○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ 2006 ○ Poeta de Gaveta ○ r e a l i z a ç ã o 1 Pg13 > Usp-RP ○ ○ ○ UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO Profª Drª Suely Vilela Reitora Prof. Dr. Sedi Hirano Pró-Reitor de Cultura e Extensão Universitária Prof. Dr. José Aparecido da Silva Prefeito do Campus Administrativo de Ribeirão Preto João Braz Martins Júnior Diretor da Divisão de Apoio à Cultura e Extensão Aurélio M. C. Guazzelli Chefe da Seção de Atividades Culturais Equipe Aurélio M. C. Guazzelli (Lelo) Camila de Carvalho Michelutti Carlos de Araújo Arantes José Gustavo Julião de Camargo Lélis C. Cavalieri Regina Célia Reis da Silva 2 ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ISSN 1516-0513 ○ V O L U M E 1 3 2 0 0 6 P O E T A d e G A V E T A 13 poesia & prosa 3 Pg13 > Usp-RP ○ Produção Seção de Atividades Culturais Coordenação do Projeto Lelo Guazzelli e-mail: [email protected] Seleção de Originais André Bordini Osvaldo Felix da Silva Preparação / Projeto Gráfico Valnei Andrade Capa / obra: Lélis Camilo Cavalieri Artista plástico e arte-educador formado pela UNESP / Bauru. Integra a equipe da Seção de Atividades Culturais / DVACEX / PCARP – USP. Obra: Sem Título, 2006. Técnica: Óleo sobre tela. Dimensões: 1,40 x 0,60m • A imagem que ilustra a capa deste volume é um detalhe da obra composta por uma fusão de estilos, que integram dialeticamente o academicismo e o abstracionismo como forma de expressar a intimidade do afeto. SEÇÃO DE ATIVIDADES CULTURAIS • DVACEX • PCARP Prefeitura do Campus Administrativo de Ribeirão Preto – USP Rua Pedreira de Freitas, casa 04 14040-900 Ribeirão Preto / SP Tel.: (16) 3602.3530 http://www.pcarp.usp.br/cultura [email protected] 4 ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ prefácio A Poesia da Academia e a Poesia na Academia José Aparecido Da Silva Poeta de Gaveta, iniciativa cultural da Seção de Atividades Culturais da USP de Ribeirão Preto, é a concretização da poesia da academia em poesia na academia. De modo geral, ao optar por uma carreira acadêmica, o profissional vivencia as Letras de uma forma mais sistematizada que literária, ou seja, na escrita de papers, teses, palestras e assim por diante. Entretanto, ainda que imerso em atividades científicas, nunca se afasta do embricamento da poiesis com a catarsis no cotidiano de seus dias. E, na eventual falta de tempo para se dedicarem à leitura de crônicas, contos e romances, que cobram uma quantidade maior de dedicação, que nem sempre lhes é possível, é à poesia que os acadêmicos recorrem. Mas recorrer à poesia para quê?, perguntariam-nos os não iniciados. Simplesmente para colaborar com a fluidez da vida, que uma vez leve e bela, ressuscita em nós a esperança e a coragem na construção necessária de um dia melhor. Assim, ao folhear esta coletânea Poeta de Gaveta, que hoje me chega às mãos, penso na esperança e coragem depositadas em suas páginas por integrantes de todo o Campus, a revelarem que a poesia da academia é a verdadeira propulsora da poesia na academia. Sonhos e desilusões, alegrias e tristezas, coragem e esmorecimentos compuseram seus versos, revelando a todos que na quietude dos laboratórios e nas prescrições das enfermarias, profissionais sentem a vida e a ensinam a todos que se questionam como ela está a passar. 5 Pg13 > Usp-RP ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ Emergindo das gavetas, do anonimato e do silêncio, estes poetas ganham voz e buscam nos ensinar que é preciso caminhar, sem medo de sofrer ou chorar. Logo, com seus poemas delicados e profundos, conclamam a vida a ser bela, apesar de todas as pedras no meio do caminho. Parodiando Castro Alves, penso ser possível perguntar “Poetas! Oh poetas! Onde estão que não respondem?” Para, em coro, ouvi-los responder “Aqui! Lançando para os próximos dois mil anos o nosso grito!” A todos os integrantes e organizadores desta coletânea o nosso “muito obrigado”. Muito obrigado por não desistirem da poesia enquanto vida que ela é. Novembro de 2006 José Aparecido Da Silva Prefeito do Campus da USP de Ribeirão Preto 6 ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ comissão de seleção A palavra é a matéria essencial do poeta. A linguagem — articulação de palavras — tende a dar sentido ao que vemos e sentimos. A tarefa do poeta é escoimar a linguagem, libertá-la de todo e qualquer excesso, fazêla significar, transformá-la em instrumento agudo capaz de ferir e afagar a superfície dos desejos. Nos 138 trabalhos inscritos na 13ª edição de Poeta de Gaveta ocorrem erros de diversas ordens, estruturais e gramaticais. Mas os erros têm o dom de fecundar, de fazer germinar a semente da transformação, o que nos permite perceber que nas Instituições Acadêmicas existem pessoas dispostas a não sucumbir ante uma realidade reificadora, e que, para isso, lançam-se na humana e por isso arriscada aventura da escrita. Certamente, são pessoas que procuram, através da escrita, compreender e fazer compreender que o que já foi vivido, só ganha significado se auxiliar a desvendar o que permanece. Os textos evidenciam um processo de criação desenvolvido num espaço indefinido entre a fidelidade a certos sentimentos e a liberdade estilística capaz de lhes conferir vida. O resultado é um conjunto de textos que oscilam entre a extrema subjetividade, manifesta em versos despretensiosos, e uma certa objetividade firmada na adequação a certas estéticas já consagradas pelo tempo, como a estética concretista. Com esta nova edição, o projeto Poeta de Gaveta mantém viva a sua tarefa: a de fazer vir à luz o texto de pessoas que não se afastaram da dimensão humana da vida. André Bordini é bacharel em Ciências Sociais e Jurídicas pela UNESP, psicólogo, escritor e professor de redação e interpretação de texto do ensino médio e curso pré-vestibular do Sistema COC de Ensino. Osvaldo Felix da Silva é doutor em Estudos Literários pela UNESP (Campus de Araraquara) e professor de literatura no Colégio Quarup-Objetivo, Sertãozinho. 