Claudia Cristina Rodrigues Scarmagnani
As relações entre o complexo de Édipo, a repetição e a história de Adão e Eva
Introdução
Não tenho como objetivo pensar na questão religiosa envolvida na história de
Adão e Eva, mesmo porque a religião, a meu ver, encontra-se no âmbito da fé: ou se crê,
ou não se crê. O que pretendo, portanto, é pensar tal história como uma metáfora sobre a
repetição que todos nós seres humanos fazemos: a vivência do Complexo de Édipo.
Pensando nos aspectos simbólicos e metafóricos da história a muito contada,
comparando com processo pelo qual passamos na infância, me deterei a alguns
conceitos da visão lacaniana do Complexo de Édipo e em alguns aspectos presentes nos
escritos de Freud e em sua teoria metapsicologia.
Conceitos Importantes
Alguns aspectos expostos por Freud a respeito da fixação, da repetição e sobre
o surgimento das neuroses, nos ajudará a percorrer pelos caminhos que desejo expor.
Luiz Tenório Oliveira Lima, no Livro “FREUD” da coleção “FOLHA
EXPLICA” descreve sobre o desfecho do Édipo dizendo que por mais independentes e
realizados que possamos nos tornar quando adultos estaremos sempre sujeitos a
repetição de padrões de condutas que são inconscientes e que herdamos das situações
traumáticas pelas quais passamos em nossa infância (pág. 42)
Nas obras de Freud encontramos tais aspectos, principalmente nas falas sobre
as neuroses, sua formação e consequentemente dos sintomas neuróticos:
“os histéricos sofrem de reminiscências (...) os histéricos e neuróticos: não
só recordam acontecimentos dolorosos que se deram há tempo como ainda
se prendem a eles* emocionalmente”. (Volume XI – 1910).
*Todos os negritos em citações são marcações minhas
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Ou seja, os sintomas são os restos dos conflitos ocorridos na tenra infância, o
resultado da luta entre repressão e reprimido.
Mais para frente, (Volume XI – 1910), Freud diz:
“Vi confirmado, assim, que as recordações esquecidas não se haviam
perdido. Jaziam em poder do doente e prontas a ressurgir em associação*
com os fatos ainda sabidos”
Ou seja, nesse trecho Freud diz a respeito dos conteúdos reprimidos que ficam
“guardados” no inconsciente, mas que diversas coisas vividas pelo sujeito podem
associar-se simbolicamente a essas lembranças: palavras, objetos, pessoas etc. tudo pode
se ligar a uma situação traumática.
Sobre a compulsão a repetição, Freud a cita em diversos textos. O mesmo
entende que se trata de uma força que está acima do principio do prazer, na qual o
reprimido busca a satisfação completa, presente na experiência primária de satisfação,
mas que muitas vezes essa causa mais desprazer do que prazer, por isso encontra-se no
âmbito do orgânico e está presente antes do principio do prazer. Sendo esse um impulso
inerente, que busca a restauração de um estado anterior das coisas, assim como há na
regeneração de um tecido ou órgão do corpo danificado:
“inerente à própria natureza dos instintos — uma compulsão poderosa o
bastante para prevalecer sobre o princípio de prazer” (FREUD, Volume
XVII)
“Podemos supor que, desde o momento em que uma situação, tendo sido
uma vez alcançada, é desfeita, surge um instinto para criá-la novamente”
(FREUD, Volume XXII)
Na psicanálise há um consenso em dizer que a situação traumática e a
constituição do sujeito neurótico estão ligadas ao Complexo de Édipo, ou surgem
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juntamente a este. Para Lacan, o ser só torna-se sujeito (o sujeito do desejo, o sujeito do
inconsciente) após o desenvolvimento libidinal e o Édipo.
Ainda para Lacan ao nascer o bebê é um ser cem por cento biológico, ou seja,
ainda não pode ser entendido como sujeito, não experimenta o bem e o mal, apenas as
satisfações orgânicas que darão início a sexualidade:
“Em exata analogia com a fome empregamos a libido como nome da força
(neste caso, a força do instinto sexual, assim como, no caso da fome, a força
do instinto de nutrição) pela qual o instinto se manifesta(...)numa criança da
tenra idade, os primeiros impulsos da sexualidade tem seu aparecimento
ligado a outra funções vitais*. Seu interesse, como sabem, volta-se para a
ingestão de alimentos(...) constatamos todavia, como o bebê repetirá o
habito de tomar alimento sem exigir mais comida.” (Conferência XX).
Havendo nesse sentido uma nova possibilidade que sai da justificativa
orgânica para a repetição, ou seja, se pensarmos a questão da repetição do complexo de
Édipo pela espécie humana através da lupa lacaniana, podemos pensar que a mãe
transfere inconscientemente para o seu bebê (assim como o libidiniza) a necessidade da
efetivação do Complexo de Édipo.
Para Freud e para Lacan, portanto, é um instinto biológico juntamente com a
presença da mãe ou cuidador (outro Primordial), que oferece alimento, que aos poucos
vai tornando este ser libidinizado ou sexualizado.
