DINAMICAS SOCIOCONOMICAS DE UMA COMUNIDADE VAZANTEIRA NO NORTE DE MINAS Thiago Ferreira Alves Acadêmico do Curso de Ciências Sociais [email protected] Grupo de Trabalho: Populações Tradicionais e Processos Sociais INTRODUCAO As populações tradicionais existentes no norte de Minas podem ser classificadas como geraizeiras, veredeiras, vazanteiras, chapadeiras, catingueiras, além das comunidades quilombolas e do povo Xacriabá. Os cinco primeiros grupos têm suas classificações vinculadas ao ambiente em que vivem e que lhes proporciona a reprodução da vida, nessa perspectiva podemos verificar que sua etnicidade tem no ambiente vivido um fator importante de constituição, a essas populações podem ser inferidas a qualidade de detentoras de uma etnicidade ecológica (Luz de Oliveira, 2005). Para falar do povo vazanteiro do rio São Francisco, segundo Luz de Oliveira (2005) e, segundo os próprios sujeitos, em uma “Carta Aberta” elaborada pelas organizações de vazanteiros, em 2006, e dirigida à sociedade brasileira, é necessário remontar a épocas antigas, que antecedem a chegada dos brancos europeus nessa região. Na referida carta, os vazanteiros contam que, em tempos passados, quando o “Velho Chico” anualmente alagava seus braços e lagoas criadeiras, criando condições para a proliferação da malaria, eles, devido à origem africana que os imuniza contra esse mal, já povoavam essa região, junto com os indígenas. Essa característica de poder conviver com o rio, tanto na época das cheias, quanto na época das calmarias, proporcionou aos vazanteiros o desenvolvimento de um modo de vida em estreita relação com o rio e suas terras crescentes, transportando pessoas, plantando nas vazantes, pescando; reproduzindo sua vida, consumindo e comercializando os produtos retirados de seu território. É nesse sentido que o povo vazanteiro contribuiu e contribui para a formação da nossa nação, abastecendo com seus produtos os fazendeiros criadores de gado, latifundiários e outros setores da sociedade, se organizando para a produção nas vazantes – terras fluídas, sempre redefinidas pelo rio após suas enchentes. Após os anos 50, devido às possibilidades dos brancos ocuparem as terras altas, há um intenso processo de expropriação territorial do povo vazanteiro. As matas, que 1 lhes proporcionavam o alimento pela caça e extrativismo, são utilizadas como pasto, alimentando o gado dos fazendeiros; o mesmo pode ser inferido às vazantes, que antes eram a base da sua reprodução social; às lagoas, que lhes proporcionavam uma boa pescaria, em caso de fracasso dessa atividade no rio, e que servem agora como reservatório de água dos rebanhos dos fazendeiros. Soma-se a isso a baixa incidência de peixe nessas lagoas e no rio como um todo, devido ao processo de construção de barragens ao longo do mesmo, o que impactou drasticamente o seu ciclo. Agora, frente a essa nova realidade, o povo vazanteiro se vê obrigado a se refugiar nas ilhas do São Francisco, passando a organizar o seu modo de vida de acordo com os novos limites e desafios, tanto no que diz respeito à nova territorialidade, quanto frente ao estabelecimento de novas relações com a sociedade capitalista. É nesse contexto que a dinâmica socioeconômica da comunidade pesquisada será aqui abordada. A perda do território, as novas relações estabelecidas com o outro, as novas necessidades geradas pelas mudanças ocorridas, fazem parte de um processo social vivido e passível de ser apreendido. Foi esse processo que procurei apreender nas experiências e observações desenvolvidas durante a pesquisa de campo realizada na localidade de Barra do Guaicuí, que é um distrito pertencente ao município de Várzea da Palma, no norte de Minas Gerais. A Barra do Guaicuí possui aproximadamente sete mil moradores e se situa ao lado da BR que dá acesso à cidade de Pirapora, que fica a vinte quilômetros de distância, sendo a mesma o lugar de referência dos moradores da Barra do Guaicuí para atividades de comércio, serviços de saúde e etc. A área desse distrito é limitada de um lado pela rodovia, do outro lado pelo