7 Pg13 > Usp-RP ○ 8 ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ Sumário ○ 20 autores + 35 textos ○ 11 | Língua • Edberto Ferneda 13 | De cabeça baixa • Edberto Ferneda 15 | Vilma Godê • Carla Cristina Barizza 17 | Olhar meio-amargo • Carla Cristina Barizza 19 | Meio a meio • Cristiano Chaves 21 | Como Frida • Clarissa Mendonça Corradi-Webster 23 | Cogitações • Werner Robert Schmidek 25 | Na química dos sentimentos • Stefania Lello Wilkeris 27 | Transubstanciação de mim • Stefania Lello Wilkeris 29 | Alma fria e congelada • Stefania Lello Wilkeris 31 | Polícia • Alex Wagner Dias 33 | Papel de presente • Felipe Watarai 35 | Desdita • Felipe Watarai 37 | Epitáfio • Felipe Watarai 39 | Diálogo • William Lyudi Sanai 41 | Bichopovo • Maria Luiza de Moraes Souza 43 | A vida inevitável tornou-se... • Maria Luiza de Moraes Souza 45 | Não percas tempo com este poema... • Maria Luiza de Moraes Souza 47 | Estrela • Janaína de Godoy Gonçalves 49 | Sonhos • Alexandre Donizeti dos Reis Cintra 51 | Eufemismo • Glauco Fernando Ribeiro de Araújo 53 | Trenzinho • Fabio Scorsolini Comin 55 | Castigo • Fabio Scorsolini Comin 57 | Milagre • Fabio Scorsolini Comin 59 | Luz do ocaso • Ronie Charles Ferreira de Andrade 61 | Reexplorificatízio • Fellipe Miranda Leal 63 | Arames com veludo • Fellipe Miranda Leal 65 | Prólogo feliz • Fellipe Miranda Leal 67 | Esboço de tarde, com metamorfose • Manoel Antônio dos Santos 69 | As fomes de domingo • Manoel Antônio dos Santos 71 | As armas da aurora (Viagem da carne) • Manoel Antônio dos Santos 75 | A rebrota • Eduardo Francisquine Delgado 77 | Mágico • Edmir Ravazzi Franco Ramos 79 | Minha fortaleza de papel • Michel Renato Manzolli Ballestero 81 | Álgebra no coração • Michel Renato Manzolli Ballestero 9 Pg13 > Usp-RP ○ 10 ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ Língua ○ Edberto Ferneda ○ A pá lavra sem front eira nem beira Nenhuma palavra é necessária depois que as línguas se tocam Edberto Ferneda Pós-graduando – FFCLRP 11 Pg13 > Usp-RP ○ 12 ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ I A calçada passa passo por passo Edberto Ferneda ○ De cabeça baixa ○ A ponta do calçado desponta mecânica mente II Sentado no meio-fio a água suja e s c o r r e como vida III Sozinho no cinema tento desvendar a arquitetura e a minha vida passada em super-oito no fundo musical 13 Pg13 > Usp-RP ○ 14 ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ Vilma Godê ○ Carla Cristina Barizza ○ Vilma era viciada em tintas, goma-laca e solventes. Possuía um coração em tons pastéis e sentimentos azuis. Fazia pinturas modernas e abstratas em seus cabelos, Amava Paul Klee pela sua experimentação incansável. E usava seis cores de rímel nos cílios, ao redor de cada olho. Era incrível a habilidade em transformar seus cílios em um corte do arco-íris. Às vezes seu corpo surgia coberto de bolinhas vermelhas... Pintura orgânica dizia, técnica da reação alérgica. Antialérgico era sopa e hidratante era água de banho. “Vilma Quatro Cores” era como a chamavam os amigos da gráfica. “Vilma Godê”, o apelido entre os artistas pintores. Vilma, na verdade, era composta em milhões de cores. Só não pintava a íris dos olhos porque já possuíam duas cores... uma verde, outra azul. Certo dia arranjou um namorado de verdade. Bancário e engomadinho, um tanto acadêmico para seu estilo. Trabalhava no caixa e odiava o sol. Seus cabelos e olhos eram pretos e sua pele, um papel em branco. Parecia uma xilogravura monocromática. Aparência que incomodava Vilma. Acostumada às abundâncias pictóricas, sentia desejo pela sua pele tela nova. Resolveu pincelar a óleo aquele corpo tela, imerso no sono dos embriagados. Ele adorou acordar com o corpo repleto de tons cromáticos... Pena ter ficado de pintura orgânica uma semana. Na dieta: antialérgico e banho de hidratante. 15 Pg13 > Usp-RP ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ A coisa mais emocionante da vida dele. Casaram-se, claro... E todos os convidados espantaram-se ao vê-la entrando de branco clássico. É que Vilma havia feito uma exigência aos padrinhos, que cumpriram... Ao invés de arroz, ao final da cerimônia, jogaram baldes de tinta acrílica colorida neles. Tornaram-se então, um casal contemporâneo. E viverão alérgicos e felizes para sempre. Até que um edema de glote os separe. Carla Cristina Barizza – F – EERP “Escrevo contos há vários anos. Tenho trabalhos publicados no Poeta de Gaveta. Hoje, optei por contos breves, por ser breve o tempo que existe para a leitura.” 