A RIQUEZA FEMININA: UMA BREVE ANÁLISE SOBRE AS POSSIBILIDADES DE ESTUDOS DE GÊNERO COM A UTILIZAÇÃO DE TESTAMENTOS E INVENTÁRIOS DO SÉCULO XIX DA CIDADE DE CASTRO/PR Rogério Vial Mestrando em História e Regiões, PPH – Universidade Estadual do Centro Oeste (UNICENTRO) Bolsista CAPES Resumo: O estudo em História tem se mostrado extremamente dinâmico, com estudos nas mais diversas áreas. Portanto, pretendemos com este trabalho levantar possibilidades de estudos de gênero nas fontes testamentais de Castro no século XIX. Embora nosso tema principal da pesquisa se dê na área de escravidão e riqueza nos Campos Gerais paranaenses, encontramos diversas fontes que se bem utilizadas podem desvendar um mundo feminino bem diferente do que encontramos nas novelas e nas literaturas da época. Analisaremos, entre outros, o inventário e o testamento da mais rica mulher dos Campos Gerais da metade do século XIX, Ana Luiza da Silva. Possuidora do maior plantel de escravos dos Campos Gerais, e de vasta gama de propriedades e fazendas na região. É bem provável que Ana Luiza tenha sido a maior proprietária de escravos de Castro, incluindo escravarias onde o proprietário era homem. Mas também estudaremos pequenas, mas não menos importantes, manifestações da vida cotidiana de simples mulheres, como a Florinda Preta Fora. Inventariada, revelou aspectos cotidianos das relações de poder entre a população simples daquela vila. As fontes são os inventários de Castro entre 1850 e 1860, e a fim do nos auxiliar na pesquisa buscamos autores como Flexor, Certeau, Franco, Del Priori, Elias, entre outros. Palavras-chave: Mulheres; riqueza; relações de poder. Introdução O trabalho historiográfico transforma os resquícios deixados pelos homens do passado em História viva. Sentir o gosto de experimentar o sabor escondido durante o tempo transforma o historiador num degustador de vinhos finos, onde o sabor de um sempre é melhor que o outro. Cada pesquisa que iniciamos e conseguimos concluir se parece como uma garrafa de vinho fino que bebida até o fim pelo historiador quando este escreve suas conclusões, pode ser bebida novamente pelos que lerem seu trabalho e o próprio sabor pode ser outro. Na vinha da história nos colocamos como agricultores que colhem as uvas (fontes) e dela buscam extrair o sabor mais fino (escrita). Certamente buscamos as melhores uvas, mas não podemos deixar de lado o aspecto da terra que lhe produziu. Fatores climáticos influenciam sua produção. A forma que o agricultor aduba a terra, suas técnicas e hábitos em cultivar o solo também delegam aspectos especiais ao sabor do vinho. As fontes escolhidas para esse trabalho fazem parte de um acervo do pesquisador as quais foram digitalizadas nos arquivos da Casa de Cultura Emilia Erichsen1 e no Museu do Tropeiro2 na cidade de Castro na região que conhecemos como 1 2 Casa da Cultura Emília Erichsen, doravante grafado apenas como CCEE. Museu do Tropeiro, doravante grafado apenas como MDT. Anais do Colóquio Nacional de Estudos de Gênero e História – LHAG/UNICENTRO, p.117 Campos Gerais3 do Paraná. São documentos contidos nos processo de inventários e testamentos do século XIX entre os anos de 1840 e 1860. No entanto, é importante ressaltar que a escolha se deu sobre os inventários que possuíam testamentos. Pois, podemos através destes compreender um pouco dos usos, dos costumes, da construção dos espaços vividos e das relações de poder que permeavam a vida dos moradores da cidade de Castro nos Campos Gerais. Compreendemos que o primeiro passo a ser dado, utilizando a metáfora acima do agricultor que prepara a terra e tem suas técnicas e costumes, deve ser na direção de uma breve contextualização do que seria Castro e os Campos Gerais nesse período entre 1840 e 1860. Castro, os Campos Gerais e a Província do Paraná A região dos Campos Gerais constituiu-se como parte importante na expansão da Colônia Lusitana além-mar a partir de 1704. Nessa data ocorre a distribuição da primeira sesmaria (LOPES, 2004). Esse fato propicia o início oficial da ocupação do território que chamamos de Campos Gerais, onde se localiza geograficamente a cidade de Castro. A família Taques de Almeida, através do Capitão-Mor Pedro Taques de Almeida foi a primeira a possuir terras na região, e através desta outras se instalaram e buscaram explorar os campos naturais para a criação e engorda de