da palavra 217
218
da palavra
Foto: Elza Lima
VI. Ensaios em homenagem a Benedito Nunes
da palavra 219
220
da palavra
João Guimarães Rosa:
um mestre que ensina
a dialogar com o povo
Willi Bolle1
Maira Fanton Dalalio2
A leitura de Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa,
... serviu para despertar nele[s] as mais recônditas
potencialidades de sua linguagem.
Benedito Nunes
Ao lado: Guimarães Rosa,
reprodução
1
Professor de Literatura na
Universidade de São Paulo
(USP).
2
Mestranda de Letras (USP).
Relatamos aqui a experiência de um mini-curso de três dias, ministrado
sob o título “JGR – um mestre que ensina a dialogar com o povo”, em agosto de
2004 na Pontifícia Universidade Católica de Belo Horizonte, no âmbito do III
Seminário Internacional sobre Guimarães Rosa. O curso foi planejado com base
nos experimentos do grupo de estudos grandesertão.br, que se constituiu na
Universidade de São Paulo em dezembro de 2003, a partir de um estudo do
romance Grande Sertão: Veredas, realizado por Willi Bolle no livro grandesertão.br
– O romance de formação do Brasil, cujo manuscrito foi terminado em 2003 e que
foi publicado em 2004. Trata-se nesse estudo de revelar o retrato do Brasil
contido na obra-prima de Guimarães Rosa. A chave da interpretação é a análise
da situação narrativa. Estamos diante de um narrador sertanejo que fala o tempo
todo, enquanto seu interlocutor, um doutor da cidade, apenas escuta. Por meio
desse dispositivo poético, o romancista nos incentiva a pesquisar uma questão
cultural e política: como se conversa ou não se conversa na sociedade brasileira.
Observa-se uma ausência de diálogo entre os donos da norma culta e os
socialmente excluídos. O que rege as relações de fala, que expressam relações
de poder, é uma função de linguagem que podemos chamar de diabólica, sendo
a figura do diábolos – aquele que se interpõe entre as pessoas e as divide –
onipresente em Grande Sertão: Veredas. Quanto à história narrada, esse romance
do cânone universal pode ser lido como a versão brasileira da “história mundial
da palavra 221
do sofrimento”, para usar a expressão de Walter Benjamin. Ao representar um
sistema de poder estreitamente vinculado ao crime e que funciona tanto no
sertão quanto nas cidades, Guimarães Rosa traçou de modo exato e visionário
um retrato das tendências de criminalização na sociedade brasileira. Através do
que chamou de “sistema jagunço”, ele condensou numa expressão sintética a
violência, a miséria, a iniquidade social e as forças que bloqueiam a emancipação
e o processo democrático.
O escritor, no entanto, elaborou também um dispositivo de emancipação que
vem se somar ao que Antonio Candido (1995) chama “O direito à literatura”. A
utopia artística e política de Guimarães Rosa é a invenção de uma nova linguagem,
de acordo com sua convicção de que “O mundo somente pode ser renovado através
da renovação da linguagem” (Rosa, in: Lorenz, 1983, p. 88) Essa invenção consistiria
essencialmente na fusão da norma culta com a fala das classes periféricas e
marginalizadas, das quais o autor extraiu a grande maioria de suas estórias e de seus
protagonistas, reconhecendo-os, portanto, como sujeitos da História.
Contra a violência, o diálogo. O que orientou o nosso trabalho foi a ideia
de um diálogo, inspirado na mistura de linguagens, por parte de Guimarães Rosa,
entre a norma culta e a fala popular. O fio condutor do nosso mini-curso foi a
leitura dramática de um episódio de Grande Sertão: Veredas, que montamos e
discutimos com os participantes. O objetivo principal da apresentação e o intento
pedagógico do curso podem ser assim sintetizados: Os participantes-atores
experimentam ludicamente o papel de agentes da violência, para se transformarem em agentes
de diálogo cultural. Como viabilizar essa metamorfose? Eis o desafio pedagógico
e a questão-chave a ser discutida. De acordo com a proposta dialógica e o
componente de teatralização do curso, ele foi planejado desde o início para ser
ministrado não apenas pelo professor responsável (Willi Bolle), mas também
pelos três monitores Maira Fanton Dalalio, Henrique de Toledo Groke e Paulo
Roberto Ortiz.
Antecedentes: nascimento da proposta, primeira apresentação
pública e planejamento do mini-curso
A proposta de realizar a leitura dramática de um episódio de Grande Sertão:
Veredas foi feita por Willi Bolle na festa de fim-de-ano realizada pelos seus alunos
do curso de Introdução à Literatura Alemã I e II, em dezembro de 2003. Ao longo
daquele ano, essa turma tinha se destacado pela apresentação de seminários
criativos, com elementos performáticos e teatrais. Com base no romance de
Guimarães Rosa, Willi Bolle escreveu um texto para ser encenado, coordenado
por um trio de “atores-diretores”, no qual ele representou o papel de Riobaldo, e
Maira Fanton e Fernando Siedschlag se encarregaram respectivamente dos papéis
de Hermógenes e seô Habão. Foi, então, realizada uma leitura dramática com a
participação ativa de 16 alunos (entre eles Henrique Groke e Paulo Ortiz) nos
papéis de jagunços, performance filmada por Pedro Barros que editou com
Fernando Siedschlag um documentário a partir desse material.
Tendo recebido o convite de participar do debate sobre o tema “O sertão
de Guimarães Rosa: o ‘quem dos lugares’”, no âmbito do IV Encontro de Arte
e Cultura, em Morro da Garça, em janeiro de 2004, o grupo viajou para essa
cidade, na porta de entrada do sertão mineiro. Num ambiente de oficinas de
222
da palavra
arte, leitura de contos, exibição de filmes, debates, danças, caminhadas e subidas
à “pirâmide do sertão”, nosso grupo ensaiou e depois apresentou publicamente
a leitura do episódio. Incorporamos 15 atuantes-jagunços – além de meia-dúzia
de integrantes do “coro dos jagunços”, que faz parte do espetáculo –, convidando
habitantes da cidade e da redondeza, sendo a maioria deles “Miguilins”, os
contadores de estórias de Cordisburgo. Essa experiência bem-sucedida, num
trabalho conjunto de pesquisadores acadêmicos de Guimarães Rosa com jovens
do sertão que transmitem oralmente a obra do autor, nos animou a planejar
como próximo passo o mini-curso em Belo Horizonte.
Quanto ao título do curso, “JGR – um mestre que ensina a dialogar com o
povo”, lembramos que o uso dos conceitos de “povo” e “nação” no romance de
Guimarães Rosa foi estudado detalhadamente no livro grandesertão.br (nos capítulos
“A nação dilacerada” e “Representação do povo e invenção de linguagem”). Em
síntese, pode-se dizer que os donos do poder jogam com a incongruência entre
“povo” e “nação”, para administrar os conflitos de um Estado burguês dilacerado
entre as promessas de igualdade social e a traição desse ideal. Uma vez que o
conceito de “povo” está um tanto desgastado pelo seu frequente uso populista e
demagógico, acabamos por centrar nosso trabalho teórico e prático mais
especificamente no diálogo entre os que dominam a norma culta e os que usam a
fala popular. Imaginamos aprender a redimensionar essa questão com o autor de
Grande Sertão: Veredas, na medida em que ele reinventa o idioma brasileiro pela
fusão de elementos linguísticos e culturais diferentes, visando superar a diglossia
e fomentar o diálogo entre as classes sociais – contra o pano de fundo de um
Brasil marcado por antagonismos sociais, violência e crime.
Metodologicamente falando, os integrantes do grupo grandesertão.br,
juntamente com cinco ou seis Miguilins, transmitiriam a experiência anterior do
Morro da Garça aos participantes do mini-curso, procurando aprofundar e
aperfeiçoar a proposta pedagógica. Além do trabalho cênico, nossos recursos
foram os da hermenêutica literária, histórica e sociológica – sendo a
hermenêutica, segundo Friedrich Schleiermacher, “a arte de compreender textos
e pessoas”. O curso foi estruturado em três módulos inter-relacionados.
1º dia: Mergulho no romance através da leitura dramática
Com 45 inscritos, na maioria estudantes e professores/professoras de
Letras, de vários estados do Brasil, o curso foi realizado num auditório com
cerca de 200 lugares. Após explicar brevemente o objetivo geral, iniciamos o
trabalho de leitura dramática. O mais difícil para começar uma experiência desse
tipo é vencer a timidez e a resistência natural das pessoas para entrar no palco.
O que ajudou a estimular os participantes foi que esse exercício dirigia-se
propositadamente a atores leigos, ou seja, qualquer interessado poderia participar.
Propomos um modelo didático, a ser experimentado, adaptado e aperfeiçoado
pelos colegas professores em seus lugares de trabalho.
A fim de relatar a experiência do modo mais concreto, reproduzimos aqui
uma das fichas entregues a cada participante no momento em que entrava no
palco. A título de exemplo, vai aqui a ficha do primeiro jagunço, contendo a
instrução básica e o texto de sua fala:
da palavra 223
Agora você é um jagunço.
Quando for chamado: brinque, encontre um jeito de falar o seu texto.
Experimente dos mais diversos modos, seja criativo.
Sintonize-se com os demais e lembre-se:
você é parte de um bando.
Jõe Bexiguento:
Nasci aqui. Meu pai me deu minha sina. Vivo, jagunceio...
Quem se encarregou de coordenar os 16 atores novatos, os “recémjagunços”, foi o trio diretor, os atores de Hermógenes, Riobaldo e seô Habão.
Paralelamente, ocorreu uma iniciativa estimulante. Algumas mulheres, na maioria
professoras, assumiram o papel do coro de jagunços. Colocando-se no fundo
mais elevado do auditório, atrás do público e confrontando-se de longe com os
jagunços do palco, elas construíram uma espécie de “ponte de ambientação”
entre os ferozes bandidos do sertão e suas virtuais vítimas: os habitantes das
cidades, representados pelo público. Dessa maneira, metade da classe estava
em cena, experimentando a linguagem dos jagunços de Grande Sertão: Veredas,
não só intelectualmente, mas na voz e no corpo.
Para dar uma ideia da atmosfera mental do nosso recorte do romance,
reproduzimos aqui a fala integral do coro dos jagunços. Esse texto é uma
adaptação cênica de uma visão do narrador-protagonista Riobaldo, que teme
que os miseráveis do sertão possam invadir as cidades. Inicialmente, há uma
breve indicação de como deve agir cada integrante do coro.
E de repente ELES podiam ser montão, montoeira,
Aos milhares mís e centos milhentos,
ELES se desentocando e formando do brenhal,
ELES enchendo os caminhos todos e tomando conta das cidades.
Como é que ELES iam saber ter poder de serem bons,
Com regra e conformidade, mesmo que quisessem ser?
Nem vão achar capacidade disso.
Vão querer usufruir depressa de todas as coisas boas,
Vão UIVAR e DESATINAR.
Ah, e vão beber, seguro que vão beber
As cachaças inteirinhas da Januária.
E vão pegar as mulheres, e puxar para as ruas,
Com pouco nem vai haver mais ruas,
Nem roupinhas de meninos, nem casas.
Os moradores vão mandar tocar depressa os sinos das igrejas,
Urgência implorando de Deus o socorro,
E vai adiantar?
Onde é que eles vão achar grotas e fundões
224
da palavra
Para se esconderem – Deus nos diga?
Depois da realização da leitura dramática, o restante do tempo da aula foi
dedicado à reflexão sobre essa experiência. Uma observação unânime foi que
esse mergulho no universo do romance tirou “o medo do texto difícil”. Todo
professor que se propõe tratar Grande Sertão: Veredas em aula, não pode deixar
de levar em conta que a fama de texto difícil já impediu muita gente de lê-lo,
inclusive em cursos de Letras.
Quanto ao breve texto da nossa encenação, é preciso esclarecer que se
trata de um episódio que efetivamente existe no romance, mas que sofreu algumas
modificações. No encontro do bando de jagunços do protagonista-narrador
Riobaldo com o latifundiário seô Habão, substituímos o chefe Zé Bebelo pela
figura diabólica do Hermógenes, que sintetiza o tema da violência e atua na
nossa encenação ora como capataz de seô Habão, ora como autônomo chefe de
quadrilha.
O papel do Hermógenes consiste em chefiar o bando de jagunços e em
levá-los para seô Habão, deixando claro que eles não são nada mais que uma
mão-de-obra ao inteiro dispor do patrão. Para realçar essa condição, cada um
deles é simbolicamente marcado, quando de sua entrada em cena, pelo ferro do
“dono de gado e gente”. Na testa de cada um, Hermógenes cola um adesivo
emblemático, com um signo esotérico representando a constelação de
Capricórnio, que designa um lugar na zona tórrida, para não dizer “o inferno
feio deste mundo”. Independentemente de seô Habão, Hermógenes tem seus
planos próprios, como revela em suas falas, típicas de um empresário do crime:
Eu vou levar vocês para atacar grandes cidades, em serviço para chefes
políticos...
Vamos sair pelo mundo, tomando dinheiro dos que têm, e objetos e vantagens
de toda valia... E só vamos sossegar quando cada um já estiver farto, e já tiver
recebido umas duas ou três mulheres, moças sacudidas, p’ra o renovame de sua
cama ou rede! ...
Hermógenes é, portanto, o personagem diabólico que apela para os instintos
criminosos em cada um dos jagunços. E não só dos jagunços, uma vez que
todos os atuantes, que apenas “brincaram” de ser bandidos, confessaram ter
sentido um perverso prazer de fazer o papel de gente violenta. De fato, o que
mais chamou a nossa atenção nessa experiência do primeiro dia de curso foi
constatar que representamos o papel violento e cruel com gosto. O
reconhecimento do fascínio e da força comunicativa do Mal – além de nos pôr
em guarda contra as idealizações do ser humano – é meio caminho andado para
responder a nossa pergunta-desafio: Como passar do papel de um agente da
violência para um agente do diálogo social?