16 ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ Carla Cristina Barizza ○ Olhar meio-amargo ○ Ló olhou para seu chocolate com avelãs pelo qual sempre foi apaixonada. Doce demais. Enjoou dele. Largou tudo. Um desejo inesperado de que aquele doce se transformasse em amargo. Desejos súbitos em mutação. Ló reconhecia no espelho sua gostosura, suas estrias ao leite, suas aeradas celulites. Olhou seu corpo minuciosamente, sentindo água na boca. Ló lembrou daquele outro olhar. Que a comia sem perdão, lambendo até os dedos. O olhar chocolate. Visualmente doce. Distantemente amargo. Olhar meio-amargo. Ló derreteu. 17 Pg13 > Usp-RP ○ 18 ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ Meio a meio ○ Cristiano Chaves ○ O ópio me consome, Com rosto e nome, Fascínio que me chama, Chama que se inflama. É ódio que não some, Tem olhos e sobrenome, Desamor em corda bamba, Que chora e descamba. Bato, entro, lamento. Sento, adentro, sem alento. Olho, procuro, não te vejo. É teu cheiro que ainda almejo. No vício de te desamar, Denuncio-me por inteiro, Tropeço ao te falar, Não te quero meio a meio. Cristiano Chaves Residente – FMRP 19 Pg13 > Usp-RP ○ 20 ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ Como Frida ○ Clarissa Mendonça Corradi-Webster ○ Aquele vestido florido do verão disfarçando muitas tristezas uma barriga vazia um caroço de ameixa as rosas todas esvoaçantes o espinho cortando por dentro sangue cor-de-rosa Clarissa Mendonça Corradi-Webster – F – EERP “Participei da sétima edição do Poeta de Gaveta (2000).” 21 Pg13 > Usp-RP ○ 22 ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ Cogitações ○ Werner Robert Schmidek ○ Eu penso e logo insisto: “Descarte quem mente e corpo quer por aparte” Werner Robert Schmidek - D – FMRP “Participei da edição anterior do Poeta de Gaveta (2005).” 23 Pg13 > Usp-RP ○ 24 ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ niilismo dos sentimentos modernos dos meus, somente. químico. atuação: dissolução fracionada daquela que reage por ti sobre o bico de bulsen vira como produto.........lágrima condensado no tubo: minha paixão fator exógeno de atuação: teu sexo Stefania Lello Wilkeris ○ Na química dos sentimentos ○ dissipada força proveniente do calor que aquecia agora em forma de vapor o sentimento chora o produto rendimento de poucos por cento na química dos meus sentimentos a soma dos reagentes nem sempre é igual à soma dos produtos e Proust, descrente, injeta no béquer meu descontentamento depositado como a areia na solução bifásica heterogênea como nossos corpos água + óleo = solução heterogênea corpo A + corpo B = solução homogênea 25 Pg13 > Usp-RP ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ a reação catalisada pela minha mente permite que o bastão de vidro introduza no interior do béquer dissolve a solução bifásica catalase na base fase assim mono fase não desfaze que fico assim sem fim mim sim sim fim. Stefania Lello Wilkeris – A – FFCLRP “Meus poemas, minha terapia.” 26 ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ Stefania Lello Wilkeris ○ Transubstanciação de mim ○ Os meus suspiros são pra você Um estranho jeito de dizer “mas pra quê?” Entornada em seus delgados braços Entorpecida de êxtase hilariante Amotinada por hematomas periclitantes Apaixonada por ti Humanizado, encarnado, real O amor transcendente e imortal Dá formas às palavras que não cabem apenas sentem não ditas A transubstanciação de mim. 27 Pg13 > Usp-RP ○ 28 ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ Stefania Lello Wilkeris ○ Alma fria e congelada ○ Com selvageria alcançou o segundo andar e deu as mãos ao coração selvagem Apertou com insistência sem entender o motivo da dor Fitou e deduziu Não reconheceu As mãos sedentas de prazer alcançavam a tão sonhada amiga Ignorou o fato do prazer O medo pela figura angelical alcançou o par de olhos que não suportaram a brancura dos dois pendurados à parede amarelo-clara. Sentiu asco a ternura no olhar e pensamentos distantes Como afirmar se algo estava errado? Aparentemente tudo certo O gelo instalou-se por alguns minutos Mudou de idéia quanto ao local e buscou meus olhos para sugerir que retomasse ao cômodo de início Talvez pela assustadora figura angelical. Sugestão de um contato mais profundo A resposta veio como ignorância “por quê?” Seria óbvio se ele respondesse Mas não... Calou-se no modo da exposição absurda do seu mais tenro desejo. A sabatina Sem propósito Só contra suas frases e sentenças mal colocadas “Why?” Era tudo para fazê-lo se sentir inferior no entanto não assim se sentia. A amargura por sua vez alcançava um patamar mais notório na minha sabedoria Ganhou novos versos Um corpo dotado de vontade e de princípios Versos outrora sem sentido Nonsense. Características próprias e o rosto voltado para a televisão Que fala mostra figuras mas não diz nada Só a linguagem corporal Que busca meu corpo como quem agarra um copo e mata a sede com a boca imersa em saliva. 29 Pg13 > Usp-RP ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ Combinação de culturas desacordos implícitos Somente a vontade Algo unia os dois corpos Quem vai abrir a boca para dizer o quê? Tá tudo certo não tá? Não! A tempestade de neve já foi embora Minha alma no entanto ainda clama o êxtase. Exausta no tédio balanço meus negros cabelos no ar em busca de um reconhecimento pelos meus cachos “Não prende não!” como se dissesse Mas ele é mudo Eu sou surda E nosso mundo não tem diálogo em comum. Assim é melhor senão destrói e demole a alma fria e congelada e é depois que O âmago sôfrego tro p e ç aaaaaaaaa na calada da noite como quem tem fome não se alimenta Só hesita A amargura da solidão Por sua vez soluça no peito desassossegado doentio clama o êxtase. 