Barragens subterrâneas: a experiência do Estado de Minas Gerais Luiz Rafael Palmier1 e Fernando Ramos de Carvalho2 Resumo – A região semi-árida de Minas Gerais ocupa uma área aproximada de 30% da área total do Estado. Essa região vem permanentemente sofrendo os efeitos sociais devastadores da escassez de água, como demonstrado pelo seu baixo valor do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), inferior ao de vários estados mais pobres do Brasil. Historicamente, as iniciativas para minorar os efeitos da escassez de água na região não têm incorporado o uso sistemático das técnicas de captação de água de chuva. Iniciativas isoladas, porém, têm sido implementadas, como a construção de barragens subterrâneas a partir de 1980. Neste trabalho, a experiência da construção de barragens subterrâneas em Minas Gerais é avaliada a partir das informações obtidas junto às instituições executoras. Adicionalmente, são discutidas as perspectivas de construção de novas barragens subterrâneas no Estado. Palavras-Chave - gestão de recursos hídricos; semi-árido; barragem subterrânea; escassez de recursos hídricos INTRODUÇÃO Diversos critérios têm sido propostos para se definir uma região árida ou semi-árida. No Brasil, historicamente, definiu-se o chamado Polígono das Secas com base em uma espécie de envoltória da isoieta 800mm, ampliada pela leitura política das áreas social e economicamente atingidas pelo fenômeno climático adverso. Independentemente da forma de abordar o problema, deve-se ter em mente que, mesmo em regiões com precipitações relativamente elevadas, danos sociais e econômicos podem advir da escassez relativa da água, como é o caso de parte do estado de Minas Gerais. Isso pode ocorrer, por exemplo, devido à falta de condições geológicas para formação de reservas importantes de água subterrânea e à ausência de alternativas de conservação de excedentes hídricos que podem ocorrer em anos ou meses de pluviometria normal. Tais características são típicas em aproximadamente 30% da área do estado de Minas Gerais. 1 Departamento de Engenharia Hidráulica e Recursos Hídricos; Escola de Engenharia da Universidade Federal de Minas Gerais; Avenida Contorno, 842/809, 30110-060 Belo Horizonte-MG. Tel: (31) 32381003; Fax: (31) 32381001; email: [email protected] 2 Mestre em Ciências e Técnicas Nucleares do Departamento de Engenharia Nuclear; Escola de Engenharia da Universidade Federal de Minas Gerais; Avenida Contorno, 842/914; 30110-060 Belo Horizonte-MG. Assim, ainda que o fenômeno das secas no Brasil seja geralmente relacionado à sua região nordeste, uma extensa área do estado de Minas Gerais que não pertence ao Polígono das Secas vem sofrendo permanentemente os efeitos sociais devastadores da escassez de água. Nesse contexto, a gestão de recursos hídricos na região semi-árida do estado de Minas Gerais é de crucial importância para planejar, regular e controlar o uso da água, atendendo às diversas demandas pelo recurso, com concomitante preocupação com a integridade ambiental. E tal gestão deve ser feita em termos racionais, otimizados e de forma integrada, com a participação das instituições governamentais envolvidas, o setor privado e a sociedade civil em geral. Ainda que o contexto da gestão de recursos hídricos em regiões áridas e semi-áridas, em sua forma atual, englobe ações relativas à gestão de oferta, à gestão de demanda e à gestão de alocação dos recursos hídricos, no Brasil, a ênfase continua sendo a de se obter mais água. E quase sempre com o aproveitamento de recursos superficiais. Nos casos em que as vazões mínimas dos cursos d’águas são inferiores àquelas demandadas, comumente são construídas grandes barragens, com o inconveniente da elevada perda de água por evaporação. Técnicas alternativas de water harvesting, nas quais se incluem as captações de água de neblinas e de orvalho, de chuva, de vazões em cursos d’água intermitentes e de águas subterrâneas, têm sido cada vez mais utilizadas em regiões áridas e semi-áridas do mundo. Dentre as técnicas de captação de águas subterrâneas, a construção de barragens subterrâneas tem se mostrado uma alternativa promissora em diversos países, inclusive o Brasil, como mostra a recente experiência realizada no estado de Pernambuco. Interessante observar que barragens subterrâneas já foram propostas e construídas na região semi-árida do estado de Minas Gerais, com o apoio de instituições governamentais. Todavia, não há como resgatar junto a essas instituições dados relativos aos custos e desempenho das barragens subterrâneas implementadas. Na seqüência deste trabalho, serão