gado. Porém, somente com a abertura do caminho ligando a Província de São Pedro do Rio Grande até os Campos Gerais entre 1728 e 1730, e estes a Sorocaba no interior de São Paulo é que de fato a região começa a despertar interesse comercial (MARTINS, 2011, p. 49). No entanto a freguesia do Iapó4 só foi elevada a Vila em 29 de janeiro de 1789, com a instalação da Vila com o “símbolo da Justiça” o Pelourinho, e a designação para alugar uma casa para que sirva de Câmara Municipal e de Cadeia Pública5. Viajantes que passaram pela região e registraram suas percepções e conseguiram visualizar a importância econômica dos Campos Gerais. Vejamos o que deixou registrado Saint-Hilarie, trata-se de um desses territórios que, independente das divisões políticas, se distinguem de qualquer região pelo seu aspecto e pela natureza de seus produtos e de seu solo; onde deixam de existir as características que deram à região um nome particular – aí ficam os limites desses territórios. Na margem esquerda do Itararé começam os Campos Gerais, região muito diversa das terras que a precedem do lado nordeste, e elas vão terminar a pouca distância do registro de Curitiba, onde o solo se torna desigual e as verdejantes pastagens são substituídas por sombrias e imponentes matas. (SAINT-HILARIE, 1978, p. 15) As pastagens verdejantes constituem um local propício para a criação e/ou engorda de gado, atividade econômica que determinou a instalação da vila, e a 3 A expressão "Campos Gerais do Paraná" foi consagrada por MAACK, que a definiu como uma zona fitogeográfica natural, com campos limpos e matas galerias ou capões isolados de floresta ombrófila mista, onde aparece o pinheiro araucária. Ver em Reinhard Maack, Geografia física do Paraná (Curitiba: Imprensa Oficial, 2002. 4 Iapó é o primeiro nome da vila que posteriormente viria a ser Castro. 5 CCEE. Livro de Registros de Atas da Câmara de Castro, 1789. Anais do Colóquio Nacional de Estudos de Gênero e História – LHAG/UNICENTRO, p.118 consequente exploração econômica de toda uma região natural. Os Campos Gerais apresentavam-se como um local onde a atividade tropeira teria uma de suas bases, os campos daqui, ligados aos campos do Sul colocariam a região sob domínio português e também dentro de uma dinâmica comercial que envolvia diversos setores. Ainda é interessante observar que Castro e os Campos Gerais obtém do tropeirismo a maior contribuição econômica para a vila. Pois a atividade econômica centrada no comércio de gado fornecia aos moradores da região uma alternativa econômica rentável, assim, como bem observou Saint-Hilarie, a vontade de estar dentro do sistema econômico do tropeirismo era grande, e se não fazia com que todos fossem em busca de riquezas que poderiam ser geradas pelo comércio de gado, boa parte dos moradores buscavam nela juntar algum tipo de lucro. Não se deve pensar, porém, que os habitantes dos Campos Gerais permaneçam sempre em sua terra. Homens de todas as classes, operários, agricultores, no momento em que ganham algum dinheiro partem para o Sul, onde compram burros bravos para revendê-los em sua própria terra e em Sorocaba. (SAINT-HILARIE, 1978, p. 19) Devemos observar que o viajante condiciona a ida ao sul aos homens, no entanto devemos resguardar uma desconfiança, pois é bem provável que isso não se manifestava como vontade de todos, muitos se mantinham em Castro vivendo de serviços e de comércio com outros homens ligados a atividade. A economia encontrava suporte no tropeirismo, onde várias atividades se sustentavam com o comércio e a prestação dos serviços aos tropeiros que pelos Campos Gerais passavam. Dentro deste contexto havia um número razoável de escravos que pertenciam a proprietários rurais e a proprietários urbanos. Com a formação social e econômica, Castro se destaca na nova Província do Paraná, formada em 1853, e o sistema tropeiro representava a base econômica da sociedade a qual recebe e consolida sua influência regional com o apoio econômico obtido no comércio de gado. É bem notável a importância de outras vilas e cidades que estão no caminho das tropas entre as regiões produtoras do sul e a feira de Sorocaba, dentre elas podemos destacar Ponta Grossa e Lapa, além de Castro. Porém, não é nosso objetivo neste breve artigo versar sobre esses outros locais, o que nos interessa é analisar Castro e como seus moradores davam usos aos