Rio das Velhas e, acompanhando o sentido do rio, pela Fazenda Base, havendo uma estrada dividindo as moradias das pastagens da fazenda. VAZANTEIROS DA BARRA DO GUAICUÍ: DINÂMICAS SÓCIOECONÔMICAS E PROCESSOS DE EXPROPRIACÃO TERRITORIAL Quando pensamos a sociedade sertaneja, como nos relata João Batista Almeida Costa (1997) em seus estudos sobre o sertão, temos uma estrutura em que há no topo da hierarquia dessa sociedade o fazendeiro, que desenvolve em suas terras a criação de gado; na parte inferior dessa hierarquia temos os agregados da fazenda que, de forma marginal, desenvolvem uma agricultura familiar nas terras arrendadas do fazendeiro. 2 Essa estrutura se manteve até o advento da Lei de Usucapião. Após essa mudança na legislação os fazendeiros não mais permitiram a permanência dos agregados, pois isso significaria a possibilidade dos mesmos reivindicarem seus direitos como posseiros. A expropriação territorial ocorrida entre os “barranqueiros” da Barra do Guaicuí obedeceu a essa lógica. Em todos os depoimentos colhidos em campo, com os mais moradores mais antigos, idosos, e mesmo com os adultos, ao se referirem ao passado do lugar, eles trazem a lembrança de um tempo em que famílias moravam às margens do rio, reproduzindo suas vidas em terras arrendadas. Ficaram como marcos desse tempo os pés de manga plantados pelas famílias ao logo das margens do rio. Uma senhora chamada Conceição, vazanteira da ilha do Boi, lembrou, em uma fala carregada de sentimento, que a árvore que ficava bem próxima da ilha era o que sobrara do lugar onde ela nasceu e foi criada. Os mais antigos da ilha do Boi, como seu Juvenal, seu Osasco, seu Paulino e outros, também falaram como era a vida nessa época, relatando que haviam famílias ao longo de toda a margem dos rios, principalmente na do rio das velhas. O sistema de produção familiar era baseado na plantação de gêneros alimentícios, criação de animais, caça e pesca. No depoimento deles fica claro que o dinheiro se fazia menos presente na vida cotidiana do que hoje, pois quase tudo era produzido pelo trabalho familiar e a comercialização do pescado ou de algum produto da roça funcionava como uma atividade complementar para a família. A pesca como atividade única de capitação de recursos é resultado das transformações ocorridas na estrutura de estrutura agrária e nas relações sociais que vigoravam anteriormente. A Barra do Guaicuí era um lugar bem menos povoado e com pouca infraestrutura. Seu Domingos, um vazanteiro da ilha do Engenho, explicou em uma entrevista que sua casa na Barra do Guaicuí foi adquirida por uma doação de terrenos que a Prefeitura promoveu na época da enchente de 1979. Com esse acontecimento os ilheiros passam a ser proprietários de suas casas na Barra do Guaicuí. Mas o fator de maior relevância para o crescimento da Barra do Guaicuí como um distrito de maior densidade populacional foi a expropriação territorial e a expulsão das famílias que viviam como agregados nas fazendas. Essa expropriação foi caracterizada pela violência por parte dos fazendeiros. Nas minhas entrevistas, principalmente com Dona Conceição, vazanteira da ilha do Boi, me foram relatados acontecimentos e práticas adotadas pelos poderosos frente às famílias camponesas no sentido de expulsá-las. Segundo ela muitas famílias rapidamente se 3 retiraram, outras resistiram até o ponto em que à situação ficou insustentável. Ela contou com pesar as pressões sofridas por seus antepassados, pois sua família foi uma das que resistiu nesse processo. Ao passo que os expropriados das fazendas perdiam suas terras e as possibilidades de reproduzir sua vida tal como antes, outra forma de expropriação acontecia nas margens do rio, na área da Barra do Guaicuí. Essa forma se deu pela compra de terrenos por pessoas de fora do lugar, pescadores amadores, interessados em ter um “rancho” (sítio) para lazer e prática de pesca esportiva. Esse processo vai culminar com a formação de uma extensa área de ranchos na margem do rio, que caracteriza a Barra do Guaicuí na atualidade. Essas terras, no tempo