Os Fundamentos da
Relação Afetiva
Armazém do Ipê
O selo Armazém do Ipê propõe-se a alcançar um
público mais amplo com lançamento de textos
ágeis, de leitura agradável, versando sobre temas
de candente atualidade e que possam ser também
largamente utilizados pelos professores e alunos
complementando o ensino das diversas disciplinas
e demais componentes curriculares.
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RAPHAËLE MILJKOVITCH
Os Fundamentos da
Relação Afetiva
Les fondations du lien amoureux
Tradução: Rena Signer
Campinas
2012
Copyright © 2012 by Editora Autores Associados Ltda
Todos os direitos desta edição reservados à Editora Autores Associados Ltda
Les fondations du lien amoureux
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(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Miljkovitch, Raphaële
Os fundamentos da relação afetiva / Raphaële Miljkovitch; [tradução Rena
Signer]. – Campinas, SP: Armazém do Ipê, 2012.
Título original: Les fondations du lien amoureux.
Bibliografia.
ISBN 978-85-62019-10-4
1. Comportamento de apego – Estudos longitudinais 2. Pais e filhos –
Aspectos psicológicos 3. Psicanálise – Amor 4. Relações interpessoais – Aspectos
psicológicos I. Título.
11-00047CDD-152.41
Índices para catálogo sistemático:
1. Apego : Relações afetivas : Psicologia 152.41
2. Vínculo e afetividade : Psicologia 152.41
2012
Impresso na Indonésia em setembro de 2012
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A Gary e César
Agradecimentos
Em primeiríssimo lugar, faço questão de agradecer a S­téphanie Leblanc, que muito contribuiu à realização da pesquisa sobre a qual se baseia esta obra. Além
do importante trabalho de análise das entrevistas, as
discussões que tivemos foram uma fonte de emulação,
que me leva a desejar que nosso trabalho em colaboração tenha apenas começado.
Quero também expressar minha gratidão aos
meus doutorandos, e particularmente a Isabelle Géry,
pela dedicação e perseverança. Suas pesquisas ajudam-me a avançar em minha linha de raciocínio, ao mesmo
tempo em que se tornaram um prolongamento.
Também sou grata aos meus alunos de DE A
(­D iplôme d’Études Approfondies) ou de especialização, pela leitura crítica dos meus trabalhos e pelas
discussões enriquecedoras, que me permitiram chegar
a um trabalho melhor estruturado. Este livro não teria
sido concluído sem a participação dos meus alunos do
mestrado, que se defrontaram com as dificuldades da
pesquisa de campo para a coleta dos dados explorados
aqui.
Meu mais profundo agradecimento às pessoas que
aceitaram participar da pesquisa e confiaram algumas
parcelas de sua existência para constituir a essência
deste livro.
Finalmente, quero registrar minha gratidão a
Serge Paugam, por me oferecer a oportunidade de escrever esta obra, encorajando-me a aprofundar um
campo que me é caro.
Sumário
Nota do editor francês
Introdução
Capítulo um
Contar com o outro
»»Modelos para o futuro
xiii
xvii
1
1
»»Momentos críticos no desenvolvimento do sentimento de confiança 2
»»A relação do casal filtrada pela infância
»»Reduzir os riscos de uma decepção amorosa
»»A escolha de um compromisso
»»Conclusão
Capítulo dois
Manter o outro junto de si
»»Manter o vínculo durante a infância
»»Reprodução das estratégias de apego da infância na vida a dois
11
27
36
40
43
44
57
»»Inadequação das estratégias de apego da infância na vida do casal 84
Capítulo três
Ter controle na relação afetiva
»»O nascimento de uma sensação de controle
»»A necessidade de controle contínuo na relação parental
»»A incapacidade de agir sobre o parente »»Consequências da falta de controle na idade adulta
»»Influência da necessidade de controle na escolha de um parceiro
amoroso
»»Conclusão
89
90
92
93
97
111
117
Capítulo quatro
Aprender a se conhecer na relação com o outro
»»A aprendizagem das emoções
»»O encorajamento da expressão emocional
»»Fugir das emoções
121
122
123
125
»»A censura parental
126
»»“Fantasiar” as emoções
132
»»A autocensura das emoções
»»A conscientização do adolescente
130
133
»»Persistência das censuras parentais no casal
134
»»Revivescência das frustrações da infância na vida do casal
139