30 ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ Polícia ○ Alex Wagner Dias ○ Nervoso Nervoso com maracujá no estômago Com maracujá no estômago, nervoso. O mundo instiga-me e nervoso, ansioso, preguiçoso, Com maracujá. Sem água, e açúcar, e polpa. A vida é o mundo todo. E toda vida sou eu. O todo. Nervoso, ansioso, sem água, açúcar. Preguiçoso como polpa. Nervoso como o maracujá: Maracujá remédio que o próprio Não pode tomar. Nervoso! Nervoso maracujá do universo Numa semente de contrição e estouro. Alex Wagner Dias – A – FFCLRP “Participei dos volumes 10, 11 e 12 do Poeta de Gaveta; da coletânea Poemas de Amor (Ed. Riopretense) e Uni-Verso, coletânea de poemas (tema livre).” 31 Pg13 > Usp-RP ○ 32 ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ Felipe Watarai ○ Papel de presente ○ Guarde contigo — como esta caixa — o mais bonito verso que caiba não em presente, nem em canção, mas no que sente o coração. Felipe Watarai – Pós-graduando – FFCLRP “Publiquei poemas no volume 9 do Poeta de Gaveta (2002). 33 Pg13 > Usp-RP ○ 34 ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ Desdita ○ Felipe Watarai ○ Despejo despautérios desde quando descobri que tudo é desespero nas minhas despedidas de você. 35 Pg13 > Usp-RP ○ 36 ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ Epitáfio ○ Felipe Watarai ○ O FIM ENFIM EM MIM 37 Pg13 > Usp-RP ○ 38 ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ Diálogo ○ William Lyudi Sanai ○ Duvido Não faço Desafio Paraliso Instigo Me calo Questiono Sem resposta Obrigo Eu brigo Forço Te bato Te mato Morro William Lyudi Sanai – A – FMRP 39 Pg13 > Usp-RP ○ 40 ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ A caneta é bicho fêmea, é mulher essencialmente dura, essencialmente tórrida, essencialmente. é mulher que se demora em curvas e se desmancha em retas e acaba no sem fim, em reticências: brancas duras penas brancas duras presas brancos duros partos de cada letra, de cada palavra-ovo do novo que lhe infla o ventre fruto do sexo entre o nexo e o léxico. Bichopovo ○ Maria Luiza de Moraes Souza ○ A caneta é bicho mãe da poesia muito embora o cérebro macho queira sê-lo. É sangue que se derrama em cores e se perde em mares e se espatifa verde em Ilha Negra. 41 Pg13 > Usp-RP ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ É torrente do humano que deságua tinta, e dilui metáforas em grafite gris, que de ponto e pena escreve e encena o alfabeto nosso e recita rezas e receita versos e revolve rios e revive ossos; é mulher ilimitada humanamente pétrea, humanamente tépida, humanamente e que pinga pontos que não são finais no sem fim do mundo no sem fim do tempo no sem fim de nós. Maria Luiza de Moraes Souza – A – FMRP “Participei do volume 12 do Poeta de Gaveta (2005).” 42 ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ Maria Luiza de Moraes Souza ○ A vida inevitável tornou-se criança feia e torta (respirar e seguir sendo) É impossível não ser ao menos nada. Do suicídio a carta é a vida. Não valem os pulsos cortados mas o sangue na camisa Não é a bala mas o resto de chumbo o estampido nos tímpanos segundos antes quando se vivia. Irrefutavelmente. O choro explode do berço rouco Sino inevitável do presente Talvez fugir Talvez não ser (ser sem que tu sejas) 43 Pg13 > Usp-RP ○ ○ ○ ○ ○ Às quatro horas matar é pouco Às quatro estateladas horas o sangue, lento, não tem nenhum prazer A morte é como se acordássemos Fim de um sonho que nem merece recordação Mas a vida!... A vida bale A vida berra, grasna, ruge, zurra a pulmões tão plenos que é só o espanto: Respirar E seguir sendo. 44 ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ Não percas tempo com este poema que eu só escrevo porque não posso não fazê-lo. O que se segue te distrai da vida, da vida real tangível que é o que realmente importa: O haver outras pessoas como tu apoiadas sobre as patas O haver bichos e seres e montes O haver vento quando há vento ou sol quando é dia e faz sol e chuva quando inevitavelmente chove. Não leias. Sai à tua janela metálica e olha as coisas do mundo. Percebes? Não precisas que eu te diga que da tua janela se vêem os prédios e que não há pássaros na cidade nem nuvens. Não precisas que eu te lembre de que há um horizonte diferente de tudo o que nunca viste, um horizonte, em algum ligar, visto por outros olhos amarelos-puxados-russos-redondos em que talvez haja neve ou arroz ou mar ou nada ou apenas uma menina que corre e esquece, perdido no ar, um cheiro de cabelo e infância que existe dentro de qualquer um — — mesmo de ti e de Adolf Hitler. Maria Luiza de Moraes Souza ○ 45 Pg13 > Usp-RP ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ Não precisas de mim por detrás desta folha que devoras (linha a linha) esperando qualquer coisa que te renda da dureza de estar vivo. Larga esta folha, homem, que mesmo do teu tédio nunca tirarás um verso. És um homem comum, Um homem qualquer da tua espécie, de carne e de memória, a se distrair da vida com a tinta alheia. Se queres mesmo um conselho, sugiro: Não percas tempo com este poema. Melhor ficares com teus prédios emoldurados da janela — — Pois estes sim existem. 