2º dia: O “entre-lugar” cultural
A presença dos Miguilins no nosso curso contribuiu para refinar a nossa
compreensão do campo social e cultural intermediário entre a cultura dos
da palavra 225
“letrados” e dos “não-letrados”, prevenindo-nos de certas idealizações e
abstrações. O depoimento de uma estudante de Letras, que recebeu sua formação
entre os Miguilins, nos deu um eloquente testemunho de como “as margens
entre as duas culturas não são fixas”. O que contribuiu desde cedo para essa
oscilação – a busca de identidade entre sua atual condição de letrada e a cultura
tradionalmente oral do ambiente sertanejo – é que a própria formação dos
contadores de estórias implica numa iniciação literária. Por isso, eles são muito
mais representantes de um “entre-lugar” cultural. A busca de fantasmas culturais
supostamente puros seria, aliás, um contra-senso numa cultura mista como a
brasileira. A dedicação dos Miguilins às atividades artísticas, com base nas
estórias de Guimarães Rosa, nos fez redescobrir a nossa tarefa básica:
desenvolver um trabalho de diálogo cultural no medium da obra do escritor.
Resolvemos aprofundar a experiência que tínhamos iniciado na véspera
no sentido de trabalhar como nosso “entre-lugar” a relação intermedial entre
literatura e teatro. Um estímulo importante foi a notícia de que uma equipe da
TV Globo faria à noite uma reportagem sobre o Seminário e, nessa ocasião,
filmaria também a nossa leitura dramática, prevista para ser apresentada em
público, naquela noite, por ocasião do lançamento do livro grandesertão.br. Com
vista a essa apresentação, o professor e os monitores passaram a tarde inteira no
auditório, arrumando com a ajuda dos técnicos os móveis, a iluminação e o
cenário e, sobretudo, realizando uma preparação intensa de coreografia,
expressão corporal, exercícios de voz e interpretação que depois foi transmitido
para os participantes.
Quando estes chegaram, a notícia da filmagem funcionou como um
poderoso catalisador. Se a aula do primeiro dia transitou de letras para a atividade
teatral, a do segundo dia foi sobretudo uma aula de teatro. Maira Fanton começou
fazendo um aquecimento corporal com os participantes-atores e Willi Bolle se
encarregou do aquecimento vocal. Ambos ajudaram os outros a se familiarizarem
com o espaço, inclusive, a perder o medo desse auditório vasto e de acústica
sofrível e a se apoderar dele com o corpo e a voz. Nessa tarefa contribuíram
decisivamente as participantes do coro. No coro foram, aliás, introduzidas
inovações: o texto foi interpretado com três variações:
Da primeira vez: “E de repente ELES podiam ser montão, montoeira”;
da segunda vez: E de repente EU podia ser montão, montoeira”;
da terceira vez: E de repente NÓS podíamos ser montão, montoeira”;
[numa dinâmica crescente, sendo que da terceira vez, os jagunços no palco
berravam “VAMOS UIVAR E DESATINAR”, e havia também alguns falantes
do coro espalhados pela plateia. Esse coro foi um dos mais criativos e intensos
que tivemos em nossas apresentações.
Um elemento relevante para os participantes se sentirem à vontade em
cena foi também o figurino, que os atores de Hermógenes, seô Habão e Riobaldo
já traziam pronto. Mas como resolver, em cima da hora, o figurino dos “rasos
jagunços”? Pedimos aos participantes, na maioria moças e mulheres, que retirassem
joias e enfeites e que aproveitassem como seu maior figurino os pés descalços.
226
da palavra
Quando a equipe de televisão chegou, a leitura dramática aconteceu com
muita força e vontade – e brutalidade. Foi impressionante ver figuras tão delicadas
expelindo crueldade. Ali poderia ser o espaço catalisador da maldade humana.
Sem querer supervalorizar a nossa apresentação, pode se dizer que foi uma
leitura dramática que ficou na memória dos participantes.
3º dia: Para terminar: uma aula de hermenêutica
A terceira e última aula foi concebida como suporte teórico e metodológico
das atividades teatrais das duas anteriores e como reflexão sobre a experiência
de mergulho cênico no romance de Guimarães Rosa. O texto do nosso roteiro
foi objeto de uma aula expositiva, numa abordagem hermenêutica. A nossa
adaptação cênica é uma constelação de falas de jagunços que condiz com a
presença do bando na fazenda de seô Habão, mas que foi reunida numa
montagem livre de nomes e falas, a partir de fragmentos espalhados pelo romance
inteiro, indo ao encontro do seu princípio de composição, a narração em forma
de rede. A pergunta se é lícito ou não mexer no texto de Guimarães Rosa para
adaptá-lo para um trabalho cênico pode ser respondida com outra pergunta: foi
lícito ou não o escritor mexer nas histórias e nas falas dos sertanejos que ele
recolheu para compor suas obras?
Um ponto fundamental para nossa análise das falas individuais foi entendêlas diante do pano de fundo da fala coletiva do coro. A maioria desses jagunços
vem “do brenhal”, ou seja, vive em condições semelhantes às dos moradores
dos povoados do Sucruiú e do Pubo, os miseráveis catrumanos, mão-de-obra
do latifundiário seô Habão. No nosso grupo de jagunços apresentam-se dois
deles, o Catrumano e o menino Guirigó:
Catrumano:
Ossenhor utúrje, a gente estamos resguardando essas estradas: o povo do
Sucruiú, que estão com a doença, que pega todos, peste de bexiga preta...
Menino Guirigó:
Tirei não, nada não... Tenho nada... Tenho nada...
As pessoas que vivem nesse meio de miséria e de doença ou se resignam
ou procuram sair dali de qualquer jeito. Um caminho frequente é a opção pelo
crime, considerado nesse contexto uma profissão respeitável como qualquer
outra:
João Concliz:
Quando se jornadeia de jagunço não se nota tanto: o estatuto de misérias
e enfermidades. Guerra diverte – o demo acha...
As necessidades e aspirações básicas dos jagunços são assim sintetizadas:
Rodrigues Peludo:
Jagunço é isso: comer, beber, apreciar mulher, brigar e fim final...
Esse desejo expresso pelo jagunço Rodrigues Peludo não é restrito à esfera
do sertão, pois os habitantes das cidades desejam algo muito semelhante. Veja-
da palavra 227
se esta passagem-chave da peça de Bertolt Brecht, Ascensão e queda da cidade
Mahagonny (1929): “comer, amar, lutar, beber” – embora se trate aqui de uma
cidade da zona de garimpo, um lugar de transição. O desejo geral dos homens
sertanejos é assim verbalizado pelo coro dos jagunços: “Vamos querer usufruir
depressa de todas as coisas boas.” Haveria algum mal nisso? Não é para isso
que somos adestrados diariamente pela sociedade de consumo, não é esse o
comportamento que os donos do poder esperam da massa dos consumidores?
Onde começa, então, a passagem da civilização para a violência? No “uivar
e desatinar”? Um passo importante do conhecimento do ser humano foi dado
no momento em que Nietzsche aboliu a distinção secular e preconceituosa entre
o “selvagem” das brenhas e o “homem urbano”, descobrindo que o
comportamento de “selvageria” pode repentinamente surgir em qualquer um
dos dois. Guimarães Rosa chegou ao mesmo diagnóstico ao declarar que “sertão:
é dentro da gente”. Portanto, as falas do Valtêi, que “gosta de matar”, ou do
Sidurino, que “carece de um tiroteio”, ou do Firmiano, que quer “esfolar e castrar
um soldado”, ou do Riobaldo, que deseja “matar, matar assassinado”, não são
restritas, de forma alguma, ao ambiente de bandidos sertanejos.
Quanto ao fazendeiro seô Habão, capitão da Guarda Nacional, vivendo
“com a ideia na lavoura”, vejamos como ele faz o balanço de seus negócios,
depois da doença que inutilizou e em parte ceifou a sua mão-de-obra:
Seô Habão:
A bexiga do Sucruiú já terminou. Morreram só 18 pessoas...
Ele precisa de gente “para capinar e roçar, e colher”, se não, a economia
pára. Nesse momento, ele se dá conta de que, na sua frente, está exatamente
esse número de pessoas de que precisa, perfeitamente aptas a realizar o trabalho.
Então, ele declara, com a maior naturalidade:
Vou botar vocês para o corte da cana e fazeção de rapadura.
A rapadura vou vender para vocês. Depois vocês pagam com trabalhos
redobrados...
Pouco ganharíamos em termos de conhecimento das estruturas nas quais
estamos imersos, se analisássemos essa fala de seô Habão apenas pelo prisma
da denúncia. A atitude de considerar o outro uma mercadoria, peça para ser
usada, está tão assimilada pela nossa sociedade, que qualquer um de nós poderia
assumir o papel de seô Habão para defender o seu empreendimento. E o que
dizer de Riobaldo, que se revolta diante da perspectiva de ser escravizado? Seria
ele um herói a ser imitado? Os rasos jagunços, com os quais ele não quer ser
confundido, por ser filho de coronel, o consideram um traidor. Afinal, ele se
revolta para fazer o quê? Abolir o sistema ou reproduzi-lo, nos mesmos moldes
que seô Habão, ou talvez pior?
São perguntas assim que nos coloca o texto de Guimarães Rosa, perguntas
que queremos discutir através da nossa leitura dramática, tanto com os
participantes como com o público. Chegamos a formular como “super-objetivo”
da nossa peça de aprendizagem o desafio de descobrir como poderíamos nos
transformar de agentes da violência em agentes do diálogo social. De maneira
228
da palavra
diferente das pedagogias idealistas que subestimam o fascínio e a força que o
Mal exerce sobre as pessoas, resolvemos encarar de forma lúdica o Mal,
exatamente para conhecê-lo – afinal, nosso romancista trabalha com o
pressuposto da “ruindade nativa do homem”. Como um dos antídotos contra o
Mal, dispomos da atividade lúdica. O protagonista-narrador de Grande Sertão:
Veredas nos ensina que o discurso da violência é algo construído e que podemos,
portanto, também desconstruí-lo.
Do meio para o fim da aula, os participantes se dividiram em três grupos
para discutir como nós, estudantes e professores de letras, poderíamos prosseguir
no caminho proposto por Guimarães Rosa em sua obra: realizar o trabalho
dialético de extrair, a partir de uma constelação de crime e violência, a perspectiva
de um diálogo social. Nessa discussão, o professores e os monitores fizeram
questão de apenas ouvir o que diziam os participantes, assim como o letrado da
cidade que ouve a fala de Riobaldo.
Este breve resumo só pode reproduzir muito imperfeitamente a riqueza,
os detalhes e a vivacidade das exposições dos três grupos, que chamamos aqui
de A, B e C. O grupo B se centrou na questão da dramatização, que diminui a
distância entre as esferas sociais e nos põe em guarda para não usar de modo
autoritário as obras canônicas e “temidas”, como Grande Sertão: Veredas. O grupo
C ressaltou a importância da humildade como forma de aprendizagem. Já o
grupo A, desconfiando de tamanha “humildade”, detectou ali também mais um
mascaramento da violência.
Montagens em São Paulo e em Belém e perspectivas futuras
O mini-curso ministrado em Belo Horizonte consolidou o nosso trabalho
e nos incentivou para atividades futuras. Em setembro de 2004, por ocasião do
lançamento do livro grandesertão.br na capital paulista, realizamos uma nova leitura
dramática pública, desta vez no Instituto Goethe de São Paulo. Os atores eram,
sobretudo, alunos da USP, mas houve também pessoas de fora. Nessa ocasião,
além de agilizar o ritmo da entrada em cena, aperfeiçoamos também a
coreografia, que foi assim esquematizada:
J. Cazuzo Zé Bebelo.... HERMÓGENES
Alaripe
Juvenato João
Bugre
HABÃO
J. Concliz
Sidurino
R. Peludo
Catrumano
Adalgizo JGR Guirigó Simião Valtêi
RIOBALDO Bexiguento
Firmiano
Cabe sinalizar ainda que, no final de setembro de 2004, houve uma leitura
dramática do nosso texto em Belém, na VIII Feira Panamazônica do Livro,
realizada por alunos da Escola de Teatro da UFPA, sob a direção dos professores
Lúcia Uchoa e Walter Bandeira. A realização cênica foi de uma beleza selvagem.
Depois dessas experiências, o grupo trabalhou com oficinas e realizações
de leitura dramática sob o título “Atores da violência – atores do diálogo”, em
diversos lugares do Brasil e da Europa. Modificações e transformações ocorreram
da palavra 229
durante o percurso. Buscamos aperfeiçoar, teórica e esteticamente, a nossa
proposta principal: elaborar um modelo de oficina e leitura dramática que possa
ser colocado à disposição de grupos interessados.
Atualmente buscamos repensar e refinar os nossos principais conceitos
operacionais, através de estudos de tópicos como romance de formação, teatro
de aprendizagem, método Paulo Freire, conceito de violência, análise do
discurso, retórica, popularização do saber, juntamente com a criação de um
documentário em vídeo com os registros das experiências e a aprendizagem do
grupo.3
Referências bibliográficas
BOLLE, Willi. grandesertão.br – o romance de formação do Brasil. São Paulo: Duas
Cidades/Editora 34, 2004.
CANDIDO, Antonio. “O direito à literatura”. In: Vários escritos. 3a ed. revista e
ampliada. São Paulo: Duas Cidades, 1995.
LORENZ, Günter W. “Diálogo com Guimarães Rosa”. Trad. De Rosemará
Costhek Abílio. In: Coutinho, Eduardo (org.). Guimarães Rosa. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, p. 62-97.
ROSA, João Guimarães. Grande Sertão: Veredas. 5a ed. Rio de Janeiro: José
Olympio, 1965 (1a ed.: 1956).
SCHLEIERMACHER, Friedrich Daniel Ernst. Hermeneutik. Org. por Heinz
Kimmerle. 2a ed. Heidelberg: Carl Winter, 1974.
Atores da violência – atores do diálogo
Adaptação cênica de um episódio do romance Grande Sertão: Veredas de João
Guimarães Rosa (grupo grandesertão.br. Texto e direção: Willi Bolle)
[Um bando de jagunços, comandado pela figura diabólica do Hermógenes, e tendo em seu
meio o protagonista-narrador Riobaldo, chega à fazenda do latifundiário Seô Habão.]
Jõe Bexiguento: Nasci aqui. Meu pai me deu minha sina. Vivo, jagunceio…
Simião: Este é Seô Habão... É dono de gado e gente.
Juvenato: Não gosto de Seô Habão... Ele é bruto comercial...
Senhor Habão – 1: Vou precisar de vocês para capinar e roçar, e colher...
Agradecemos a participação
de Henrique de Toledo
Groke, Paulo Roberto Ortiz,
Fernando Siedschlag e Pedro
Barros, estudantes de Letras da
Universidade de São Paulo e
integrantes
do
grupo
grandesertão.br.