seus bens em vida para depois de sua morte. O que eles buscavam nos seus testamentos? Quem fazia testamentos? Havia contestações de testamentos e de inventários por interessados? Esses e outros aspectos que propiciam uma análise social dos espaços vividos pelos moradores dos Campos Gerais, em especial Castro. Testamentos e inventários: fontes de pesquisa em história O testamento se configura numa região onde as relações de poder, a economia, a religião, enfim, vários aspectos sociais se manifestam e podem ser percebidos na pesquisa. Os documentos deste tipo podem trazer inúmeras informações, são fontes importantes que evidenciam aspectos que por vezes não são encontradas em outras fontes. A professora Maria Helena Ochi Flexor defende a importância destes documentos para a pesquisa histórica: Anais do Colóquio Nacional de Estudos de Gênero e História – LHAG/UNICENTRO, p.119 Os Inventários e Testamentos são documentos da maior valia como fontes históricas. Aparentemente simples documentos de caráter jurídico-civil e eclesiástico, quando bem analisados, mostram, ou deixam transparecer, informações de ordem social, econômica, cultural, educacional, religiosa, política e administrativa. (FLEXOR, 2005) Nos que encontramos em Castro podemos notar que nos testamentos as vontades de seus testadores estão presentes e demonstram as relações de poder que estavam presentes nos espaços destes. Em muitos inventários não há registro de testamentos, portanto, os que constam com esse artifício possibilitam uma análise ampla da sociedade. Podemos encontrar aspectos como as vontades do testador sobre seu funeral, sua filiação e naturalidade, estado civil, filhos, entre outros. Também encontramos testamentos que “dão” liberdade aos escravos, no entanto exigem deste um “serviço” que pode ser em trabalho ou em filhos escravos. Como forma de avaliar as possibilidades das fontes realizaremos uma abordagem sobre o testamento de Dona Ana Luiza 6 da Silva que nos pareceu um dos mais completos. Contem ritos fúnebres, pedidos de obras pias, desejos e vontades acerca de seus bens, em especial suas fazendas, e até com cobranças de liberdade aos seus escravos através de “filhos produzidos”. Dona Ana Luiza pertencia a uma família importante de Castro, Canto Silva, e faleceu em nove de maio de 1856, vejamos: Jesus, Maria, José Em nome da Santíssima Trindade Padre, Filho e Espírito Santo em quem eu Dona Ana Luiza da Silva firmemente creio em cuja fé protesto viver e morrer. Este o meu testamento e última vontade. Declaro que sou natural desta Vila de Castro, filha legítima do Tenente Coronel José Félix da Silva e de sua mulher Dona Onistarda Maria do Rosário já falecidos, fui casada uma só vez com o Sargento Mor Manoel José do Canto também já falecido de cujo matrimônio tenho dois filhos que são Manoel Ignacio do Canto e Silva, casado com o Dona Candida Joaquina Novaes e Silva e Dona Mecia Maria do Canto, casada com o Tenente José Joaquim de Andrade que necessariamente me hão de suceder. 7 Na parte acima a testadora declara ter nascido na vila de Castro e ser filha legitima, o que era importante na partilha de bens, do Tenente Coronel José Felix da Silva. Fato interessante é que o romancista Davi Carneiro escreveu um livro sobre a tragédia familiar que se abateu entre o pai de Dona Ana Luísa e a mãe da mesma, a Senhora Onistarda Maria do Rosário. O livro de Davi Carneiro se chama O Drama da Fazenda Fortaleza, e foi publicado em 1941. Suas páginas contam a história, a qual o autor garante ser verdade, em que José Felix se casa com Onistarda, mas na noite de núpcias descobre que sua esposa já não é mais virgem. Isso faz com que ele trate a esposa com ódio e rancor, proibindo a mesma de voltar a Curitiba. Trancada na Fazenda Fortaleza de propriedade de José Felix, ela tenta de várias maneiras assassinar o marido. Ana Luísa nasce, mas José Felix não tem certeza que a filha é sua. Em 1822 ela consegue assassinar o marido através de envenenamento, é condenada, mas fica 6 7 Em alguns lugares encontramos a grafia Luísa, ora Luiza. MDT, Fundo Inventários, 1851-1860. Inventário de Ana Luísa da Silva. Anais do Colóquio Nacional de Estudos de Gênero e História – LHAG/UNICENTRO, p.120 trancafiada na fazenda. Por falta de documentos neste momento, não temos como verificar se de fato isso ocorreu, no entanto Saint-Hilarie, ao viajar pela