antigo, eram das famílias nativas que ali faziam os plantios de vazante. Assim, o que resta do espaço que compreendia o território e dava condições de reprodução ao modo de vida vazanteiro são as ilhas, todo o resto – as matas, as lagoas, as terras altas – são espaços sob o domínio das fazendas, que cercam o aglomerado de moradias e, no caso da Fazenda Base, impossibilita a apropriação desses recursos naturais pelos barranqueiros. O rio também é um espaço ao qual eles vem perdendo o acesso, seja pela degradação, seja pela fiscalização dos órgãos ambientais que restringem a atividade de pesca. O controle que a Fazenda Base exerce sobre esse território, anteriormente utilizado pelos barranqueiros, impossibilita, em todos os sentidos, qualquer acesso. São muitas as dificuldades encontradas nesse sentido: tanto para o extrativismo, a coleta da lenha e a pesca nas lagoas, quanto para o livre acesso à estrada que liga a fazenda e a ilha à Barra do Guaicuí. Todos esses problemas são vividos cotidianamente pelos moradores. Em uma entrevista com um ilheiro chamado Nelito ficou evidente a sua insatisfação com relação a esse domínio e à conivência dos órgãos ambientais com essa situação. Esse senhor de 52 anos, que mora com sua família em um terreno no fundo da ilha do Boi, coloca os problemas e dramas vividos nessa situação, cita acontecimentos vivenciados por ele e apresenta as deficiências dessa lógica de dominação no que se refere à preservação ambiental. Apresenta também soluções praticas que ajudariam tanto o pescador quanto a política ambiental na preservação dos peixes. O senhor Nelito relatou sobre os desmandos dos fazendeiros, que em duas das lagoas da região construíram comportas que represam a água e impedem a entrada de peixes maiores nas lagoas. Outra questão colocada foi o fato de que mesmo em situações em que as lagoas estejam secando e levando, conseqüentemente, à morte todos 4 os peixes que estejam nelas, o pescado continua a ser negado aos ilheiros e outros pescadores profissionais. Nem mesmo uma ação em conjunto entre pescadores, IBAMA ou alguma instituição publica, e fazendeiros no sentido de devolver os peixes para o rio, é viabilizada. Na visão do nativo, o resultado final de toda essa situação é: muita água em lagoas represadas para saciar o gado dos fazendeiros, toneladas de peixes mortos aos urubus, e pescadores utilizando apenas os rios e impossibilitados de utilizarem as lagoas, mesmo nas situações em que essa ação pode contribuir para a preservação dos peixes. Essa é a mais significativa das privações sofridas pelos barranqueiros das ilhas e da Barra do Guaicuí, mas de longe, não é a única. O território que em tempos antigos esse povo desenvolvia sua produção abrange terra firme, rio e ilhas. Isso é descrito com muita propriedade na dissertação de Luz de Oliveira (2005). A pesquisadora desenvolveu um estudo entre vazanteiros de ilhas próximas a Januária que dividem seu território em três complexos: o complexo terra firme – abrangendo a beira-rio, terras altas, lagoas e mata, o complexo rio e o complexo ilha. Assim como as privações descritas, muitas outras, mas vou evidenciar apenas algumas das dificuldades referentes ao complexo terra firme. Ao lado da mata ciliar do rio das Velhas há uma estrada, já citada na introdução, que divide as terras da fazenda e a área do distrito da Barra do Guaicuí. Bem, as duas ilhas são beneficiadas pela proximidade desta estrada, mas o acesso dos ilheiros é burocratizado e dificultado pela gerencia da fazenda. Esse fato dificulta o transporte dos produtos e a locomoção dos ilheiros, pois a fazenda não permite que automóveis circulem durante a noite na estrada. A situação dos moradores da ilha do Boi é ainda mais complicada, pois nessa ilha há uma cerca cuja cancela é trancada pelos funcionários a partir de determinada hora da noite e, daí em diante, não é mais aberta para os ilheiros, nem em casos de problemas de saúde. Seu Arnaldo e Dona Cleuza, moradores da ilha do Boi, me relataram certas ocasiões em que sofreram dificuldades nesse sentido. Apresentei algumas das dificuldades de acesso e uso dos recursos referentes ao complexo terra firme, mas as limitações da atuação dos nativos em seu território não se limitam a esse ambiente. Os barranqueiros também sofrem um processo de expropriação territorial e agressão ambiental nas áreas de beira-rio e no rio. A beira rio se encontra praticamente dominada pelos ranchos e fazendas. No decorrer da minha pesquisa escutei muito sobre dificuldades que alguns pescadores encontram no sentido de não terem um lugar para aportarem seus barcos. 