3
Valtêi: Eu gosto de matar... O que babejo vendo, é sangrarem galinha ou
esfaquearem porco...
Sidurino: A gente carecia agora era de um vero tiroteio para exercício de não se
minguar. A alguma vila sertaneja dessas, e se pandegar, depois, vadiando...
230
da palavra
CORO dos JAGUNÇOS – 1
E de repente ELES podiam ser montão, montoeira,
Aos milhares mís e centos milhentos,
eles se desentocando e formando do brenhal,
eles enchendo os caminhos todos e tomando conta das cidades.
Como é que eles iam saber ter poder de serem bons,
Com regra e conformidade, mesmo que quisessem ser?
Nem vão achar capacidade disso.
Vão querer usufruir depressa de todas as coisas boas,
Vão UIVAR e DESATINAR.
Alaripe: Eu tenho receio que me achem de coração mole; tenho pena de toda
criatura de Jesus…
Hermógenes – 1: Eu vou levar vocês para atacar grandes cidades, a serviço
para chefes políticos...
João Bugre: O Hermógenes é positivo pactário. Ele tira seu prazer do medo
dos outros, do sofrimento dos outros...
Rodrigues Peludo: Jagunço é isso: comer, beber, apreciar mulher, brigar e fim
final...
Firmiano, apelidado Piolho-de-Cobra: Me dá saudade de pegar um soldado,
e tal, pra uma boa esfola, com faca cega... mas, primeiro, castrar...
Riobaldo – 1: Matar aquele homem, matar assassinado... E agarrar aquela moça
nos meus braços, uma quanta-coisa primorosa que se esperneia, e vocês, meus
companheiros, todos de pé, fechando praia de mar...
Matar aquele homem? ... E agarrar aquela moça? ... e vocês, meus companheiros?
...
CORO dos JAGUNÇOS – 2
E de repente EU podia ser montão, montoeira,
Aos milhares mís e centos milhentos,
eu me desentocando e formando do brenhal,
eu enchendo os caminhos todos e tomando conta das cidades.
Vou querer usufruir depressa de todas as coisas boas,
Vou UIVAR e DESATINAR.
Joé Cazuzo: Eu vi a Virgem! Eu vi a Virgem Nossa no resplendor do céu, com
seus filhos de Anjos!
da palavra 231
Catrumano: Ossenhor utúrje, a gente estamos resguardando essas estradas: o
povo do Sucruiú, que estão com a doença, que pega todos, peste de bexiga
preta...
João Concliz: Quando se jornadeia de jagunço não se nota tanto: o estatuto de
misérias e enfermidades. Guerra diverte – o demo acha...
Menino Guirigó: Tirei não, nada não... Tenho nada... Tenho nada...
Zé Bebelo: O que imponho é se educar e socorrer as infâncias desse sertão...
Guimarães Rosa: País de pessoas, de carne e sangue, de mil-e-tantas misérias...
Hermógenes – 2: Vamos sair pelo mundo, tomando dinheiro dos que têm, e
objetos e vantagens de toda valia... E só vamos sossegar quando cada um já
estiver farto, e já tiver recebido umas duas ou três mulheres, moças sacudidas,
p’ra o renovame de sua cama ou rede! ...
CORO dos JAGUNÇOS – 3
E de repente NÓS podíamos ser montão, montoeira,
nós enchendo os caminhos todos e tomando conta das cidades.
Vamos querer usufruir depressa de todas as coisas boas,
Vamos UIVAR e DESATINAR. [bis]
Ah, e vamos beber, seguro que vamos beber
As cachaças inteirinhas da Januária.
E vamos pegar as mulheres, e puxar para as ruas,
Com pouco nem vai haver mais ruas,
Nem roupinhas de meninos, nem casas.
Os moradores vão mandar tocar depressa os sinos das igrejas,
Urgência implorando de Deus o socorro,
E vai adiantar?
Onde é que eles vão achar grotas e fundões
Para se esconderem – Deus nos diga.
Senhor Habão – 2: A bexiga do Sucruiú já terminou. Morreram só 18 pessoas...
Vou botar vocês para o corte da cana e fazeção de rapadura.
A rapadura vou vender para vocês. Depois vocês pagam com trabalhos
redobrados...
232
da palavra
Riobaldo – 2: Eu eu aqui, no entremeio deles... Afinal, o que é que eu sou?
Um raso jagunço atirador, cachorrando por esse sertão...
Adalgizo: Seô Habão está cobiçando a gente para escravos! ...
Riobaldo – 3: Duvidar, Seô Habão, o senhor conhece meu pai,
fazendeiro Senhor Coronel Selorico Mendes, do São Gregório?!
Abaixo:
Willie Bolle e
Benedito Nunes
Foto: acervo Maria Sylvia Nunes
Senhor Habão – 3: Dou notícia... Dou notícia...
Riobaldo – 4: [apontando para os jagunços, que olham para ele como para um traidor]
O silêncio deles me entende.
da palavra 233
234
da palavra
O Encoberto que vem no Desejo
Alcir Pécora*
O Filho do homem é Cristo;
o quase Filho do homem é o quase Cristo, ou Vice-Cristo.
(A.V., Sermão de ação de graças pelo nascimento
do príncipe D.João)
Padre Vieira imaginou representar o desejo por meio de uma figura
geométrica. Percebeu que só o círculo conviria:
A eternidade e o desejo são duas coisas tão parecidas, que ambas se retratam com a mesma
figura. Os egípcios, nos seus hieroglíficos, e antes deles os caldeus, para representar a eternidade
pintaram um O, porque a figura circular não tem princípio nem fim, e isto é ser eterno.1
Professor da UNICAMP.
Autor de vários livros e organizador, entre outros de “Sermões - Padre Antonio Viera”
2 vol. Hedra. 2001.
1
Todas as citações de Vieira
são feitas na edição dos Sermões feita pela Edameris (l95759). O trecho citado aparece à
página 103 do volume VI, correspondente ao início da quinta parte do Sermão de Nossa
Senhora do O, dado como tendo sido pregado em 1640, na
Igreja de Nossa Senhora da
Ajuda, em Salvador.
2
Idem, ibidem.
3
Idem, p. 111-2.
*
Depois, pensou em adicionar som à imagem:
O desejo ainda teve melhor pintor, que é a natureza. Todos os que desejam, se o afeto rompeu
silêncio, e do coração passou à boca, o que pronunciam é Ó.2
Por fim, para aperfeiçoar a figura, imprimiu-lhe movimento:
Se acaso ou de indústria lançasses uma pedra ao mar sereno e quieto, ao primeiro
toque da água vistes alguma perturbação nela; mas tanto que essa perturbação se
sossegou, e a pedra ficou dentro no mar, no mesmo ponto se formou nele um círculo
perfeito, e logo outro círculo maior, e, após este, outro e outros, todos com a mesma
proporção sucessiva, e todos mais es-tendidos sempre, e de mais dilatada esfera.3
da palavra 235
Aí está a figura exata, mas qual pode ser o exato percurso que lhe dá
substância? É o que me proponho a investigar neste texto, que reescrevo com
base em antigos estudos cuja inspiração, em parte, devo a Benedito Nunes,
um de meus mais queridos e inesquecíveis professores. Acrescento que, no caso
específico de minhas leituras de Vieira, de quem Benedito é leitor e estudioso,
tive a honra de, mais de uma vez, ser convidado por ele para apresentá-las em
Belém. Curiosamente, por algum golpe de azar, os eventos vieirianos que
programou comigo nunca chegaram a ser efetivados. Fica, pois, este estudo
dedicado a ele, como a quem de direito participou de sua invenção.
I. O desejo de ser
Um sermão datado por Vieira como sendo de 1643, o Sermão de Todos os
Santos, caracteriza como próprio da natureza do homem, isto é, como móvel
permanente de suas ações4, o “desejar ser”. A fórmula atende a uma perspectiva
cristã, de matriz tomista, na qual um Ser singular, perfeito e infinito é causa
exclusiva de todos os demais seres –, que apenas o são, em dife-rentes níveis,
sempre limitados, por tê-lo como causa, vale dizer, por ter uma participação criada
no Ser original5. Toda criatura teria seu ser dependente da expansão6 do Ser que o
criou, devendo ser considerado como imperfeita imitação7 sua, tal como o pode
ser o efeito de sua verdadeira causa. O “desejo de ser” teria de ser interpretado,
assim, como um desejo natural de participar mais intensamente dessa causa – não
obviamente no sentido platônico do termo participação, como “fazer parte”,
“identificar-se”, mas na sua significação, delineada pela tradição cristã, de
“aproximar-se analogamente”, como “imagem e semelhança” da Causa Primeira.8
Entretanto, nesse sermão, quando Vieira expõe a questão do desejo de
ser, não está simplesmente pensando em reafirmar um paradigma tomista. Da
ma-neira como faz a citação, interessa-lhe ressaltar o confronto entre o desejo
natural e um outro tipo de desejo, desta vez efeito de operações deformantes da
natureza conduzidas pelos seres, o qual é mais diretamente nomeado “apetite”.
O desejo, neste caso, deixa de afirmar-se como ponto de fortalecimento analógico
do Ser Primeiro, para tornar-se hábito vicioso, indiferente à sua condição de
dependência substancial do Ser. Apenas aí, numa perspectiva católica, o desejo
passa a ser interpretado como pecado, isto é, como relativo a um ato desordenado,
contrário à ordem da natureza instituída por Deus9.
Quando Vieira diz:
A mais poderosa inclinação e o mais poderoso apetite do homem é desejar ser10,
o que está afirmando é que, degenerado pelo apetite, o que era da natureza
mesma dos seres passa a negá-la e, em consequência, a negar a sua própria
semelhança com o Ser. A “tentação”, cujo modelo o demônio se encarrega de
fornecer, é justamente essa forma degenerada de desejo que, em vez de orientarse para o Ser, encerra-se na negação dele:
(...)o sereis do demônio não só nos tirou o ser como Deus, senão também o ser.11
236
da palavra
4
A concepção de natureza,
aí, é a mesma que Etienne Gilson identifica como predominante entre os filósofos medievais cristãos: natureza é a
essência (causa) de uma operação que produz regularmente um fenômeno. Ver a respeito L’esprit de la philosophie médiévale (2ª ed., 4ª tiragem, Paris, Vrin, p. 83).
5
A noção de participação, de
inspiração platônica, permanece atuante entre os filósofos
cristãos, mesmo tomistas, embora profundamente alterada:
ela serve sobretudo para acentuar o elo não-casual entre o
Criador e as criaturas. O termo criada, que especifica a participação, pretende deixar claro que, do ponto de vista cristão, apenas num sentido analógico as criaturas podem chegar a assemelhar-se ao Ser de
Deus. Aqui, como ao longo
de toda essa primeira parte do
ensaio, adoto a interpretação
de Gilson a propósito dos
desdobramentos medievais de
algumas noções da filosofia
grega, tal como se mostra no
seu L’esprit de la philosophie
médiévale.
6
Na perspectiva cristã é que,
pela primeira vez, as criaturas
são concebidas como tendo
uma contingência radical: não
apenas poderiam ser de uma
forma diferente da atual, como
poderiam mesmo não ser.
Tudo o que não é Deus deve
a ele a sua existência. O capítulo do L’esprit de la philosophie médiévale dedicado à
discussão dos seres e sua contingência é especialmente importante para a compreensão
desse ponto no sentido em
que se toma aqui.
7
Neste emprego, trata-se de
mais um termo que descreve
a relação analógica entre Criador e criatura. Há analogias
entre a causa e o efeito, isto é,
toda causa produz um efeito
que lhe parece. O capítulo de
Gilson a propósito das noções
cristãs de analogia, causalidade e
finalidade é o que, na obra citada
anteriormente, trata mais diretamente desta questão.
8
Um outro texto de Gilson
importante para a compreensão do sentido ortodoxo do
conceito de participação intitula-se justamente Causalidade e
participação e encontra-se em
seu livro Introduction a la
philosopbie chrétienne (Paris,
J. Vrin, 1960). A ideia mais geral é de que “a relação do participado ao participante”
Assim, qualquer outro ser que não se defina em analogia com o Ser de Deus,
por maior que pareça, não é, porque vem a parar em não-ser.12
Para entender o risco de não-ser implícito no desejo ainda será pre-ciso
considerar que, catolicamente, o mal, o pecado, ou, se se quiser, o não-ser,
apenas pode ser definido no interior das operações13 que o homem é obrigado a
realizar enquanto ser contingente, isto é, aquelas nas quais apenas se pode
conduzir por meio das escolhas próprias. O desejo pressupõe, portanto, uma
vontade livre, imagem da liberdade divina e análoga a ela.
O ato do arbítrio humano é, nele mesmo, busca da comunhão com o Ser
que é Deus e que não pode ser buscado fora da liberdade em que existe14. Tratase, ao mesmo tempo, de uma condição da analogia com a perfeição divina e de
uma instância possível do pecado: desejo natural de ser e igualmente potência
do contingente ao não-ser.
deve ser entendida como uma
“relação ontológica da causa
ao efeito”. Cada ser particular, uma vez que é ser, participa da natureza do Ser divino,
não como “a parte participa
do todo”, mas como “o efeito participa de sua causa eficiente”.
9
Mais uma vez, apóio-me na
leitura feita por Gilson do conceito cristão de lei e moral. O
capítulo 16 do L’esprit de
philosopbie médiévale é dedicado a esse tema; mostra-se
aí que santo Tomás, apoiandose na definição aristotélica de
que um ato é moralmente
bom quando concorre para a
realização da natureza essencial daquele que o cum-priu,
considera o pecado exatamente
como um ato desordenado,
contrário à natureza, pois esta,
uma vez criada por Deus, inscreve-se no interior da lei divina.
10
Sermão de Todos os Santos in
Sermões, op. cit., p.227.
11
Idem, p. 228.
12
Idem, ibidem.
13
Retorno ao capítulo de Gilson a propósito da contingência dos seres: o movimento sobretudo é que os caracteriza
enquanto tais.
14
De acordo com a ortodoxia católica, o que se pode dizer é que, para ser capaz de
buscar a plenitude de Deus, o
homem tem de possuir liberdade de vontade: não há vontade real do bem, sem possibilidade de erro.
15
Sermão da terceira quarta-feira
da Quaresma, pregado na Capela Real de Lisboa, no ano de
1669, in Sermões, v. I, p. 240.
16
Idem, p. 242.
