Investigando as estruturas memorialísticas de Dois Irmãos, de Milton Hatoum, e
de Nove Noites, de Bernardo Carvalho
Renan Augusto Ferreira Bolognin, bolsista CNPQ
Profª Drª Rejane Cristina Rocha, Orientadora
Universidade Federal de São Carlos (UFSCar)
Apresentação
Nossa pesquisa interessa-se pelo estudo da ficção brasileira contemporânea.
Seus problemas e hipóteses partem de um trabalho de iniciação científica concluído em
janeiro de 2012, sob a orientação da Profa. Dra. Rejane Cristina Rocha, no qual
investigamos “As cadeias de causas e os efeitos no diálogo das memórias em Dois
Irmãos”, como pesquisa voluntária pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar).
Nesta pesquisa, e comunicação proposta, damos o prosseguimento da análise do
romance Dois Irmãos (2007), de Milton Hatoum, e acrescentamos a análise do
romance Nove Noites (2004), de Bernardo Carvalho, com vistas a obtermos
considerações crítico-teóricas a respeito de como os narradores destes romances
lidam com as memórias em suas narrativas.
O autor do romance Dois Irmãos (2007) é um amazonense chamado Milton
Hatoum, nascido no dia 19 de agosto de 1952. Destaca-se, no Brasil, pelo tri-Jabuti,
atribuídos a Relato de um certo oriente (1989)1, Dois Irmãos (2000) e Cinzas do Norte
(2002). Durante a juventude, Hatoum estudou no Colégio de Aplicação da UNB, em
1967, cursou arquitetura e urbanismo na USP e, posteriormente, exerceu as profissões
de jornalista cultural e professor universitário de história da arquitetura. Através de uma
bolsa angariada, durante os anos 80, teve a oportunidade de conhecer as cidades de
Madri e Barcelona e estudar literatura comparada na universidade de Sorbonne (Paris
III). Ao todo, a obra de Hatoum está disponibilizada em 14 países e em 10 línguas
distintas. Desde 1998 reside em São Paulo e é colunista do Jornal de São Paulo e do
site Terra magazine
Bernardo Carvalho é um autor carioca, nascido no ano de 1960. Destacou-se no
cenário literário depois de receber o prêmio Portugal Telecom de Literatura Brasileira
pelo romance Nove Noites (2002) e, posteriormente, o Jabuti em 2003 pelo romance
Mongólia (2003). Jornalista de formação, Bernardo Carvalho se graduou em 1983 na
PUC/RJ. Em 1986, mudou-se para São Paulo e trabalhou como diretor do suplemento
Folhetim, da Folha de São Paulo de 1987 a 1989. Depois, tornou-se correspondente de
Paris, em 1990, e de Nova Iorque, de 1991 a 1993. Além disso, iniciou mestrado em
cinema na Escola de Comunicações e Artes, da Universidade de São Paulo, no ano de
1989, e o concluiu no ano de 1983, mesmo ano de sua primeira obra literária:
Aberração. Sua obra está disponibilizada atualmente em mais de dez idiomas e é
considerado um dos grandes autores da literatura brasileira contemporânea.
Sobre as duas obras, devemos, antes de tudo, fazer um breve resumo dos
enredos de ambas. Em Dois Irmãos (2007), temos a narrativa da chegada de libaneses
à Manaus. Entre estes, Zana e seu pai Galib fundam o Biblos, um restaurante de
comida típica libanesa com tempero manauara. Com o passar do tempo, um mascate,
também libanês, chamado Halim, apaixona-se por Zana e declara-se sob as vistas de
todos que estavam almoçando no restaurante. Embora Halim estivesse envergonhado
com a situação, consegue casar-se com a pretendente. Com o passar do casamento,
conhecem a índia Domingas, que era mal tratada em um convento e é agregada na
mesma casa dos libaneses recém-casados, ainda que Halim desconfiasse que ela
atrapalharia suas núpcias eternas com Zana.