abordados aspectos das construções de barragens subterrâneas, histórico da técnica e perspectivas de seu uso no estado de Minas Gerais. BARRAGENS SUBTERRÂNEAS: DEFINIÇÕES A retenção de águas subterrâneas para fins de conservação não é um conceito novo, uma vez que há indícios de construções de barragens subterrâneas que datam dos Romanos, na ilha da Sardenha. As barragens de águas subterrâneas (groundwater dams) obstruem o escoamento fluxo de água subterrânea que ocorre no aluvião, armazenando a água abaixo do nível do solo. Podem também servir como uma estrutura coletora que desvia o escoamento subsuperficial, por exemplo, para recarregar aqüíferos adjacentes, ou para elevar o nível do lençol freático. Essas barragens podem ser de dois tipos (OLIVEIRA e LEITE, 1987; NILSSON, 1988): as barragens subterrâneas propriamente ditas (subsurface dams) ou as de armazenamento de areia (sand-storage dams). No primeiro caso, a barragem é construída abaixo do nível do solo para diminuir ou impedir o escoamento em um aqüífero natural, enquanto que no último a barragem é construída acima do nível do solo para acumular, com mão-de-obra mínima, grandes quantidades de sedimentos que permitem armazenamento de água. Naturalmente, pode-se optar por uma combinação das duas técnicas. No Brasil, o termo barragem subterrânea tem sido usado de forma indistinta para caraterizar qualquer estrutura que armazene água abaixo do nível do solo e as experiências com as barragens de armazenamento de areia são, se não raras, muito pouco divulgadas. As seguintes vantagens das barragens subterrâneas em relação aos reservatórios de armazenamento de águas superficiais podem ser citadas (BARROW, 1999; COSTA, 1997; OEA, 1997): • as perdas por evaporação são nulas ou bastante reduzidas; • não estão sujeitas aos processos de assoreamento; • a água armazenada está menos sujeita à poluição; • são menores os riscos de ocorrência de doenças de veiculação hídrica; • o solo acima da água armazenada pode ser aproveitado para cultivos agrícolas, pastagem ou florestas; Uma vez que retêm os fluxos de água subterrânea dos aluviões, a capacidade de armazenamento das barragens subterrâneas é relativamente pequena quando comparada com aquela das barragens convencionais. Ainda que a técnica de construção seja relativamente simples e de baixo custo, as etapas de escolha do local de implementação, de elaboração do projeto e de construção têm que ser executadas de forma a evitar vazamentos ou colapso da estrutura. Adicionalmente, cuidado especial deve ser tomado para que a água armazenada não cause problemas em áreas vizinhas, como a excessiva elevação do nível de água. Portanto, antes da construção de tais barragens, investigações adequadas devem ser realizadas para se conhecer as condições hidrogeológicas do local. Para que as barragens subterrâneas sejam atrativas, os custos totais de sua construção devem ser mínimos e, conseqüentemente, métodos simples e de baixo custo devem ser considerados nessas investigações hidrogeológicas. Por exemplo, as condições adequadas para a construção de barragens subterrâneas, segundo REBOUÇAS (1999), são: espessura mínima de 2 metros do depósito aluvial sobre uma extensão de 1 km à montante do barramento, predominância de sedimentos arenosos e solos não salinizados. A etapa de construção deve ser planejada de acordo com as condições sazonais – a época mais propícia é ao final do período de estiagem, quando o depósito aluvial se encontra praticamente seco. Materiais apropriados, com preferência para aqueles disponíveis no local, devem ser utilizados. Face à facilidade construtiva das barragens subterrâneas, deve-se promover o aproveitamento da mão-de-obra local. Porém, há que se garantir a prática de conceitos básicos de engenharia para se evitar as perdas por evaporação e conseqüente processo de salinização. Assim como ocorre com outras técnicas de captação de água de chuva, é de fundamental importância, durante todas as fases dos projetos de construção de barragens subterrâneas, considerar de forma apropriada os aspectos sociais e econômicos envolvidos, tais como: posse da terra, desemprego e envolvimento dos beneficiários. Por exemplo, em uma região em que as barragens subterrâneas não são prática comum, deve-se avaliar se elas serão atraentes aos beneficiários. É importante salientar que as técnicas de captação de águas subterrâneas, em especial as barragens subterrâneas, não são universalmente aplicáveis para aumentar a oferta hídrica de uma determinada região, pois dependem de certas condições físicas, sociais e econômicas. De