»»Corrigir o passado pela relação a dois
145
»»Ressurgência de afetos em um encontro amoroso
»»Evitação das frustrações da infância na relação a dois
»»Conclusão
Capítulo cinco
A evolução das relações com o tempo
»»A primeira relação a dois: resquícios da infância
»»A segunda relação a dois: diminui o efeito da infância
137
144
148
151
151
156
»»Evolução da primeira para a segunda relação 158
»»Síntese
181
»»Diferenças interindividuais na disposição para mudar
»»Conclusão
Anexos
161
182
Anexo A: Características das pessoas entrevistadas
189
Anexo C: Validade de Attachment Security and Secondary
Strategy Interview (Asssi)
196
Anexo B: Limites e consequências da pesquisa
Anexo D: Perguntas de Attachment Security and Secondary
Strategy Interview (Asssi)
192
206
Anexo E: Codificação de Attachment Security and Secondary
Strategy Interview (Asssi)
»»Escalas de segurança
»»Estratégias secundárias
»»Escala de inibição do sistema de apego 212
212
218
219
»»Escala de hiperativação do sistema de apego 225
»»Quadro de codificação
233
»»Classificações de Asssi
Referências
231
235
xiii
Nota do editor francês
É com grande interesse que os pesquisadores em
ciências sociais descobrirão o belo livro de ­R aphaële
Miljkovitch, da coleção “Le lien social” [O vínculo
social]. Resulta de uma pesquisa inspirada pelo trabalho do psiquiatra inglês John Bowlby e poderia
ter sido publicado em uma coleção especializada em
pesquisas psicológicas ou em análises psiquiátricas.
Sem dúvida, teria encontrado uma excelente recepção
junto aos pesquisadores e profissionais da área. No
entanto, seria uma pena limitar a divulgação desta
obra a um público especializado, pelas perspectivas
analíticas que abre em diferentes áreas das ciências
sociais.
Esta pesquisa interessará aos pesquisadores que
se importam com a função da socialização do grupo
familiar, a qual depende, em grande parte, da relação
filial. Sabe-se que a relação entre a criança e seus
pais condiciona inúmeros aprendizados. O amor parental confere à criança confiança em si e segurança
nos diferentes círculos sociais que encontra. Desde
as pesquisas de Pierre ­B ourdieu sobre o habitus, os
sociólogos insistem na pluralidade da herança. A
transmissão não é apenas econômica, mas também
cultural, no sentido do saber e dos hábitos cotidianos,
e ela constitui as predisposições mais ou menos está-
veis para agir ao longo de toda a vida. Mas, a herança
familiar não comporta também essa parte invisível e
frequentemente ignorada das primeiras experiências
xiv
Os Fundamentos da Relação Afetiva
Raphaële Miljkovitch
da relação afetiva? Desde a sua constituição, o vínculo filial não atua
como uma marca mais ou menos durável?
Acima das questões jurídicas que envolvem a definição desse
vínculo, os sociólogos, antropólogos, assim como os psicólogos, os psicólogos sociais e os psicanalistas, insistem na sua função socializadora
e identitária. Ela contribui para o equilíbrio do indivíduo desde o seu
nascimento, por lhe garantir, simultaneamente, proteção e reconhecimento. Frequentemente, a filiação é associada à noção de apego, no
sentido da relação que une dois ou mais indivíduos pela valorização da
importância que atribuem uns aos outros. Hoje, sabe-se que esse apego
se manifesta a partir dos 7 meses. Durante o período que se segue, as
separações são fonte de angústia, pelo fato de a mãe representar uma
pessoa insubstituível para a criança. O apego corresponde a um comportamento interativo: a criança expressa de forma inata – ou instintiva –
apelos à mãe, para que ela lhe proporcione os cuidados e a atenção de
que ela precisa de modo vital. Assim, pode-se falar do instinto de apego
quando a criança se sente profundamente ligada à mãe e essa relação
comporta uma dimensão afetiva. Essa fase de unidade simbiótica não é
duradoura, pois cada um deve conquistar, progressivamente, sua própria
independência. Aos poucos, o bebê deve desenvolver sua capacidade
de ficar sozinho. Ele deve tomar consciência de que o amor maternal
é durável e sólido, e, apesar da separação temporária, ele pode contar
com essa relação intersubjetiva para satisfazer suas exigências pessoais.