46 ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ Janaína de Godoy Gonçalves – A – FFCLRP “A poesia sempre faz parte dos meus momentos mais marcantes.” 47 Pg13 > Usp-RP ○ 48 ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ Poema Narrativo de Rimas Toscamente Pobres em Alguns Parágrafos com uma Mensagem de Epígrafe “Renda-se como eu me rendi. Mergulhe no que você não conhece, como eu mergulhei. Pergunte, sem querer, a resposta, como estou perguntando. Não se preocupe em “entender”. Viver ultrapassa todo o entendimento.” Clarice Lispector Sonhos ○ Alexandre Donizeti dos Reis Cintra ○ Foi assim que se deu. A grande cientista sonhou, adormeceu. No silêncio da noite viveu e morreu. Sentiu, sofreu e acordou para um novo dia. Era de noitinha e estava Sophie às voltas com seus experimentos. Eles eram complicados e nem vale muito a pena explicar. Basta dizer que Sophie queria descobrir uma essência, um tudo, o segredo de nossos pensamentos e sentimentos. A razão, uma razão. Era física, matemática, teóloga e socióloga; filósofa, historiadora, geógrafa e economista; bióloga, médica, escritora contista; tentava tudo juntar a sonhadora cientista. Mas nada conseguira até agora... Desde criança fora um prodígio. Enigma profundo, livre de litígio; trilhara os caminhos com total maestria e agora contemplava o final enigma que se abria. Clara, obstinada e pensativa, Sophie trilhara os caminhos da vida. Não se contentava com ideologias, políticas e senões. Tinha ela suas próprias razões. E agora, ante o experimento primordial e final; ela pensava, pensava, mas o fulgor de sua razão era enfim vencido. As horas passavam (passavam) e o silêncio de Morfeu trocava sua obstinação pela falta de razão. Os sonhos começavam a povoar sua mente e em seu mundo entrou tranqüilamente. Ah, o mundo dos sonhos... 49 Pg13 > Usp-RP ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ Delírio onírico dos poetas, palco da visão dos profetas; palco da vida que fulgura, com tal clamor e candura, que chega a comover o mais racional dos corações. Sophie se viu criança a andar, tentando mistérios explicar, mas com a mente livre do pensamento e plena do encantamento; que é típico das crianças, mas que é comum aos adultos abandonar na busca de seus mistérios explanar. Ela corria, vivia; mistérios desvendava, florescia; vivia e sonhava, só isso bastava. Essa era a vida que tanto queria. Então Sophie se viu pensando, estudando; a solução do mistério sonhando, procurando; buscando algo que há décadas descobrira. Sophie acordou, encontrou, seus mistérios solucionou, se encontrou; enfim entendera. Ganhara um entendimento mágico, que só traduzir-se-ia na serenidade de um sonho. Estava a vida explanada, como causa solucionada que não carecia de solução. Sophie entendia, vivia; solenemente refletia. Sua vida mudava. Ela vivia. Lá fora, as estrelas ainda brilhavam e os mistérios oníricos se traduziam na beleza epifânica de um vaga-lume. Alexandre Donizeti dos Reis Cintra – A – FMRP 50 ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ Eufemismo ○ Glauco Fernando Ribeiro de Araújo ○ Decretou um silêncio estridente, que fez sua mãe chorar, seu pai perder a fé, os vizinhos chamarem polícia e médico e o síndico de seu prédio pedir para ele gritar. Somente quem se calou sabe, que o sol nasce e não dura mais que um dia, depois da luz, surge à escuridão e aqueles que não acreditam em deus, imploram para alguém lhe ninar, me ninar, menina. O cessar de sua voz denuncia o desejo de quem não quer mais ser ímpar, denuncia o desejo de dividir sobre as batalhas ganhas, as aventuras enfrentadas e os caminhos que passou. E não importa as guerras e as festas imensas, ou se na sala as rosas estão cheirando mal, tudo esta muito distante, afinal tudo é super, as garotas são super, os dias são super, a vida é superficial e não adianta se calar que a dor não passa. Glauco Fernando Ribeiro de Araújo – A – EERP “Sou um iniciante na atividade literária.” 51 Pg13 > Usp-RP ○ 52 ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ Trenzinho ○ Fabio Scorsolini Comin ○ “Lá vai o trem com o menino. Lá vai a vida a girar. Lá vai ciranda e destino. Cidade e noite a rodar. Lá vai o trem sem destino para vida nova encontrar. Correndo vai pela serra, vai pela terra, vai pelo mar, correndo entre estrelas ao luar no ar, no ar.” Letra de Ferreira Gullar para Trenzinho do Caipira, de Heitor Villa-Lobos. Foi numa festa de Santa Rita que eu pedi para você nascer. Tomei banho de cheiro, cobri minha cara com pó e abri todos os trinta e dois dentes para o dia da ceia de santo. E rezei terços, quartos, quintos, todos os rosários, para o dia de você chegar. Pintei as unhas e deixei o laço de fita para que me visses mais mulher. Guardei um verso rimado em papel de carta, com sete chaves. Aguardei tua chegada na estação como quem recebe um trem de presente. O amor tinha olhos puxados, a cara amarrada e um sotaque folgado, como quem diz que vai à praia, todo vestido de preto. Eu deixei meus olhos verdes fechados, levantei a saia e abri as minhas pernas, em sinal de devoção. Veio, se apossou, comeu pastel de vento, lambuzou-se de café e de carinhos. Deixou pequenas mordidinhas na minha pele branca e uma música da Bethânia para eu decorar. Eu cirandava e te sentia em mim, tal como um bater de asas. 53 Pg13 > Usp-RP ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ E um dia, como tudo-nada é eterno, nem mesmo neste conto que lhe dito com voz frouxa, você baixou minhas pernas, fechou minha boca e disse: “Não é nada com você, mas...”