1 A QUEBRA DO SIGILO BANCÁRIO E O FISCO OSWALDO OTHON DE PONTES SARAIVA FILHO Consultor da União Procurador da Fazenda Nacional de Categoria Especial Professor de Direito Tributário da Universidade Católica de Brasília/UCB Coordenador do Curso de Especialização em Direito Tributário da UCB/IBEP Diretor-Executivo do Centro de Estudos Victor Nunes Leal da AGU Texto básico da palestra proferida, pelo Autor, no dia 02/08/2001, em São Paulo, no Ciclo de Palestras Jurídicas, uma promoção do UNIBANCO e da FEBRABAN. 1. Introdução Todos nós temos o direito de viver em um Estado fiscaldemocrático. Estado este que garanta os direitos, imponha os deveres, tendo em vista o interesse público, e faça a intermediação entre os membros da sociedade, evitando todo e qualquer abuso de poder e o domínio dos mais poderosos em relação aos mais fracos. E para que o Estado moderno possa desincumbir essa sua missão, além do combate ao desperdício de dinheiro público, o que se dá em duas frentes - com a guerra contra a corrupção e a luta contra o emprego inadequado ou ineficiente dos recursos públicos, ele tem que arrecadar o que necessita, devendo exercer, para tanto, com eficácia e eficiência, a sua atividade fiscalizadora, inclusive possuindo meios de confrontar se o que os contribuintes estão declarando, para fins do imposto de renda, corresponde aos valores que se encontram depositados em contas bancárias. Afinal de contas, a sistemática de autoliquidação de créditos tributários, por parte dos contribuintes, implica na possibilidade de a Administração tributária possuir instrumentos mais eficazes e eficientes de fiscalização, sob pena de se manter uma hipocrisia fiscal. 2 Nos dias de hoje, a maioria dos impostos são liquidados, pelos próprios contribuintes, com base em elementos que eles dispõem e que a Administração tributária teria muito dificuldade em obter e confrontar, sem que disponha de adequados mecanismos de fiscalização, como o acesso direto dela às informações bancárias. De fato, hodiernamente, o Poder Executivo deixou, para segundo plano, a condição de aplicador ex officio das normas tributárias, para assumir, com mais proeminência, a condição de fiscalizador, de controlador das atividades de liquidação de tributos efetuadas pelos sujeitos passivos das obrigações tributárias. Aliás, a importância de se conferir maior eficiência aos meios de fiscalização tributária ganha relevo em face da economia globalizada em que vivemos, bem como diante da informatização, onde pode se dá o comércio virtual, com dificuldade adicional para o Fisco verificar a ocorrência de fatos geradores, caso não declarados pelos particulares contratantes, como, por exemplo, a baixa de um arquivo de um programa de computador, onde a transferência do software ocorre diretamente de um computador para outro. O ganho de eficiência dos meios da fiscalização tributária e a conseqüente maior arrecadação do que é legalmente devido, o que pode ser obtido com a transferência direta do sigilo bancário para a Administração tributária, traz, entre nós, a clara percepção de que os verdadeiros inimigos e concorrentes desleais dos contribuintes são aqueles que, apostando nas amarras e na ineficiência do Fisco, conseguem se evadir de suas obrigações tributárias, forçando o Estado, que não pode prescindir da arrecadação que lhe é necessária, a tributar, cada vez mais, os que pagam os tributos honestamente, o que vai de encontro à razoabilidade da tributação, proporcionadora da liberdade, justamente, aquilo que o Estado fiscal visa a assegurar. Como bem desabafou o Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra Doutor José Cassalta Nabais, em recentes palestras proferidas em Brasília, Rio de Janeiro e em São Paulo, respectivamente nos dias 18, 19 e 20 do mês de fevereiro de 2.001 em Simpósios Internacionais sobre Sigilo Bancário, promovidos pelo Centro de Estudos Victor Nunes Leal da Advocacia-Geral da União: “Com efeito, é de todo insustentável a situação a que uma parte 3 significativa e crescente de contribuintes se conseguiu alcandorar, fugindo descaradamente e com assinalável êxito aos impostos. É insustentável pela receita perdida que origina e, conseqüentemente, pelo apartheid fiscal que a mesma provoca, desonerando os fugitivos fiscais e sobrecarregando os demais contribuintes que, não podendo fugir aos impostos, se tornam verdadeiros reféns ou cativos do Fisco por impostos alheios.”1 2. OS FUNDAMENTOS CONSTITUCIONAIS PARA A TRANSFERÊNCIA DIRETA DO SIGILO BANCÁRIO PARA A ADMINISTRAÇÃO TRIBUTÁRIA A Constituição Brasileira confere aos entes da Federação o mais e os fins – o poder de tributar, para que estes obtenham receitas para atender aos seus encargos (arts. 145 caput incisos I a III, 148, 149 e 195, 153 caput incisos I a VII, 154 I e II, 155 caput incisos I a III, e 156 caput incisos I a III) – obviamente, ofereceu, também, aos respectivos Poderes Executivos o menos e os meios – a competência ampla de fiscalização. Além disso, a Constituição da República Federativa do Brasil, no § 1 do artigo 145, dispõe que, sempre que possível, os impostos terão caráter pessoal e serão graduados segundo a capacidade econômica dos contribuintes, e, principalmente para conferir efetividade aos princípios da pessoalidade e da capacidade contributiva, faculta à Administração tributária identificar, respeitados os direitos individuais, isto é, com a mantença, por parte da Administração fiscal, do segredo bancário que lhe foi transferido e de conformidade com o devido processo legal, e nos termos da lei, o patrimônio, os rendimentos e as atividades econômicas do contribuinte. o Ademais, a Constituição Federal, de 1988, no seu artigo 5° caput proclama que todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se a inviolabilidade do direito à igualdade. O mesmo Estatuto Constitucional, no seu artigo 150 inciso II, veda a instituição de tratamento desigual entre contribuintes que se encontrem em situação equivalente, proibida qualquer distinção em 1 José Cassalta NABAIS – texto da palestra “Algumas reflexões sobre o actual estado fiscal”, publicada, devidamente revisada pelo autor, no site da Revista virtual da AGU n° 9, de abril de 2.001: www.agu.gov.br. 4 razão de ocupação profissional ou função por eles exercida, independentemente da denominação jurídica dos rendimentos, títulos ou direitos. É inerente à atividade da Administração ter acesso às informações bancárias a fim de poder desempenhar o seu poder-dever de fiscalização. E isso para a perseguição de objetivos que a própria Constituição lhe impõe na concretização da justiça fiscal e, em última instância, do princípio da igualdade que consagra. De fato, a capacidade contributiva consiste, segundo o magistério de Ricardo Lobo Torres, "em legitimar a tributação e graduá-la de acordo com a riqueza de cada qual, de modo que os ricos paguem mais e os pobres, menos".2 E, como realçou o Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa Doutor José Luís Saldanha, a igualdade fiscal, exigida pela Constituição, não é apenas a igualdade na legislação, mas também a igualdade na aplicação da lei.”3 Com o aparecimento da L.C. 105, de 10/1/01, que permite a transferência do sigilo bancário para a Administração tributária e a conseqüente melhora na fiscalização e na arrecadação dos impostos, surge o incremento das possibilidades de há médio prazo ocorrer a redução da carga tributária de quem paga os tributos corretamente, e, até mesmo de se viabilizar a tão esperada reforma tributária. Os contribuintes cumpridores de seus deveres ganharam motivos para crer que as leis tributárias venham a ser, de fato, igualmente aplicadas e que a capacidade contributiva das pessoas venha a ser mais observada. 2 Ricardo Lobo TORRES - Tratado de direito constitucional financeiro e tributário. v. III. Rio de Janeiro: Renovar, 1999, p. 334. 3 José Luís Saldanha SANCHES – A situação actual do sigilo bancário: a singularidade do regime português, in “Estudos de Direito Bancário”, Coimbra, 1999. Esse artigo encontra-se também veiculado no site da Revista virtual da AGU, numa edição especial sobre o Sigilo Bancário: www.agu.gov.br. 5 E mais: um dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil é construir uma sociedade livre, justa e solidária (C.F./88, art. 3°). A ordem econômica na Constituição do Brasil, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos a existência digna, conforme os ditames da justiça social, observado, entre outros princípios, o da livre concorrência (C.F., arts. 1 o caput incisos II, III e IV, e 170 caput inciso IV). Pode ser acrescentado, ainda, que a evasão e a sonegação fiscal também é combatida, pela Carta Política Brasileira, quando ela reza que a lei reprimirá o abuso do poder econômico que vise à dominação dos mercados, à eliminação da concorrência e ao aumento arbitrário dos lucros (C.F., § 4 o do art. 173). Insta observar que a Constituição Brasileira, no caput do artigo 37, estatui que a Administração pública obedecerá, entre outros princípios, o da impessoalidade, o da moralidade e o da eficiência. Todos esses princípios constitucionais, entre outros, apoiam a transferência direta do sigilo bancário para a Administração tributária e demonstram a constitucionalidade dos preceptivos da Lei Complementar 105/01. Insta ressaltar que a Constituição Brasileira, além de garantir que a Administração Pública atue dentro da legalidade e da eficiência, observando os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade (C.F., art. 37, caput e art. 5º LIV), exige também que a Administração respeite os princípios da impessoalidade (ou finalidade) e da moralidade administrativa, o que implica na imparcialidade da administração pública. Por força desses princípios, os atos da Administração Pública e de seus agentes em geral, especialmente os agentes fiscais, devem conter a maior eficiência possível, pela obrigação de prestarem uma boa administração, observando-se a honestidade, a boa-fé, a lealdade, a moderação, a discrição, a economicidade, a sinceridade, 6 sem que possa existir qualquer inconfessável desejo de prejudicar ou beneficiar este ou aquele administrado.4 As autoridades administrativas fiscais competentes para examinar as informações bancárias dos contribuintes, além de não terem mesmo qualquer interesse em se imiscuir na vida privada dos contribuintes, estando a isto proibidos por força do princípio da moralidade administrativa, também não têm o interesse de proporcionar a arrecadação a qualquer custo, mas sim, pretendem apenas propiciar, com o seu legítimo e eficiente trabalho de fiscalização, a arrecadação do que legalmente for devido. Ademais, diferentemente do Ministério Público, a Administração tributária não se enquadra mesmo na parcialidade, tendo em vista que ela não é parte no sentido de que ela não acusa, ela apenas fiscaliza. Na fase de fiscalização, nem sequer a Administração é credora, pois ainda não existe o crédito tributário parcial ou definitivamente constituído. Parcela significativa da doutrina pátria encontra óbices constitucionais à transferência direta do segredo bancário para a Administram tributária, diante dos preceptivos constitucionais do artigo 5o incisos X (a inviolabilidade da intimidade e da vida privada) e XII (ao que se advoga trataria acerca da inviolabilidade do sigilo de dados informáticos). Adeptos dessa corrente de pensamento reconhecem que o sigilo bancário não é absoluto, podendo ser relativizado, mas apenas por meio de ordem judicial, quando demonstrados indícios fortes ou provas irrefutáveis de evasão e sonegação fiscal. Haveria uma dita, mas não explicada convincentemente, espécie de reserva constitucional de jurisdição. 