região, foi até a fazenda de José Felix e notou sua avareza, apesar de ser um dos maiores proprietários rurais da região (SAINT-HILARIE, 1978). Também devemos destacar que o historiador José Carlos Veiga Lopes, em seu livro Fazendas e sítios de Castro e Carambeí aponta que em 1787 o casal José Felix da Silva Passos, com 28 anos, e sua esposa Onistarda, com 18 anos, possuíam uma filha, Ana Luiza que tinha cinco anos. É importante ressaltar que José Felix foi figura de grande importância em Castro, pois conforme Lopes (2004, p. 79) José Felix “foi o primeiro Juiz Ordinário da Vila de Castro”. Cruzando esses dados com os de Davi Carneiro podemos compreender que o casamento com Onistarda se deu pelo menos em 1782. No entanto a morte por envenenamento, relatada por Davi Carneiro, só se daria em 1822 quando o mesmo já deveria possuir mais de sessenta anos. Fato que aparece no romance e nos relatos de Saint-Hilarie é que em 1808 uma emboscada havia ferido gravemente José Felix, fazendo com que o mesmo perdesse todos os dedos de uma das mãos e ficasse aleijado da outra. Saint-Hilarie (1978) também comenta esse fato e afirma que todos sabiam que a mandante do ato era sua esposa. Nessa época Ana Luiza residia na Vila do Príncipe (Lapa) já casada. Conforme Lopes (2004, p. 83) Ana Luiza casou-se em 1805 com o alferes Manuel José do Canto e ficou viúva em sete de janeiro de 1815. Voltou à fazenda Fortaleza onde seu pai e sua mãe residiam. Em 1822, com 62 anos José Felix falece na fazenda Fortaleza. Em 1828 falece Onistarda com mais ou menos sessenta anos. Ana Luiza, já viúva, herda todas as terras que pertenciam aos pais. Poderíamos, através deste início deste testamento, construir uma genealogia da testadora. Também seria possível buscar uma história de sua família, cruzando com outras fontes, como os Livros de Registros de Leis e Patentes 8 onde por diversas vezes os combates entre José Felix e indígenas da região. Mais adiante encontramos as intenções funerárias de Ana Luísa. Ela faz solicitações que devem ser cumpridas no dia de sua morte e nos dois dias posteriores. Também deixa recomendações quanto à reza de missas em nome de sua alma e de outras pessoas. Designa uma quantia em dinheiro que deveria ser revertida em “baeta e algodão grosso” e distribuída aos pobres da vila de Castro. Rogo em primeiro lugar a meu filho Manoel Ignacio do Canto e Silva, em segundo a meu genro o Senhor Tenente José Joaquim de Andrade e em terceiro ao Sr. Barão de Antonina João da Silva Machado queiram fazer a obra pia de serem meus testamenteiros e aquele que aceitar concedo o prazo de dois anos para dar contas do cumprimento de suas disposições. Falecendo eu neste município meu corpo será sepultado na Igreja Matriz da Vila de Castro e no dia de meu falecimento ou no seguinte e nos dois dias mais que se seguirem se dirão por minha alma tantas missas de corpo presente quantos forem os sacerdotes que no lugar se acharem e não estiverem impedidos de ______ dizer e o mais de meu funeral deixo a _______ de meu testamenteiro. No dia do meu falecimento e nos dois seguintes meu testamenteiro repartirá com a pobreza do lugar em que eu for sepultada a quantia de quatrocentos mil réis, sendo porém empregada a mencionada quantia em baeta e algodão grosso. Por minha alma mandará meu testamenteiro dizer cem missas, outras cem pela alma de meu falecido marido, mais cem pelas almas de meus pais e 8 CCEE. Livro de Registros de Atas da Câmara de Castro, 1789. Anais do Colóquio Nacional de Estudos de Gênero e História – LHAG/UNICENTRO, p.121 cinqüenta pelas dos meus finados cativos.9 Conforme Flexor (2005) os testadores realizavam esses pedidos a fim de garantir sua salvação no Reino de Deus. A percepção dos ritos funerários nesses documentos parece construir um local vivido onde a morte trás um “nada inaproveitável”, mas que mesmo moribundo quer falar. Certeau (1998) aponta que a morte representa um outro local revestido de ritos e linguagens diferentes do cotidiano. Notamos então a preocupação desta com outras pessoas já falecidas que deveriam ser lembradas com ela nas missas requisitadas. Um local onde o discurso aparece sem que haja um local específico. As missas aos já falecidos poderiam ser solicitadas em vida, mas a testadora optou por um rito pós-morte a fim de manter uma memória viva, pois a morte é a única verdade que se pode