5 A mais significativa forma de limitação de uso pelos nativos é a do rio propriamente. No decorrer das últimas décadas o rio vem sofrendo agressões ambientais de toda espécie. A Bacia do São Francisco é alvo de desmatamento nas margens de seus rios; há uma infinidade projetos de irrigação que acabam por contaminar suas águas; há uma conivência e uma falta de controle da ação de proprietários com poder econômico no que se refere à fiscalização ambiental. Enfim, são inúmeros os problemas relacionados ao rio. Na visão de Seu Manoel, vazanteiro da ilha das Pimentas, próxima a Pirapora, entre os problemas vividos por eles na relação com o rio, o principal é a diminuição do pescado em função da construção das barragens ao longo do curso do rio, segundo ele: ´´as lagoas não enchem e os peixes não tem mais como reproduzir``. Os projetos de irrigação, também, sugam um grande volume de águas das lagoas criadeiras e do rio, dificultando ainda mais a reprodução dos peixes. Seu Geraldo, morador da mesma ilha, aponta como resultado do intenso desmatamento, nas margens do ‘Velho Chico” e nas matas ciliares dos seus afluentes, o grave problema do assoreamento do rio. Em Luz de Oliveira (2005) um vazanteiro aponta como causa da diminuição das águas do rio, a construção indiscriminada de barragens pelos fazendeiros nos dos afluentes do são Francisco, citando importantes rios que nele deságuam e se encontram em péssimas condições ambientais, sendo que alguns deixaram de ser perenes. Todo esse processo está desencadeando um forte impacto ambiental com conseqüências ecológicas negativas para o ecossistema da Bacia do São Francisco. Essa leitura dos problemas do rio também é compartilhada entre os ilheiros e barranqueiros da Barra do Guaicuí entrevistados. Está em andamento um processo judicial contra a empresa Votorantim , relacionado ao incidente ocorrido na seca do ano de 2007, em que os dejetos químicos da fábrica, somados ao esgoto da metrópole – Belo Horizonte – despejados no rio das Velhas, desencadearam uma intensa contaminação das águas e uma gigantesca mortalidade de peixes, que até hoje os assombra os pescadores. Todo esse conjunto de ações predatórias – represamento das águas, assoreamento e poluição – vêm causando profundos impactos ambientais reduzindo drasticamente a população de peixes do rio. Em relação aos barranqueiros, as consequências desses impactos se somam ao processo de expropriação territorial limitando, ainda mais, seu acesso aos recursos naturais necessários à reprodução do seu modo de vida tradicional. Assim, expropriados da terra firme, os barranqueiros passam a concentrar suas 6 atividades econômicas na pesca, que se vê, cada vez mais, regulada por leis ambientais que determinam as técnicas, os materiais e os períodos de pescaria permitidos, ampliando o controle sobre os nativos através da exigência de se tornarem pescadores profissionais, atividade legalizada através das colônias de pesca. Todas as formas de regulação dessa atividade têm como justificativa a preservação dos peixes, e são devidamente fiscalizadas por agentes ambientais e policia florestal. No momento em que o pescado se torna, para a maioria dos barranqueiros, o único ou mais importante modo de capitação de recursos para a família, a piscosidade do rio está fortemente ameaçada por problemas ambientais e a atividade sofre intensa repressão institucional. Nesse contexto, as ilhas representam uma oportunidade dos barranqueiros preservarem parte de suas atividades produtivas tradicionais no manejo das