. Virei bicho, rasguei peles, pêlos, plumas, pílulas e partituras. Cortei ladainhas, pulsos, cortei meu átrio esquerdo em cem mil pedacinhos para você juntar. Mas você não junta, Marcelo. A gente não se ajunta. Nem com promessa, nem com aquele verso da Clarice. Nem com cola quente. Daí virei mulher. Fui colar outros corações por aí. Mas quando a dor me vem, eu choro. E viro menina. E quero teu colo. Que não vem. Que não vem. Que não vem. Que não vem. Que não vem. Que não vem. Pego no sono com a cantiga que faz tua ausência. E um trem me atravessa. Fabio Scorsolini Comin – A – FFCRP “Participei de algumas antologias, entre elas os volumes 10, 11 e 12 do Poeta de Gaveta. Escrevo porque uma idéia me perturba e porque sempre amei as palavras. Palavras com gosto, com cheiro, com vida. E estas, muitas vezes, me escapam. Aqui sou completo.” 54 ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ Castigo ○ Fabio Scorsolini Comin ○ Deus me perdoe por amar de ato impensado, e religiosamente, um de teus fiéis. Algo de sagrado me habita e me torna seguidor de tua palavra mansa, esguia e sulferina. Separo as asas por entre as costelas industrioso operário que sou como um homem ama o outro assim, fiel à carne que cede. 55 Pg13 > Usp-RP ○ 56 ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ Milagre ○ A André Ricardo “(...) e eis que a sarça ardia no fogo, e a sarça não se consumia”. Livro do Êxodo, 3 Fabio Scorsolini Comin ○ “Me chama, me chama, me chama, Nem sempre se vê mágica no absurdo” Lobão Crê, Moisés, na chama que arde e que aponta para teu peito feito sarça que se desmancha sem se esgotar. (salpica e não fagia) Alumbra-te com a fagulha que devora, inconstante, tal qual o desejo que mal sabe o caminho de volta. (cerceia e não cedia) Liberta meu povo de cem mil homens e reserva um espaço para um único corpo sagrado e secreto. (ateia e não sibila) 57 Pg13 > Usp-RP ○ Amansa minha carne com teu cajado e me faz seguir-te feito um cordeiro sedento cada vez que passas por mim. (saboreia e não sadia) Ama-me, religioso, sem vacilar, que eu sou sarça daninha e eu vou morrer de tanto brotar. (sarceia e não sacia) 58 ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ Luz do ocaso ○ Ronie Charles Ferreira de Andrade ○ Vinho raro desprezado. De longa data guardado na adega dos sonhos, Já não me embebedo. Devo estar sóbrio. Levemente quieto. Serenamente distante. Devaneando um estranho e raro silêncio. Pacificado? Domesticado! Soerguido das constantes avalanches da vida. Da incerta constância das cenas, Cansado do baile de máscaras. Macerado na alma, escondendo escaras. Antevendo futuros, revendo passados, estático no tempo de agora. Desfazendo escuros, refazendo muros, redefinindo fronteiras... Será que ainda é tempo? Será que há tempo? Sei sobre a poda da videira! Que não venha a uva costumeira de aparência bela, e de sumo azedo. Que nem vinho se faz com ela, não fermenta, apodrece! E levemente quieto, levedando o incerto... O que faço com tudo isto construído em beira de abismo? 59 Pg13 > Usp-RP ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ Talvez eu abra a janela. Que a luz do sol empurra desesperada. E queima como minha alma, na sombra da madrugada. Em que a lua, testemunha ocular da crua insanidade, Revela-me no que cala deste corpo que gela, Que a realidade que me resta, e tão-somente um momento do falso de nós. Falseado pela minha vontade, de fazer por mim, o que você não fez, e fazer por ti o que nunca fui capaz de deixar de fazer. Serenamente apagado, Já me vejo distante demais para ir, distante demais para voltar... e sob as linhas do poema, o poente de mim, no ocaso de nós se confunde com a noite. Ronie Charles Ferreira de Andrade – F – FFCRP Poeta, historiador, autor do livro “Vazantes da Alma”. 60 ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ (...) “Nada pode o olvido contra o sem sentido apelo do Não” Carlos Drummond de Andrade (1951) Fellipe Miranda Leal ○ Reexplorificatízio ○ Parece que não sou muito bom na disciplina carinho, querido aluno estrelar a vagar, Parece também que meu beijocar não é tão gestante, é motejante, planto rés pranto. Músculos e dor sem céu para compor, não sou mais o mesmo comigo mesmo. Meu solitário passatempo é brincar com letras e suas intensas cores num lépido canto. (E também, muito oportunamente, com as palavras estampadas nas frestas, ah palavras! Estas mutualísticas figuras são jardim onde despejo carinho carim – desencanto encanto). Crio e descrio, arranjo e desarranjo, leio e desleio, escrevo, rabisco, pinto, apago, rasgo Compartilho e depois guardo para o sempre, para aquecer tanto quanto um espanto! Ultimamente, tenho escrito coisas em que noto uma patente palavra recorrente, Uhmm... acho que deveria registrar esta palavra, é algo que sopra um acalanto. 