A pesquisa de Raphaële Miljkovitch confirma a estreita relação
entre a qualidade dos apegos vividos na primeira infância e a capacidade
de estabelecer relações íntimas equilibradas e satisfatórias. Ao demonstrar que as relações amorosas dos adultos são, em parte, determinadas
pelas experiências que viveram na infância, conforme tiveram afeição
ou, ao contrário, insegurança, se foram abandonados ou maltratados,
a autora ressalta o problema mais geral da transmissão. Ao estudar os
fundamentos da relação afetiva a partir de uma grande pesquisa que
desenvolveu com seus alunos, ela enriquece o conceito de herança.
Depois de fechar este livro, o leitor chegará à conclusão de que os pais
transmitem aos filhos, sem perceberem, uma imagem de apego durável, que reaparece de modo quase inevitável nas relações amorosas na
xv
Nota do editor francês
idade adulta. Raphaële Miljkovitch evita qualquer determinismo ou
generalização, mas não há dúvida de que sua pesquisa deixará também
sua marca no conhecimento dessa complexidade dos vínculos sociais
contemporâneos.
Serge Paugam
Introdução
xvii
A evolução da sociedade ocidental nas últimas
décadas foi acompanhada de um rearranjo da noção de
casal. Antigamente, o casamento era uma verdadeira
instituição, que instaurava uma estrutura, na qual se
organizava a vida da família. O cimento do casal era
constituído de convenções sociais: ficava-se junto porque se estava casado e porque havia filhos. Hoje, apesar
de esse tipo de preocupação ter um lugar importante
na escolha de vida, o casal está mais preocupado em
buscar sua satisfação pessoal. Com a explosão da taxa
de divórcios, o casal não é mais considerado necessário
para garantir sua descendência. A luta pela igualdade
dos sexos acarretou uma maior flexibilidade dos papéis
entre homens e mulheres. Financeiramente, as mulheres não precisam mais dos homens para sustentá-las,
nem para sustentar os filhos. Quanto aos homens, sua
crescente implicação na educação dos filhos tornou-os
figuras parentais inteiras, cuja capacidade “materna”
é suficiente para acompanhá-los até a maturidade. A
partir dessas modificações sociais, a sobrevida do casal é um desafio cada vez mais difícil de enfrentar e
mantém-se, na imaginação de muita gente, pelo bem-estar que proporciona.
Assim, coloca-se a questão: o que determina esse
bem-estar? Em um nível subjetivo, tem-se a tendência
a acreditar ser essa a responsabilidade do cônjuge: se
ele atender ou não às expectativas, encontra-se junto
dele uma relativa felicidade. Entretanto, as diferentes
trajetórias de vida levam a pensar que algumas pessoas
estão mais capacitadas ou têm mais sorte do que as
outras para encontrar um equilíbrio a dois. Enquanto
alguns multiplicam seus fracassos sentimentais, outros
parecem se relacionar de forma harmoniosa com seus
parceiros. Ao examinar mais de perto, percebe-se com
xviii
Os Fundamentos da Relação Afetiva
Raphaële Miljkovitch
frequência que não só as mesmas histórias se repetem pelas relações que
se sucedem, como também elas já se delineavam na infância, no contato
com os pais.
O objetivo desta obra é duplo. Por um lado, trata-se de examinar
o que, na infância, e particularmente na relação com os pais, influencia o
indivíduo na sua maneira de ser enquanto parceiro num casal. Como as
experiências precoces orientaram o adulto na sua forma de se relacionar
com o outro? Em que a relação amorosa desperta a problemática originada
na infância? Quais são os procedimentos desencadeados no fenômeno de
repetição? Por outro lado, trata-se de avaliar até que ponto essa influência
do passado é determinante nas modalidades relacionais do adulto. De que
margem ele dispõe para se libertar do aprendizado precoce? Quais são os
fatores de resiliência que autorizam certa liberdade de ação concomitante
a uma autonomia em relação à sua história?