vazantes. As ilhas são habitadas por famílias barranqueiras desde a época em que as mesmas viviam como agregados nas fazendas às margens do rio, sendo que muitos dos nativos que produzem nas ilhas hoje receberam suas terras como heranças de seus antepassados, outros as adquiriram por meio da “compra do direito”. Entre os ilheiros há os que se utilizam das ilhas apenas como espaço de trabalho, retornando diariamente à Barra do Guaicuí ao final de suas atividades, e outros que também fazem das ilhas seu lugar de moradia. As transformações que vem ocorrendo nesse espaço, que compõe o território tradicionalmente ocupado pelos barranqueiros, são relacionadas ao sistema de direitos de uso e apropriação. Luz de Oliveira (2005) relata que vigora entre os vazanteiros pesquisados a regra do “direito de trabalho” nas terras de vazante, o que significa que não há o direito de propriedade sobre a terra, estando o direito de uso e apropriação condicionado ao trabalho nela desenvolvido. Sendo assim, se uma área permanecer por certo espaço de tempo sem uso, outro lavrador poderá ter o direito de nela trabalhar. No caso da pesquisa aqui relatada, o sistema de direito nas ilhas do Boi e do Engenho está baseado nessa mesma regra, mas na atualidade existem, também, proprietários que não produzem nas suas áreas, nem mesmo dependem dela para sua sobrevivência, são moradores da cidade que possuem grandes extensões de terra nas ilhas nas quais não desenvolvem nenhuma atividade. As duas regras de apropriação estão coexistindo nas ilhas do Boi e do Engenho. Um exemplo disso é a área de Seu Domingo, na ilha do Engenho, que faz divisa com uma área de mato que se estende até o final da ilha e pertencem a um morador de Pirapora. Ele disse que no passado as terras 7 que estivessem nessas condições poderiam ser limpas e cultivadas por quem necessitasse, mas hoje os tempos mudaram e isso não seria aceito pelo proprietário. Por outro lado o sistema de direto baseado no trabalho ainda se faz presente na fala de muitos nativos e ainda se desenrolam acordos orientados por essa lógica, principalmente nos “ilhotes”. Seu Osasco relatou como foi o processo de fragmentação de suas terras na ilha, permeado de doações e vendas. Dona conceição, retornou a ilha há três anos, como o marido, Seu Jose, e recebeu como doação de seu irmão Osasco terras no “ilhote” e, também, comprou um pedaço na ilha. Voltou ao lugar em que foi criada e está reconstruindo sua vida como barranqueira. Na visão dela, no ato da compra de terras nas ilhas e nos ilhotes, o que se compra, na realidade, são as benfeitorias realizadas na terra. O valor não está diretamente ligado a terra e sim ao trabalho desenvolvido nela. Esta concepção é determinante para manutenção do sistema do direito de trabalho. Seu Juvenal, da ilha do Engenho, sintetizou perfeitamente a visão nativa dizendo que “no tempo antigo, a escritura de uma terra era a ferramenta”. O que significa que a comprovação da propriedade da terra era o trabalho da família com suas enxadas preparando a terra. Como vimos essa expropriação é desencadeada por diversos atores e circunstancias, e nas diversas áreas do seu território. Há um processo de expropriação impulsionado pela ação dos fazendeiros, que desestruturou todo um modo de vida ancestral que esse povo desenvolveu na relação com os ambientes ribeirinhos; há um processo mais recente impulsionado pelos pescadores esportivos que montam seus ranchos tomando toda a margem do rio reduzindo, ainda mais, a possibilidade dos nativos desenvolverem a agricultura de vazante; e finalmente o cerceamento representado pela degradação do rio e pela intensificação da fiscalização dos órgãos ambientais em relação à pesca artesanal. Os impactos do processo de expropriação territorial nas dinâmicas socioeconômicas dessa coletividade criam, entre os barranqueiros, três condições diferenciadas que vão determinar suas rotinas de trabalho os e modos de utilização dos recursos naturais disponíveis no território. O primeiro grupo se constitui pelos barranqueiros que só têm o rio como