas deliberações da assembléia geral, a fim de obter
vantagem para si ou para outrem 445.
Sendo assim, por todo o exposto, conclui -se que o acordo de acionistas para
exercício do direito de voto e/ou do poder de controle não exime os acionistas da
responsabilidade de eventual conduta prevista nos artigos 115, 116 e 117 da Lei das
S/A
(estes
dois
últimos
no
caso
de
controle).
Haverá,
nestas
hipóteses,
responsabilidade solidária de todos os acionistas anuentes co m o referido acordo.
CONCLUSÃO PARCIAL
Conforme esclarecido nas Partes I e II deste estudo, a empresa não é mais
uma simples produtora ou transformadora de bens que coloca no mercado, é um poder,
influenciando direta e contundentemente a realidade socia l, não sendo possível
compreender, portanto, uma total e completa liberdade dos proprietários de bens de
produção.
Desta forma, ao se definir o que constitui interesse social, deve -se ter em mente
a função social da empresa, que deverá ser observada quand o do exercício do direito
de voto. E é sobre o exercício do voto, à luz da Lei das Sociedades Anônimas, que
versou a Parte III deste estudo.
O direito de voto é regulamentado por diversos dispositivos da Lei das S/A, dos
quais interessam para a análise pr oposta (sem descurar da importância de outras
normas) os artigos 115, 116 e 118 da referida lei.
Não foram objeto de considerações questões específicas vinculadas à
responsabilidade dos administradores das sociedades anônimas, nem as relacionadas
às modalidades de abuso de poder de controle previstas no artigo 117 da Lei das S/A,
sob pena de se delongar em demasiado o presente estudo.
445
TAVARES PAES, Manual...,p. 101.
No mesmo sentido, WILSON BATALHA, ( A nova lei das S/A, p. 107) afirma: “Observe-se, finalmente, que
é ilícito o comércio de votos, de que sobrevém a nulidade do voto exercido em decorrência de pacto
ilícito. O art. 115 da Lei n. 6.404/76 deixa claro que o acionista deve exercer o direito de voto no interesse
da companhia, do que decorre a inadmissibilidade de negociação, com objetivos personalíssimos, desse
direito.”.
182
O caput do artigo 115 da Lei das S/A (mantido pela reforma da Lei 10.303/01)
prevê a vedação ao exercício abusivo do direit o de voto e, ainda, que o voto deve ser
exercido no interesse da companhia não podendo, portanto, ser emitido em conflito de
interesses.
O abuso do direito de voto . A análise dos casos de abuso no exercício do direito
de voto deve ser feita à luz da teoria do abuso do direito.
O abuso do direito constitui, em síntese, um desvio no seu exercício regular por
faltar ao titular legítimo interesse para exercê -lo daquele modo ou por sua destinação
econômica e social ter sido frustrada. A teoria do abuso do direit o parte da premissa de
que nenhum direito é absoluto – todo direito deve respeitar sua finalidade social, sob
pena de se configurar o abuso.
Existem basicamente duas correntes doutrinárias a respeito da teoria do abuso
do direito: a corrente subjetiva e a objetiva. Para a primeira, há abuso quando o ato é
praticado com mera intenção de prejudicar terceiro ou sem qualquer interesse para o
agente. Para a segunda, ocorre abuso quando o titular do direito o utiliza em desacordo
com a finalidade social para a q ual o direito foi reconhecido.
Neste sentido, o caput do artigo 115 da Lei das S/A (mantido pela reforma da
Lei 10.303/01), ao tratar do abuso do direito, estabelece genericamente duas condutas
que, se perseguidas pelos acionistas votantes, configuram o r eferido abuso. São elas:
(i) o voto emulativo (com o propósito de causar prejuízo a terceiros, no caso, à
companhia ou a outros acionistas) - tal prejuízo pode ser real ou potencial, material ou
moral; e (ii) a obtenção de vantagem indevida pelo votante, p ara si próprio ou para
terceiro, que acarrete ou possa acarretar prejuízo à companhia ou a outros acionistas.
Nesta segunda hipótese, para a caracterização do abuso, exige -se,
cumulativamente, além da vantagem indevida para o acionista ou terceiro, a existência
de prejuízo, ainda que potencial, à companhia ou a outros acionistas. As vantagens
indevidas são aquelas que implicam em desequilíbrio, em violação ao princípio de
igualdade relativa.