II. A necedade do desejo
No interior dessas operações dos seres contingentes, em que o desejo
pode decair em apetite, Vieira situa as suas fundas considerações sobre a questão.
Por exemplo, a de que o desejo, na sua formulação contingente, sempre
corresponde a alguma ausência de conhecimento, a certo nível de engano na
definição que faz de seu próprio objeto. Quase todos os seus Sermões da terceira
Quarta-feira da Quaresma, relativos ao tema dos pretendentes, cuja matriz nas
Escrituras é dada pela mãe dos Zebedeus, tratam justamente dessa necedade
essencial do desejo. Num desses sermões, dado como de 1669, Vieira diz
expressamente:
Nenhum homem há neste mundo, falando do céu abaixo, que saiba o que deseja,
nem o que pede15.
E ainda:
Tão errados são os pensa-mentos e desejos humanos, e tão certo é que no que pedimos
com maiores ânsias não sabemos o que pedimos16.
Como figuras da ignorância humana do próprio desejo, Vieira postula
haver uma sentença tão verdadeira embutida na fábula pagã de Faetonte, cujo
desejo de dirigir a majestosa carroça do pai havia de fulminar-lhe os ossos,
quanto aquela que havia na narrativa bíblica de Sansão, cuja cegueira era
inseparável do desejo que sentia por Dalila. Ambos os casos assinalam que o
desconhecimento suposto no desejo contingente pode conduzi-lo a um falso
objeto, cuja posse destrói ou afasta o bem desejado, em vez de possuí-lo.
Resulta dessa dramatização do confronto entre desejo e conhecimento o
argumento vieiriano de que, sem alguma experiência antecipada do objeto do
desejo e de seus efeitos, há sempre o risco da condução paradoxal desse desejo,
de modo que o que se alcança é a impossibilidade mesma do bem que se procura.
da palavra 237
Jogando um pouco mais com as noções aparentadas à de desejo no esboço
gramatical17 que se tenta aqui, pode-se dizer que, sem o conhecimento de seu
objeto em alguma forma de experiência antecipada do bem proporcionado por
ele, a própria noção de “amor”, tomado platonicamente como desdobramento
fecundo, natural e desinteressado do desejo na fruição da presença do bem,
seria implausível, pois o objeto a que se chega não é o mesmo que o desejo
supõe. Ainda mais, tal fruição seria implausível pelo fato de que esse falso
objeto não tem ser, e o ser é a condição irredutível do amor real18.
Nos termos de Vieira, ainda é possível dizer que o amor mais comum, no
âmbito mundano dos desejos, significa uma espécie de deformação fantástica
da imaginação, na qual o desejo, longe do conhecimento, torna-se
progressivamente irreal. No Sermão da primeira Sexta-feira da Quaresma, dado
como tendo sido pregado em Odivelas no ano de 1644, afirma o seguinte:
Isto que no mundo se chama amor é uma coisa que não há nem é. É quimera, é mentira, é
engano, é uma doença da imaginação19.
A noção de “doença da imaginação” aplicada ao amor implica na
sobreposição de um duplo engano. Primeiro, o de que, enquanto objeto
imaginário (ou ser imaginário de um objeto trocado, diferente do que se supunha)
deixa de cumprir o que o desejo promete, pois, sendo imaginário, não pode
efetuar-se como presença real; segundo, o de que, por sua falta de ser, ainda
tende a desdobrar-se em novas fontes de sofrimento, como as dos ciúmes e
desconfianças em relação ao amado. Nesse momento, um longo e novo tormento
seria acrescen-tado ao não-ser, como o da dor ao calafrio e à febre. A condição
dolorosa seria, assim, efeito real e tradução afetiva da ausência de ser que, ao
ser ignorada pelo desejo, imediatamente se contrapõe ao gozo amoroso.
Nessa perspectiva, toda forma de amor humano e, de maneira exemplar,
o amor sensual, tem, na origem, um objeto de desejo ao mesmo tempo vazio de
ser e assediado pela fantasia. As formas imaginárias daí resultantes, sem
sustentação ontológica, logo rompem nos costumeiros horrores:
Pode haver maior tormento que amar, quando menos em perpétua dúvida, amar em perpétua
suspeita... ?20.
E, mais declaradamente:
(...)o amor desta vida e deste mundo é uma morte que só tem precitos, e não tem predestinados;
é uma morte pela qual sempre se vai ao inferno e nunca ao paraíso. O paraíso do amor-se o
houvera-havia de ser amar e ser amado, e amado com certeza de nunca ser aborrecido. Mas
como não há, nem pode haver no mundo, nem este amor, nem esta certeza, senão as dúvidas, os
escrúpulos, as desconfianças, os receios e as suspeitas de se me amam ou não me amam, ou de que
já me ama menos que dantes, ou que trocam o meu amor por outro, ou de que outrem pretende
o que eu amo, em que consiste por vários modos o tormento crudelíssimo do cíúme, este ciúme
sempre duvidoso, sempre crédulo, sempre fixo na imaginação, e nunca satisfeito, este é o inferno
inevitável e sem redenção a que todos os que amam se condenam, e em que são atormentados
duramente, sem fim e sem remédio.21
238
da palavra
17
Emprego o termo em seu
sentido wittgensteiniano,
como relativo ao esforço de
estabelecimento de uma visão
sinótica de usos linguísticas
que apresentam semelhanças em
família.
18
Na sistematização gilsoniana da questão ressalta a ideia
de que o amor, entendido
como ato divino ou participação humana nele, refere-se
sempre à generosidade do Ser.
19
Sermão da primeira sexta-feira
da Quaresma, dado na editio
princeps dos Sermões como
tendo sido pregado no convento português de Odivelas,
no ano de 1644. Citação in
Ser mões (op.cit.) v. VI,
p. 173-4.
20
Idem, p. 174.
21
Idem, p. 174-5.
O tormento amoroso é, pois, efeito da distorção imaginária do desejo,
que é incapaz de conhecimento do seu objeto, e, por isso mesmo, incapaz de
orientá-lo para o ser. Nessa roda mortal, de circuito falho, o amor, que
catolicamente deve ser entendido essencialmente como “união”22, permanece
irrealizado. Para ser fecundo, o desejo deve estar fundado sobre o conhecimento
de seu objeto real, pois apenas a existência real permite a condução do desejo à
forma superior do gozo unitivo. Sem esse conhecimento, com a vontade
subjugada pela tentação néscia, apenas pode tomar formas dolorosas, cuja
natureza exaltada e falta de ser contraria necessariamente a razão. Num Sermão
do mandato, atribuído ao ano de 1645, Vieira propõe ser essa a causa da
representação do Amor como uma criança na literatura erótico-galante (depois
de propor, de início, que isso se dava apenas porque “nenhum amor dura tanto
que chegue a ser velho”23). Diz ele:
Pinta-se o amor sempre menino, porque, ainda que passe dos sete anos, como o de Jacó, nunca
chega à idade de uso de razão. Usar de razão e amar, são duas coisas que não se ajuntam. A
alma de um menino que vem a ser? Uma vontade com afetos, e um entendimento sem uso. Tal é
o amor vulgar.24
Diz ainda:
(...)tudo conquista o amor quando conquista uma alma; porém o primeiro rendido é o entendimento.
Ninguém teve a vontade febricitante, que não tivesse o entendimento frenético. O amor deixará
de variar, se for firme, mas não deixará de tresvariar, se é amor. Nunca o fogo abrasou a
vontade que o fumo não cegasse o entendimento. Nunca houve enfermidade no coração que não
houvesse fraqueza no juízo.25
De maneira mais direta, para acentuar a relação entre o irracional do amor
vulgar e a falta de conhecimento que o preside, afirma:
(...)isto, que vulgarmente se chama amor, tem mais partes de ignorância; e quantas partes tem
de ignorância, tantas lhe faltam de amor26.
O arremate é lapidar:
Quem ama porque conhece, é amante; quem ama porque ignora, é néscio. Assim como a ignorância
na ofensa diminui o delito, assim no amor diminui o merecimento. Quem ignorando ofendeu, em
rigor não é delinquente. Quem ignorando amou, em rigor não é amante.27
22
Idem, p. 174.
Sermão do mandato, pregado
na Capela Real de Lisboa em
1645, in Sermões (op.cit.), v.
III, p. 364.
24
Idem, p. 364-5.
25
Idem, p. 365.
26
Idem, ibidem.
27
Idem, ibidem.
28
Idem, p. 367.
23
Assim, aplicando várias imagens de cruezas e esquivanças galantes
contrapostas a lugares comuns platônicos, Vieira propõe que a irracionalidade
do amor que desconhece o ser de seu objeto impede a sua existência mesma:
(...) amar ignorando não é amar, é não saber.28
Bem entendida, a máxima propõe que a ignorância mais ou menos
inevitável na qual o desejo se formula, visto que existe na contingência dos
da palavra 239
seres criados, tem de ser reorientada por alguma espécie de ciência do ser, para
evitar, assim, a sua dissolução nas formas estéreis e atormentadas do apetite.
Ou seja, o desejo deve mover-se segundo um parâmetro ordenado que
proporcione a sua consumação na união amorosa que exige o ser. Na direção
contrária, a entrega à fermentação fantástica, fantasiosa, da ignorância inevitável
do desejo impede o salto para o ser. A fantasia, absolutizada, conduz o desejo a
submeter a vontade e a destruir a sua natural orientação para a livre obtenção
do bem. Por fim, isto equivaleria à própria destruição do desejo, cuja finalidade
última não é desejar, mas ser (“desejar ser”) à imagem do Ser primeiro.
Em outros termos, o perigo da representação imaginária do não-ser
significa catolicamente -a renúncia – irracional e moralmente má – à comunhão
com aquilo cujo maior bem, antes de ser qualquer coisa, antes de ter uma essência
particular, é -ser29, e que, a rigor, só é desejável porque verdadeiramente é. Quer
dizer, só o amor do que tem realidade e cuja natureza admite a existência é
amor real. O amor do que não é não pode ser senão falso amor:
(...)os homens não amam aquilo que cuidam que amam. Por quê? Ou porque o que amam não
é o que cuidam, ou porque amam o que verdadeiramente não há. Quem estima vidros, cuidando
que são diamantes, diamantes, estima, e não vidros; quem ama defeitos, cuidando que são
perfeições, perfeições ama, e não defeitos. Cuidais que amais diamantes de firmeza, e amais vidros
de fragilidade; cuidais que amais perfeições angélicas, e amais imperfeições humanas. Logo, os
homens não amam o que cuidam. Donde também se segue que amam o que verdadeiramente não
há, porque amam as coisas, não como são, senão como as imaginam, e o que se imagina e não é,
não o há no mundo.30
Ou ainda:
Os homens amam muitas coisas, que as não há no mundo. Amam as coisas como as imaginam,e
as coisas como eles a imaginam, havê-las-á na imaginação, mas no mundo não as há31.
O reconhecimento do real, horizonte que se define na efetiva existência
cristã, é condição da realidade do amor. A existência do amor decorre da realidade
de seu objeto: só o amor do que é real permite realmente amar; só a incidência
da ordem do desejo sobre o Ser que se manifesta sensivelmente no mundo pode
significar uma aproximação amorosa do bem desejado.
III. Um Mundo de Enganos
Até aqui, pelo que ficou dito, o desejo manter-se como busca do Ser que
é Deus está em relação com manter-se igualmente no horizonte real do mundo,
sem abandonar-se às fantasias irracionais, com seu cortejo de infelicidades. Mas
deve ficar claro também que, para Vieira, o Ser buscado pelo desejo não é idêntico
ao estado do mundo tal como se configura num determinado momento ou
mesmo ao longo de toda a sua história até o presente. O realismo católico de
Vieira não poderia ser traduzido por imanentismo. Para não se perder em falsas
representações do Ser, o desejo deve evitar tanto o desregramento irreal da
fan-tasia como o seu esgotamento no estado particular das coisas do mundo.
240
da palavra
29
Remeto aqui à concepção
tomista do Ser divino como
ato puro de ser (esse), anterior a
qualquer delimitação essencial. A essência divina, nessa
concepção, seria seu próprio
ser. Gilson, a propósito, diz o
seguinte: 0 ato de ser existe e atualmente em si e à parte, na pureza
metafísica absoluta daquilo que não
tem nada, nem mesmo essência, porque ele é tudo aquilo que se pudesse
querer atribuir-lhe. O capítulo
intitulado Aquele que é, da Introduction a la philosophie
chrétiene, discute particularmente essa questão.
30
Sermão do mandato, in Sermões, v. III, p. 378.
31
Idem, p. 379.
Se a fantasia não responde ao desejo de participação no Ser de Deus,
porque ignora a sua manifestação viva no real, tampouco o faz o mundo,
considerado fora de sua finalidade transcendente. Em primeiro lugar, porque
considerado num momento qualquer, o mundo representa sempre um estado
decaído, distante da comunhão com Deus, por efeito dos sucessivos enganos da
história humana; em segundo, porque o desejo se orienta pelo real para participar
da finalidade divina de sua criação. Isto é, o desejo busca em meio aos efeitos o
fim pretendido por Deus; logo, não são os estados circunstanciais do mundo,
mas o seu movimento providencial que responde ao desejo na-tural, definido
de maneira finalista, teleológica.
Se a fantasia é uma deformação do desejo à margem do real, os objetos
do mundo, sem a Providência, são uma redução do real a sua matéria, uma
interrupção do movimento desejante para o Ser. Um e outro – o imaginário fora
do mundo e o estado imediato do mundo – têm muito em comum. Trata-se
apenas de amplificar a irrelevância frenética das paixões viciosas pessoais até o
mais vasto esvaziamento mundano.
Cumprir-se o desejo, nessas condições, significa ultrapassar tanto o
imaginário vão, como o engano da matéria; tanto o irreal da fantasia, como o
infrarreal do mundo. A razão, entendida como discernimento do objeto do desejo,
é decisiva para impedir o descolamento da fantasia do real ou o enrijecimento
dele na sua matéria.
IV. A realidade sacramental
32
O termo anatomia é usado
pelo padre Vieira em relação
à sua discussão das potências
envolvidas no afeto da esperança; tal sentido pareceu-me
oportuno aqui. O sermão em
que dá destaque ao termo é o
do Santíssimo Sacra-mento, de
1669, pregado no Convento da
Esperança (ver Sermões, v.
IV).