4 Oswaldo Othon de Pontes SARAIVA FILHO – O princípio da moralidade no direito tributário, in Pesquisas tributárias: Nova série – 2, coord. Ives Gandra da Silva Martins, 2a. ed., São Paulo: Editora Revista dos Tribunais e Centro de Extensão Universitária, 1998, p. 188. 7 O fato é que a Constituição Federal do Brasil, de 1988, não assegura expressamente o sigilo bancário como um dos direitos individuais, muito menos coletivos, de modo que, no máximo, só se pode chegar a indução de que o sigilo bancário estaria incluso nos direitos à intimidade e à privacidade por mera construção interpretativa. Mas a Constituição não garante isto com todas as letras. De fato, a Constituição Federal, de 1988, além de não assegurar expressamente entre os direitos individuais, no artigo 5o, tampouco no artigo 145, § 1 o, o dever de as instituições financeiras manterem sigilo sobre as operações realizadas através delas, ao cuidar do sistema financeiro nacional, no artigo 192, também nada dispôs sobre o sigilo bancário. Não vislumbramos o sigilo bancário entre o direito à intimidade, ou o denominado direto de se estar sozinho. Tenho para mim que intimidade é aquilo que não se compartilha com ninguém, são os pensamentos mais íntimos e secretos, os sentimentos, os desejos e as tendências, às vezes, inconfessáveis. Vida privada é aquilo que é compartilhado a um grupo restrito de pessoas mais íntimas, cônjuge, familiares, alguns poucos amigos, ou pessoas da inteira confiança do indivíduo que faz a discrição. Estou que o sigilo bancário está, normalmente, encaixado entre um dos instrumentos de defesa da propriedade, como proteção contra a curiosidade sem justo motivo de terceiros ou concorrentes, sujeito, portanto, a relativização em face do interesse público predominante, sendo que só excepcionalmente, as informações e documentos bancários, relativos a meros números, a contabilidade fria, poderiam revelar alguma relação com a vida privada do contribuinte. Observe-se que em relação às pessoas jurídicas, ainda é mais difícil a defesa do sigilo bancário com amparo no direito à privacidade, mesmo porque como, de passagem, bem lembrou o Professor Hugo de Brito Machado: “é antiga a idéia de que a Fazenda Pública penetra no sigilo comercial para ter meios de exercitar o seu poder de 8 tributar”.5 (Cf. art. 195 do C.T.N.). Assim, não há como se justificar não possa a lei permitir a transferência direta dos segredos bancários para a Administração tributária. Aliás, as sociedades anônimas são, por lei, obrigadas a publicar os seus balanços. O entendimento no sentido de que o sigilo bancário não se encontra protegido pelo artigo 5o inciso X da Constituição Federal, embora se reconheça não seja essa o posicionamento dominante do Supremo Tribunal Federal, foi manifestado, pelos Excelentíssimos senhores Ministros Francisco Rezek e Sepúlveda Pertence por ocasião do julgamento do Mandado de Segurança 21.729-4/DF,6. No que respeita à interpretação do inciso XII, do art. 5º, da Constituição da República do Brasil, Tercio Sampaio Ferraz Junior7 chama a atenção para o fato de que o sigilo está relacionado com a comunicação. Isto é feito, no texto, em dois blocos: a Constituição fala em sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas. Note-se, para a caracterização dos blocos, que a conjunção e une correspondência com telegrafia, segue-se uma vírgula e depois, a conjunção de dados com comunicações telefônicas. Há uma simetria nos dois blocos. Obviamente o que se regula é comunicação por correspondência e 5 Hugo de Brito MACHADO – trecho da palestra sobre o tema A nãocumulatividade do IPI, proferida no I Simpósio da Advocacia-Geral da União da 5a. Região, em Fortaleza no dia 20 de dezembro de 2.000, uma promoção do Centro de Estudos Victor Nunes Leal da AGU, com o apoio do Instituto Cearense de Estudos Tributários – ICET. 6 No Mandado de Segurança 21.729/DF, impetrado pelo Banco do Brasil contra o senhor Procurador-Geral da República em relação à requisição de informações sobre empréstimos vultosos concedidos a usineiros, a Corte Suprema, mesmo admitindo a inexistência de autorização legal para a transferência de segredo bancário para o Ministério Público sem a interferência do Poder Judiciário, denegando a ordem, decidiu ser inoponível, no caso, a exceção do sigilo bancário pela instituição financeira, tendo em vista que, do montante do crédito concedido, parcela tinha origem pública, o que fez prevalecer o princípio da publicidade da Administração pública, previsto no caput do artigo 37 da Constituição brasileira (Acórdão pendente de publicação). 7 Tercio Sampaio FERRAZ JUNIOR – Sigilo de dados: o direito à privacidade e os limites à função fiscalizadora do Estado, in Cadernos de direito tributário e finanças públicas n° 1, São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 1992, páginas 145 e 146. 