61 Pg13 > Usp-RP ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ Faltava nas aulas de gramática, talvez seja um verbo, o professor carioca um samba, Flutuante, impessoal, incessante, anômalo, predicativo, toante sem teto sem manto, Nominativo, havia um motivo esplendoroso, recreativo, primeira pessoa sem verso, Num ato único, devia ter prestigiado aos sismos o carioca, agora tenho um verbo santo. Tutu com quiabo ficam para sexta, ainda tenho que me recompreender pertuitamente: Tiamar. Eu tiamo. Agora fica. Volto às estrofes sem terminar e fico a tiamar tiamando. Fellipe Miranda Leal – A – FMRP “Participei da última edição do Poeta de Gaveta (2005), além de outros prêmios e instalações.” 62 ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ Vento nas árvores As bolhas de sabão Foram com as folhas. Estrela Ruiz Leminski Fellipe Miranda Leal ○ Arames com veludo ○ Pela manhã, Do jornal da zona sul Chega a notícia do mês: “Preso no interior Casal seqüestrador De espuma e estrelas Após plumas de brilhos e burburinhos”. Pela tarde, O telejornal local anuncia A liberdade de mais um ex-condenado, E segundo o horticultor O antes preso confessa: — Vou roubar mais confete e sorvete! E logo chega a noite, Crianças brincam no computador, Tentam acertar a circunferência Seus pais dizem austeramente: — Já é tarde, vão dormir... Afinal, noite é cousa de gente grande. 63 Pg13 > Usp-RP ○ 64 ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ Prólogo feliz ○ dedicado à Clarice Lispector Fellipe Miranda Leal ○ Lacuna sem vértice, Aresta de giz, Ligação sem réquiem, Determinante e raiz. Pela escada Goteja destoante A mesma flutuante matriz. “Nós terminamos adivinhando, confusos, a perfeição.” Clarice Lispector 65 Pg13 > Usp-RP ○ 66 ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ Os cotovelos escorados no parapeito da janela esperam a seresta Porém pavores dependurados no espelho cego testemunham o fim da festa A brisa desalinha os cabelos e eriça a pele acetinada Embala a lassidão do dia a lavanda da tarde lavável — os frutos amadurecendo ao sol com cheiro de urinol Manoel Antônio dos Santos ○ Esboço de tarde, com metamorfose ○ A chama ávida cumpre seu ciclo de perpétuo cio Espasmo do abismo — a borboleta examina a mina do casulo e perde o medo do escuro Manoel Antônio dos Santos – D – FFCLRP 67 Pg13 > Usp-RP ○ 68 ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ Manoel Antônio dos Santos ○ As fomes de domingo ○ Domingo de chuva atravessado pela notícia brutal. Encapotados, a confraria dos ditos malditos — ou melhor, dos tidos como amigos —, rumamos para a despedida. Agora, de onde ele nos fita na horizontal, é curioso observar o rosto opaco sem a barreira dos óculos. Com olhar zombeteiro, ele nos mira. O riso estacionado em um canto dos lábios. Custo a respirar. Esse cheiro de cravo esmagado empesteando o ar compacto. Nuvens de mosquito subindo de águas mortas. Aflição no peito, náusea, bolha escura no estômago. Tomou um tranqüilizante. Um não, um vidro inteiro. Para dormir. Reparo na rugosidade da superfície da face perfeitamente escanhoada. Um corpo liso e escorreito, todavia sem substância. Sem permanência. Só a ânsia do vazio bailando no bojo frio da carne. Silhuetas ao redor do esquife celebram um pacto abjeto. Estivesse realmente aqui, daria um basta na lamúria, exporia as carpideiras ao ridículo. E desmontaria a impostura da compaixão, denunciando a meia-verdade dos conluios fúnebres. O pernóstico cunhado costura uma retórica reverberante que contrasta com seus pensamentos em vida, sempre singulares, quase sempre originais. Cada conto que escreveu, uma jóia de concisão, ovo portátil. Ele permanece impassível saboreando o legume envenenado. Parece não achar o tom da reação. E eu temo que tenha habilmente escolhido esse momento para ressurgir como uma aparição, mais real e cruel do que nunca, desmentindo o ceticismo da audiência. Posso identificar essa cena em obras precedentes de sua lavra criativa. A história contada sempre se esboçava com traços vagos, apoiada em um fiapo de enredo. Para ele, o que contava era o poder da sugestão, não situações intensas. Estar ali, furtivo, no próprio funeral, poderia ser mais uma de suas reiteradas obsessões, sua reserva final de ironia. Não deixou testamento. Recém-liberto do cativeiro doméstico. Três ex-esposas, três pensões vitalícias. E de um incômodo filho bastardo — o fruto espúrio era o segredo mais bem guardado da família. Escapou das multas de trânsito, do tratamento de dentes, do fardo dos compromissos pendentes. Não deixou apontamentos para um novo romance. Tampouco seguro de vida. Nem quando soube que a vida, seguramente, escorria pelo ralo. 69 Pg13 > Usp-RP ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ Fico tentado a tocar-lhe a nuca, na parte em que o sol não alcança. O torso do herói despido da antiga vibração. A escolta dos quatro círios, como hirtas espadas, remos n’água ou aves de arribação. A verve de um criador que sabia esculpir a palavra até o ponto de içar o significado mais inaudito. Agora o sabemos -nós, que o choramos e purgamos seu remorso. Paira como uma sombra, à maneira de mortalha. Planando em sua morte, ancorado no centro da sala, velado pela penumbra. As asas encolhidas no casulo de pinho. O silêncio tão denso que se pode cortar com uma faca. Enfeitiçado à meia-luz, prestes a trespassar o túnel, a ponte, o limiar. Prestes a descobrir que não há nada lá. Borboleta grávida de espanto. Enfeitiçado como nós, sujeitos ao esquecimento. Definitivamente provisórios. De repente o cheiro adocicado de jasmim invade a sala. Semente nua no canteiro. Senti um arrepio. E as asas começaram a crescer. 