Observou-se que, quanto ao voto emulativo, a doutrina tende a cons iderar a
necessidade de presença do elemento subjetivo para a caracterização do abuso do
direito, ao passo que no caso da vantagem indevida parece não existir uma
183
uniformidade de entendimentos, existindo corrente que entenda tratar -se de (i) fato
objetivamente apreciável; (ii) que compreenda a necessidade de presença de elemento
subjetivo; e, ainda, (iii) que considere que este elemento subjetivo deva ser considerado
de forma objetiva (verificando se a deliberação visa fins que repugnam ao sentido
jurídico).
Como conseqüência do voto abusivo é possível observar a responsabilidade
civil do acionista que votou abusivamente.
Há, além desta penalidade, discussão doutrinária acerca da possibilidade de
anulação de deliberação social para a qual o voto abusivo tenh a sido determinante.
ULHÔA esclarece, a este respeito, que a lei não prevê expressamente, para o caso de
abuso do direito de voto, a possibilidade da aludida anulação.
Além do abuso do direito de voto, o artigo 115 refere, em seu parágrafo
primeiro, a hipóteses de vedação ao exercício do voto e ao conflito de interesses .
No caso da vedação ao exercício do voto, é possível analisar -se a situação
objetivamente, e, até mesmo previamente. À análise objetiva, contrapõe -se a
substantiva, ou subjetiva, que leva e m conta a apreciação da situação concreta.
Das hipóteses previstas no parágrafo primeiro do referido artigo 115, a doutrina
é assente em considerar como vedação ao direito de voto a deliberação em relação: (i)
ao laudo de avaliação de bens com que o acioni sta venha a concorrer para a formação
do capital social (salvo exceção prevista na lei); e (ii) à aprovação das contas do
acionista na condição de administrador.
Diverge a doutrina quanto à possibilidade de se considerar como vedação ao
exercício do voto deliberações nas quais o acionista possa ser beneficiado de modo
particular.
Por sua vez, no que refere ao conflito de interesses, tende -se a considerar a
necessidade de análise substantiva, ou seja, de apreciação da situação concreta.
A respeito do que vem a ser interesse da companhia, já se tratou na Parte II
deste estudo, tendo-se chegado à conclusão de que o interesse social deve ser visto
tanto em sentido estrito (interesse comum dos sócios enquanto tais) quanto lato
(interesse social funcionalizado) e
adotou-se como paradigma a concepção
funcionalizada da empresa e da titularidade de ações, devendo, pois, ser a concepção
184
lata de interesse social aplicada para fins de análise das regras de conflito de
interesses.
No caso do vedação ao exercício do voto e do conflito de interesses haverá a
possibilidade de responsabilização civil do acionista que vota em infringência, sem
prejuízo da possibilidade de anulação da deliberação para a qual seu voto tenha sido
determinante e da transferência para a companhia de eventuais vantagens que tenha
obtido.
A posição do acionista controlador. Ao acionista controlador – em decorrência
do poder que detém – foram atribuídos outros deveres além daqueles previstos no
artigo 115 da Lei das S/A. Neste sentido, o artigo 116 da a ludida lei estabelece
expressamente que o controlador deve usar seu poder no interesse social. Deve ele
agir de forma a perseguir o interesse social, fazendo a companhia realizar seu objeto e
função social, sem infringir interesses dos demais acionistas, t rabalhadores,
comunidade e o interesse nacional.
No artigo 117, a mesma lei prevê a responsabilidade do controlador por
exercício abusivo do poder de controle, indicando (ao que parece não exaustivamente)
condutas que considera modalidades de exercício ab usivo de poder.
Assim, em princípio, em que pese o artigo 116 da Lei das S/A não preveja
expressamente a possibilidade de responsabilização civil do controlador, é possível
denotar a viabilidade de imposição desta responsabilidade com base no artigo 117 e no
artigo 115, anteriormente mencionados.
No caso de o controlador ser pessoa jurídica terá aplicação o artigo 246 da Lei
das S/A, que prevê a responsabilidade civil, em expressa referência aos artigos 116 e
117 da Lei das S/A.
Não fossem estes dispositivo s, parece que ainda seria aplicável a disciplina da
responsabilidade civil prevista no Código Civil.
Por fim, no que trata do acordo de acionistas para o exercício do direito de voto
ou do poder de controle, cabe observar que, nos termos do parágrafo segu ndo do artigo
118 da Lei das S/A, tais acordos não isentam de responsabilidade o acionista que com
eles anuiu, havendo, no caso, solidariedade de todos os que firmaram o acordo do qual
decorreu o voto abusivo, vedado ou em conflito de interesses. Nestes ca sos, os
185
acionistas anuentes do acordo deveriam ter tomados as providências legais cabíveis
antes do exercício do voto.