1
Os anos dessas obras não referem-se ao ano de publicação dos romances, mas sim ao ano de publicação das edições e/ou reimpressões que
estão presentes nas “Referências”. O mesmo ocorre com a data de publicação das obras de Bernardo Carvalho, informadas no parágrafo
subsequente.
Em seguida à chegada de Domingas, Zana insiste a Halim para que tenham três
filhos, outro pedido visto a contragosto por Halim. Porém, a libanesa engravida e dá a
luz aos dois irmãos gêmeos que intitulam a obra (Yaqub e Omar), e a Rânia. Anos mais
tarde, nasce Nael, filho de Domingas. Após uma parte de sua vida como agregado e
serviçal da família, Nael se indaga sobre sua paternidade a partir de retalhos das
memórias da família, principalmente os contados pelo avô Halim, e por Domingas. Ou
seja, no contar de Nael estão impressos fatos que ele não experimentou.
Nove Noites (2004) tem um enredo baseado no porquê de um antropólogo
estadunidense com futuro promissor, chamado Buell Quain, suicidar-se durante seu
período de estudo na tribo dos índios Krahô, na noite de 2 de agosto de 1939, após
receber supostas más notícias da família. Nesta obra há dois narradores: um que
chamamos de narrador principal, que é inominado, e interessa-se pelas razões do
suicídio do americano a partir de uma notícia de jornal lida na manhã 12 de maio de
2001, quase 62 anos após o suicídio. Para desfazer sua obsessão, o narrador principal
recorre a documentos que possam ajudá-lo a solucionar o mistério do suicídio do
americano, como, por exemplo, cartas do próprio suicida e fotos da época, além de
procurar pessoas que, possivelmente, envolveram-se com Quain. De modo a existir
uma grande barreira temporal, que impeça a sobrevivência da maioria destes
informantes, há raras exceções, como a do professor Luís de Castro Faria, que
conviveu com Quain. A respeito do suicídio de Quain há outra instância narrativa, na
qual o sertanejo-engenheiro Manoel Perna, morto em 1946, escreve em itálico uma
narrativa epistolar. Nela, aparecem frequentemente os dizeres “Isto é para quando
você vier”, que, provavelmente, seriam relacionadas a um destinatário que poderia
dizer o real motivo do suicídio do antropólogo, mas isso nunca acontece. Além do mais,
a esta instância narrativa o narrador principal, provavelmente, não tenha acesso, pois
quando pergunta aos dois filhos do engenheiro a respeito de alguma suposta chave
que solucione o misterioso suicídio de Quain, lhe dizem que ele não deixou nada por
escrito.
Ao aproximamos ambos os romances, perceberemos que existem alguns pontos
de contato em relação à estruturação narrativa deles. Em primeiro lugar, os dois
possuem narradores que narram de uma perspectiva de sujeitos que não
experimentaram parte dos fatos narrados, ou seja, à margem dos fatos. No caso de
Dois Irmãos (2007), Nael recorre aos familiares para saber a respeito do passado. Já
em Nove Noites (2004), o narrador principal recorre a documentos e testemunhos para
solucionar o mistério de Buell Quain. Além do mais, por vezes, aliadas a essas
memórias, os narradores fragmentarão a dita ordem linear do discurso, acrescentando
ao presente da narração fatos do passado.
A partir da base teórica proporcionada pelos princípios narratológicos de Gérard
Genette (1995) como objetivos gerais estudaremos as criações de cadeias de causas
e efeitos das memórias (Pellegrini, 2004) e os problemas da análise do funcionamento
estrutural memorialístico em Dois Irmãos (2007) e em Nove Noites (2004).