Neste ponto, a questão do desejo torna necessária a introdução de uma
ordem do real capaz de responder a ele, de acordo com o que se chamou
anteriormente de experiência antecipada de seu objeto. Nos seus termos mais
gerais, trata-se daquela em que o Ser de Deus se manifesta sensivelmente, no
seio das coisas do mundo, portanto, ao mesmo tempo em que preserva a sua
substância além de toda precariedade material.
A definição dessa ordem do real, na qual se afirma com eficácia a busca
da participação no Ser, essência mesma do desejo, gera algumas perguntas
inevitáveis. Como Vieira pensa o real que se atualiza no mundo e,
concomitantemente, difere dele? E, se há aí, aparentemente, um traço paradoxal,
em que o Ser se manifesta no real, mas não se identifica com ele – em que o real
se refere ao mundo, mas não se esgota nele nem se reconhece fora da finalidade
inscrita nele –, qual “anatomia” da esperança32 o paradoxo revelaria?
Para Vieira, o que responde verdadeiramente ao desejo, em seu caminho
para a participação no Ser, é natureza própria dele, chamada “sacramental” ou
“encoberta”, segundo se pretendesse ressaltar o aspecto litúrgico ou o profético
que contempla. No seu âmbito, o Ser divino – que, por princípio, numa
perspectiva tomista, está além de toda determinação – quer determinar-se
essencialmente para tornar-se objeto possível do desejo humano. E determinarse, aqui, significa “ocultar” sua substância infinita e indivisível nas espécies
particulares existentes no mundo. Não concebo nada mais vieiriano que o
investimento retórico em torno desses lugares em que convivem
miste-riosamente a presença do Ser de Deus e a matéria comum do mundo.
da palavra 241
O plano sacramental da invenção de Vieira permite supor pelo menos
três instâncias distintas. Uma primeira, em que a acidentalização do Ser encontrase manifesta em todo o universo, dado que este, não sendo autônomo, mas
criado, sustentado e dirigido pelo Ser divino, guarda necessariamente em suas
múltiplas circunstâncias os “vestígios”33 daquele que o fabricou do nada. O que
há nas variações do mundo e da história, e ainda no que nelas falta, está
impregnado do Ser que é Causa final delas. Uma segunda instância sacramental
destaca o lugar privilegiado dos mistérios litúrgicos para essa presença do Ser
sob a capa das espécies do mundo-o da Eucaristia, sobretudo: “o mais alto de
todos os mistérios”, “o mais alevantado de todos os sacramentos”, “soberano
mistério”34. Uma terceira instância, enfim, está articulada à crença popular ao
tempo da Restauração portuguesa, na qual o ocultamento inevitável que sofre o
divino quando se apresenta no mundo, opera-se mediante a instituição da figura
de um eleito, de um favorito da Providência destinado a atuar decisivamente no
desfecho da história hu-mana.
Quer dizer, nessa última instância, o Ser buscado pelo desejo toma a forma
e o nome de “Encoberto”. Tal ideia do desejado que se encobre se compreende,
portanto, quando a comunhão com o Ser de Deus, que o desejo busca, aparece
mediada por um intermediário capaz de ajustar o desejo comum do homem à
finalidade cristã da história. De maneira direta: o desejo apenas descobre o
verdadeiro desejado quando o Ser assinala o que Vieira chama de “Vice-Cristo”35.
Aí estão os três passos da via sacramental do desejo, a única que assegura
a posse do desejado. Tomados em separado, referem-se a passos bem conheci-dos,
seja da ortodoxia (na formulação predominante, mas não exclusiva, do tomismo),
seja do sebastianismo da Restauração portuguesa, de que os jesuítas foram
insistentes propugnadores.36 Particular de Vieira é apenas o discurso que articula
o tema do Encoberto, sem perda da carga que recebe do imaginário nacional da
Restauração, a lugares argumentativos exclusivos da ortodoxia católica. A
interpretação de seus sermões é, portanto, dependente do exame dos movimentos
proporcionados por esse eixo sacramental.
V. A via sacramental
O primeiro movimento da via sacramental diz respeito ao sacramento da
Eucaristia, que fornece também o modelo da ideia contrarreformista de sacramento.
Aí, pela presença do Ser divino encoberto sob as espécies materiais do pão e do
vinho, há-, de acordo com a ortodoxia católica (que, como é sabido, recusa qualquer
concepção de uma presença meramente simbólica), uma “comunhão” do homem
com Deus, uma comunicação “abreviada” do Ser.37 Vieira discute não apenas a
natureza dessa comunicação, como também as razões para que ela se faça pela
via sacramental, isto é, como presença encoberta na matéria. A primeira delas
refere-se à ideia de que a presença manifesta do Ser, vista sem a mediação das
espécies nas quais se sacramenta, tende paradoxalmente a fazer com que o desejo,
dada a imper-feição humana em que se formula, seja dissolvido no plano
exclusivamente material dos sentidos. Considerada a ignorância do homem, a vista
direta de Deus no mundo traz o risco iminente de o desejo do Ser restringir-se ao
âmbito imediato do visível, excluindo dele sua substância e fim.38
242
da palavra
33
Na ortodoxia católica, há
analogia entre causa e efeito.
O universo criado seria análogo, portanto, ao Criador. A
causalidade física (entre os
seres criados, portanto) seria
um desses vestígios, um elemento analógico do Ser que é
Causa. Gilson discute essa
questão no capítulo do
L’esprit de la philosophie
médiévale dedicado às noções de analogia, causalidade e
finalidade. Pode-se dizer que o
mundo cristão tem um caráter
sacramental porque tudo o que
nele há se orienta pelo e para
o Ser que o cria.
34
São termos empregados no
Sermão do Santíssimo Sacramento, pregado em Santa Engrácia,
em 1645; in Sermões (op.cit.),
v. I, p. 134.
35
O eleito é assim descrito
por Vieira no Sermão de ação de
graças pelo nascimento do príncipe
d. João (palavra de Deus desempenhada), dado como pregado na
Bahia, em 1688: O Filho do
homem é Cristo; o quase Filho do homem é o quase Cristo, ou Vice-Cristo. De sorte
que, assim como o primeiro
vigário de Cristo, que é o sumo
pontifico, pela jurisdição universal que tem sobre toda a
Igreja, se chama Vice-Cristo no
império espiritual, assim o
segundo vigário do mesmo
Cristo, pelo domínio universal que terá sobre todo o mundo, se chamará também no
império temporal Vice-Cristo: Quasi Filius hominis. A
esse eleito caberá, então, efetivar o paraíso terreal que Vieira identifica como sendo o
V Império (após o de assírios,
persas, gregos e romanos): E
este é o império quinto e último, que
se há de levantar depois da extinção
do turco, não na pessoa de Cristo
imediatamente, senão na de um príncipe seu vigário” (in Sermões, v.
XXI, p. 416-7).
36
Sobre a participação jesuítica na elaboração e divulgação do sebastianismo da Restauração há muitos textos importantes. Cito dois muito
conhecidos: A literatura autonomista sob os Filipes, de
Hernâni Cidade, e A Companhia de Jesus e a restauração de
Portugal, de Francisco Rodrigues, publicado no volume VI
dos Anais do Ciclo da Restauração de Portugal (Lisboa,
Academia Portuguesa de História, 1942).
37
Cristo ao Sacramento tem abreviada e estreitada sua grandeza
(Sermão do Santíssimo Sacramen-
Para Vieira, se o desejo humano, por um lado, não se pode dar fora de sua
condição corpórea, sensível, por outro, se os sentidos forem satisfeitos neles
mesmos, romperão a finalidade substancial do desejo. Nessa perspectiva, quando
se encobre nas espécies sacramentais, Deus é previdente em relação à natureza
dos sentidos, cuja satisfação imediata conduz à limitação do desejo ao próprio
campo dos sentidos, abandonando-se o seu encaminha-mento para o Ser.
Encobrir-se é a forma eficaz de manter insatisfeito o desejo com a matéria e
estado do mundo, a fim de apurá-lo enquanto desejo do Ser39. Assim é que
Vieira afirma-:
(...) amam os homens mais finamente a Cristo desejado por saudades, do que gozado por
vista”40.
Ou então:
(...)o amor de Cristo desejado por saudades é muito mais eficaz nesta parte, ou mais afetuoso, ou
mais impa-ciente, que o mesmo amor de Cristo gozado por vista”41.
A expressão “desejo por saudades” deve ser expressamente entendida em
relação à propriedade encoberta do Ser no Sacramento:
E como a Cristo lhe vai melhor com as nossas saudades que com os nossos olhos, por isso se quis
deixar em disfarce de desejado, e não em trajos de visto. Descoberto para os olhos, não; encoberto
sim para as saudades.Co-nheça logo a nossa devoção que é fineza, e não implicação do amor de
Cristo, o deixar-se invisível naquele mistério (...).42
to, pregado no Convento da
Esperança em 1669, in Sermões, v. IV, p. 93).
38
O ensaio que escrevi para
o volume O Olhar, da Companhia das Letras, é inteiramente dedicado a essa questão; restrinjo-me, portanto, aqui, à
formulação mais conclusiva.
39
Quanto a esta questão, das
relações entre o desejo e o
encoberto do mistério, dediquei um ensaio particular: 0
mistério eficaz, in Estudos portugueses e africanos, Unicamp, 1987, n. 10.
40
Sermão do Santíssimo Sacramento, de 1645, in Sermões, v.
I, p. 175-6.
41
Idem, p. 176.
42
Idem, ibidem.
43
(...) o Sacramento é viático de
caminhantes, em que somente se nos
dá Cristo enquanto dura a peregrinação e passagem desta vida (Sermão do Santíssimo Sacramento, de
1669, in Sermões, v. IV, p. 93).
44
Idem, p. 101.
Além de impedir a satisfação no visível, a eficácia própria da via
sacramental multiplica a presença de Deus no meio humano, isto é, torna presente
em muitos lugares, ao mesmo tempo, esse “viático de caminhantes”43. É assim
que Vieira relaciona a presença multiplicada no Sacramento às muitas estrelas
que, à noite, fazem as vezes do sol:
Não debalde instituiu Cristo o Divino Sacramento de noite, quando, por uma presença que nos
levou da vista nos deixou muitas à fé. Mete-se o sol no ocidente, escurece-se o mundo com as
sombras da noite, mas se olhar-mos para o céu, veremos o mesmo sol multiplicado em tantos sóis
menores quantas são as estrelas sem número, em que ele substitui a sua ausência, e não só se
retrata, mas vive. Assim se ausentou Cristo de nós sem se au-sentar, deixando-se abreviado sim
no Sacramento, mas multiplicado em tantas presenças quantas são as hóstias consagradas em
que o adoramos e temos realmente conosco.44
A forma encoberta do Sacramento é, pois, duplamente eficaz: uma vez,
como maneira de intensificar o desejo pelo que adia ou nega de satisfação aos
sentidos; segunda vez, como maneira de disseminar nas espécies sensíveis as
presenças reais do Ser único. Uma vez, como afirmação da substância subjacente
à matéria; outra vez, como indi-cação das marcas sensíveis e materiais do Ser
substancial. Uma vez, para impedir a totalização do desejo na matéria; uma
segunda vez, para cumprir a condição sensível de formulação do desejo humano.
da palavra 243
O postulado dessa dupla eficácia não compreende o movimento inteiro
da via sacramental do desejo, pois, tal como está proposto em Vieira, ele ainda
supõe a “comunhão”, essencial ao mistério. O sentido da comunhão com o Ser
por meio do Sacramento Eucarístico não se esgota no contato entre o homem e
Deus, pois exige ainda a produção de uma particular relação de identidade entre
os homens que têm o mesmo desejo de Deus.
Num Sermão do Santíssimo Sacramento, dado como tendo sido pregado no
ano de 1662, Vieira expõe assim a questão:
(...) pergunto: que quer dizer comunhão? O nome comunhão-communio-não é inventado por
homens, senão imposto por Deus, e tirado das Escrituras Sagradas em muitos lugares do
Testamento Novo.E que quer dizer communio? Quer dizer communis unio: união
comum. Assim expli-cam sua etimologia todos os intérpretes. De maneira que dando Cristo
nome à Comunhão, não lhe pôs o nome da união particular que temos com ele, senão da união
comum que causa entre nós. A união que cada um de nós tem com Cristo no Sacramento é
união particular; a união que mediante Cristo temos todos entre nós é união comum, e esta união
comum, como efeito principal e ultimadamente pretendido por Cristo, é a que dá o Ser e o nome
à Comunhão: communio: communis unio.45
E um pouco mais adiante:
Assim como os acidentes sacramentais são composição de muitas coisas unidas em uma, assim, o
efeito do Sacramento é união de muitos homens entre si.46
Resulta da via sacramental uma identidade fraternal dos que desejam o
mesmo. A comunhão proporciona o reconhecimento de uma substância desejante
comum e ordenada para o Ser, e não apenas o contato individual e vertical entre
cada homem e Deus. A presença divina encoberta, multiplicada nas espécies
sacramentais, descobre o real comum dos desejos humanos, sem o risco do
individualmente deli-rado ou institucionalmente decaído.
O movimento do desejo, em sua instância eucarística, significa, pois, o
reconhecimento decisivo da existência de uma relação analógica essencial entre
o Ser único que se encobre nas espécies do Sacramento Eucarístico e a identidade
que o desejo comum de participar desse Ser estabelece entre os homens. Em
suma, apenas no ser comum do desejo se dá a imagem do Ser que se busca.
VI. O Encoberto que vem
Reconhecida a identidade comum dos desejos, o movimento seguinte para
a efetiva participação dela no Ser implica a sua parturição na figura do Encoberto
– um movimento que, em Vieira, tem nuances, mas que em seu aspecto geral é
relativo ao desdobramento do desejo de Ser (até aqui revelado em sua dimensão
coletiva pelo Sacramento) numa existência particular. Melhor, mais que particular:
uma existência correspondente tanto ao desejo comum dos homens como à
destinação dele traçada pela Providência.
O desejo estabelece um momento de comunhão em torno da presença
divina encoberta no Sacramento, mas propõe também, a fim de cumprir-se
244
da palavra
45
Sermão do Santíssimo Sacramento, pregado em Santa Engrácia no ano de 1662, in Sermões, v. XV, p. 282.
46
Idem, p. 286.
inteiramente, a indicação de uma forma externa àquela que subjaz a essa
comunhão coletiva. Mlehor: forma mais que externa, isto é, capaz de representar
essencialmente a comunhão, sem deixar de ser distinta dela.