crer, tanto que nos testamento, logo após a sua genealogia, a morte ocupa o local privilegiado. O pedido de missas aos seus escravos que morreram enquanto estavam lhe servindo podem revelar duas possibilidades, que também por escassez de fontes ficamos sem condições de responder. A primeira seria relacionada ao convívio aos seus escravos. Mesmo numa sociedade onde as relações entre senhores e escravos se davam, principalmente, dentro de um contesto onde o mercado de trabalho estava em primeiro lugar, poderia haver relações de amizade ou mesmo afetivas que ligava Ana Luiza aos seus falecidos escravos. Gilberto Freyre em seu livro Casa Grande & Senzala faz uma análise da escravidão que transmite um ar de suavidade. Embora as críticas que essa obra recebeu da historiografia, podemos considerar que as relações entre senhores e escravos não eram rígidas dentro de uma estrutura fixa chamada escravidão. Dentro deste sistema de trabalho poderia haver táticas praticadas principalmente pelos escravos, que tentavam de uma forma ou de outra abrandar a escravidão. Boas relações, bons trabalhos prestados, submissão e fidelidade poderiam valer-lhe trabalhos menos pesados e desgastantes, possibilidade de ficar próximo aos filhos, alimentação melhor, enfim, uma gama de oportunidades que fariam a vida do escravo menos penosa. Essas táticas passavam por uma proximidade e um jogo social que, conforme Freyre (2006), era utilizado pelos escravos e também recebido de maneira harmoniosa e proveitosa por parte dos senhores. A outra possibilidade passa pela violência que era empregada aos escravos. Contrariando muitos historiadores, entre eles Romário Martins, que defendia que a escravidão no Paraná não havia sido violenta como no restante do Brasil. Evidentemente que ao nos debruçarmos sobre os Processos Criminais pertencentes ao arquivo da Casa de Cultura Emilia Erichsen envolvendo senhores e escravos, notamos que a violência era algo presente na sociedade dos Campos Gerais. Logo percebemos que esta é uma das muitas lições do texto de Maria Sylvia de Carvalho Franco: a violência era uma dimensão inseparável da realidade de homens e mulheres pobres, mas também o era para grandes proprietários e escravos10. A possibilidade de livrar-se dos pecados cometidos para com seus escravos também pode haver pesado no momento de confecção de seu testamento. No entanto, esse fator apenas aparece como uma suposição, não encontramos, numa rápida busca, processos criminais que envolvam a 9 MDT, Fundo Inventários, 1851-1860. Inventário de Ana Luísa da Silva. Maria Sylvia de Carvalho Franco. Homens livres na ordem escravocrata. 3 ed. São Paulo: Kairós, 1983. 10 Anais do Colóquio Nacional de Estudos de Gênero e História – LHAG/UNICENTRO, p.122 testadora. Quanto a sorte dos escravos, dependia muito das relações entre o senhor e o escravo. Notamos que o espaço da escravaria se desenhava conforme suas relações dentro do sistema. A escravaria também estava subdividida em “classes”, não no termo forjado pelo Marxismo, mas no status que ocupava nas relações do mercado de trabalho. Vejamos: Deixo libertos em remuneração dos bons serviços que me tem prestado aos meus escravo Domingos capataz, José, chamado Josézinho e Francisca mulher deste e Clotilde e também à Benedito e Modesto, filhos de Francisca mulata. Declaro que as minhas escravas casadas e aquelas que se casarem durante minha vida e que até oito dias depois de meu falecimento tiverem de produção dez filhos vivos ficarão libertas não obstante terem sido compreendidas em qualquer dos legados que deixo à meus filhos ou outros de que adiante faço menção. 11 Domingos, que era capataz, José, Francisca, Clotilde, Benedito e Modesto, filhos de Francisca mulata, obtiveram a liberdade com a morte da sua senhora. Domingos, como era capataz e provavelmente comandava os trabalhos ao gosto da proprietária, ganhou sua liberdade, Francisca, sua esposa também teve a mesma sorte. Clotilde, Benedito e Modesto, provavelmente filhos destes, também obtiveram a liberdade. Os demais, conforme notamos tiveram sorte diferente. As mulheres que por ventura tivessem dez filhos conseguiriam sua liberdade. No inventário notamos uma grande quantidade de escravos que pertenciam a Ana Luiza e foram repartidos entre os herdeiros. Outros escravos ganhavam a liberdade apenas com a morte de sua herdeira, como veremos