A partir destes objetivos gerais, nossos objetivos específicos serão os
seguintes:
a) Compreender como as memórias dos narradores e de outros personagens
são manejadas estruturalmente pela voz dos narradores;
b) Estudar como a construção do fluxo memorialístico nos dois romances indicia
e/ ou pode significar uma ferramenta narrativa para a construção da identidade dos
narradores e personagens dos romances;
c) Discutir a maneira pela qual os contrastes entre tempo da história e tempo do
discurso contribuem para a utilização das memórias nos romances em questão;
d) Descrever mecanismos narrativos que indiquem a memória como reflexo da
fragmentação identitária dos narradores e personagens;
e) Descrever como a presença de memórias nos dois romances pode
representar na literatura brasileira contemporânea um traço significativo e, se sim,
como podemos entendê-lo;
As nossas análises concentrar-se-ão nos romances, então, de acordo com as
justificativas abaixo:
1. O tempo como principal elemento de toda a articulação narrativa. Ou seja,
tanto em Dois Irmãos (2007), quanto em Nove Noites (2004), as memórias são a
principal referência ao modo de manipulação narrativa e o principal eixo das
estruturações da ordem da história.
2. O tempo é nos dois romances um meio eficazmente utilizado pelos narradores
para a construção da própria identidade, no caso de Nael, narrador de Dois Irmãos
(2007), ou para a construção da própria identidade e da de outrem, como sucede, no
mistério que cerceia o suicídio de Buell Quain em Nove Noites (2004).
3. As memórias proporcionam nos dois romances encadeamentos de causas e
efeitos que têm motivações específicas de cada narrador e podem representar um dos
porquês do uso frequente de estruturas memorialísticas na literatura brasileira
contemporânea.
Nas perspectivas tomadas acima as memórias são efetivamente integradas às
obras em questão de modo a representarem inserções de fatos, obviamente do
passado, embora não estejam cronologicamente organizadas. Isto é, durante a
narração dos dois romances nos damos conta de que o passado, muitas vezes,
mescla-se com o presente e também com o futuro da narrativa. Ou como diz Regina
Dalcastagné (2005): “não é de estranhar que esbarremos vez ou outra em
personagens que, para confirmar sua existência, precisem „organizar um passado‟”
(DALCASTAGNÉ, 2005, p.116) ou vejamos tais mesclas temporais como consequência
das identidades, como um “tipo de tentativa de reparação de uma realidade
estilhaçada” (RIAUDEL, 2009, p.253).
Os personagens Nael e o narrador principal de Nove Noites (2004), que
organizam a narração dos romances, são “partidos ou divididos”, embora vivenciem
suas experiências como “unificados” e tentem, desde o início de seus relatos, organizálos de modo a conferir-lhes uma ilusão de totalidade. Ocorre, porém, que, ao depender
dos relatos das memórias alheias para comporem suas próprias memórias, o tecido de
suas identidades se desfia na medida em que se fia a própria narrativa que procuram
construir. Por isso, a busca de suas constituições identitárias poderão produzir relatos
estilhaçados de memória que devem ser encaixados.
Em Dois Irmãos (2007), por exemplo, o narrador Nael não conhece todas as
histórias advindas antes de seu nascimento e, por isso, serve-se das memórias de
outros personagens do romance, principalmente, seu avô Halim e a mãe Domingas
para descobrir quem é realmente seu pai entre os dois irmãos. Em Nove Noites (2004),
a busca pelo descobrimento da razão do suicídio do americano se converte em uma
quase obsessão do narrador principal. Porém, isso não impede que os narradores de
ambos os romances completem as lacunas de suas narrativas com interpretações do
passado e/ou com outras disposições de ordens temporais, pois a eles é impossível ter
acesso a todas as memórias por não terem experimentado a “história original”.
Para exemplificar, observem os trechos a seguir, que se referem a Dois Irmãos
(2007):
EU NÃO SABIA NADA DE MIM, como vim ao mundo, de onde tinha vindo. A origem: as origens. Meu passado,
de alguma forma palpitando na vida dos meus antepassados, nada disso eu sabia. Minha infância, sem nenhum
sinal de origem. É como esquecer uma criança dentro de um barco num rio deserto, até que uma das margens a
acolhe (HATOUM, 2007, p.54, grifos do autor).