qualquer maneira, as barragens subterrâneas devem ser sempre consideradas como uma alternativa em regiões de escassez hídrica, caso da região semi-árida do estado de Minas Gerais. CONSTRUÇÃO DE BARRAGENS SUBTERRÂNEAS EM MINAS GERAIS: OPÇÃO VIÁVEL? O estado de Minas Gerais possui uma área de 582.586 km2, equivalente a 7% da área total do país, e engloba dezessete bacias hidrográficas, correspondentes às nascentes de alguns dos principais rios federais. O estado se caracteriza por uma grande diversidade cultural e ambiental, apresentando desde regiões com expressivo potencial hídrico, até regiões nas quais a escassez de água, tanto sob o aspecto da quantidade quanto da qualidade, vem acarretando significativos conflitos de uso, como se observa na região do Semi-Árido mineiro, denominada Região Mineira do Nordeste, cuja área é de cerca de 30% daquela do estado. Ainda que os índices pluviométricos médios anuais nessa região do estado estejam em torno de 800mm, devido, entre outros fatores, à distribuição temporal irregular das chuvas e às altas taxas de evaporação, é comum a ocorrência de secas, associadas a danos sociais e econômicos. Vale destacar o baixo valor do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) para a região, inferior ao de vários estados mais pobres da federação e bem inferior ao valor médio brasileiro. Em Minas Gerais, as principais instituições estaduais com atividades ligadas a gestão e pesquisa em recursos hídricos são: Fundação Rural Mineira - Ruralminas, Instituto Mineiro de Gestão das Águas - IGAM, Empresa de Pesquisa Agropecuária de Minas Gerais EPAMIG, Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural do Estado de Minas Gerais EMATER-MG, Companhia de Saneamento de Minas Gerais - COPASA-MG e Companhia Energética de Minas Gerais - CEMIG. Atuam, também, as seguintes instituições federais: Agência Nacional de Águas - ANA, Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e Parnaíba - CODEVASF, Companhia de Pesquisa de Recursos Minerais – CPRM, Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária - Embrapa e Departamento Nacional de Obras contra as Secas - DNOCS. Em geral, optou-se por aproveitar os recursos hídricos superficiais para atendimento das demandas. Assim, a construção de grandes barragens está associada ao aproveitamento do potencial hidrelétrico e ao abastecimento de água das grandes cidades do estado. Adicionalmente, grandes projetos de irrigação no estado têm como fonte as águas de cursos superficiais. Mesmo instituições cujo interesse principal não era a gestão de recursos hídricos em regiões de escassez, foram executoras de barragens de perenização na região semi-árida do estado. No Brasil, as primeiras barragens subterrâneas, construídas na região nordeste, datam do início da segunda metade do século passado, mas são inexistentes as informações da metodologia utilizada e seu desempenho. A partir da década de 80, essa alternativa de captação voltou a ser considerada, tanto nos estados do nordeste como na região semi-árida do estado de Minas Gerais. Porém, apenas nos últimos cinco anos as barragens subterrâneas passaram a despertar interesse especial, cujo marco é a construção de mais de 500 barragens desse tipo apenas no estado de Pernambuco (CIRILO e COSTA, 2000). Para o desenvolvimento deste trabalho, foram consultadas algumas das instituições estaduais de Minas Gerais com o objetivo de levantar informações relativas aos projetos de barragens subterrâneas já construídas no estado, tais como: quantidade, localização, estudos hidrogeológicos realizados, detalhes de projeto, técnicas de construção, aspectos de manutenção, programas de monitoramento, desempenho, aceitação dos usuários, custos, benefícios sociais e econômicos, etc. O levantamento foi dificultado tanto pela falta de interesse em se divulgar as informações existentes quanto pela inexistência das mesmas, provavelmente função de ineficiência administrativa. Houve um caso em que a informação obtida, e não confirmada, foi a de que a documentação, não disponibilizada, sobre as barragens subterrâneas construídas por uma dada instituição fazia parte do acervo particular de um de seus funcionários. Ainda que limitado, o levantamento realizado permitiu inferir que foram construídas no início da década de 80 umas poucas dezenas de barragens subterrâneas no estado, principalmente nas bacias do rio Jequitinhonha – municípios de Taiobeiras, Santo Antonio do Jacinto, Jacinto, Salinas e Pedra Azul – e do rio São Francisco – municípios de Luislândia (antigo município de Brasília de Minas) e Francisco Sá. Para a maioria