Lacan foca ainda mais a atenção para o provedor, ou cuidador (que
geralmente é a mãe, é o Outro Primordial), sendo a função desse introduzir a criança no
mundo da cultura e portanto da linguagem. Este Outro cuidador, da significado aos
incômodos presentes no bebê e também apazigua os desconfortos internos do bebê. Essa
experiência de apaziguamento é sentida como satisfação.
O Outro Primordial, portanto, zela pelo bem estar do bebê e com isso dá à ele
muito mais que alimento, mas sim o libidiniza e lhe oferece a possibilidade da abstração.
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O infans passa a ser o objeto de desejo do seu cuidador que lhe atribui grande
parte de sua energia libidinal. Ao perceber isso o bebê passa a provocar o gozo nesse
outro cuidador.
Lacan, no seminário V descreve:
“a primeira relação de realidade desenha-se entre a mãe e o filho* e é aí
que a criança experimenta as primeiras realidades de seu contato com o
meio vivo. É para desenhar objetivamente essa situação que fazemos o pai
entrar no triângulo(...)” (2001).
Esse autor nos explica que a mãe vai apresentando aos poucos a realidade para
seu bebê, mas essa só é experiênciada de fato com a presença de um terceiro na relação:
O pai. Dessa forma a criança percebe que ela não é aquilo que completa sua mãe, não é
o único objeto possível de seu desejo e gozo. O pai desmorona o mundo que aquele bebê
dantes conhecia: ele o castra, e com a castração surge à falta e a imposição da lei: O
Nome do Pai. A falta por sua vez instaura uma busca incessante pela satisfação: abre
uma ferida que faz com que o sujeito esteja sempre engajado a curar. Instaura o desejo e
cria o Sujeito dividido entre consciente e inconsciente.
O pai, não priva apenas o bebê da presença da mãe, ele também priva a mãe
de dedicar-se totalmente a seu bebê: ele castra, pois retira de ambas as partes seus
objetos de desejo (o falo). Nesse processo estão presentes o tempo todo o inconsciente
da mãe e do pai, que vão se relacionando com o inconsciente do bebê, sendo que alguns
aspectos são introjetados por esse bebê e farão também parte do inconsciente dele.
Lacan diz:
“Porque o sujeito é tão passivo quanto ativo nisso, pela simples razão de que
não é ele que manipula as cordinhas do simbólico. A frase foi começada
antes dele, foi começada por seus pais” (2001).
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Podemos pensar conforme o que foi dito antes que os elementos que fizeram
parte do processo de Édipo dos pais se associam com o processo do filho e tornam-se de
alguma forma presentes dentro do triângulo e tais são captados pelo bebê que esta se
transformando em sujeito: é a repetição de algo que é transmitido de pais para filhos:
“o id e o superego possuem algo em comum: ambos representam a influência do
passado” (Freud-1940 [1938])
E o superego e o id se dividem. Se separam do Ego através daquilo que
herdaram da relação com o outro.
E desde quando essa repetição está presente em nosso inconsciente sendo
transmitida de geração para geração?
Talvez desde os primórdios da humanidade, talvez seja ela que tenha fundado
o humano que conhecemos hoje, não sabemos, mas a muito ela já é no mínimo captada
por nosso inconsciente, sendo transmitida de geração em geração através de um
processo inconsciente.
Adão e Eva
Nesse momento o leitor deve estar se perguntando a respeito do titulo desse
artigo. Todos os conceitos citados até o momento nos ajudarão a entender como a
historia contada na Bíblia pode ser vista através do olhar da Psicanálise.
Na Bíblia logo nos primeiros versículos do livro Gênesis vemos o nascimento
da linguagem e portanto do simbólico que colocam o homem em um lugar diferente dos
animais:
“Viu Deus que a luz era boa e fez separação entre luz e trevas. E chamou
Deus* à luz dia e as trevas, noite.” (Gênesis 1:4-5)
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Deus pode ser entendido como o Outro Primordial, é o meio (a cultura, o
diferencial que torna o homem, homem, diferente dos animais), onipotente e
onipresente: tudo é ele e ele é tudo.
Nesse próximo trecho percebemos que um Outro Primordial dá ao ser a
capacidade de simbolizar. Inicialmente ele (o Outro Primordial) é quem dá nome as
coisas, depois o próprio ser ganha tal capacidade:
“assim o homem deu nome aos animais domésticos, as aves do céu e a todos
os animais do campo” (Gênesis 2:20).
Mais a frente vemos outro aspecto passível de interpretação segundo as teorias
metapsicológicas da psicanálise:
“então disse Deus: Façamos o homem a nossa imagem, conforme a nossa
semelhança; domine ele sobre os peixes do mar, sobre as aves dos céus,
sobre os animais domésticos, sobre toda a terra, e sobre todos os répteis que
se arrastam sobre a terra.”(Gênesis 1:26)
Ou seja, tornamo-nos aquilo que é o Outro Primordial, o que nos possibilita a
possuir o poder de ser superior, de ser o falo.