Há muito tempo, aceita-se a ideia de o comportamento do adulto ser
influenciado pelos acontecimentos da infância. A psicanálise interessou-se
pelo modo como o desenvolvimento psicossexual forma a atividade psíquica do indivíduo, a qual determina seus atos. Pelo conceito de habitus,
introduzido por Bourdieu, a sociologia estuda o processo pelo qual a forma
de ser de um indivíduo decorre da incorporação de normas e práticas veiculadas pelo seu meio social de origem. Alguns trabalhos especificamente
orientados para o casal acrescentam o papel desempenhado pela infância.
No âmbito da teoria do apego, fundada por John Bowlby (1978), Hazan e
Shaver estabeleceram um paralelo entre o comportamento do adulto em
relação ao cônjuge e o do bebê em relação à mãe1.
1
Para simplificar, preferiu-se o termo “mãe” à expressão “figura de apego”.
A escolha explica-se pelo fato de a quase totalidade dos trabalhos citados
nesta obra focarem-se nas mães. Apesar de se poder supor que mecanismos
similares sejam observados entre um pai (ou qualquer outra figura de apego)
e seu filho, convém manter a imparcialidade diante de qualquer assimilação
dessas duas relações, pelas diferenças qualitativas entre elas (Miljkovitch
& Pierrehumbert, 2005, pp. 115-113).
xix
Introdução
Assim, não se pode relacionar a relação do casal à relação de apego
precoce, pois os valores são outros. Para o bebê, o apego tem uma qualidade vital; sem tutor estável, ele não pode sobreviver. Em contrapartida,
o adulto dispõe de capacidades físicas e mentais para viver de maneira
autônoma. A presença de um cônjuge, mesmo que melhore a qualidade
de sua existência, não lhe é indispensável. Essas diferenças repercutem
na natureza da ligação que se estabelece nos dois casos. Por um lado, a
ligação é assimétrica, com a criança totalmente dependente do parente;
por outro lado, é simétrica, pois cada parceiro desempenha um papel
intercambiável. Assim, a necessidade de preservar a relação é bem mais
forte para a criança do que para o adulto. Além disso, ela mostra ter uma
capacidade de adaptação bem superior.
Uma outra diferença refere-se ao fato de o bebê não ter ainda de-
senvolvido um modo relacional próprio quando ocorre sua relação com os
pais e irá se ajustar a eles de maneira espontânea, o que não ocorre com
o adulto. Este já tem uma personalidade bem estruturada, que se impõe
relativamente no seu círculo social e que induz a algumas reações. A adaptação ao parceiro é menos fácil e pode exigir um esforço para reorganizar
seus hábitos. Observa-se também a diferença entre essas duas relações
no nível da solidez da relação. Para o adulto, o casal não representa uma
questão vital, a relação é mais precária, particularmente nas sociedades
modernas, que permitem uma flexibilidade dos papéis e uma autonomia
financeira individual para qualquer que seja o sexo. Definitivamente, é
mais fácil separar-se de um cônjuge e substituí-lo por outro do que separar
um bebê de seus pais.
Essas diferenças não devem ofuscar o fato de existir no adulto, as-
sim como na criança, uma profunda motivação para se relacionar com o
outro. Proponho um postulado básico no âmbito deste livro: a dinâmica
amorosa do adulto, com os meios que ele aciona para estabelecer e manter
uma relação, é determinada, em parte, por aquilo que aprendeu nas suas
experiências precoces. Eu parto da hipótese de que inúmeras (dis)funções
da relação amorosa originam-se da aprendizagem socioemocional do começo da vida. No início, essa aprendizagem participa de uma adaptação
ao meio familiar e pode revelar-se imprópria ao contexto do casal.
xx
Os Fundamentos da Relação Afetiva
Raphaële Miljkovitch
Este trabalho é uma sequência da minha obra anterior (­Miljkovitch,
2001), na qual exponho as numerosas pesquisas que documentam os
mecanismos acionados na relação mãe-bebê. Elas inserem-se na teoria
de Bowlby, que definiu o conceito de apego: trata-se de uma relação
afetiva estável da criança com sua “figura de apego”, isto é, uma pessoa
adulta que garante sua proteção. Para se desenvolver harmoniosamente,
a criança sempre precisa sentir-se segura. Quando se sente ameaçada,
ativa seu “sistema comportamental de apego”, ou seja, age de forma que
aproxime o adulto. Desde o nascimento, o bebê dispõe de um repertório
de comportamentos inatos (como o choro), cujo efeito, em geral, é chamar
e mobilizar a mãe. Às vezes, essas tendências naturais não bastam para
conseguir a segurança desejada, então a criança modifica a expressão do
seu sistema de apego, inibindo-o ou, ao contrário, hiperativando-o, para
sentir o que funciona melhor com o parente.