9 telegrafia, comunicação de dados e telefônica. Portanto, o que é inviolável é o direito da pessoa de não ter a ação de sua comunicação de dados interceptada, não sendo invioláveis os dados em si mesmos. Em verdade, o Excelso Supremo Tribunal Federal tem afirmado, em várias ocasiões, que a inviolabilidade referida do inciso XII do artigo 5° da Carta Magna refere-se à intromissão ou interceptação da comunicação de dados e não ao registro de dados. Nesse sentido, a palavra abalizada do Ministro Sepúlveda Pertence no voto proferido no MS 21.729-4/DF: “Da minha leitura, no inciso XII do art. 5o da Lei Fundamental, o que se protege é a comunicação de dados e não os dados, o que tornaria impossível qualquer investigação administrativa, fosse qual fosse”. Também nessa linha, merece destaque o magistério do Ministro Nelson Jobim, em voto proferido no julgamento do RE 219.780/PE: “Passa-se, aqui, que o inciso XII não está tornando inviolável o dado da correspondência, da comunicação, do telegrama. Ele está proibindo a interceptação da comunicação dos dados, não dos resultados. Essa é a razão pela qual a única interceptação que se permite é a telefônica, pois é a única a não deixar vestígios, ao passo que nas comunicações por correspondência telegráfica e de dados é proibida a interceptação porque os dados remanescem; eles não são rigorosamente sigilosos, dependem da interpretação infraconstitucional para poderem ser abertos. O que é vedado de forma absoluta é a interceptação da comunicação da correspondência, do telegrama. Por que a Constituição permitiu a interceptação da Comunicação telefônica? Para manter os dados, já que é a única em que, esgotando-se a comunicação, desaparecem os dados. Nas demais, não se permite porque os dados remanescem, ficam no computador, nas correspondências etc” (RE nº 219.780/PE, Rel. Min. Carlos Velloso, DJ de 10.09.99, p. 23). Em outra oportunidade, o Augusto Pretório, na ADIn 1.790/DF (DJ 08.09.2000), não só procedeu à distinção entre as comunicações e os registros de dados como também afirmou, de modo inequívoco, a legitimidade da transferência de registros de dados de amplo acesso público destinados à proteção de créditos privados – cujos serviços 10 prestados eventualmente são remunerados. Tratava-se, portanto, de bancos de dados, inclusive privados, que preservavam interesses eminentemente privados e comerciais e exploravam economicamente a divulgação ilimitada a terceiros de informações relativas a operações financeiras de crédito. Ora, se o próprio Supremo Tribunal Federal admitiu que tais registros são “um dado inextirpável da economia fundada nas relações massificadas de crédito”, o que denota que o acesso a tais sistemas de dados decorre das exigências de eficiência da economia financeira, como forma de proteção do lucro, ou seja, se a economia privada capitalista necessita do acesso a dados eventualmente gravosos à imagem das pessoas para o fim de proceder à eficiente proteção do lucro, maior dependência de um igualmente eficiente sistema ostentará a administração tributária. Ora se as entidades capitalistas e privadas encontram-se autorizadas a acessar e fazer circular informações acerca de transações financeiras realizadas por indivíduos (e inclusive vender serviços de obtenção e difusão de tais informações) por imperativo factual de eficiência econômica na sociedade de massas, razão alguma haverá para não se admitir a mesma legitimidade aos órgãos públicos de fiscalização tributária para acessar diretamente tais informações no sentido de assegurar efetividade ao dever fundamental de pagar impostos e aos princípios constitucionais do caráter pessoal, da igualdade do tratamento fiscal e da capacidade contributiva, tendo em vista que, por imperativo constitucional, por melhor razão, deve a Administração tributária atuar com eficiência e com moralidade, isto é, com imparcialidade, além de estar impedida de revelar a terceiros tais informações, sujeitando-se ao devido processo legal administrativo. Destarte, embora, na minha opinião, o sigilo bancário esteja mais diretamente relacionado com a proteção ao direito de propriedade, tendo só excepcionalmente algum reflexo com o direito à privacidade, cumpre reconhecer que a tese prevalecente em nossa Corte Constitucional é no sentido de que o sigilo bancário seria, por interpretação, uma nuance do direito à privacidade, com base, portanto, não no inciso XII do artigo 5 o, mas sim no inciso X do mesmo artigo. 11 Mesmo assim, a jurisprudência mansa e pacífica do Supremo Tribunal Federal é no sentido de que o direito ao sigilo bancário não é absoluto, devendo ceder diante do interesse público, do interesse social e do interesse da justiça, com observância de procedimento estabelecido em lei e com respeito ao princípio da razoabilidade, sendo certo, portanto, que as exceções podem ser disciplinadas por normas infraconstitucionais (Cf. RE 219.780, Rel. Min. Carlos Velloso, in DJU de 10/9/99, p. 23). Insta ser ressaltado que o Supremo Tribunal Federal tem entendido que o direito ao sigilo bancário não está protegido pela cláusula constitucional de reserva de jurisdição, contrariamente do que sucede com a busca domiciliar (C.F., art. 5o XI), a interceptação telefônica (C.F., art. 5o XII) e a decretação de prisão de qualquer pessoa, ressalvada a hipótese de flagrância e os casos de transgressão militar ou crime propriamente militar (C.F., art. 5o LXI), como demonstra o seguinte decisum: “Quebra ou transferência de sigilos bancário, fiscal e de registros telefônicos que, ainda quando se admita, em tese, susceptível de ser objeto de decreto de CPI - porque não coberta pela reserva absoluta de jurisdição que resguarda outras garantias constitucionais -, há de ser adequadamente fundamentada: aplicação no exercício pela CPI dos poderes instrutórios das autoridades judiciárias da exigência de motivação do art. 93, IX, da Constituição da República.” (MS 23.480, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ 15/9/00, p. 119) Ademais, por ocasião do julgamento do Agravo Regimental em Inquérito n° 897-5/DF, o Supremo Tribunal Federal, em sessão plenária, além de ter assentado que “a quebra do sigilo bancário não afronta o artigo 5o X e XII da