Alguns fatos acontecidos antes do nascimento de Nael apontam para o que as
memórias poderiam completar em sua identidade: saber o passado é se relacionar com
os que o hajam experimentado. Ainda assim, o desconhecimento do passado não o
impede de narrar, o que nos parece um grande motivo para estudar como as
memórias, ainda que não sejam completamente conhecidas pelos seus narradores,
possam ser narradas. Evidentemente, neste envolvimento entre as memórias e a
constituição da identidade existe em comum, além do tempo, a confiança entre os
interlocutores. A identidade deste narrador poderá ser construída, então, através de
relatos de outros personagens, de acordo com a proximidade de seu interlocutor:
Foi Domingas quem me contou a história da cicatriz no rosto de Yaqub. Ela pensava que um ciuminho reles
tivesse sido a causa da agressão. Vivia atenta aos movimentos dos gêmeos, escutava conversas, rondava a
intimidade de todos. [...] A minha história também depende dela, Domingas. (HATOUM, 2007, p.20)
O trecho acima diz respeito ao fluxo de memórias de Domingas, manipulado por
um narrador que tende a “valorizar a peculiar utilização de códigos temporais e de
focalização ativados em tal situação narrativa (LOPES; REIS, 1988, p.121)”. O apelo
às memórias feito por Nael o permite, de alguma forma, reviver o passado não vivido,
com quem mantém vínculos diretos (ou afetivos) e, assim, encaixar mais uma peça
entre os fragmentos de sua identidade.
Do mesmo modo, há alguns funcionamentos intrigantes das memórias em Nove
Noites (2004), como quando Manoel Perna diz a seu interlocutor: “Passei anos à sua
espera, seja você quem for, contando apenas com o que eu sabia e mais ninguém,
mas já não posso contar com a sorte e deixar desaparecer comigo o que confiei à
memória” (CARVALHO, 2004, p. 8, grifos do autor). No entanto, ainda que chame um
interlocutor para essas memórias, a quem pertence o outro lado da história, nunca
saberemos ao certo quem é. Com o avançar da leitura pensamos que este seria o
narrador principal, mas ao longo descobrimos que tampouco é ele o interlocutor, pois
Manoel Perna já havia morrido há muito2. Isto indica que as memórias em si não são
totalmente confiáveis, pois esquecem alguns de seus significados no tempo. Também
por isso, não são integrais, ou seja, são fragmentadas e dependem da relação com
outro interlocutor para darem a impressão de completas.
O próprio Manoel Perna, narrador de Nove Noites (2004), dá uma razão para a
confiança nas memórias: “As histórias dependem antes de tudo da confiança de quem
as ouve, e da capacidade de interpretá-las” (CARVALHO, 2004, p. 8, grifos do autor), à
maneira de Nael confiar nas memórias da mãe e do avô. Contrário a isso, o narrador
principal de Nove Noites (2004) não é consanguíneo de nenhum dos personagens que
lhe conta sobre Buell Quain, tampouco se pode dizer que mantenha laços de amizade
enraizados com os personagens que lhe auxiliam em sua busca pelo motivo do
suicídio. Sua manipulação narrativa é de algumas memórias de Buell Quain, sobretudo,
oriundas de pesquisas a seu respeito. Além disso, a narrativa sobre o americano não é
gratuita, uma vez que a identidade do narrador principal se pode ver familiarizada ou
contrastada com a do etnólogo americano:
Buell Quain também havia acompanhado o pai em viagens de negócios. Quando tinha catorze anos, foram a uma
convenção do Rotary Club na Europa. Visitaram a Holanda, a Alemanha e os países escandinavos. E daí em
diante nunca mais parou de viajar. Mas de para Quain, que saía do Meio-Oeste para a civilização, o exótico foi
logo associado a uma espécie de paraíso, à diferença e à possibilidade de escapar ao seu próprio meio e aos
limites que lhe haviam sido impostos por nascimento, para mim as viagens com o meu pai proporcionaram antes
de mais nada uma visão e uma consciência do exótico como parte do inferno (CARVALHO, 2004, p. 64).