adiante. As terras, as benfeitorias e bens também tinham destino nos testamentos, junto dessa herança, algumas condições eram estabelecidas como a proibição de vender ou alienar a fazenda. Mesmo com a morte da testadora, a sua influência se estendia até sobre a morte de sua filha Messia Maria do Canto. Pois com a morte de Messia, a fazenda e os escravos já tinham herdeiros definidos nesse testamento. Vejamos: Deixo a minha filha Dona Messia Maria do Canto a Fazenda do Maracanã com todas as benfeitorias que existirem no circulo de suas divisas como gado e éguas que nela pastam e os escravos Balduino e a mulher deste de nome Emiliana e seus filhos existentes e os que tiverem até o meu falecimento com a condição de ficarem libertos os ditos escravos Balduino e Emiliana por morte de minha filha Dona Messia e também ficará com os escravos Prudente e Claudina sua mulher e Barbara e seu filho de nome Jaques, sendo a dita Barbara gozará da mesma condição de liberdade por falecimento da dita minha filha com a condição porém que nem a dita minha filha nem seu marido poderão em tempo algum vender ou alienar a mencionada fazenda, escravos e criações acima declaradas e nem ficará de forma alguma sujeita a dívidas de um ou outro pois é minha vontade que ela fique senhora do uso fruto da mesma fazenda e bens acima declarados durante a sua vida e por sua morte passará a mesma fazenda e escravos e criações que existirem vivos a ser devolvida por todos os meus netos filhos dos meus únicos dois filhos acima 11 MDT, Fundo Inventários, 1851-1860. Testamento de Ana Luísa da Silva, 1856. Anais do Colóquio Nacional de Estudos de Gênero e História – LHAG/UNICENTRO, p.123 declarados e quando por parte da legatária minha filha Dona Messia não haja algum neto ou neta que lhe suceda passará a minha neta Dona Ana Luiza, filha do meu filho Manoel Inacio com as mesmas condições e quando esta venha falecer herdeiros necessários passará à seus irmãos sempre de baixo das mesmas condições.12 Aqui cabem algumas perguntas que faremos, mas pelos motivos já mencionados não poderemos responder, mas servirão de aportes para uma futura pesquisa. Por que Ana Luiza determinou a quem ficaria a fazenda caso sua filha falecesse? Ela julgava que poderia haver algum dano ao patrimônio herdado se Messia ficasse livre para fazer o que bem entendesse? Que condição Messia se encontrava no convívio da mãe? Respostas que poderão demonstrar as relações entre mãe e filha que determinou essa condição no testamento da genitora. O testamento faz grande menção as terras da testadora, e durante a distribuição destas também aponta os escravos que deveriam servir o herdeiro, bem como partições entre os mesmos de futuras vendas destes. Vejamos: Deixo à meu filho Manoel Ignacio do Canto e Silva a Fazenda denominada Alegre pelas divisas seguintes: Principiando das cabeceiras do mencionado Rio Alegre pela vertente maior que vem fazer junção com outra abaixo do potreiro do faxinal ficando este para dentro e dali pelo Rio Alegre abaixo até onde faz barra com o Rio Tibagi com os fundos para o Sertão Geral e assim mais deixo ao dito meu filho os escravos Izidro, Miguel, Procópio e Calisto. Declaro mais que deixo à minha filha D. Messia o escravo Raimundo de baixo da mesma condição da fazenda do Maracanã. Deixo a minha neta D. Ana filha de meu filho Manoel Inacio os escravos Estevão, Mauricio, Izidro e Antonio e as escravas Graciana, Ignes e Mariana.Recomendo a qualquer dos meus herdeiros que se ficar com esta fazenda Fortaleza o culto da Imagem do Senhor Bom Jesus da Cana Verde para o que ordeno à meu testamenteiro que entregue ao mesmo herdeiro a quem em partilha tocar a mencionada fazenda vinte éguas de ventre das melhores para de suas produções mandar todos os anos em seu dia dizer uma missa cantada ou rezada no Altar do Oratório da dita fazenda. Declaro mais que eu e minha mãe em sua vida vendemos a Antonio Joaquim oficial de ferreiro um sítio nos fundos da fazenda do Maracanã de que lhe passamos o competente título e ficamos pagos do produto porque fora vendido.13 Outras pessoas como o mencionado acima “Antonio Joaquim oficial de ferreiro” comprador de um sitio nos fundos da fazenda Maracanã, mantinha certa vassalagem a testadora, pois por vezes prestava-lhe serviços e não os cobrava, por proceder dessa maneira recebeu um escravo, o qual não entraria na partilha dos bens. Declaro mais que em remuneração de muitas obras que o mesmo Antonio Joaquim fez para esta fazenda sem que quisesse levar coisa alguma cujos serviços vendo eu que não eram pagos com a quantia de quatrocentos mil réis eu lhe fiz doação em 12 13 MDT, Fundo Inventários, 1851-1860. Testamento de Ana Luísa da Silva, 1856. Museu do Tropeiro, Fundo Inventários, 1851-1860. Testamento de Ana Luísa da Silva, 1856. Anais do Colóquio Nacional de Estudos de Gênero e História – LHAG/UNICENTRO, p.124 recompensa de um escravo de nome Generozo que poderia quando muito valer igual quantia cuja doação não será incluída na minha terça. 