recurso natural a ser explorado para o sustento da família. Durante a minha pesquisa pude observar a rotina de trabalho da família de João Retorio e Adriana, bem como de seus vizinhos. João mora na baixada da Barra do Guaicuí, é um “retirante” da Bahia e vive no distrito há 18 anos. Seus pais, também ribeirinhos do São Francisco, ainda viviam 8 na fazenda em que a família foi criada. Atualmente, apenas a mãe e um irmão casado vivem lá. Ao longo de sua vida João já morou em grandes metrópoles como Brasília, Belo Horizonte e outras. Retornou às margens do São Francisco, passando a ser caseiro de um rancho na Barra do Guaicuí, cujo dono se chamava Retorio. Vem daí o apelido associado ao seu nome. Após anos de trabalho João deixa o rancho e compra a casa em que vive hoje, próxima a estrada que divide a Barra do Guaicuí e as terras da Fazenda Base. Ele tem sete filhos: Daniel (22 anos), Daniele (20 anos), Denize (18 anos), Lorena (15 anos), Bá (13 anos), Adriéle (10 anos), Amanda (8 anos), além do neto Luiz (3 anos), filho de Daniele que é criado por ele. Os dois filhos mais velhos moram em Belo Horizonte, Denize e Lorena trabalham como domésticas, e as crianças ficam sob os cuidados da esposa e da filha Bá. As tarefas da casa são divididas entre todas as mulheres da casa, incluindo as crianças. A rotina de trabalho de João Retorio é diferenciada dos seus vizinhos mais próximos, pois durante o dia ele exerce o oficio de pedreiro. Atualmente, João tem um parceiro de trabalho, Aparecido, que também o acompanha nas pescarias noturnas. A família de Aparecido desenvolve agricultura nas ilhas. Ao cair da noite João e Aparecido ingressam em uma jornada rio adentro, retornado entre dez horas e meia noite. O pescado é vendido para um vizinho, Zé Roberto, que também é pescador. Observei a rotina de trabalho da família de João Retorio e de sua vizinhança por alguns dias, e nas conversas e convívio mais direto na casa de meu anfitrião apreendi diversos aspectos importantes para análise das questões que propus na pesquisa. João Retorio e seus vizinhos mais próximos – Seu Zézão, Seu Martin e Zé Carlos – se enquadram no grupo que não utiliza, pelo menos diretamente, as vazantes. No caso dos visinhos, seu Zezao e seu Martim, a pescaria aparece como principal atividade. A família de Martin é composta por ele e sua esposa, Dona Nita, seus filhos: Quim, Du, Vai, Vam, sua filha Preta e o marido, que moram num quartinho no fundo do quintal da casa. Seu Martim já trabalhou em muitas atividades, foi vaqueiro da Fazenda Base por muitos anos, mas hoje vive somente da pescaria. Ele e Dona Nita pescam juntos, o que geralmente acontece ao cair da noite. Vam, o filho mais velho, estuda e também pesca, mas os mais novos ainda não vão às pescarias. A mesma rotina de pescarias noturnas se aplica a Seu Zezão, mas é importante destacar que a pesca entre os barranqueiros não se realiza apenas a noite, pois o que mais presenciei durante as minhas incursões às ilhas, feitas no barco de Seu Martim, foram os pescadores jogando suas tarrafas e redes durante o dia. 9 O segundo grupo se constitui por aqueles barranqueiros cuja rotina é caracterizada pelo trabalho nas ilhas. Como citado anteriormente, esses se diferem entre os que têm a ilha como lugar de morada e os que a utilizam como lugar de trabalho. Seu Domingo é um ilheiro que durante a semana trabalha em sua lavoura na ilha do Engenho e nos fins de semana retorna a sua residência na Barra do Guaicuí, mas a grande maioria dos vazanteiros dessa ilha passam o dia aí e retornam quando acabam as tarefas. Devido às circunstâncias do campo tive menos contato e pouca possibilidade de observação do cotidiano dos trabalhadores da ilha do Engenho, que têm a ilha como local de trabalho e moram no distrito. Estes retratam a maioria dos barranqueiros da Barra do Guaicuí. que se enquadram na condição de ilheiros em relação à apropriação dos recursos naturais. O trabalho nas ilhas tem sido desempenhado, principalmente, pelos mais velhos. Os jovens, quando ajudam, o fazem como atividade secundaria. Os filhos