186
CONCLUSÃO
A Constituição reconhece o direito de propriedade e a função social da
propriedade como direitos individuais (artigo 5º, XX II e XXIII) e como princípios da
ordem econômica (artigo 170, II e III da Constituição Federal).
Reconhece, ainda, ao lado destes princípios da ordem econômica, a liberdade
de iniciativa, e estabelece que a ordem econômica tem por objetivo assegurar a to dos
existência digna, conforme os ditames da justiça social.
Estes princípios – direito de propriedade, função social da propriedade e
liberdade de iniciativa - são coexistentes e conformam -se reciprocamente em virtude da
unidade da Constituição, assegur ando a existência do sistema econômico capitalista,
conformando-o à justiça social.
A Carta vigente em momento algum teve a pretensão de erradicar o capitalismo
ou extinguir a possibilidade de obtenção de lucros, estabelecendo o princípio da
liberdade de iniciativa contrapeso à função social da propriedade, buscando um ponto
de equilíbrio entre a liberdade e a subordinação ao interesse coletivo.
Por se tratarem de princípios constitucionais, são eles dotados de efetividade,
conforme reconhece a doutrina majoritária. Tratam-se de normas efetivas, dotadas de
imperatividade que, embora não prescrevam obrigações precisas (o que é feito pelas
regras), apresentam uma finalidade a ser atingida, devendo ser adotados todos os
meios necessários para a obtenção do f im por eles colimado.
Os princípios constitucionais constituem o centro do sistema jurídico e devem
nortear a aplicação das normas infraconstitucionais, bem como o processo de criação
das mesmas.
Sob o ponto de vista constitucional, o direito de proprieda de (e a sua respectiva
função social) não está adstrito à propriedade física, material, englobando, de outro
modo, toda espécie de bens que possua caráter patrimonial, dentre os quais é possível
incluir as ações. Desta forma, é possível reconhecer que a ti tularidade de ações é
direito de propriedade para fins constitucionais e, como tal, está conformada pela
função social e pelos fins da ordem econômica.
187
No âmbito do Direito Civil, é possível considerar que a titularidade de ações
também constitui relação proprietária: os titulares de ações usualmente tem o poder de
usar, gozar e dispor das ações e de seus frutos. O poder de gestão, embora possa
estar presente, nem sempre pertence a todos os titulares de ações (ainda que se refira
a titulares de ações com d ireito de voto) – o que não significa a ausência de relação de
propriedade (princípio da elasticidade).
Assim, parece possível reconhecer o exercício do direito de voto (pelos titulares
das ações) como exercício de um direito real, posto que o voto poderá ser exercido
independentemente da anuência dos demais acionistas ou de terceiros (desde que, é
claro, se esteja diante de situação que, nos termos da lei, possibilite o exercício de tal
direito), sendo-lhe aplicável, portanto, o artigo 1.228 do Código Civi l.
Embora não se tenha aprofundado o estudo da questão sob a ótica civilista,
observou-se que o artigo 1.228 do Código Civil determina que o direito de propriedade
deve ser exercido em consonância com as finalidades econômicas e sociais
-
finalidades que passam a ser inerentes ao direito de propriedade e à titularidade das
ações, vinculando o exercício do direito do voto.
Resta claro assim, que o direito de propriedade deve ser visto sob o paradigma
da função social da propriedade, não sendo admissível sua utilização com caráter
estritamente egoístico.
Nesta linha de análise, concluiu -se a primeira parte do estudo proposto,
constando-se que: (i) a amplitude do conceito de “propriedade”, sob a ótica
constitucional, engloba as relações de propriedade represe ntadas pela titularidade de
ações; (ii) a titularidade das ações, sobretudo no que tange ao exercício do direito de
voto, pode ser enquadrada como direito real sob a ótica do Direito Civil.
O voto – expressão de poder desta propriedade - constitui uma manifestação de
interesses. E estes interesses, segundo a Lei das Sociedades Anônimas, devem ser
justamente coincidentes com o interesse social (aqui entendido como o da sociedade empresa), sob pena do voto ser maculado pelo conflito de interesses.
Neste sentido, questionou-se o que vem a ser o interesse social (da
companhia). Observou -se, então, que diversas concepções foram desenvolvidas a
respeito do interesse social.
188
Tais concepções se dividem em duas grandes principais vertentes teóricas - as
teorias contratualistas e institucionalistas - que, por sua vez, se subdividem.