Constituição Federal (Precedente: PET 577)”, decidiu que o sigilo bancário pode ser transferido sem a necessidade de prévia audiência do investigado, tendo em vista que, como bem explicaram os senhores Ministros Carlos Velloso e Celso de Mello, tornando-se necessária a obtenção da prova por esse meio, deve ser posta no ventre dos autos, não havendo de se cogitar da instauração incidental do contraditório em procedimento nitidamente qualificado pela nota da unilateralidade e da inquisitividade, aí então, ou a partir daí ocorrerá o contraditório, ou seja, “o princípio do 12 contraditório não prevalece na fase inquisitorial”. (DJU de 24/3/95, p. 6806). No mesmo caso, assim se pronunciou o senhor Ministro Sepúlveda Pertence: “Admitindo-se que não se trata de garantia absoluta de sigilo, mas que, ao contrário, pode ele ser quebrado em favor de investigação criminal, parece-me patente que é impossível estabelecer, como regra geral, um contraditório prévio para saber da procedência do pedido de autorização judicial para a diligência. Do contrário, na hipótese extrema, teríamos, antes da autorização de uma escuta telefônica, que estabelecer um contraditório com quem seria o objeto dessa escuta, de modo a frustrar, antecipadamente, a investigação". Também nesse mesmo agravo regimental, o Senhor Ministro Moreira Alves corroborou: “também nego provimento ao agravo até porque há outros tipos de providências que são absolutamente incompossíveis com o contraditório, como, por exemplo, o pedido de bloqueio de bens e a busca e apreensão”. 3. SITUAÇÕES PARA A QUABRA DO SIGILO BANCÁRIO Com o surgimento da Lei Complementar n° 105/01 e do Decreto nº 3.724/01, dúvida não há acerca da existência de complexo normativo rigoroso, específico e suficiente para prestar as garantias de organização e procedimento necessárias à tutela de quaisquer direitos e posições jurídicas dos sujeitos passivos de obrigações tributárias. Neste ponto, cabe realçar que o sigilo bancário tem por finalidade a proteção contra a divulgação ao público em geral (ou a pessoas que não tenham um justo título que justifique) de informações acerca dos negócios das instituições financeiras e dos saldos bancários e das operações financeiras de seus clientes. Por força da legislação tributária, inclusive a do imposto sobre a renda, as pessoas não têm o direito de esconder do Fisco ou dele omitir as suas rendas ou as de terceiros, estando, por lei, obrigadas a prestar informações a esse respeito à Administração tributária. 13 Por isto, não há, em verdade, um direito absoluto do contribuinte ao sigilo bancário oponível ao Fisco. A lei pode disciplinar a transferência do segredo bancário para a Administração tributária por legítimos motivos de ordem pública, como os relacionados aos combates a evasão e sonegação fiscais, passando, nesse caso, a existir uma troca de sigilo bancário para o sigilo fiscal. O agora revogado artigo 38 do Decreto-lei n° 4.507/64 e o caput do artigo 197 do Código Tributário Nacional, ao meu ver, já autorizavam a transferência direta do segredo bancário para a Administração tributária, embora o Egrégio Superior Tribunal de Justiça, a partir do decidido no REsp n° 37.566-5/RS, Relator o senhor Ministro Demócrito Reinaldo, tenha pacificado entendimento em sentido contrário. Por outro lado, o dispositivo do parágrafo único do art. 197, do CTN, não se dirige às instituições financeiras, mas atinge, tão somente, as entidades ou pessoas que a lei designe, em razão de seu encargo, ofício, função, ministério, atividade ou profissão (inciso VII do mesmo art. 197), quanto a fatos sobre os quais o informante esteja legalmente obrigado a observar segredo, em razão de cargo, ofício, função, ministério, atividade ou profissão. E a lei não impõe que as instituições financeiras neguem a transferência do sigilo bancário para o Fisco. Esse, aliás, é o entendimento de Aliomar Baleeiro:8 “Não se conceberia que o advogado e o padre, por ex., fossem compelidos a devassar confidências recebidas em função de sua atividade, quando outras leis os garantem em função dessa atividade, contra delações a que se obrigarem, e até os punem se as fizerem (Cód. Penal, art. 154). Não é, porém, o caso dos banqueiros, p.ex., que não são adstritos às mesmas regras éticas e jurídicas de sigilo. Em princípio só devem aceitar e ser procurados para negócios lícitos e confessáveis. Diversa é a situação do advogado, do médico e 8 Aliomar BALEEIRO – Direito tributário brasileiro, 11a. ed., atualizada por Misabel Abreu Machado Derzi, Rio de Janeiro: Forense, 1999, p. 993. 14 do padre, cujo dever profissional não tranca os ouvidos a todos os desvios de procedimento ético ou jurídico, às vezes conhecidos somente da consciência dos conflitantes.” E, de fato, o artigo 198 do Código Tributário Nacional, com a redação determinada pela Lei Complementar n° 104, de 10/1/01, assegura o sigilo fiscal. Contudo, é inaceitável que os contribuintes tenham qualquer direito de impedir o Fisco de cumprir, respeitados os direitos individuais pertinentes, com a mantença do sigilo bancário e com a observância do devido processo legal, e nos termos da lei, o seu poder-dever de fiscalizar e tributar corretamente, o que pressupõe a possibilidade de identificação do patrimônio, dos rendimentos e das atividades que indiquem substância contributiva (C.F., art. 145, § 1 o). A Administração tributária, a quem compete, por lei, as atribuições de fiscalização e lançamento, no interesse na maior eficácia dos princípios da igualdade e da capacidade contributiva (C.F., art. 150, II e art. 145 § 1o), deve ter os meios de conferência fiscalizatória. A partir da entrega para as autoridades tributárias dos