de seu Domingo, por exemplo, não o ajudam com o trabalho nas plantações, pois são trabalhadores assalariados e alguns moram em outras cidades. Essa é uma tendência que se mostrou muito forte entre os jovens e adultos da Barra do Guaicuí, mesmo entre os barranqueiros que tem as ilhas como local de moradia é muito pouca a ocorrência de jovens que moram aí com seus pais ou avós. Poucas famílias inteiras, como a de seu Nelito e seu Teté, moram nas ilhas, as casas são habitadas, em sua maioria, apenas pelos casais. O terceiro grupo se constitui por aqueles barranqueiros que utilizam as ilhas como lugar de trabalho – principal fonte de produção de mantimentos e recursos financeiros – e lugar de morada. Estes são uma minoria e sua ocorrência é maior na ilha do Boi. Muitos moradores dessa ilha têm casas na Barra do Guaicuí, mas moram, de fato, na ilha. De qualquer forma, entre os que se enquadram nessa condição há os que direcionam suas atividades mais para o plantio das vazantes, outros para a pesca, mas de certa forma todos plantam e pescam. Como não há energia elétrica o pescado é conservado no gelo fornecido pelos compradores de peixes da Barra do Guaicuí. Os produtos agrícolas são levados, com freqüência, pelo ônibus escolar ou transportados pelo rio mesmo. Citadas as três condições que acredito serem importantes na compreensão da coletividade pesquisada, passo agora abordar uma questão que me chamou a atenção: a importância das ilhas para os moradores da Barra do Guaicuí, e como os diversos sujeitos dessa região se relacionam através das trocas e acordos de plantio, colheita e comercialização. Essas relações colocam em evidência os laços de reciprocidade 10 existentes entre esses nativos, bem como, as condições em que os produtos das ilhas são distribuídos entre famílias de barranqueiros que não tem acesso direto às terras das ilhas. Quando classifiquei os barranqueiros dentro das três condições citadas anteriormente, não o fiz no sentido de delimitar classes entre eles ou muito menos diferenciar seus modos de vida. Na verdade, é muito comum um homem que se enquadre entre os que só têm a pescaria e/ou atividades relacionadas à construção civil como atividade produtiva, ter seus pais sendo lavradores das ilhas, ou mesmo, sua mulher; outra possibilidade é a sua mulher ajudar seus pais em determinada época do ano. Portanto, a situação é um tanto complexa, mas acredito que essa separação seja útil para analisarmos melhor o cotidiano e as relações dos barranqueiros entre si e com a sociedade envolvente. Em conversa com Dona Adriana, esposa de João Retorio e, posteriormente, com sua filha Lorena, as mesmas relataram como funcionam os acordos de colheita “na meia” entre os ilheiros e outras famílias da Barra do Guaicuí. No caso particular dela, foi combinado que a mesma e suas filhas mais velhas ajudassem na colheita do feijão de seu Martin, morador antigo da ilha do Engenho. Assim, parte do feijão daquela plantação serviu para abastecer por muito tempo sua família. Considero importante dizer que, do ponto de vista de Lorena, esse trabalho de colheita é encarado como uma ajuda ao dono da plantação, e não como um trabalho propriamente dito. Outra questão importante na visão dos nativos, colocada por Dona Adriana, são os laços de solidariedade e a reciprocidade entre vizinhos. Se, por um lado, houve essa distribuição dos produtos da colheita para a família de João Retorio, há, em outro nível, uma redistribuição que acontece através da troca entre vizinhos. Parte do feijão colhido por Dona Adriana e suas filhas foi doado a famílias vizinhas e, segundo ela, esse ato é retribuído pelos vizinhos em outros momentos. Esses acordos de ajuda e trabalho no processo produtivo das ilhas funcionam como uma forma de distribuição dessa produção entre os barranqueiros. CONSIDERAÇÕES FINAIS As populações tradicionais são grupos portadores de identidades específicas que têm direitos à reprodução de seus modos próprios de vida garantidos pela Constituição 11 Federal de 1988, incluindo o reconhecimento do direito aos territórios