Nos anos de 1970, Mary Ainsworth ajustou uma situação experi-
mental, destinada a avaliar o estilo de apego de bebês com 1 ano. Seu
protocolo de observação consiste em submetê-los a um leve estresse, a
fim de despertar o comportamento que teriam com a mãe, para acabar
com sua ansiedade. Esse dispositivo, chamado Situação estranha, consis-
te em separá-los um pouco do parente e colocá-los na presença de uma
pessoa desconhecida. Com os dados que colheu, Ainsworth desenvolveu
um sistema de classificação dos bebês. Distinguem-se os bebês “seguros”, que não têm de modificar seus reflexos inatos, ou seja, protestam
quando há uma separação, mas param quando a mãe volta; os “ansiosos
evitantes”, que inibem seu sistema de apego e não recorrem a ele; e os
“ansiosos ambivalentes” (também chamados de “ansiosos resistentes”)
que, ao contrário, hiperativam seu sistema de apego, deixando claro seu
desconforto e sua necessidade de proximidade de forma persistente. Surgiram também alguns bebês que não se encaixavam em nenhuma dessas
categorias e apresentavam comportamentos contraditórios de aproximação e fuga, assim como gestos de apreensão. Pelo fato de sua aparente
incapacidade em encontrar uma estratégia coerente que lhes permitisse
serem tranquilizados pela mãe, Solomon e Main qualificaram seu apego
de “desorganizado e desorientado”.
xxi
Introdução
É mais complicado mensurar o apego no adulto. É claro que há inúmeros questionários, mas eles só revelam aquilo que as pessoas querem
ou acreditam a respeito de si. O Adult Attachment Interview (AAI), elaborado por George, Kaplan e Main (1985), permite contornar esse viés, pelo
fato de não ser tanto o conteúdo do discurso que importa, mas a forma.
Assim, o analista pode inferir o nível de integração de lembranças da
infância e determinar o “estado de espírito” em relação ao apego2 . Esse
tipo de entrevista mostrou-se muito interessante para entender como a
parentalidade se articula com as experiências da infância, assim como o
fenômeno de transmissão intergeracional. No entanto, não permite catalogar os atos da pessoa em caso de angústia. Se o sistema de apego de um
bebê pode ser ativado artificialmente ao separá-lo por alguns instantes da
mãe, com o adulto funciona de outra forma e seria necessária uma ameaça
mais substancial. Além disso, para fazê-lo reagir, seria necessário que ele
desconhecesse a natureza experimental da ameaça. Consequentemente,
para investigar o comportamento de apego, o método mais aconselhável
baseia-se em entrevistas.
Para estabelecer pontes entre as relações vividas durante a infância
e as relações de casal na idade adulta, eu usei o relato retrospectivo do
percurso pessoal dos participantes. Pode-se questionar o que foi realmente
avaliado e quanto se pode confiar na palavra das pessoas entrevistadas.
As reconstruções a posteriori do que aconteceu podem ser enviesadas e
não refletir o real desenvolvimento das relações. Mesmo sem incorrer na
falha de memória, a vivência do indivíduo pode levar a uma visão muito
subjetiva dos fatos, sem a participação de outras pessoas que estavam
presentes num determinado episódio. O objetivo da pesquisa não foi reconstituir os fatos, mas compreender a dinâmica do indivíduo por meio
de suas diferentes relações. A entrevista desenvolvida para este estudo
permite apreender os modelos internos operantes, isto é, o que a pessoa
reteve de suas relações, a forma como as percebe. Há uma abundante literatura a sugerir que o que influencia uma pessoa no seu funcionamento
não é tanto a natureza exata dos acontecimentos vividos, mas as repre-
2
Esta entrevista é exposta mais detalhadamente no capítulo 5.
xxii
Os Fundamentos da Relação Afetiva
Raphaële Miljkovitch
sentações que lhe ficaram (Fonagy, Steele M., Steele H., Morian &
Higgit, 1991, pp. 201-218; Main, Kaplan & Cassidy, 1985, pp. 66-104;
Ijzendoom, 1995, pp. 387-403). Além disso, um mesmo evento tem um
significado e um impacto muito diferentes, conforme a pessoa que o vive.