No trecho:
“então a costela que o Senhor Deus tomou do homem, formou a mulher, e a
trouxe ao homem.”(Gênesis 2:22).
Notamos que o homem e a mulher são um só, assim como na relação
simbiótica entre a mãe e seu bebê, na qual, inicialmente o bebê não sabe que existe uma
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mãe, um outro, ela é simplesmente sua costela, ou seja, uma parte de si mesmo que o
satisfaz.
Nesse momento aparece um terceiro, a serpente:
“Ora, a serpente era o mais astuto de todos os animais do campo, que o
Senhor Deus tinha feito. Esta disse a mulher: É assim que Deus disse: Não
comereis de toda árvore do jardim?
Respondeu a mulher a serpente: Dos frutos das árvores do jardim podemos
comer,Mas do fruto da árvore que está no meio do jardim, disse Deus: Não
comereis dele, nem nele tocareis, para que não morrais.
Então a serpente disse a mulher: certamente não morrais. Porque Deus sabe
que no dia em que comer desse fruto; os vossos olhos se abrirão, e sereis
como Deus, conhecendo o bem e o mal.
Vendo a mulher que aquela árvore era boa para comer, e agradável aos
olhos, e a árvore desejável para dar entendimento, tomou do seu fruto, e
comeu, e deu também a seu marido que estava com ela e ele comeu.
Então foram abertos os olhos de ambos (...)” (GÊNESIS 3:1-7).
Ao abrir os olhos e enxergar o mundo real, Eva afasta-se daquele que era seu
único objeto de desejo, ela tira sua atenção de Adão e promove com isso a possibilidade
desse perceber a ilusão que era sentir-se tudo que Eva precisava, ou seja, seu Único
objeto de desejo, metaforicamente, ela dá a Adão o mesmo fruto do qual provou. Os dois
são castrados da relação simbiótica que possuíam através da presença de um terceiro,
que inicialmente o resguardava, os protegia:
“Então disse Deus: O homem agora se tornou como um de nós, conhecendo
o bem e o mal.”(Gênesis 3:22).
Os dois, mãe e bebê, são expulsos do paraíso, do lugar no qual um era o objeto de
desejo do outro e isso lhes bastava, são castrados e expulsos do paraíso (da
possibilidade de total satisfação): surge a vivência de uma realidade dividida, e porque
não, contraditória: bem e mal, consciente e inconsciente. O bebê torna-se, ou tem a
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possibilidade de tornar-se, igual aquele que o geriu: cindido e faltante, terá que
encontrar em outros objetos sua satisfação, viverá para buscar aquele período perdido
no qual vivia no paraíso, no qual possuía a salvação eterna: a satisfação perdida. O que
corresponde a busca neurótica pela completude:
“Portanto, deixará o homem a seu pai e sua mãe e unir-se-á a sua mulher e
serão os dois uma só carne.”( Gênesis 2:24)
REFERENCIAS
BARBIERI, A.C.L. “Lacan e principais conceitos teóricos”
JULIEN, P. “Abandonarás teu pai e tua mãe”- Rio de Janeiro: Companhia de Freud,
2000
FREUD, S. “Esboço de Psicanálise”, VOLUME XXIII, 1940 [1938], Obras Completas
- Edição Eletrônica
FREUD, S. “Romances Familiares”, 1906-1908, Obras Completas - Edição Eletrônica
FREUD, S. “Cinco Lições de Psicanálise”, VOLUME XI, 1910 [1909], Obras
Completas - Edição Eletrônica
FREUD, S. “A Vida Sexual dos Seres Humanos”, Conferência XX in Conferências
introdutórias sobre psicanálise (Parte III), VOLUME XVI, (1916-1917), Obras
Completas- Edição Eletrônica
FREUD, S. “O ESTRANHO”, Volume XVII, ano 1917 – 1919, Obras Completas Edição Eletrônica - Edição Eletrônica
FREUD, S. “ALÉM DO PRINCÍPIO DE PRAZER” Volume XVIII, ano 1920, Obras
Completas - Edição Eletrônica - Edição Eletrônica
FREUD,
S.
“OBSERVAÇÕES
SOBRE
A
TEORIA
E
PRÁTICA
DA
INTERPRETAÇÃO DE SONHOS” Volume XIX, ano 1923 [1922], Obras Completas Edição Eletrônica - Edição Eletrônica
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FREUD, S. “CONFERÊNCIA XXXII - ANSIEDADE E VIDA INSTINTUAL”
Volume XXII, ano 1932 – 1935, Obras Completas - Edição Eletrônica - Edição
Eletrônica
LACAN, J. – Os três tempos do Édipo, in O Seminário, livro V – As Formações do
Inconsciente, Jorge Zahar, Riod e de Janeiro, 2001.
LIMA, L.T.O., “Folha Explica: Freud”, Publifolha, 2001
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