das barragens, não há qualquer registro de informação, mas sabe-se que as experiências, em geral, não foram bem sucedidas. Alguns dos atuais funcionários das empresas responsáveis pelas obras alegam que a causa principal de insucesso está relacionada à falta de capacitação tanto das equipes executoras quanto dos usuários. Se tal interpretação reflete o que de fato ocorreu, nota-se aqui uma incoerência, pois não há como fazer treinamento dos usuários com equipes despreparadas. Ressalta-se o caso das barragens subterrâneas construídas no rio São Domingos, afluente do rio Verde Grande, bacia do rio São Francisco, cujo desempenho foi relatado como satisfatório, face ao atendimento dos objetivos iniciais propostos, quais sejam: retenção do fluxo subterrâneo e proteção da água acumulada dos processos de salinização. Porém, a análise está baseada em aspectos apenas qualitativos obtidos dos depoimentos de técnicos das empresas executoras, pois não há registros documentais. De uma maneira geral, pode-se considerar que a experiência inicial com a construção de barragens subterrâneas no estado de Minas Gerais não foi bem sucedida. Talvez em função desse fato, a iniciativa não teve continuidade nas décadas seguintes. Seria imprescindível avaliar a experiência passada para promover a correção de algumas das estratégias e logísticas adotadas. No caso de Minas Gerais, porém, tal avaliação só pode ser feita de forma limitada, o que não significa que a opção por barragens subterrâneas na região semi-árida de Minas Gerais deve ser descartada dos novos estudos de gestão de recursos hídricos. CONSIDERAÇÕES FINAIS Não se pode afirmar com certeza, mas há indícios de que a ação de se construir barragens subterrâneas no estado de Minas Gerais se deu de uma forma relativamente isolada e/ou sem uma apropriada coordenação interinstitucional, multidisciplinar e intersetorial. Isso pode ter ocorrido em função da grande quantidade de instituições envolvidas com a gestão de recursos hídricos na região semi-árida do estado, sem que haja uma divisão adequada das responsabilidades e funções de cada um deles. A continuidade das iniciativas depende, por exemplo, da definição de uma única instituição para coordenar as atividades de implementação de técnicas de captação de água de chuva, incluindo as barragens subterrâneas, a qual deve ter a função de estabelecer uma base de dados regional para o armazenamento, processamento e análise dos dados coletados sobre os projetos. Apesar da experiência negativa no estado de Minas Gerais, a construção de barragens subterrâneas pode ser uma alternativa a ser estudada para aumentar a oferta hídrica na região. Todavia, é fundamental realizar investigações hidrogeológicas e experiências piloto na região, para, por exemplo, avaliar se a técnica é adequada para solos cársticos, de ocorrência comum em parte da região mencionada. Novos projetos de construção de barragens subterrâneas na região do Semi-Árido de Minas Gerais devem ser precedidos de avaliações sociais e econômicas, assim como devem ser estabelecidos programas de treinamento de pessoal, tanto para os funcionários das empresas executoras, em um primeiro estágio, como para os beneficiários, em estágios posteriores. Finalmente, aliado aos novos projetos, deve ser desenvolvido um programa de monitoramento e avaliação do desempenho das barragens subterrâneas. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS Barrow, C.J., Alternative irrigation: the promise of runoff agriculture, Earthscan Publications Ltd, London, 1999 Cirilo, J.A. e Costa, W.D., Barragem subterrânea: uma alternativa a considerar, Revista Informativa da Associação Brasileira de Recursos Hídricos, No 2, julho/2000. Costa, W.D., Manual de barragens subterrâneas - conceitos básicos, aspectos locacionais e construtivos, Secretaria de Ciência, Tecnologia e Meio Ambiente, Recife, Pernambuco, 1997. Nilsson, Å., Groundwater dams for small-scale water supply, Intermediate technology Publications Ltd, 1988. Oliveira, A.M.S. e Leite, C.A.G., Tecnologias simples para aproveitamentos de pequeno porte dos recursos hídricos do semi-árido nordestino, Artigo Técnico 14, Associação Brasileira de Geologia de Engenharia, 1987. Organization of American States, Source book of alternative technologies for freshwater augmentation in Latin America and the Caribbean, Washington, United States of America, 1997. Rebouças, A.C., Águas subterrâneas, In: Águas doces no Brasil; capital ecológico, uso e conservação, organização e coordenação científica, Rebouças, A.C., Braga, B. e Tundisi, J.G., Escrituras Editora, 1999.