documentos, livros ou registros de instituições financeiras, inclusive dos informes referentes a contas de depósitos e aplicações financeiras, como agora autorizam os artigos 5o e 6o da L.C. 105, o sigilo bancário não é quebrado, mas, apenas, se transfere à responsabilidade da autoridade administrativa solicitante e dos agentes fiscais que a eles tenham acesso no estrito exercício de suas funções, que não poderão violar, salvo as ressalvas do § 1 o, incisos I e II, e § 3 o, incisos I, II e III, do art. 198, e do art. 199, caput e parágrafo único, do C.T.N., com as redações dadas pelo artigo 1o da L.C. n° 104, de 10/1/01, como, aliás, prevê o inciso XXXIII, do art. 5º, da C.F., que ressalva do direito de todos a receber dos órgãos públicos informações os casos de sigilo que sejam imprescindível à segurança da sociedade e do Estado, nos termos da lei, sob pena de incorrerem em responsabilidade penal, civil e administrativa (art. 198 do CTN; com a redação dada pela LC 104/01; art. 325 do CP, art. 10 e 11 da LC 105). 15 É verdade que, após a Constituição de 5 de outubro de 1988, a nossa Corte Constitucional ainda não examinou o mérito da possibilidade ou não da transferência direta do sigilo bancário para a Administração tributária. Entretanto, antes da Carta Política de 1988, o Supremo Tribunal Federal sempre admitiu essa relativização do segredo bancário frente à Administração fiscal. Essa afirmação encontra-se respaldada, por exemplo, em decisões do Pretório Excelso, por ensejo dos julgamentos do RMS n° 15.925-GB (in R.T.J. 37/373) e do RE 71.640BA (in R.T.J. 59/571). Destarte, como o sigilo bancário só tem sentido enquanto protege o contribuinte contra o perigo da divulgação ao público em geral, nunca quando a divulgação de informações bancárias é para as autoridades administrativas competentes, que, sob pena de responsabilidade penal, civil e administrativa, estão, em regra, proibidos de transmitir o que lhes foi dado conhecer, não há perigo de devassa ou quebra de sigilo bancário que venham a perturbar as relações jurídicas através do sistema financeiro. Mesmo porque o Direito não existe para proteger a própria torpeza, a propaganda enganosa da situação econômica, os atos contra a família, a concorrência desleal com a tendência de dominação do mercado de quem escapa da tributação correta, ou seja, não se pode permitir, no mundo de economia globalizada em que os negócios se fazem até por meio virtual pela internet, e que, na prática, o mais das vezes, os tributos são liquidados e pagos pelo próprio contribuinte, sem a prévia conferência por parte da Administração, que sonegadores, traficantes, corruptos tenham o direito de esconder do Fisco os seus reais rendimentos, impedindo-se a transferência imediata do sigilo bancário para a Administração tributária, transferência essa necessária para a sua eficiência. Aliás, como bem pondera Sérgio Carlos Covello: “Banco não é esconderijo”.9 9 Sérgio Carlos COVELLO – “Sigilo bancário”, São Paulo: Leud, 1991, p. 94. 16 Cabe mencionar que, por ocasião do julgamento do Mandado de Segurança 21.729 impetrado pelo Banco do Brasil contra o Procurador-Geral da República (Rel. p/ ac. o Min . Francisco Rezek, acórdão pendente de publicação, e noticiado no Informativo STF n° 8), o Excelentíssimo Senhor Ministro Ilmar Galvão reconheceu muito maior plausibilidade na transferência do sigilo bancário para a Fiscalização do Imposto de Renda, que há de estar em permanente vigilância, na busca de sinais de riqueza dos contribuintes, do que em relação ao Ministério Público, cuja iniciativa tem em mira casos específicos, em face dos quais o requerimento ao Juiz não acarreta maiores transtornos. Evidentemente, é incontestável que a Administração tributária deve ter o acesso direto de informes gerais ou cadastrais sobre os contribuintes, como a existência de contas e valores globais nelas depositados ou aplicados, sem a identificação da origem, e, também, sem referência ao destino desses valores, o número do CPF ou CGC e o endereço do cliente da entidade, mesmo porque esses dados não são capazes de revelar qualquer aspecto da privacidade das pessoas. O acesso direto a outros elementos mais detalhados, de fato comporta controvérsia, mas estou que a norma infraconstitucional pode autorizar. Como estava, a eficiência ficava, em verdade, comprometida, pois a comprovação de provas ou veementes indícios de sonegação ou evasão fiscal para só então se obter a autorização judicial da transferência do sigilo bancário torna essa providência desnecessária, pois se o Fisco já possui esses elementos não precisa pedir a transferência do sigilo, quando o que possibilita a eficiência e o temor da pessoa que pretenda omitir rendimentos é a possibilidade de busca, de investigação de cruzamento de informações, mesmo que ainda não tenha ocorrido a prévia constatação da existência de indícios de omissão, irregularidade ou crime. 