O argumento de Vieira é, portanto, o seguinte: à identificação do desejo
comum, segue-se a identificação de uma pessoa, real, única, que possa responder
tanto à esperança de participação no Ser, quanto aos desígnios do Ser para suas
criaturas. Primeiro, o desejo busca a substância de sua manifestação humana, o
que implica a existência de uma coletividade como imagem possível do Ser
divino que se busca; em seguida, essa imagem ganha vida autônoma, fora do
desejo coletivo, pois, além de lhe ser correlata, deve ser também manifestação
da vontade soberana do Ser que está ao fim e além do desejo. O Encoberto
concilia, portanto, numa existência humana única, o mais fundo do desejo – a
sua substância coletiva – com o ato de eleição divina, ato de escolha amorosa
de Deus que a aceita como sua. Ou seja, quando a comunhão entre os homens
reconhece o seu desejo essencial do Ser, este gera, nele, o ser capaz de conduzilo ao seu legítimo destino.
Assim como Cristo é o encoberto no ventre de Maria – cujo parto é tanto
mais esperado quanto mais se aproxima a hora (“quanto o bem desejado está
mais vizinho, tanto é maior o desejo”47) –, o Encoberto é o esperado parto do
desejo comum. Assim como o Cristo não é simples fruto do desejo de Maria, o
Desejado não se confunde com um fruto exclusivo do desejo do homem (o que
implicaria recair na tentação irrealista do imaginário).
Vieira propõe que, quando a natureza comum desejante se revela, na
clareza possível, como imagem do Ser de que se quer participar, ela é fecundada
por um ato do Ser capaz de gerar a existência do desejado, até então encoberto.
A presença divina na imagem comum toma, então, a forma de um corpo real.
Ou, para dizê-lo à Vieira, o desejo precisa sofrer a ausência para chegar ao seu
objeto. A esse respeito, dedica algumas páginas de seu belo Sermão de Nossa
Senhora do O, de que teria sido palco a Igreja da Ajuda, na Bahia, em 1640. Ao
discorrer sobre a natureza do desejo, que nem sempre se desfaz na presença de
seu objeto, afirma:
(...) a presença, para ser presença, há de ter alguma coisa de ausência48;
Um pouco depois, reafirma:
(...) a presença, para ser presença, não há de passar a ser íntima, nem há de estar totalmente
unida, senão, de algum modo, distante49.
A imagem do Ser, unida ao desejo comum, íntima dele, enseja uma queixa
semelhante àquela que Vieira figura em Narciso, “com verdadeira razão, em
história fabulosa”:
47
Sermão de Nossa Senhora do O,
in Sermões, v. VI, p. 119.
48
Idem, p. 121.
49
Idem, p.122
50
Idem, ibidem.
O que desejo, tenho-o em mim; e porque o tenho em mim, careço do que tenho. - Pois, que
remédio? Votum in amante novum: o remédio é um desejo novo, qual nunca desejou quem
amasse. E que desejo é esse? Velle quod amamus abesse: desejar que o que amo se
ausente e se aparte de mim.50
da palavra 245
É a mesma queixa da Virgem, com o Cristo no ventre:
Carecia do mesmo bem que tinha, porque o tinha dentro em si. Por isso suspirava e desejava
com ânsia vê-lo já fora.51
O movimento do desejo para o Ser, portanto, não finda na virtualidade da
imagem coletiva que se possa ter dele, mas exige uma manifestação externa ao
conjunto dos seres que o desejam. O movimento inicial, discutido em torno do
encoberto eucarístico, representa uma internalização coletiva da presença divina,
como Vieira o diz de tantas maneiras:
(...) dando-nos Cristo sua própria carne no Sacramento, encarnou em todos os homens, que
somos nós, os que a comungamos52; (...) unindo-se Cristo por meio de sua carne a cada um de
nós, todos como membros seus ficamos um só corpo”53.
Já o movimento seguinte significa o desdobramento dessa presença, a
partir do desejo comum que ela suscita e sustenta, no nascimento feliz do desejado
Encoberto. Tal desdobramento não se pode fazer, contudo, sem um ato
fundamental de eleição por parte de Deus. A figura do Encoberto que vem é
gerada pela vontade divina que incide sobre a condição da comunhão desejante
dos homens. Apenas nesse momento, quando o Encoberto existir na história,
está segura a evolução do desejo para o Ser e superado o risco sempre iminente
de sua degeneração nas fantasias do não-ser. O Encoberto, só ele, para Vieira,
concilia o desejo de todos com a Providência divina: piloto da nau humana a
acertar finalmente com o sopro de Deus.
246
da palavra
Idem, ibidem.
Sermão do mandato, de 1655,
in Sermões, v. VII, p. 100.
53
Idem, p. 101.
51
52
Paixão e ciúme: uma abordagem
“problemática e aproximativa”
de um poema de Safo
Adélia Bezerra de Meneses*
*
Colaboradora voluntária da
UNICAMP e orientadora em
Pós-graduação na USP. Atua na
área de Literatura Comparada
e Teoria Literária.
1
“Que isto de método...” –
Prefácio de Benedito Nunes
a Joaquim Brasil Fontes: Eros,
Tecelão de Mitos: A Poesia
de Safo de Lesbos. São Paulo, Estação Liberdade, 1991,
p. 20.
Num inspirado prefácio ao livro Eros, Tecelão de Mitos: a Poesia de
Safo de Lesbos”1, Benedito Nunes finaliza seu texto dizendo que “No
confronto da distância temporal que as une e separa, a lírica de Safo e a lírica
moderna se aclaram mutuamente. Eis até onde vai a interpretação problemática
e aproximativa de Safo de Lesbos.”
É este o propósito deste ensaio-homenagem ao grande filósofo-crítico
literário: um contraponto entre três peças literárias que ressoam a mesma vibração
passional: o emblemático poema de Safo “Parece-me igual aos deuses” e duas
canções da MPB, a saber “Nervos de Aço”, de Lupicínio Rodrigues, e “Dor de
Cotovelo” de Caetano Veloso. Todas sob o denominador comum do ciúme,
ingrediente da lírica amorosa de todos os tempos. Isso significaria atenção ao
“diálogo cultural” que os autores de diferentes épocas empreendem entre si,
levando em conta seus diferentes contextos culturais, com 26 séculos de permeio.
Mais do que tudo, pretendo ilustrar, apenas ilustrar uma experiência
passional que a lírica registra, apontando um paradigma literário, num arco que
se desdobra do século VII a.C. até a contemporaneidade: textos que nos ensinam
a dizer o amor, dando forma verbal àquilo que todos nós, humanos, confusamente
sentimos e percebemos, mas de uma maneira não articulada e que, sem a poesia,
ficaria inexpressa e não perduraria.
Aliás, a questão do tempo há de ser colocada, pois se estabelece
inevitavelmente uma dialética entre as invariantes do sentimento amoroso e a
historicização da paixão, uma vez que, como todo elemento constituidor do
humano, a experiência passional é modulada historicamente. Assim não se
poderia considerar o amor – e sua expressão — como algo de imutável ao longo
dos séculos: tudo que é humano é marcado pelo tempo. Não se vivencia um
afeto hoje como na Antiguidade. No entanto, a essa historicidade contrapõe-se
da palavra 247
a evidência de invariantes , que atravessam séculos, que cruzam espaços. Esse
sentimento que é inexprimível a não ser pela poesia , mudaria, no espaço e no
tempo? Mas mesmo com todas as disposições para se respeitar a dimensão
histórica, eu me dobro à percepção inequívoca de uma invariante amorosa.
Os estudiosos são unânimes em afirmar que a nossa concepção de amor data
da lírica trovadoresca. No entanto, no caso dos poemas elencados, a lírica
grega do século VII A.C. faz inequivocamente ressoar em nós algo que integra
a nossa experiência de humanos do século XXI.
Mas antes de entrar nas modulações da paixão atualizada no poema (e
fragmentos) de Safo, bem como nas estrofes de “dor de cotovelo” dos nossos
compositores da MPB, impõe-se uma questão preliminar, dizendo respeito à
própria etimologia da palavra paixão: o pathos grego, que significa sofrimento, é
do mesmo radical da passio latina, (de onde se originou passivo, passividade) –
indicando algo que se sofre. E se é verdade que pathos designa qualquer emoção
da alma (cólera, inveja, alegria, ódio, remorso, piedade, etc), é verdade que o
conceito se afunilou, e paixão, nos tempos atuais, passa a designar paixão
amorosa, algo que sobrevém, que irrompe, como uma doença. Pathos, assim, é o
que se experimenta, por oposição ao que se faz, isto é, tudo o que afeta o corpo
ou a alma, no bem e no mal. Põe-se à luz a ligação entre afeto e afetado.
Em todo o caso, reitero que vou usar o termo “paixão” na sua acepção
moderna, atual; neste momento não vou me debruçar sobre as questões delicadas
da historicização do termo “pathos”, um terreno rico (e minado). No entanto,
umas rápidas pinceladas se farão necessárias para prosseguirmos: na Poética
de Aristóteles, “pathos” enquanto “sofrimento” é o termo para denominar
uma das partes do “mythos”, do enredo da tragédia: o sofrimento cruento, que
nunca era mostrado em cena aberta; na Retórica , quando discorre longamente
sobre as paixões, é da amizade, “Philia”, que Aristóteles tratará, bem como na
Ética a Nicômaco, onde o filósofo faz a tocante declaração de que amizade
é condição necessária para a felicidade. Mas será com Platão, n´O Banquete,
que Eros será apresentado em toda a sua grandeza. O nosso conceito usual de
“paixão” seria recoberto por Eros, podendo ser traduzido ora por “amor”, ora
por paixão amorosa.
N´O Banquete, diz Aristófanes, à guisa de introdução à narrativa do
mito do Andrógino:
“Com efeito, parece-me os homens absolutamente não terem percebido o poder do amor (Eros) ,
que se o percebessem, os maiores templos e altares lhe preparariam, e os maiores sacrifícios lhe
fariam, não como agora que nada disso há em sua honra, quando mais que tudo deve haver. É
ele, com efeito o deus mais amigo do homem, protetor e médico desses males, de cuja cura
dependeria sem dúvida a maior felicidade para o gênero humano.” (O Banquete, 65)
Mas se é verdade que o amor provê a cura para o mal de existir, nos
grandes textos que tratam do amor- paixão, do amor passional, essa coisa que se
experimenta é sentida como algo que faz sofrer. Por que sofrimento? Por que
essa rima inevitável do amor com dor?
248
da palavra
2
Esse ser “completo” podia
ser formado ou de duas metades de sexos diferentes, ou
de duas metades do mesmo
sexo.
3
As traduções dos fragmentos são de Joaquim Brasil Fontes: Safo de Lesbos. Poemas
e Fragmentos. São Paulo, Iluminuras, 2003; a tradução do
poema analisado, “Parece-me
igual aos deuses” é do livro
anterior do mesmo Autor:
Eros, Teceláo de Mitos. Sáo
Paulo, Estação Liberdade,
1991.
Uma primeira resposta nos levaria a algo com que a nossa experiência
pessoal inevitavelmente já nos terá feito deparar: a percepção da radical
incompletude que nos estigmatiza, impelindo-nos ao encontro com o Outro.
E, evidentemente, a sensação da solidão, a nostalgia da Completude. Nostalgia
do Um, que é radicalizada – e atualizada em termos de mutilação — nas
separações. Foi ela que deu origem aos mitos do Andrógino n´O Banquete de
Platão e de Eva tirada da costela de Adão, no Gênesis bíblico: mitos de cepas
culturais diferentes, mas no entanto de mesma etiologia. Com efeito, se tomarmos
esses dois mitos fundantes de duas civilizações de cuja confluência se originou
a nossa civilização: a grega e a judaica, (com a contribuição africana e indígena,
no caso específico brasileiro) , veremos que eles tentam dar conta dessa dolorosa
percepção ligada à nossa experiência do amor.
Vejamos o mito do Andrógino: o ser humano foi criado por Zeus como
duas metades acopladas2, e estava se tornando muito forte: isso preocupou os
deuses, que, para fragilizar essa criatura – repito: para enfraquecê-la – resolveram
dividi-la em duas metades – que hão de procurar-se, o resto da vida,
inapelavelmente....
Essa mesma ideia será encontrada no seio de uma outra civilização,
como já disse, na narrativa mítica da Criação no Gênesis bíblico, em que Eva
foi tirada da costela de Adão. Em ambos os casos, alude-se à ruptura de uma
unidade primordial e suas dolorosas consequências.
Se a Filosofia e também nos nossos tempos a Psicanálise tentam dar
respostas – lógicas, racionais – a questões fundamentais do humano no nível do
pensamento racional, da razão, o que faz o mito? O mito conta uma história,
uma narrativa em que essas questões fundamentais são colocadas– a saber, a
incompletude que experimentamos, a dor mutilante nas rupturas afetivas, a
percepção da falha, da falta, da carência: isso tudo é figurado numa narrativa,
constela-se num mito.
Reitero: tanto o mito grego do Andrógino, quanto o bíblico de Adão e
Eva são criados a partir de uma vivência humana, e de uma perplexidade: a dor
da incompletude. Mitos criados a partir da experiência da fugaz percepção de
completude que as relações amorosas propiciam, infinitas enquanto duram. A
paixão é flagrada sempre em momentos de clivagem; está sempre no registro da
dor, e não no registro da alegria. Paixão, desde a etimologia, reitero, está ligada
a sofrimento. Será por isso que encontramos, num dos fragmentos de Safo:
“os que são meu bem-querer, esses
me trazem dores” (Fragmento 75) ?3
Ou ainda, no mesmo diapasão, no fragmento 60:
“a minha dor ,que flui
gota a gota”
Dor e sofrimento modulados o mais das vezes como solidão, como a que
Safo expressa numa tocante simplicidade, em versos que conjugam o “estar
da palavra 249
sozinha” (literalmente: “mas eu só”: ego de mona) com a passagem implacável do
tempo, um tempo mensurado pelo movimento dos astros:
“A lua já se pôs, as Plêiades também;
É meia noite;
A hora passa, e estou deitada, sozinha (Fragmento 31)
Daí, como consequência, a espera, a busca amorosa (desde as perguntas
insofridas que pontuam o Cântico dos Cânticos4, passando – pinçados ao
acaso — pela indagação anelante da poesia trovadoresca5, pelo Leito de Folhas
Verdes6 de Gonçalves Dias até Ronda de Paulo Vanzolini7): é esta uma
invariante da lírica amorosa de todos os tempos.