14 Podemos extrair dessas citações alguns extratos das relações sociais que envolvia Ana Luiza e outras pessoas. Esse tipo de citação pode auxiliar na pesquisa demonstrando as relações estabelecidas em vida e que por vezes eram mantidas com os descendentes dos testadores. Continuando a abordagem do testamento veríamos outras situações cotidianas. Como se organizava a vida dos relacionados e como as relações determinaram a distribuição dos bens. Fatores importantes numa pesquisa. Devemos esclarecer que a abordagem desta fonte de pesquisa é de grande importância, mas ela por si só tornaria insuficiente, pois um testamento passa ainda por uma declaração inventariante, que é feita após a morte da testadora. No processo de inventário de Ana Luiza encontrasse o testamento e o inventário. A principio, e se olharmos apenas para o montante dos bens, podemos realizar apontamento de ordem econômica. Mas também de ordem social. Ana Luiza era uma senhora rica que recebeu grande quantia de terras e com um status social importante. Sua escravaria era de cento e trinta e nove escravos, mais os seis que ganharam a liberdade conforme vontade da testadora. Dados constantes na declaração do inventariante. Uma grande quantidade de prata, utensílios, gado, cavalos, éguas, entre outros bens que fazem parte de uma grande herança. Porém, podemos encontrar outros inventários que parecem menos importantes, sem qualquer quantia de terras, prata e gado. Pequenas quantias que eram disputadas após a morte dos proprietários. Um dos inventários que nos chamou a atenção foi de Floriana preta, forra. Falecida, teve seus bens leiloados, porém até seu leilão houve diversos procedimentos que determinaram o leilão de seus bens. De inicio parte dos bens estava de posse do preto José pedreiro e do escravo Salvador. O inventariante reclama os bens para que sejam, conforme a lei, leiloados e os recursos arrecadados destinados a Fazenda Provincial. No entanto, José pedreiro reluta na entrega dos bens e alega ter obtido quando estava, provavelmente, amasiado com Floriana, havia adquirido aqueles bens sem auxilio dela, já que a mesma se encontrava doente e pouco lhe ajudava. E ainda a falecida havia lhe deixado dividas que depois ele teve que pagar. Depois desta declaração de José, o inventariante Olivério Antonio Luiz de Mattos declara que Floriana era sua escrava e que não deixava dividas, pois era “muito verdadeira e segura com seus pequenos negócios”15. Alega também que as dividas em fazendas que José apresenta ele as fez com tecidos que deu a outra mulher de nome Maria com quem José “já tinha amizade” e que no dia da declaração, vivia com o mesmo. O prosseguimento do processo indica que a decisão havia sido pelo recolhimento dos bens e posterior leilão. No entanto, José, ainda descontente com a decisão da Justiça, solicita que os bens fiquem em seu poder, pois se sente “gravemente prejudicado” com a decisão. Porém, ao que indica uma nota constante no inventário, os bens semoventes foram a leilão e Francisco de Assis os arrematou pela quantia de 37$000. Não há menção neste documento referente a um possível leilão da casa. Os bens avaliados que pertenciam a Floriana preta, forra eram: 14 15 MDT, Fundo Inventários, 1851-1860. Testamento de Ana Luísa da Silva, 1856. MDT, Fundo Inventários, 1851-1860. Inventário de Floriana preta, forra. Anais do Colóquio Nacional de Estudos de Gênero e História – LHAG/UNICENTRO, p.125 Semoventes: Dois potros, cada um avaliado em 8$000, somando 16$000. Uma égua oveira com cria avaliada em 8$000. Uma égua rosilha velha avaliada em 6$000. Uma égua rosilha solta avaliada em 4$000. Bens de raiz: Uma morada de casas e terrenos situada na Rua das Tropas avaliada em 100#$000. Notamos