2
O narrador Manoel Perna conforme a página 134 do romance morreu no ano de 1946, o que representa 7 anos depois do suicídio de Buell Quain, o
que atesta a possível amizade entre ambos. Sobre o narrador principal além de não sabermos o nome, tampouco sabemos sua data de nascimento,
mas podemos intuir cerca de 30 a 40 anos, pois se parece a um jornalista experiente, mas não deve chegar aos 60 anos e, provavelmente, nasceu
anos depois da morte de Manoel Perna, pois ambos não chegam a se conhecer, o que indica que a narrativa central está distante do tempo do
suicídio do etnólogo são o fato histórico do 11 de setembro de 2002, comentado entre as páginas 158-159 e o interesse pela história de Quain a partir
de uma notícia de jornal de 2001.
Acima, por exemplo, evidencia-se o contraste entre as viagens de Quain e as do
narrador, ambos juntos aos pais, e o resultado destas para cada um. Embora sejam
diferentes experiências, ambos conheceriam o inferno entre os indígenas. A grande
dificuldade encontrada neste estudo, além do complexo embaraço de estruturas
temporais que se mesclam entre si, é lidar, também, com o confiável de uma memória,
pois os narradores as manipulam sem terem, muitas vezes, experimentado os fatos
narrados e, ainda assim, as refletem em suas próprias identidades.
Ao buscar as memórias em um passado mais distante que o do próprio
nascimento, os narradores permitem que haja dois movimentos na narrativa: 1.
Referente às estruturas narrativas que são manipuladas no tempo da narração, ou
seja, as misturas dos tempos passados (analepse), presente e futuro (prolepse) 3
ocorrendo não linearmente, de acordo com a manipulação que o narrador faz do tempo
narrativo; e 2. Referente ao fato de que ao narrador é interessante contar as memórias
de acordo com o que é conveniente conhecer e, assim, formar a própria identidade.
Desenvolvimento
Nossa pesquisa é de caráter teórico e analítico, isto é, os procedimentos
metodológicos são relacionados à leitura e à discussão do referencial teórico. Em
nosso caso, o referencial utilizado fundamentar-se-á, principalmente, em: questões
temporais e memorialísticas a respeito dos textos literários, embasadas pela
perspectiva narratológica de Gérard Genette; nos romances Dois Irmãos (2007) e Nove
Noites (2004), em outros romances de Milton Hatoum e Bernardo Carvalho; outros
pesquisadores que hajam realizado estudos sobre obras de ambos os autores; estudos
que discutam o termo identidade, desde que destaquem a mesma perspectiva teórica
de Stuart Hall; e a sistematização de um Relatório Final.
Nossas propostas metodológicas são as seguintes:
a) Leitura e discussão do corpus da pesquisa: com o propósito de edificar
uma base teórica sólida sobre os estudos narratológicos, discussões a respeito de
Memória e de Identidade Fragmentada.
b) análise do corpus: feita mediante o aparato teórico-metodológico oferecido
pela narratologia genettiana.
c) sistematização da pesquisa: em um Relatório Final de Pesquisa.
Toda a metodologia proposta acima pretende elucidar como as estruturas das
memórias no texto literário agem semanticamente. A partir do estudo das memórias,
pelo viés narratológico, pretendemos estabelecer relações entre elas e a ilusão de
identidade unificada, que é transmitida pelo narrador. Tais relações são realizadas:
[...] na impossibilidade de resolver o impulso contraditório – contra a tradição - por algum motivo impregnado à
personalidade, buscaria o passado como uma forma de dotar-se da graça de uma estabilidade (QUEIROZ, 2008,
p.366-367, grifos do autor).
A estabilidade alcançada seria possibilitada através da utilização das memórias,
sendo que elas estão, obrigatoriamente, contidas na estruturação das narrativas e,
consequentemente, na manipulação dos respectivos narradores. Tais discussões, entre
memória e identidade, são as que nos permitem propor como objetos de nossa
pesquisa as obras de Milton Hatoum e Bernardo Carvalho.