que tradicionalmente ocupam. Seu modo tradicional de utilização dos recursos naturais possibilita uma convivência respeitosa com a natureza. Os atuais problemas ambientais vivenciados na contemporaneidade colocam essas populações como detentoras de conhecimentos e modos de vida que podem servir como referências para uma sociedade sustentável, sendo parceiras nas políticas de preservação ambiental, através das formas de interação baseadas relações de reciprocidade dos homens entre si e com a natureza, que caracterizam suas formas de uso e apropriação dos territórios em que vivem. Através do estudo de caso dos moradores da Barra do Guaicuí, busquei analisar o modo de vida dos pescadores e lavradores das ilhas e vazantes do São Francisco, adotando a perspectiva de Luz de Oliveira (2005) sobre a categoria dos vazanteiros como uma identidade coletiva inserida na condição de populações tradicionais. A pesquisa desenvolvida possibilitou a constatação da determinação do processo de expropriação territorial na mudança das dinâmicas socioeconômicas dessa coletividade. As noções de identidade e organização social, de território e territorialidade, de sistema de produção, assim como as manifestações culturais são questões a serem devidamente pesquisadas para a caracterização da tradicionalidade desses grupos de ribeirinhos, que se auto denominam como barranqueiros. A expropriação territorial vivida pelos barranqueiros da Barra do Guaicuí se assemelha aos processos descritos por Luz de Oliveira (2005) entre os vazanteiros das cidades ribeirinhas de Manga, Itacarambi e Januária. Os impactos do processo de expropriação territorial nas dinâmicas socioeconômicas dessa coletividade criam, entre os barranqueiros, três condições diferenciadas que vão determinar suas rotinas de trabalho os e modos de utilização dos recursos naturais disponíveis no território. O primeiro grupo se constitui pelos barranqueiros que só têm o rio como recurso natural a ser explorado para o sustento da família. O segundo grupo se constitui por aqueles barranqueiros cuja rotina é caracterizada pelo trabalho nas ilhas e esses se diferem entre os que têm a ilha como lugar de morada e os que a utilizam como lugar de trabalho. O terceiro grupo se constitui por aqueles barranqueiros que utilizam as ilhas como lugar de trabalho – principal fonte de produção de mantimentos e recursos financeiros – e lugar de morada. Estes, atualmente, são uma minoria. Os acordos de ajuda e trabalho no processo produtivo das ilhas funcionam como uma forma de distribuição da produção entre os barranqueiros que não têm acesso direto às áreas de vazante. Ainda não sei com que freqüência esses acordos e trocas ocorrem 12 na comunidade, nem quero criar uma imagem da Barra do Guaicuí e das ilhas como lugares onde a reciprocidade e a mutualidade vigoram, incontestavelmente. A Barra do Guaicuí é um distrito com aproximadamente sete mil habitantes que teve como fator impulsionador de seu crescimento a desestruturação de um sistema que possibilitava a reprodução social dos barranqueiros. Seu crescimento, a partir desse advento, é acompanhado mudanças, onde novos sujeitos e novas condições são colocadas e/ou reorganizadas na atualidade e nisto não está fora o individualismo, como forma característica das relações sociais na modernidade. Compreender como se constrói a relação dos barranqueiros entre si e com os diversos sujeitos que compõem o seu campo de relações na atualidade é imprescindível para os objetivos desse trabalho, que é fazer uma leitura das dinâmicas socioeconômicas desse povo e dos seus processos de construção identitária, pesquisa a ser finalizada na monografia de conclusão de curso. BIBLIOGRAFIA COSTA, João Batista de Almeida. Cultura sertaneja: a conjugação de lógicas diferenciadas. In: SANTOS, Gilmar ribeiro dos (org.). Trabalho, cultura e sociedade no norte/nordeste de minas. Considerações a partir das ciências sociais. Montes claros: Best comunicação e marketing, 1997. pp. 77 LUZ de OLIVEIRA, Claudia. 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