que Floriana e José pedreiro deveriam ter tido um romance, chegando a viver juntos por um tempo. Porém, provavelmente pelo adoecimento da mesma, José acabou por largá-la e começou a viver com outra preta, Maria. Neste pequeno inventário, conseguimos descobrir uma relação de convívio que resultou na posse de alguns poucos bens que provavelmente foram adquiridos por Floriana, mas que José, com a morte desta, se apoderou sem direito. Também encontramos vestígios de uma relação entre um homem e uma mulher que deixou de existir e uma terceira pessoa, Maria, a qual passou a conviver com José, mas que já mantinha um relacionamento com o mesmo antes da morte de Floriana. É possível abordar, com o auxilio de outras fontes, as relações de matrimonio que permeavam o cotidiano das pessoas comuns de Castro. Os ajustes que se fazia dentro deste espaço, e como o casamento poderia determinar as relações sociais para estes indivíduos. As fronteiras do casamento ou da vivência matrimonial parecem diluídas quando algo relacionado à saúde de um dos membros da relação está debilitada. O conviver, o morar, estava ligado também a uma provável possibilidade de ganho econômico que aparecia nos bens adquiridos. Porém, notamos que José usa de táticas como a apresentação de notas de compra de tecidos e fazendas e alega que foram adquiridas pela falecida Florinda. Uma artimanha que o declarante buscou usar dentro da estrutura jurídica que lhe força a devolução dos bens. Algo que Certeau (1998, p. 44) aponta como “golpes do fraco contra o forte”, seriam “maneiras de o fraco tirar partido do forte”. E assim José usa deste método a fim de manter os bens em seu poder. Considerações A vida domestica das pessoas que deixaram esses documentos está presente nos inventários, pois em vários casos os bens não passam de panelas, cangalhas, roupas, chapéus e ferramentas de baixo valor econômico, mas que consistiam nos bens adquiridos numa vida. Bens que revelam uma vida sofrida, simples e laboriosa, mas que está cheia de espaços vividos que produzem significados, valores sentimentais. Formam um espaço que os indivíduos conviviam e produziam suas relações sociais e de poder, marcadas pela grande propriedade de terras e o comércio de gado. Enfim, existe uma gama de possibilidades que podemos encontrar nessas fontes. Poderíamos sem dificuldade citar um rol de inventários e testamentos que podem auxiliar na pesquisa história, apontando aspectos ligados a religião, a economia, a relações sociais e de poder que permeavam Castro e os Campos Gerais. No entanto não é nosso objetivo neste breve artigo, temos apenas o intuito de elencar algumas possibilidades de pesquisa de Gênero e História. Assim entendemos que é uma boa oportunidade de mostrar a riqueza feminina contida nas fontes. Buscar as fontes e trabalhá-las de maneira apropriada é o nosso objetivo como historiadores. Tirar o véu que cobre a história parece ser algo excitante, mas demanda seriedade e dedicação, tempo e determinação. Anais do Colóquio Nacional de Estudos de Gênero e História – LHAG/UNICENTRO, p.126 Referências CARNEIRO, D. O drama da fazenda Fortaleza. Curitiba: João Haupt, 1941. CCEE. Livro de Atas da Câmara Municipal, ano de 1789. CCEE. Livro de Atas da Câmara Municipal, ano de 1831. Museu do Tropeiro, Fundo Inventários, 1851-1860. Inventário de Ana Luísa da Silva. Museu do Tropeiro, Fundo Inventários, 1851-1860. Inventário de Floriana preta, forra. SAINT-HILAIRE, A. de. Viagem a Curitiba e Província de Santa Catarina. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Ed. Da USP, 1978. http://www.histedbr.fae.unicamp.br/navegando/artigos_pdf/Maria_Helena_Flexor2_arti go.pdf CERTEAU, M. de. A invenção do Cotidiano. Artes de Fazer. Petrópolis: Vozes, 1998. FRANCO, M.S.de C. Homens livres na ordem escravocrata. 3.ed. São Paulo: Kairós, 1983. FREYRE, G. Casa Grande & Senzala. São Paulo: Global, 2006. FOUCAULT, M. Microfísica do poder. 10.ed. São Paulo: Graal, 1999. LOPES, J.C.V. Fazendas e sítios de Castro e Carambeí. Curitiba: Torre de Babel, 2004. MAACK, R. Geografia física do Paraná. Curitiba: Imprensa Oficial, 2002. MARTINS, I.C. E eu só tenho três casas: a do senhor, a cadeia e o cemitério: crime e escravidão na Comarca de Castro (1853-1888). Curitiba-PR, Tese de Doutorado/UFPR, 2011. Anais do Colóquio Nacional de Estudos de Gênero e História – LHAG/UNICENTRO, p.127