Nos textos a seguir, o poema “Parece-me igual aos deuses” e em canções
da MPB, de Lupicínio Rodrigues e Caetano Veloso, flagra-se a dor da perda do
amor, ou da iminência da perda , numa situação em que o ser que nos completaria
desvia seu olhar para um outro objeto amoroso: está instalada a situação de
ciúme. De Otelo a Dom Casmurro, de Medéia a Camões e às canções de dó de
peito e de “dor de cotovelo” da canção popular, esse é um topos da Literatura.
E pelo conhecimento que se tem da Lírica Ocidental (na medida em que se
pode chamar de “ocidental” o que é grego), pode-se com tranquilidade dizer
que temos na poeta de Lesbos uma de suas mais intensas manifestações.
Vamos ao poema, um dos textos de Safo que nos restaram praticamente
completos — pois na realidade falta uma estrofe final, encabeçada por um
“mas” — o que,por sinal, nos deixa suspendidos, à beira do mistério:
“Parece-me igual aos deuses
ser aquele homem que, à tua frente sentado,
de perto, doces palavras, inclinando o rosto, escuta,
e quando te ris, provocando o desejo:
isso, eu juro,
me faz com pavor bater o coração no peito;
eu te vejo um instante apenas e as palavras
todas me abandonam;
a língua se parte; debaixo da minha pele,
no mesmo instante, corre um fogo sutil;
meus olhos não vêem; zumbem meus ouvidos;
um frio suor me recobre, um frêmito se apodera
do corpo todo, mais verde que as ervas
eu fico; e que já estou morta,
parece
Mas ... “
(Trad. Joaquim Brasil Fontes).8
Esse famosíssimo poema tornou-se já na Antiguidade não apenas um
topos literário do apaixonamento, mas um clichê da sintomatologia da paixão,
250
da palavra
4
“ Em meu leito, pela noite/procurei o amado da minha alma,/
Procurei-o e não o encontrei!/Vou
levantar-me/ vou rondar pela cidade,/pelas ruas, pelas praças, /procurando o amado da minha alma.../
Procurei-o e não o encontrei! [...]/
Vistes o amado da minha alma?”
(Cântico dos Cânticos, 3, 1-4)
5
Ai flores, ai flores do verde ramo,/
Se sabedes novas do meu amado?/
Ai, Deus, e u é?
6
Por que tardas, Jatir que tanto
a custo ...”
7
“De noite, eu rondo a cidade, a te procurar, sem encontrar...”
8
V. Joaquim Brasil Fontes:
Eros, Tecelão de Mitos. (A
Poesia de Safo de Lesbos).
São Paulo. Estação Liberdade,
1991.pág. 148 ss.
9
Idem, ibidem. Op. Cit., p.
148.
10
Emil Staiger: Conceitos
Fundamentais da Poética.
Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1993, p. 62 ss. Agradeço
essa indicação a Marcus Vinicius Mazzari.
11
Otto Maria Carpeaux: História da Literatura Ocidental, vol. I .Brasília, Edições do
Senado Federal, 3ª. Ed., 2008,
p. 56..
como diz Joaquim Brasil Fontes. Há um texto de Plutarco, refere ele, em que
são descritas as reações de um rapaz quando ele encontra uma mulher e , diz
Plutarco, nesse homem podiam ser encontrados “todos aqueles sinais que Safo
nos descreve em suas obras.”9
O estado de apaixonamento e sua conturbação revela-se no corpo, marcao profundamente, sensorialmente. A emoção é percebida no nível corporal: o
coração bate com pavor, a cor muda, os sentidos comparecem na sua quase
totalidade. Com efeito, 4 dos 5 sentidos são violentamente convocados e
atingidos, como que desatinando: o sentido do gosto (a língua se parte), o sentido
do tato (o fogo sutil sob a pele; o frio suor), a visão (os olhos não vêem): a audição
(os ouvidos zumbem). O único sentido que não aparece explicitamente é o olfato.
E finalmente, o corpo na sua totalidade é atingido: “um frêmito se apodera do corpo
todo”, vem a palidez (verde como as ervas) e o símile é a morte.
Staiger, ao falar da lírica, transcreve esse poema em seu Conceitos
Fundamentais da Poética, como um exemplo insuperável de sensações ou
sentimentos que são realidade corpórea, ratificando, diz ele, a sentença de
Schleiermacher: “ser alma quer dizer ter corpo10”. Efetivamente, aqui é o corpo,
sede da emoção, o lócus da dor, do sofrimento. Não há uma “análise psicológica”
em pauta: há um sofrimento, um pathos , uma emoção intensa que é exteriorizada
no corpo. Emoção: etimologicamente, emoção pressupõe movimento: de exmovere = mover a partir de.
Não por acaso, Otto Maria Carpeaux11, para quem “A Expressão de paixões
violentas parecia aos antigos a verdadeira tarefa da poesia lírica” , fala de uma
verdadeira “psicofisiologia erótica” desses versos. Efetivamente, a paixão aí se
mostra na sua violência, através dos efeitos corporais que provoca. Estamos
de tal maneira no plano físico que o “coração” que aparece é, no original grego,
“cardia”, e não o termo “frenes” (traduzido no mais das vezes como “espírito”,
ou “alma”, ou coração mesmo, mas enquanto sede de sentimentos); aqui se
trata do coração fisiológico, aquele que bate no peito, e de que se ocupam os
cardiologistas.
E tudo isso, provocado pela visão, por parte do eu lírico, da amada dando
atenção a um outro: ciúme. Está instaurada a situação clássica, um triângulo
amoroso. Ou: um triângulo supostamente amoroso, em que uma das personagens
deduz dos gestos das outras duas, uma ameaça (real?) de perda amorosa. Pois
nesse poema nada é interpretado das personagens, nada é narrado, só descrito. E
aqui, tem-se que dar razão aos helenistas que, unanimemente, falam da ausência
de análise psicológica na poesia grega. Mostra-se uma cena, um “clima” entre
duas personagens, um homem e uma mulher; e alude-se a uma terceira, espectadora,
que é o eu lírico, por detrás de quem estaria Safo de Lesbos. Uma cena, sua
espectadora, e mais todas as suas consequências: um vórtice.
Há um outro poema de Safo, ou melhor, um fragmento de poema que se
pode dizer que daria conta de explicitar o potencial devastador dessa cena;
nesse fragmento (No. 62) nomeia-se o medo, a possibilidade virtual a que essa
cena alude:
da palavra 251
“Tu me lançaste no esquecimento
[
]
ou existe outro homem
que a mim tu preferes?”
Mas aqui, nada se nomeia; apenas se mostra. Toda essa emoção
intensamente corporal, no poema de Safo, é provocada por gestos corporais;
tudo é desencadeado pelo fato de um homem sentar-se à frente do ser que é
objeto da paixão do eu lírico, numa situação de proximidade e de intimidade;
apenas: sentar-se próximo, inclinar o rosto, e escutar. Não se sabe quais as
palavras que ele escuta; seriam “doces” pelo efeito que causam. E também, da
parte da outra protagonista da cena, somente os signos corporais, os signos da
gestualidade estão presentes. Náo se está às voltas com o que pensa, diz ou
sente esse homem; nem com o que diz ou pensa a jovem com quem ele
contracena; mas registra-se o efeito devastador que a sua presença provoca
numa terceira personagem, que vem a ser o eu lírico. Gestualidade corporal do
homem , e, do lado da amada de Safo (ou melhor, do objeto dos cuidados do eu
lírico), além das “doces palavras” aludidas, também um gesto corporal: o sorriso.
“E quando te ris, provocando o desejo”
No mundo grego, o sorriso é um atributo fundamental de Afrodite, a
deusa do amor. No “Hino Homérico a Afrodite”, como diz Joaquim Brasil Fontes,
ela recebe o epíteto de “Philomeidés”12,) a “amiga dos sorrisos”, ou “aquela
que ama o sorriso” – num contexto, entretanto, em que a deusa é descrita
como “Senhora das Feras”, seguida por um cortejo de lobos, panteras e leões.
Ela atiça o desejo no coração dos animais, instigando-os a se acasalarem13, numa
manifestação poderosa de sua ação, que submete os humanos, os animais e os
deuses. É um poder que encontra seu símile na natureza:
“Como o vento que se abate sobre os carvalhos na montanha,
Eros me trespassa”, (Fr. 17)
diz um outro fragmento de Safo.
Mas volto ao Hino Homérico, que nos provê de ricas informações sobre
Afrodite, a deusa de quem Safo, especificamente, é a “Servidora” (“Tu e Eros,
meu Servidor”, diz Afrodite dirigindo-se a Safo, em versos registrados por Máximo
de Tiro14); aqui a deusa aparece não apenas em todo o seu esplendor (sua beleza,
seus adereços são descritos pormenorizadamente), mas também como a senhora
da Persuasão15 (Peithô), aquela que dispõe de palavras persuasivas . Assim,
temos com Afrodite a sedução pelo sorriso, a que vem se somar a sedução pela
palavra – o que leva a redimensionar as “doces palavras”16 que a jovem dirige ao
rapaz “semelhante a um deus”.
É interessante observar-se que o desejo provocado pelo riso atinge não
somente o rapaz, a quem evidentemente o sorriso é dirigido, mas também atinge
a espectadora da cena. E o efeito é devastador, semelhante àquele que se
encontra no Fragmento 18:
252
da palavra
12
Hino Homérico a Afrodite, v. 17; v.65.
13
Cf Joaquim Brasil Fontes:
Eros Tecelao de Mitos, Op.
Cit. p. 138.
14
Máximo de Tiro, Dissertações, 18, 19. Apud Joaquim
Brasil Fontes: Poemas e
Fragmentos.Safo de Lesbos.
São Paulo, Iluminuras, 2003,
p.49.
15
“Sappho diz que a Persuasão é filha de Afrodite” . (Escoliasta de Hesiodus, 74) Apud
Joaquim Brasil Fontes op. Cit,
p. 176.
16
“Sappho diz que a Persuasão é filha de Afrodite” . (Escoliasta de Hesiodus, 74) Apud
Joaquim Brasil Fontes op. Cit,
p. 176.
“] de novo, Eros me arrebata,
Ele, que põe quebrantos no corpo,
Dociamaro, invencível serpente”
A caracterização de Eros como aquele que “põe quebrantos no corpo”,
tem uma tradição consagrada no mundo grego, como se pode verificar na
Teogonia de Hesíodo, em que fica registrada a força poderosa do deus Amor,
que atua no corpo e no espírito:
“... Eros, o mais belo dentre os deuses imortais,
que amolece os membros
e, no peito de todos os deuses e de todos os homens,
domina o espírito e a vontade ponderada.”
Efetivamente, o Amor aí, seja figurado como Eros, ou como Afrodite, é
uma força externa, invencível, mas que pouco tem a ver com a interioridade da
pessoa.É por isso que o Coro da tragédia Fedra assim se pronunciará:
“Amor, amor,
que instilas pelos olhos o desejo
e volúpias infundes
n’alma daqueles a quem dás combate,
Oxalá nunca
Te reveles a mim com a desdita,
Nem me ataques além de minhas forças.
Dardos não têm o fogo e os astros
Iguais aos que dos braços de Afrodite
Desfere Amor, filho de Zeus.
E essa força é “doce e amarga” (glykýpikron), como vimos também no fr.
18 – uma figuração do caráter contraditório do amor.
É assim que na tragédia Hipólito, de Eurípides, Fedra , essa grande
figura passional da Literatura grega, apaixonada pelo enteado Hipólito, filho de
seu marido Teseu, tem com a ama um diálogo revelador:
— Fedra: Na linguagem dos homens, o que é amor?
— Ama: “tudo o que há de mais doce e mais amargo”.
Continuemos a leitura do poema,: na terceira e na quarta estrofes,
recortam-se outras imagens paradigmáticas para se dizer a paixão:
“... debaixo da minha pele,
No mesmo instante, corre um fogo sutil
[...].
Um frio suor me recobre...
As figuras contrastantes , do fogo e da água , do calor e do frio nos
remetem — mesmo fora de um quadro de ciúme — aos paradoxos do sentimento
da palavra 253
amoroso –— que, 10 séculos depois de Safo, encontrarão guarida num dos mais
belos sonetos de Camões, tecido de antíteses e paradoxos:
Amor é fogo que arde sem se ver
É ferida que dói e não se sente
É um contentamento descontente
É dor que desatina sem doer
Nesse quadro de realidades paradoxais é que também se estriba a
comparação com o fogo (símbolo do amor e da libido), pela polaridade de seus
efeitos: fonte de vida e de calor, de um lado (que o digam os povos do frio!) e de
morte e destruição, de outro; aquece e queima. E paradoxalmente, o fogo do
amor é acalmado pela presença do ser amado, como diz o fragmento 58 de
Safo:
“Vieste: eu te aguardava
e me trazes a paz, quando eu queimava de amor”
Vamos ao final do poema:
“e que já estou morta,
Parece
Mas...”
Essa adversativa final nos deixa ... à beira do abismo. Já se falou que
seria preciso incorporar a fragmentação, a incompletude, à nossa percepção dos
poemas de Safo. Um poema é, séculos depois, ele próprio e tudo aquilo que o
tempo aí agregou (ou desagregou) 17. Nesse caso, são as incompletudes que,
paradoxalmente, se agregam ao corpo do texto, dando-lhe uma nova dimensão,
abrindo-o para o inconcluso, para o não definitivo – como é o conhecimento
tateante que temos das coisas.
Mas volto à ideia de morte com que finaliza esse poema passional. A
sensação de já estar morta comparece em outro fragmento de Safo, o de No. 9:
“não sinto mais o gozo deste mundo
...
E um desejo da morte”
Apaixonados de todos os tempos já sentiram assim, poderão sentir isso, e
assim se expressam.
***
Vamos então dar um pulo de séculos e aterrizar na década de 30 do
século passado, numa canção paradigmática da MPB, “Nervos de Aço”18 de
Lupicínio Rodrigues. Composta em 1936, não por acaso ela acaba com essa
mesma imagem de desejo de morte do Fragmento no. 9 de Safo:
“Você sabe o que é ter um amor
Meu senhor?
254
da palavra
17
Importa observar que este
é um dos poemas de Safo que
nos restaram mais completos.