Em breve síntese, é possível afirmar que para as vertentes institucionalistas, a
grande empresa não é mais uma organização de direito privado, mas sim um fator da
economia nacional, a serviço dos interesses públicos, devendo, portanto, ser vista sob
uma ótica mais publicista e menos egoística. Dentre as vertentes institucionalistas
pode-se mencionar: (i) a teoria da empresa em si; (ii) a teoria da pessoa em si; (iii) a
teoria da instituição, propriamente dita; e (iv) as concepções norte -americanas.
As teorias contratualistas, por sua vez, contemplam a sociedade anônima como
uma relação contratual, na qual os únicos interesses seriam os dos contratantes, ou
seja, dos sócios. Das vertente s contratualistas podem ser destacadas: (i) a do interesse
comum dos sócios (atuais); (ii) a do interesse comum dos sócios atuais e futuros à
eficiência da empresa social; (iii) do interesse comum como o “interesse dos sócios à
eficiência da empresa e à di stribuição de lucros e dividendos”; (iv) do interesse comum
como “conceito relativo”; e (v) do interesse comum como “qualquer relação de
solidariedade entre interesses individuais”.
Além destas, fala-se, ainda, na “análise econômica do Direito” e na teori a do
“contrato organização” (ou institucionalismo organicista).
Para a primeira (em sua vertente clássica), a empresa constitui um feixe de
contratos, centrando-se nas formas econômicas. Para a teoria do contato organização,
por sua vez, o interesse soci al volta-se à melhor organização possível do feixe de
relações envolvidas pela sociedade.
Cada uma destas teorias (e suas subdivisões), por suas peculiaridades, quando
aplicadas levam a conclusões distintas quanto à existência e à solução de conflitos de
interesses nas sociedades anônimas abertas.
Atualmente, no Brasil, tem despontado as teorias (ou concepções) que
consideram o interesse social como o interesse comum dos sócios, enquanto tais,
sendo relevantes a manutenção da empresa, a lucratividade, a d istribuição de lucros
(ou a formação de reservas, conforme a situação econômica da empresa), e, ainda, os
interesses dos empregados, da comunidade, do desenvolvimento regional, da
preservação e recuperação do meio ambiente, dentre outros, revelando assim, a
189
importância da empresa no cenário sócio -econômico, e reconhecendo a necessidade
de observância da sua função social.
Sobretudo as grandes empresas de capital aberto deixam de ser vistas como
mero instrumento especulativo ou voltado à satisfação de inter esses estritamente
egoísticos, passando a ser reconhecidas como essenciais e funcionalizadas.
Desta forma, denota-se que o interesse social pode ser visto tanto em sentido
estrito (interesse comum dos sócios enquanto tais) quanto lato (interesse social
funcionalizado). A condução da atividade da empresa deve estar voltada também à
concretização da função social e o voto – elemento fundamental ao direcionamento da
empresa – deve ser exercido em observância a tais interesses (sob pena de restar
configurada situação de conflito de interesses ou, conforme o caso, abuso do direito de
voto).
Neste sentido, vale observar que a Constituição de 1967 já consagrava o
princípio da função social da propriedade quando da edição da Lei das Sociedades
Anônimas (Lei 6.404/76) – princípio que, frise-se, é mantido na Constituição de 1988.
Assim, esta concepção funcionalizada da empresa e da titularidade de ações é
que deve nortear o exercido o direito de voto.
Analisando-se a aplicação destes conceitos na aplicação da Lei d as
Sociedades Anônimas, foram objeto de apreciação os artigos 115, 116 e 118 da
referida lei que, sem descurar da importância de outros dispositivos legais, parecem
possibilitar a aplicação dos conceitos e paradigmas anteriormente referidos.
O artigo 115 da Lei das S/A (mantido pela reforma da Lei 10.303/01) prevê a
vedação ao exercício abusivo do direito de voto, vincula o seu exercício ao interesse da
companhia e, ainda, estabelece vedações expressas ao seu exercício.
O abuso no exercício do direito de v oto deve ser apreciado à luz da teoria do
abuso do direito, à qual se aludiu brevemente neste estudo (a teoria do abuso do direito
parte da premissa de que nenhum direito é absoluto – todo direito deve respeitar sua
finalidade social, sob pena de se config urar o abuso).
O caput do artigo 115 da Lei das S/A (mantido pela reforma da Lei 10.303/01),
ao tratar do abuso do direito, estabelece genericamente
duas condutas que, se
perseguidas pelos acionistas votantes, configuram o referido abuso. São elas: (i) o voto
190
emulativo (com o propósito de causar prejuízo a terceiros, no caso, à companhia ou a
outros acionistas) - tal prejuízo pode ser real ou potencial, material ou moral; e (ii) a
obtenção de vantagem indevida pelo votante, para si próprio ou para terceir o, que
acarrete ou possa acarretar prejuízo à companhia ou a outros acionistas.