4. O CONTEÚDO E O PERÍODO DAS INFORMACÕES REPASSADAS ÀS AUTORIDADES ADMINISTRATIVAS Determina o artigo 5° da Lei Complementar n° 105/2.001, segundo os critérios a serem disciplinados pelo Poder Executivo, 17 inclusive quanto à periodicidade e aos limites de valor, que as instituições financeiras informarão à Administração Tributária da União, as operações financeiras efetuadas pelos usuários de seus serviços. O § 1o do artigo 5o da L.C. 105 considera operações financeiras: depósitos à vista e a prazo, inclusive em conta de poupança; pagamentos efetuados em moeda corrente ou em cheques; emissão de ordens de crédito ou documentos assemelhados; resgates em contas de depósitos à vista ou a prazo, inclusive de poupança; contratos de mútuo; descontos de duplicatas, notas promissórias e outros títulos de crédito; aquisições e vendas de títulos de renda fixa ou variável; aplicações em fundos de investimentos; aquisições de moeda estrangeira; conversões de moeda estrangeira em moeda nacional; transferências de moeda e outros valores para o exterior; operações com ouro, ativo financeiro; operações com cartão de crédito; operações de arrendamento mercantil; e quaisquer outras operações de natureza semelhante que venham a ser autorizadas pelo Banco Central do Brasil, Comissão de Valores Mobiliários ou outro órgão competente. É grande relevância a norma do § 2º do artigo 5º da Lei Complementar 105, que reza que as informações transferidas na forma do caput deste artigo restringir-se-ão a dados cadastrais gerais, ou seja, a informes relacionados com a identificação dos titulares das operações e os montantes globais mensalmente movimentados, vedada a inserção de qualquer elemento que permita identificar a sua origem ou a natureza dos gastos a partir deles efetuados. Com isso, explicitou-se o caráter estritamente contábil da informação acessível à fiscalização tributária e vedou-se expressamente já na própria Lei Complementar nº 105, de 2001, a possibilidade de conferir-se qualquer caráter revelador da origem ou da natureza dos gastos quando da concessão das informações relativas às operações financeiras. Aqui cuida-se apenas de transferência para a Administração tributário do segredo protetor da propriedade, sem qualquer possibilidade de reflexo na privacidade, e, como é cediço, a 18 propriedade deve ter função social, e o direito a ela pode ser relativizado por lei. A privacidade, na espécie, está, portanto, protegida, quando a supracitada norma da lei complementar restringe a transmissão das informações, por parte das instituições financeiras, a simples informações cadastrais dos contribuintes usuários de serviços bancários, é dizer meros dados que identificam a pessoa em suas relações sociais, comerciais e com o Poder Público, aliás a identificação dos nomes das pessoas faz parte da comunicação humana: ninguém tem identificação só para si mesmo ou para pessoas mais chegadas, o nome das pessoas é mesmo para os outros, para o mundo. O direito à privacidade também está preservada quando o preceptivo do § 2º do artigo 5º da L.C. 105, a exemplo do estatuído no artigo 12 da Lei Complementar nº 70, de 30 de dezembro de 1991, limita a transmissão apenas de valores globais movimentados, proibida, nessa fase, a inserção de qualquer elemento que permita identificar a sua origem ou a natureza dos gastos efetuados. O § 4º, por sua vez, permite que a autoridade administrativa competente poderá requisitar informações e documentos complementares necessários àqueles mencionadas no § 2º, bem como realizar fiscalização ou auditoria para a adequada apuração dos fatos, tão-somente na hipótese de detecção de “indícios de falhas, incorreções ou omissões” ou de “cometimento de ilícito fiscal”, o que constitui exigência igualmente adicional de consistência e finalidade específica no acesso a informações. Tal como nos relata a Secretaria da Receita Federal: “essa regra, conjugada com a do § 2º, objetiva racionalizar os trabalhos de prestação de informações bancárias ao fisco federal, na medida em que o detalhamento de dados sobre operações e serviços de instituições financeiras pode ser requisitado somente caso a caso e, assim mesmo, apenas na hipótese de haver indícios de falhas, incorreções ou omissões, ou de cometimento de ilícito fiscal, nas informações recebidas pelo órgão da administração tributária da União”. 19 A seu turno, o § 5º do artigo 15 da L.C. 105, satisfazendo o devido processo legal e determinando a observância das exigências da legislação em vigor, traz normas de organização e procedimento, assegurando que tais informações serão conservadas sob sigilo fiscal. Portanto, não se trata, em verdade, de quebra de sigilo bancário, mas apenas de sua transferência imediata para a Administração tributária federal, comutando-se sigilo bancário para sigilo fiscal. A seu turno, o caput do artigo 6º da L.C. 105/01 estabelece a obrigação de as autoridades e os agentes fiscais tributários da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios de submeter-se à organização e ao procedimento previsto, de modo que somente poderão examinar documentos, livros e registros de instituições financeiras, inclusive os referentes a contas de depósitos e aplicações financeiras, quando houver processo administrativo instaurado ou procedimento fiscal em curso e tais exames sejam considerados indispensáveis pela autoridade administrativa competente. Já o parágrafo único do artigo 6º da mesma lei complementar repisa que "os resultados dos exames, as informações e os documentos a que se refere este artigo serão conservados em sigilo, observada a legislação tributária". Destarte, o artigo 6º da Lei Complementar nº 105 autoriza a transferência direta do segredo bancário para a Administração tributária dos entes da Federação e estabelece regras procedimentais e requisitos básicos de como deve ocorrer tal transferência. A seu turno, através do Decreto nº 3.724, de 10 de janeiro de 2.001, o Excelentíssimo Senhor Presidente da República, no uso da competência conferida pelo artigo 84, incisos IV e VI, da Constituição Federal, de expedir decretos para a fiel execução das leis e de dispor sobre a organização, funcionamento e procedimento interno da própria da Administração federal, regulamenta o artigo 6º da L.C. 105, relativamente à requisição, acesso e uso, pela Secretaria da Receita Federal, de informações referentes a operações e serviços das instituições financeiras e das entidades a elas equiparadas. 