70 ○ ○ ○ ○ ○ ○ Viagem da carne nas intermitências da febre: dispara o coração demasiado Faço exercícios de abismado A gaiola narra ocorrência de vôos e abriga o vento (penas brandas contra um céu de chumbo) Beijo uma idéia (enredos rarefeitos rolam no abandono do meu desejo) A resposta do pássaro ensolarado escorre pela foz dos dedos (Viagem da carne) ○ Manoel Antônio dos Santos ○ As armas da aurora ○ Os passos ainda errantes na dança infinita do sangue Minha herança de malogro Algo que paira escoltado entre o pássaro e o vôo Como ficaram para trás: 1) o sol na varanda deposto em pétalas de breu 2) o fogo na pele da moça numa estrada empoeirada de Curvelo 3) as marcas que fiz com os dentes no estribo ao espiar a manhã escovar seus cabelos 71 Pg13 > Usp-RP ○ ○ ○ ○ Aturdida na quase cegueira da tímida fala íntima a língua permanece em repouso — dardo vivo debaixo do sol o espanto do pássaro é assomo espesso como pedra pode-se cortar seu silêncio com faca antes de se atirar ao desnorteamento O sol me ampararia dos demais insultos O sol tem ossos pontudos — e o silêncio pétreo tão sórdido e rasteiro atravessado pelo galope de crinas como espada consignada pelo canto afiado do galo cego Uma-a-uma-a-uma-a-uma-a-uma trilha de formigas matutando teoremas Vaga-lumes vagavagando em velocípedes melodiando o cansaço do brejo O coaxar de sapos sustém uma afinação sinfônica até que a marcha dos insetos e as setas inquietas das reses prestes a parirem bordem a aurora camaleônica Escuta-me: daqui de onde diviso um país em convulsão (cadáver na vala comum da crise em avançado estado de decomposição) 72 ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ Daqui de onde avisto e avio a bula da demolição não sou nenhum e ninguém (apenas eu e outro) ou se mais que palpável na erosão da pele que se interpenetra No outro de mim que me premedita renasço E revogo disposições em contrário Por favor, não bote reparo. É só um vício que veio de trás, do través, do antanho cacoete de anjo baldio com farda de andrajo e asas atadas com barbante Herança do porte solene dos cães de antes de anteontem ladrões de madrugada dependurados em estrelas ilesas no assomo de auroras frígidas Em suma, o que se diz em mim (no através de meu ser) é: volto em primeira pessoa Volto em primavera — verás: provisões que se depuram de um coração renovado Sei o que é estar vivo depois de morrer e ser árvore 73 Pg13 > Usp-RP ○ 74 ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ A rebrota ○ O ramo não produtivo crescimento excessivo no mundo somente o vegetativo este é cortado bem fundo Eduardo Francisquine Delgado ○ A poda é agressiva procura limpar por inteiro a parte que é nociva ao olhar do perfeito floreiro Nasce então a rebrota que da seiva busca poder vinda da vida nova que do céu veio pra ser Agora sadia e inteira a vida eterna floresce naquele que na verdadeira videira bem ligado permanece Eduardo Francisquine Delgado - D – ESALQ “Não tenho publicações ou participação em eventos literários, apenas escrevo como um exercício para alma e tenho guardado meus pensamentos na gaveta.” 75 Pg13 > Usp-RP ○ 76 ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ Mágico ○ (..) “As rosas não falam Simplesmente as rosas exalam O perfume que roubam de ti, ai...” Cartola Edmir Ravazzi Franco Ramos ○ Tirei uma rosa de minha cartola Para dizer o quanto te amo. Pena que as rosas de Cartola Não falam... Edmir Ravazzi Franco Ramos – Pós-graduando – IFSC 77 Pg13 > Usp-RP ○ 78 ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ Meus versos mostram minha face rara. Escrevo poemas para me esconder, Ocultar coisas que deveria fazer, São o meu refúgio, minha máscara. Minha fortaleza de papel ○ Michel Renato Manzolli Ballestero ○ Meu verdadeiro ego, desconheço, Ele aparece e desaparece de repente, Em noites de inspiração, na mente, Em minutos sou eu, depois pereço. É na minha poesia que eu me defino, Nela me equilibro entre a lucidez e o desatino Quando o real é deserto, solo seco e sol a pino, Eu saio de cena, escrevo um poema e reanimo. Michel Renato Manzolli Ballestero – A – ICMC 79 Pg13 > Usp-RP ○ 80 ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ Álgebra no coração ○ Michel Renato Manzolli Ballestero ○ Apesar do subespaço vetorial Da imensidão do seu olhar Convergir a mim, De nossa intersecção Tender ao infinito, Nossa união será sempre O conjunto vazio. 81 Pg13 > Usp-RP ○ 82 ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ POETA DE GAVETA Inscrições realizadas no período de 8 a 31 de maio de 2006. Total de 60 inscritos com 138 trabalhos: • Piracicaba – 13 inscritos > 29 trabalhos • Pirassununga – 2 inscritos > 06 trabalhos • Ribeirão Preto – 40 inscritos > 90 trabalhos • São Carlos – 5 inscritos > 13 trabalhos POETA DE GAVETA é uma publicação de poemas, contos e crônicas de alunos, funcionários e docentes dos campi da USP, editada pela Seção de Atividades Culturais da Prefeitura do Campus Administrativo de Ribeirão Preto – USP. Os textos publicados são de inteira responsabilidade de seus autores. POETA DE GAVETA • Volume 13 / 2006 ISSN 1516-0513 Impresso em novembro de 2006. Tiragem: 2000 exemplares. Distribuição gratuita. PROIBIDA A REPRODUÇÃO. 83 Pg13 > Usp-RP ○ gráfica 84 ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○