Os resultados pretendidos estão diretamente relacionados à discussão e
interpretação de questões teóricas relativas às estruturas das narrativas, à crítica
literária contemporânea e à fortuna crítica a respeito das obras e dos autores em
questão. Ressalta-se que a partir de tais reflexões teórico-críticas os resultados
pretendidos tangem a possibilidade de encontrar no período contemporâneo
3
“Analepse” e “prolepse” são terminologias de Genette (1975) para os estudos da ordem temporal no discurso
literário.
motivações para a existência de tantos romances que se utilizam de memórias. Em
relação aos resultados obtidos, citamos a compreensão alcançada na pesquisa
anterior, que se relaciona diretamente à utilização das memórias como diretamente
proporcional à unificação identitária.
Dos objetivos, justificativas, métodos e resultados deste trabalho, notamos que
nossa fundamentação teórica relacionava-se aos estudos que dizem respeito ao
funcionamento das estruturas narrativas emparelhada ao conceito de “identidade”. De
maneira a não esbarrarmos em conflitos teóricos a respeito, seguimos os princípios
teóricos de Stuart Hall (2006) em A identidade cultural na pós-modernidade, sobretudo
quando discute a identidade como um todo não coeso, uma composição mesclada de
fragmentos diferentes, que refletirá no estilhaçamento temporal dos dois romances4.
Para estudarmos este estilhaçamento, destacamos as terminologias tempo da
história, o tempo do discurso, o narrador e a focalização, tratadas por Genette (1975) 5
no Discurso da Narrativa (1995), como ferramentas para descrevermos tal semelhança,
que passa desde a narração até o encaixamento de memórias na narrativa. A este
respeito, as considerações crítico-teóricas feitas sobre as memórias terão fundamento
por conta de as consideramos como os principais componentes da arquitetura
narrativa, isto é, as memórias de narradores ou personagens dos romances são o
principal eixo pelo qual as narrativas movimentam-se.
Conclusão
A pesquisa discutirá a construção das cadeias de causas e efeitos elaboradas a
partir da investigação/recomposição das memórias nos romances postos em questão,
as quais nos levarão à reflexão sobre a manipulação dos tempos da narrativa pelos
narradores e a questões inerentes à constituição identitária na literatura brasileira
contemporânea.
Ademais, propõe-se outra via de análise do romance Dois Irmãos (2007), que já
contava com vasta fortuna crítica, mas pouca referente a estudos estruturais.
Avaliaremos, também, se os mergulhos temporais verticais e horizontais nas memórias,
propostos por Tânia Pellegrini (2004) como métodos de análise para os romances de
Hatoum, também podem ser mecanismos de análise eficientes para o romance Nove
Noites (2004).
Deste modo, pretendemos alcançar em nossas análises a compreensão de
como aos mecanismos literários se integram à interpretação de questionamento
concernente à constituição/recuperação/invenção da identidade individual – e também,
social e cultural – na literatura brasileira contemporânea. Ou seja, como as estruturas
narrativas podem representar a tentativa de constituição/ construção identitária dos
narradores e/ou personagens. Na pesquisa anterior havíamos comprovado a
possibilidade dessa constituição identitária ser buscada pelo narrador Nael, de Dois
Irmãos (2007), através das memórias6 que outros personagens lhe contavam, pois
assim ele consegue reunir estilhaços que dizem respeito à sua paternidade, origem e,
portanto, família.
Resumidamente, buscamos compreender: a) as articulações entre memória e
narração; b) os outros tempos da enunciação e suas relações temporais com a
memória; c) a organização estrutural das memórias; d) a relação das memórias com a
4
Sobre o difuso conceito “identidade” nos propomos também a pesquisar outros autores que tratem dele, como: BAUMAN, Zygmunt. Identidade –
Entrevista a Benedetto Vecchi. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005, tomando as precauções necessárias para não esbarrarmos em conflitos teóricosmetodológicos.