Por isso, preferiu-se uma apreciação subjetiva da vivência a uma avaliação
mais objetiva da história pessoal dos sujeitos entrevistados.
Portanto, um primeiro objetivo da minha pesquisa foi examinar
a existência de continuidade entre as relações estabelecidas em contato
com os pais e aquelas mantidas com sucessivos parceiros. Eu queria ver
se haveria certa constância em termos de segurança afetiva e se haveria
uma tendência a reproduzir nas duas situações o mesmo tipo de comportamento. A entrevista concebida para este estudo visava avaliar a segurança sentida na relação com cada figura de apego ou companheiro e as
estratégias utilizadas em seu contato. Por essa razão, a entrevista tem
o nome em inglês, Attachment Security and Secondary Strategy ­Interview
(ASSSI) (Miljkovitch, no prelo). As perguntas foram elaboradas em
razão desse duplo objetivo: constatar o que a pessoa sentiu em condições ansiogênicas ou de vulnerabilidade (para apreender a segurança) e
o comportamento desencadeado nessas ocasiões (estratégias de apego).
Evocaram-se diferentes situações consideradas ativadoras do sistema de
apego, das quais algumas podem justificar um pedido de ajuda, de suporte
ou de reconforto pela parte do outro. Por exemplo: separação, chegada
de irmão(s) ou irmã(s), falecimento, divórcio dos pais, conflitos, brigas,
indisponibilidade parental, doença, mudança das condições de vida, rea­
ção diante de desconhecidos, perigo. Com exceção do que é específico na
infância (por exemplo, chegada de irmãos ou irmãs), os mesmos temas
foram abordados para estudar as relações do casal. O código utilizado para
examinar as entrevistas está no anexo E (antecedido de uma discussão
quanto à validade da entrevista no anexo C).
A comparação dos relatos dos dois períodos da vida permite locali-
zar os fatores de continuidade e, ao mesmo tempo, levou à identificação
dos fatores de descontinuidade. No nível individual, verificou-se que
algumas pessoas apresentavam percursos mais lineares do que as outras.
Realizou-se uma análise mais apurada dos dois tipos de casos, a fim de
determinar o que os diferenciava e o que constituiria um impulso para
xxiii
Introdução
desviar a trajetória inicial durante a infância. O trabalho exposto nesta
obra visa apresentar resultados gerais, pelo fato de terem sido estabelecidos estatisticamente e ilustrar os processos psicológicos identificados
com casos clínicos. Estudantes de mestrado em psicologia colheram uma
centena de entrevistas com pessoas de todos os horizontes 3. Não houve
nenhum critério de exclusão. A amostragem total compõe-se de 43 mulheres e 57 homens, com idades que variam de 18 a 78 anos 4. Todos os
níveis socioeconômicos estão representados 5. Nos casos apresentados ao
longo dos capítulos, estabeleceu-se (ver anexo A) a idade, o nível de formação, a profissão, assim como dados concernentes à situação familiar
(posição na fratria, número de eventuais filhos, situação matrimonial).
Cada estudante entrevistou uma pessoa adulta que não conhecia, para
evitar desvios ou omissões na maneira de colocar as perguntas ou na
resposta dos entrevistados. Geralmente, o entrevistado foi apresentado
por um conhecido comum. Assim, apesar do distanciamento entre eles,
havia um ponto de relacionamento em comum para favorecer uma relação de confiança e facilitar as confidências da pessoa entrevistada. Para
deixar os entrevistados à vontade e não despertar neles um sentimento
de violação da intimidade, os entrevistadores tinham de lhes dizer, antes de começar a entrevista, que eles não eram obrigados a responder
a determinadas perguntas. Também estavam cientes de que, apesar do
consentimento inicial, eles poderiam desistir ou recusar que os dados
3
Ao examinar as entrevistas, verificou-se que as tendências estatísticas en-
contradas a partir de 100 entrevistas corroboravam aquelas encontradas
depois da análise de cerca da metade dos casos. Por isso, realizou-se uma
codificação completa somente de 52 entrevistas. Assim, algumas das análises
estatísticas relatadas nesta obra referem-se à totalidade dos participantes,
enquanto outras se restringem a 52. Na ausência de precisão, o cálculo foi
efetuado sobre o número 52; quando se trata de amostragem da totalidade,
4
5
o número de participantes incluídos é preciso (N = 100).