Quanto ao voto emulativo, a doutrina tende a considerar a necessidade de
presença do elemento subjetivo para a caracterização do abuso do direito, ao passo
que no caso da vanta gem indevida parece não existir uma uniformidade de
entendimentos a respeito.
Como conseqüência, o voto abusivo acarreta a responsabilidade civil do
acionista que votou abusivamente. Discute -se, ainda, na doutrina, acerca da
possibilidade de anulação de de liberação social para a qual o voto abusivo tenha sido
determinante.
Além do abuso do direito de voto, com dito anteriormente, o artigo 115 refere,
em seu parágrafo primeiro, a hipóteses de vedação ao exercício do voto e ao conflito de
interesses.
Na vedação ao exercício do direito de voto é possível analisar -se a situação
objetivamente, e, até mesmo previamente. À análise objetiva, vale registrar, contrapõe se a substantiva, ou subjetiva, que leva em conta a apreciação da situação concreta.
Das hipóteses previstas no parágrafo primeiro do referido artigo 115, a doutrina
é assente em considerar como vedação ao direito de voto a deliberação em relação: (i)
ao laudo de avaliação de bens com que o acionista venha a concorrer para a formação
do capital social (salvo exceção prevista na lei); e (ii) à aprovação das contas do
acionista na condição de administrador. Diverge, entretanto, a doutrina quanto à
possibilidade de se considerar como vedação ao exercício do voto as deliberações nas
quais o acionista possa ser beneficiado de modo particular.
Por sua vez, no que refere ao conflito de interesses, a doutrina tende a
considerar a necessidade de análise substantiva, ou seja, de apreciação da situação
concreta.
O interesse social, neste caso, como já referido ant eriormente, deve ser visto de
forma lata, adotando-se como paradigma a concepção funcionalizada da empresa e da
191
titularidade de ações: é esta concepção que deve ser aplicada para fins de análise das
regras de conflito de interesses.
No caso do divieto di voto (vedação ao exercício do voto) e do conflito de
interesses haverá a possibilidade de responsabilização civil do acionista que vota em
infringência, sem prejuízo da possibilidade de anulação da deliberação para a qual seu
voto tenha sido determinante e da transferência para a companhia de eventuais
vantagens que tenha obtido.
Ao acionista controlador, por sua vez, em decorrência do poder que detém,
foram atribuídos outros deveres além daqueles previstos no artigo 115 da Lei das S/A.
Neste sentido, o artigo 116 da aludida lei estabelece expressamente que o
controlador deve usar seu poder no interesse social. Deve agir de forma a perseguir o
interesse social, fazendo a companhia realizar seu objeto e função social, sem infringir
interesses dos demais acion istas, dos trabalhadores, da comunidade e o interesse
nacional. O artigo 117, da mesma lei, prevê, ainda, a responsabilidade do controlador
por exercício abusivo do poder de controle, indicando (ao que parece não
exaustivamente) condutas que considera moda lidades de exercício abusivo de poder.
Assim, em princípio, em que pese o artigo 116 da Lei das S/A não preveja
expressamente a responsabilização civil do controlador, pode -se denotar a viabilidade
de sua atribuição com base nos artigos 115 e 117, anterior mente mencionados. No
caso de controlador pessoa jurídica terá aplicação o artigo 246 da Lei das S/A, que
estabelece expressamente a responsabilidade civil em relação aos artigos 116 e 117 da
Lei das S/A, sendo possível argumentar a aplicabilidade ao contr olador pessoa física.
Não fossem estes dispositivos, ainda seria aplicável a disciplina da responsabilidade
civil prevista no Código Civil.
Por fim, no que trata do acordo de acionistas para o exercício do direito de voto
ou do poder de controle, cabe obs ervar que, nos termos do parágrafo segundo do artigo
118 da Lei das S/A, tais acordos não isentam de responsabilidade o acionista que com
eles anuiu, havendo, no caso, solidariedade de todos os que firmaram o acordo do qual
decorreu o voto abusivo, vedado ou em conflito de interesses. Nestes casos, os
acionistas anuentes do acordo deveriam ter tomados as providências legais cabíveis
antes do exercício do voto.
192
Sendo assim, os acionistas, controladores ou não, têm responsabilidades pela
condução da empresa n o atingimento de sua função social, devendo exercer o voto em
consonância com esta função e não apenas com esta, mas também com a própria
funcionalização do exercício do voto, por ser este expressão do direito de propriedade.
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