5
Como bibliografia essencial para tratar e aprofundar os conceitos acima, nos apoiaremos no Dicionário de termos de teoria da narrativa, de Ana
Cristina M. Lopes e Carlos Reis (1988), o qual explicita detalhadamente, também, a terminologia a respeito de tipos de narrador, tempo da história e
tempo do discurso, Eu narrante e Eu narrado, discutida por Genette (1975) no Discurso da narrativa
6
Nesse sentido nos apoiaremos nas memórias enquanto experiências vivenciadas por outros personagens da obra que foram testemunhadas ao
narrador, das quais nos basearemos em: SARLO, Beatriz. Crítica do testemunho: sujeito e experiência. In: Tempo passado: cultura da memória e
guisada subjetiva. São Paulo: Companhia das Letras; Belo Horizonte: UFMG, 2007.
constituição identitária; e) se há e por que há nos romances dos dois autores algum
traço de estruturas memorialísticas em comum que pode ser especificado no
tratamento/ construção das memórias ficcionais na contemporaneidade. Como
principais aparatos teóricos de nossa pesquisa, enfatizaremos os estudos realizados
por Gérard Genette em Discurso da Narrativa (1995), auxiliados pela lexicalização dos
temas propostos por ele pelos portugueses Carlos Reis e Ana M. Cristina Lopes, em
Dicionário de teoria da narrativa (1988) e estudos que aprofundem as questões
identitárias como A identidade cultural na pós-modernidade, de Stuart Hall (2006).
Nos dois romances, nos quais pretendemos demonstrar o funcionamento das
memórias, encontraremos diferentes utilizações da estrutura narrativa. Por isso,
trabalharemos este problema inicial sobre o viés da análise estrutural da narrativa, para
que possamos explicitar quais as motivações dos narradores de ambos os romances
para manipularem as estruturas de determinada maneira. Estudaremos estes
funcionamentos temporais e espaciais como procedimentos narrativos articulados nos
próprios textos, sem separá-los do contexto histórico-social da literatura brasileira
contemporânea.
Referências Bibliográficas
CARVALHO, Bernardo. Nove Noites. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.
CHIARELLI, Stefania. Vidas em trânsito – As ficções de Samuel Rawet e Milton
Hatoum. São Paulo: Annablume, 2007.
DALSCATAGNÉ, Regina. Vivendo a ilusão biográfica. A personagem e o tempo na
narrativa brasileira contemporânea. In: Literatura e Sociedade, nº 8. São Paulo: Vida
e Consciência, 2007.
ECO, Umberto. Seis passeios pelo bosque da ficção. Trad. Hildegard Feist. São
Paulo: Companhia das Letras, 1994.
GENETTE, Gerard. Discurso da narrativa. 3. ed. Trad. Fernando Cabral Martins.
Lisboa: Vega, 1975.
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. 11. ed. Trad. Tomáz Tadeu
da Silva e Guacira Lopes Louro. Rio de Janeiro: DP &A, 2006.HATOUM, Milton. Dois
Irmãos. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
HATOUM, Milton. Dois Irmãos. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
LE GOFF, Jacques. Memória*. In: História e Memória. Trad. Bernardo Leitão. 5 ed.
Campinas, SP: Editora da Unicamp,2003.
LOPES, Ana Cristina M.; REIS, Carlos. Dicionário de teoria da narrativa. São Paulo:
Ed. Ática, 1988.
PELLEGRINI, Tânia. Milton Hatoum e o regionalismo revisitado. Disponível em:
<http://muse.jhu.edu/journals/luso-brazilian_review/v041/41.1pellegrini01.html>. Acesso
em: 08/OUT/2010.
QUEIROZ, Carlos Eduardo Japiassú de. A escritura da memória como fundamento
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Disponível
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<http://www.abralic.org.br/revista/2008/12/40/download>. Acesso em: 15/JUN/2011.
p.365-387.
RIAUDEL, Michel. Quando a ficção se recorda, quando o sentido passa a resistir.
Disponível
em:
<http://www.scielo.br/pdf/nec/n84/n84a14.pdf>.
Acesso
em:
25/JUN/2011.p. 251-261.
SARLO, Beatriz. Crítica do testemunho: sujeito e experiência. In: Tempo passado:
cultura da memória e guisada subjetiva. São Paulo: Companhia das Letras; Belo
Horizonte: UFMG, 2007.
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