Idade média: 35,6 anos; desvio padrão: 10,7 anos.
Ensino fundamental incompleto: N = 14; ensino fundamental completo:
N = 16; ensino médio completo: N = 17; nível universitário: N = 14; com
mestrado ou mais: N = 16; faltam informações sobre os demais 21 sujeitos.
xxiv
Os Fundamentos da Relação Afetiva
Raphaële Miljkovitch
fossem estudados. Os resultados obtidos a partir dessas entrevistas estão
expostos ao longo deste livro.
O projeto deste livro foi organizado em dois eixos principais: o
primeiro corresponde aos capítulos 1, 2 e 3, nos quais explico como os
automatismos desenvolvidos durante a infância podem se perpetuar nas
relações amorosas da vida adulta. O segundo eixo (capítulos 4 e 5) examina o que o casal permite como evolução e mudança no percurso do
indivíduo.
O capítulo 1 trata da questão do sentimento de confiança e a maneira como é elaborado a partir dos primeiros anos da vida. Mais tarde,
esse sentimento tempera as relações amorosas no que concerne às intenções atribuídas ao companheiro e à crença do seu amor. A concepção
das relações, desenvolvida no seio familiar de origem, altera a forma de
perceber o parceiro. A vontade de se comprometer com ele dependerá da
confiança que se tem na autenticidade e perenidade de seus sentimentos.
Além desse filtro elaborado durante a infância, o adulto tem a
tendência a reproduzir comportamentos inicialmente dirigidos aos pais.
Desde o começo da vida, o bebê usa estratégias para obter o máximo pos-
sível de atenção e proteção dos seus familiares. É assim que ele se adapta
a eles, registrando o comportamento ao qual são mais sensíveis e reativos,
para garantir a segurança de que necessita. No capítulo 2, exponho como
essas estratégias precoces influenciam o adulto na sua maneira de agir
para encontrar a afeição na relação a dois.
Na primeira infância, pode acontecer de nenhuma estratégia funcionar para incitar o parente a proporcionar os cuidados apropriados, o
que deixa o bebê sem nenhum domínio sobre o que lhe acontece. Para
combater essa impressão de impotência, ele pode ter uma atitude punitiva
ou protetora na relação adulta. Ao renegar sua própria vulnerabilidade,
arrisca-se a perpetuar uma atitude controladora nas relações amorosas.
Esse tópico é desenvolvido no capítulo 3.
No capítulo 4, mostra-se que, se os hábitos adquiridos em contato
com os pais tendem a se perpetuar automaticamente na idade adulta sem
que as pessoas percebam, a relação de casal oferece uma oportunidade de
tomar consciência de determinados efeitos embutidos desde a infância.
Sua emergência permite ao indivíduo conhecer-se melhor e assim se “au-
xxv
Introdução
toatualizar”. Surge a possibilidade de retomar aspectos não resolvidos do
seu passado, a fim de encontrar uma solução mais positiva no presente.
A dinâmica amorosa é automaticamente afetada.
O capítulo 5 corresponde a uma projeção do que foi exposto anteriormente. Enquanto os primeiros capítulos ressaltam as continuidades
entre a infância e a idade adulta, este aponta os fatores de descontinuidade. Evidentemente, seria demais achar que tudo ocorre durante a infância. O contexto imediato no qual evolui o adulto também influencia seu
funcionamento. A maneira de ser do companheiro, em particular, pode
ter um impacto sobre o comportamento de apego que ele manifesta. Ao
mesmo tempo, veremos que essa modulação do passado varia de acordo
com os indivíduos, na medida em que alguns têm modalidades relacionais
mais flexíveis do que outros.
Com base nos testemunhos das pessoas entrevistadas a respeito de
sua própria história, este livro tem por objetivo mostrar que, se muitas
coisas ocorreram na infância, o homem continua a se desenvolver na
idade adulta, graças, em particular, às relações afetivas que ele constrói.
Com base em uma pesquisa objetiva, mostra-se como e em que medida a
infância influi na relação de casal, que pode modificar as representações
adquiridas no começo da vida.
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Relação Afetiva - Editora Autores Associados