20 Aqui, deve ser ressaltado que embora, no Direito Tributário, devam ser obedecidos os princípios da legalidade e da tipicidade, não há exigência para que essa legalidade seja estrita e que essa tipicidade seja fechada, especialmente quando esteja em causa mera matéria formal relativa à organização, ao funcionamento e ao procedimento da fiscalização tributária. Trata o referido Decreto de regulamento autorizado de execução da lei, que, inclusive, dá ainda mais proteção aos contribuintes. Vale avivar que o caput do artigo 144 do Código Tributário Nacional estabelece que, quanto aos aspectos materiais do tributo (contribuinte, hipótese de incidência, base de cálculo, etc.), aplica-se ao lançamento a lei vigente no momento da ocorrência do fato gerador da obrigação, ainda que posteriormente modificada ou revogada. O § 2o do artigo 144 do C.T.N. dispõe que, em relação aos impostos lançados por períodos certos de tempo, a lei poderá fixar expressamente a data em que o fato gerador se considera ocorrido. No entanto, quanto aos aspectos meramente formais ou procedimentais, segundo o § 1° do mesmo artigo 144 do C.T.N., aplica-se ao lançamento a legislação que, posteriormente à ocorrência do fato gerador da obrigação, tenha instituído novos critérios de apuração ou processos de fiscalização, ampliado os poderes de investigação das autoridades administrativas. Destarte, não há direito adquirido de só ser fiscalizado com base na legislação vigente no momento da ocorrência do fato gerador, mas com base da legislação vigente do momento da ocorrência do lançamento, que, aliás, pode ser revisado de ofício pela autoridade administrativa, enquanto não ocorrer a decadência. Tendo em vista que o lançamento é declaratório da obrigação tributária e constitutivo do crédito tributário, o direto adquirido, emergido com o fato gerador, refere-se ao aspecto substancial do tributo, mas não em relação à aplicação de meios mais eficientes de fiscalização. Nesta hipótese, a lei que deverá ser aplicada é a vigente do momento do lançamento ou de sua revisão até antes da ocorrência da decadência, mesmo que posterior ao fato gerador, embora que, no 21 que respeita a parte material, seja observada a legislação do momento da ocorrência do fato gerador ou do momento em que este é considerado ocorrido. A Constituição Federal, de 1988, não assegura que o sigilo bancário só poderia ser transferido para a Administração tributária com a intermediação do Poder Judiciário, deixando o estabelecimento dessa política para o legislador infraconstitucional. E, certamente, o contribuinte, de há muito tempo, já foi orientado no sentido de que a lei, que disciplina os aspectos formais ou simplesmente procedimentais, é a vigente na data do lançamento. A fiscalização através da transferência direta do sigilo bancário para a Administração tributária não representa uma inovação dos aspectos substanciais do tributo: a Lei Complementar 105/01 e a Lei 10.174/01 Neste aspecto, cabe repetir que, quanto ao estabelecimento da hipótese de incidência, à identificação do sujeito passivo, à definição da base de cálculo, à fixação da alíquota, e etc., a lei, a ser utilizada, continua sendo a vigente antes do fato gerador do tributo, inexistindo descuramento ao princípio da irretroatividade da lei em relação ao fato gerador (C.F., art. 150, III, a). 5. A RESPONSABILIDADE INFORMAÇÕES PELO NÃO REPASSE DAS As normas jurídicas dos artigos 5° e 6° da Lei Complementar n° 105, de 10/1/2.001, que autorizam a transferência direta do sigilo bancário para a Administração Tributária, independentemente da intermediação do Poder Judiciário, gozam de presunção de constitucionalidade, da mesma forma em que os preceitos regulamentares do Decreto n° 3.724, de 10/1/2.001, têm presunção de legitimidade. Portanto, a não ser que protegido por decisão judicial, quem omitir, retardar injustificadamente ou prestar falsamente à Secretaria da Receita Federal as informações bancárias legalmente requeridas, ficará sujeito às sanções criminais de que trata o art. 10, caput, da Lei 22 Complementar nº 105, de 2.001, sem prejuízo das penalidades cabíveis nos termos da legislação tributária. Reza o artigo 10 da Lei Complementar 105 que tais fatos constituem-se em crime e sujeitam os responsáveis à pena de reclusão, de um a quatro anos, e multa, aplicando-se, no que couber, o Código Penal, sem prejuízo de outras sanções cabíveis. 6. CONCLUSÃO Concluo, portanto, que é constitucionalmente admissível a transferência direta do sigilo bancário para a Administração tributária nos casos previstos nos artigos 5 o e 6o da Lei Complementar n° 105, de 10/1/2.001. As novas normas tributárias que relativizaram o sigilo bancário frente ao Fisco é pedagógica, pois, ao dar maior responsabilidade a Administração tributária e aos seus servidores, contribuem para incentiva-los a uma maior vivência do princípio da moralidade (leia-se imparcialidade). Não se pode olvidar que as atividades de fiscalização e lançamento tributário são típicas da competência da autoridade administrativa fiscal. E como já foi mencionado, com apoio da jurisprudência do Excelso Pretório, a Constituição não coloca o sigilo bancário entre as matérias resguardada pela reserva constitucional de jurisdição. O Poder Judiciário continua como controlador dos atos da Administração, se até mesmo a solicitação da transferência do sigilo ou mesmo a transferência do sigilo não corresponderem as exigências legais. Ademais, a autoridade fiscal poderá ser responsabilizada se quebrar o sigilo fiscal a respeito dos informes bancários recebidos, ou se requisitar e obter informações bancários a respeito do contribuinte com o descuramento das exigências legais.