18
Uma vez que a melodia é
também produtora de significados, eu gostaria de apelar
agora para a memória musical
do leitor, que certamente terá
na sua bagagem cultural de
brasileiro os acordes dessa
extraordinária canção da MPB.
Ter loucura por uma mulher
E depois encontrar esse amor
Meu senhor
Nos braços de um outro qualquer?
Você sabe o que é ter um amor
Meu senhor
E por ele quase morrer
E depois encontrá-lo em um braço
Que nem um pedaço do seu pode ser?
Há pessoas de nervos de aço
Sem sangue nas veias
E sem coração
Mas não sei se passando o que eu passo
Talvez não lhe venha qualquer reação
Eu não sei se o que trago no peito
É ciúme, despeito, amizade ou horror
Eu só sei é que quando a vejo
Me dá um desejo de morte ou de dor”.
Essa canção de Lupicínio Rodrigues, que interpela diretamente o leitor,
colocando-o dentro da canção: “Você sabe o que é ter um amor / Meu senhor” retoma
os tópoi da crise amorosa provocada pelo ciúme.
Também aqui se trata de uma cena que foi flagrada: a amada nos braços
de um outro. O autor poupa seu ouvinte/leitor da descrição de sua “reação”.
Mas já se esboça aqui – afinal, estamos em pleno século XX! – uma análise
que poderíamos chamar de psicológica, e que vai além da descrição das
sensações, tentando esquadrinhar os sentimentos:
Eu não sei se o que trago no peito
É ciúme, despeito, amizade ou horror
19
Cf Tarik de Souza (org) :
O Som do Pasquim – Entrevistas com Compositores, 2ª.
Ed., Rio de Janeiro, Desiderata, 2009, p. 98.
Aqui também se desdobra uma triangulação amorosa, em que o eu lírico,
ao mesmo tempo que atualiza a sede de completude que o marca, tem a percepção
da perda do único ser que o completaria. Daí, o “desejo de morte ou de dor”, ecoando
a mesma imagem – que atravessa séculos — do final do poema de Safo (bem
como do Fr. 9), como vimos.
Embora não seja necessária para a interpretação que venho empreendendo,
creio que lhe daria mais colorido uma informação biográfica fornecida pelo
próprio compositor: o fato de que essa mulher que foi objeto de “loucura”do eu
lírico tenha tido um referente na vida real , existia em carne e osso, e chamavase Iná: “A Iná foi a primeira mulher que eu tive. E a primeira desilusão.”—diz Lupicínio
numa entrevista ao Pasquim19, em 1973. Conta o compositor que essa mulher,
com quem foi casado por 6 anos, e de quem se separou porque ela intentou
traí-lo, é a inspiradora de Nervos de Aco e é “a Iná de muitas músicas”.
É interessante aqui também fazer o paralelo com Safo, cuja fortuna
literária se confunde com a sua biografia lendária: o que sabemos dela é aquilo
da palavra 255
que se pode deduzir de seus poemas e fragmentos de poema (alguns, referidos
indiretamente, por outros autores da Antiguidade, como, por sinal, esse poema
de que estamos tratando, preservado na íntegra por Longino); e confunde-se o
tempo todo o chamado “eu lírico”com a Poeta, deduzindo-se, a partir de seus
poemas, sua vida amorosa.
***
Mas, continuemos: quase 28 séculos depois ( Safo viveu por volta de 612
A.C.), no registro da contemporaneidade, temos, entre mil outros exemplos, na
MPB, a canção “Dor de Cotovelo”, de Caetano Veloso .20:
O ciúme dói nos cotovelos
Na raiz dos cabelos
Gela a sola dos pés
Faz os músculos ficarem moles
E o estômago vão / e sem fome.
Dói da flor da pele ao pó do osso
Rói do cóccix até o pescoço
Acende uma luz branca em seu umbigo
Você ama o inimigo
E se torna inimigo do amor
O ciúme dói do leito à margem
Dói pra fora na paisagem
Arde ao sol do fim do dia
Corre pelas veias na ramagem
Atravessa a voz e a melodia
Da raiz dos cabelos à sola dos pés, da flor da pele ao pó do osso, de um
cotovelo a outro, do cóccix até o pescoço21: imagens da totalidade para se
pensar um corpo humano totalmente invadido por um sentimento. E o sinal
do perigo está no centro (centro do corpo/ centro exato do poema, verso 8):
“acende uma luz branca em seu umbigo”. Dividido exatamente em duas partes,
os 7 primeiros versos dizem da extensão totalizadora dos estragos que o ciúme
provoca no ser humano, corporalmente considerado, tomando o corpo no seu
eixo vertical (dos pés à cabeça, ou melhor, do cóccix ao pescoço), e no seu eixo
horizontal (de um cotovelo a outro); na sua superfície (sola dos pés, raiz dos
cabelos) e no seu interior (osso, estômago):o corpo está totalmente ocupado,
totalmente perpassado pela emoção.
Depois do verso central, “acende uma luz branca em seu umbigo”, a segunda
parte da canção se divide: primeiramente, dois versos que, semelhantemente ao
que se passara com a canção de Lupicínio Rodrigues, esboçam uma introversão
psicológica:
Você ama o inimigo
E se torna inimigo do amor
256
da palavra
20
Uma vez que a melodia
também é produtora de significado, eu gostaria de — aqui
como na canção anterior, de
Lupicínio Rodrigues — apelar para a memória musical do
leitor, confiante de que ambas as canções já integram seu
patrimônio cultural musical de
brasileiro.
21
“Do cóccix até o pescoço”:
essa expressão, pela sua contundência e expressividade,
tornou-se o nome de um
show de Elza Soares, no Rio
de Janeiro.
Caetano Veloso aí avança, em relação a Lupicínio, em complexidade e
sutileza, naquilo que diz respeito a uma análise de sentimentos, que a antiga
lírica grega não expressaria. Na sua formulaçao condensada, esses versos 9 e 10
talvez revelem mais sobre a natureza do ciúme do que sonha a nossa vã filosofia.
Mas na sequência, os versos finais da canção nos apresentam o ciúme se
espraiando pela Natureza externa ao homem, literalmente: “dói pra fora na
paisagem”. E em detalhes: “ dói do leito à margem”, “arde ao sol do fim do dia”, “corre
pelas veias na ramagem”. Estamos em pleno universo da analogia; e será inevitável
que, com o filósofo Giambatista Vico, a gente veja aí uma “transposição do
corpo humano e das humanas paixões”22 sobre a realidade circundante, sobre
a paisagem. A imagem de um rio em que o ciúme dói “do leito à margem”,
figura um total abarcar; a do sol que arde ao fim do dia metaforiza o ardor da
paixão ; e a das veias na ramagem mostra o sistema venoso do ser humano
duplicado nas formações arbóreas e na estrutura das plantas. Aliás, é através
dessa alusão ao sistema circulatório que o “coração” (nomeado literalmente
nos textos de Safo e de Lupicínio) se faz presente nesta canção de Caetano
Veloso. Em suma: o corpo humano aí comunga com uma dimensão cósmica,
de que plantas, árvores, rios e astros participam.
E a ação mais reiterada do ciúme se desvenda pelo martelar dos verbos
mais presentes: dói, dói, rói, dói... Mas ao final da canção, há ainda um outro
universo que é atingido pelo ciúme: o universo da poesia, mais especificamente
aquele que articula “voz” e “melodia”, o mundo da canção: “Atravessa a voz e a
melodia”. Efetivamente, o Poeta e Eros são servidores de Afrodite23.
E assim, finalizo essa tentativa de “interpretação problemática e
aproximativa de Safo de Lesbos”, retomando e reiterando o pensamento de
Benedito Nunes, com que iniciei este texto: “No confronto da distância
temporal que as une e separa, a lírica de Safo e a lírica moderna se aclaram
mutuamente.”24
22
Cf Giambatista Vico: Princípios de uma Ciência Nova.
23
Cf Fr. 15, em que, como
refere Joaquim Brasil Fontes,
Máximo de Tiro registra que
numa das canções de Safo,
Afrodite se dirige à poeta ,
dizendo: “Tu e Eros, meu servidor”.
24
“Que isto de método...” –
Prefácio de Benedito Nunes
a Joaquim Brasil Fontes: Eros,
Tecelão de Mitos: A Poesia
de Safo de Lesbos. São Paulo, Estação Liberdade, 1991,
p. 20.
da palavra 257
258
da palavra
Drummond e o Livro Inútil1
*
Professor titular da USP –
Universidade de São Paulo.
Atua na área de Estudos Comparados de Literatura de Língua Portuguesa.
1
Texto publicado em Letterature d’America. Direção de
Ettore Finazzi-Agrò. Roma,
Facoltà di Scienze Umanistiche dell’ Università di Roma
“La Sapienza”, 2005, v. 107, p.
69-98I
2
Confissões de Minas publica
textos de gêneros variados escritos desde 1932,: crônicas
escritas como ensaios críticos
( “Três Poetas Românticos”,
“Mauriac e Teresa Desqueyroux” etc.); crítica artística, crítica política e notícia
histórica (“ Morte de Federico Garcia Lorca”, “Viagem de
Sabará” etc.); memória dos
anos da formação do autor em
Belo Horizonte e dos iniciais de sua vida no Rio (“Na
Rua, com os Homens”; “Estive em Casa de Candinho” etc.).
Também traz textos escritos
como crônicas narrativas, quase ficcionais, de vidas compostas como retratos (“Lembrome de um Padre” etc.); e, ainda, peças pequenas, difíceis
de classificar, postas entre a
teoria da escrita, a invenção
poética em prosa e o diário
(“Caderno de Notas”) etc. Cf.
Confissões de Minas. In Obra Completa. Rio de Janeiro, Aguilar,
1964.
3
Vale totalmente para a prática do Drummond prosador
de Confissões de Minas o que afirma sobre poesia:
“Entendo que poesia é negócio de grande responsabilidade, e não considero honesto
rotular-se de poeta quem apenas verseje por dor de cotovelo falta de dinheiro ou momentânea tomada de contato
com as forças líricas do mundo, sem se entregar aos trabalhos cotidianos da técnica, da
leitura, da contemplação e
mesmo da ação. Até os poetas
se armam, e um poeta desarmado é, mesmo, um ser à
mercê de inspirações fáceis,
dócil às modas e compromissos. Infelizmente, exige-se
pouco do nosso poeta; menos
do que se reclama ao pintor,
ao músico, ao romancista...”
Drummond. “Autobiografia para
uma Revista”. Confissões de Minas ( Na Rua com os Homens)
ed.cit. p. 530
João Adolfo Hansen*
Para o caríssimo Benedito Nunes, grande leitor com quem
aprendi a ler Guimarães Rosa, Clarice Lispector, João Cabral
de Melo Neto e o mais que há pra ler nesse nosso vasto mundo.
“La littérature, d’accord en cela avec la faim,consiste
à supprimer le Monsieur qui reste en l’écrivant ».
Mallarmé
Na nota introdutória de seu primeiro livro de prosa, Confissões de Minas
(1944), Drummond expõe a ética utópica de seu estilo2. Data a nota de agosto
de 1943, “depois da batalha de Stalingrado e da queda de Mussolini”, propondo
os eventos como balizas negativas do “exame da conduta literária diante da
vida”. Afirmando que “Não há muitos prosadores, entre nós, que tenham
consciência do tempo, e saibam transformá-lo em matéria literária”, declara
que não desdenha a prosa e que a respeita a ponto de furtar-se a cultivá-la.
Define-a como “linguagem de todos os instantes”; pelo avesso, a definição permite
ver que não pensa a poesia como “linguagem de todos os instantes”, pois implica
outros processos e fins.
Drummond postula que há uma necessidade humana de que não só se
faça boa prosa, “(...) mas também de que nela se incorpore o tempo, e com isto
se salve esse último”3. Frequentemente, a literatura é escrita à margem do tempo
ou contra ele, por inépcia, por covardia, por cálculo. Não basta usar as palavras
“cultura” e “justiça” para incorporar e redimir o tempo, mas é preciso “(...)
contribuir com tudo (...) de bom para que essas palavras assumam o seu conteúdo
verdadeiro ou então sejam varridas do dicionário”. Não há temas maiores ou
da palavra 259
menores; todos estão no presente, divididos pelas mesmas contradições históricas:
“Este livro começa em 1932, quando Hitler era candidato (derrotado) a
presidente da república e termina em 1943, com o mundo submetido a um
processo de transformação pelo fogo”. Nesse mundo, os escritores têm que se
confessar mais determinados quanto aos problemas fundamentais do indivíduo
e da coletividade, examinando com rigor as matérias da escrita para atuar
criticamente nos processos inventivos que as transformam, separando o que
merece durar como “conteúdo verdadeiro”. O preceito implica não aceitar as
coisas como se apresentam, mas regredir ao pressuposto delas para evidenciar
sua particularidade e explicitar seus encadeamentos em teias microscópicas de
causa-efeito que permanecem impensadas para seus agentes, enredando-os em
petrificações vividas como natureza. Segundo Drummond, o escritor deve
classificá-las e destruí-las no comentário leve da crônica, na estranheza da ficção,
na mescla tragicômica da poesia, dissolvendo a inércia de injustiças que se
tornaram hábitos, de superstições vividas como civilização, de provincianismos
com pretensão a universalidade, de “conteúdos verdadeiros” que se naturalizaram
como opressão. Como em Mallarmé, a Beatriz que lhe orienta a ética do estilo é
a destruição.
A transformação do mundo pelo fogo evidencia que a liberdade livre da
invenção que se apropria das representações divididas da memória coletiva é
apenas parcial e contingente. Recusando a omissão da arte pela arte e a
obediência a palavras de ordem partidária, é parcial e não pode ceder à inércia
do passado, como se a história depositada nas matérias fosse história de mortos.
Ao contrário, deve transformá-las como história de vivos, buscando as formas
possíveis de um futuro em que as palavras “justiça” e “cultura” não serão só
palavras.
Um texto de Confissões de Minas, “O Livro Inútil”, figura essa ética utópica.
Hoje, quando essa ética está esquecida e arquivada no conformismo da nossa
desesperança pós-utópica, provavelmente o texto é ilegível. Ou talvez só legível
como fóssil que documenta as disposições modernas que a poesia de
Drummond passou a intensificar principalmente depois de Sentimento do Mundo,
escrito entre 1935 e 1940:
“Escrever um livro inútil, que não conduzisse a nenhum caminho e não encerrasse
nenhuma experiência; livro sem direção como sem motivação; livro disfarçado
entre mil, e tão vazio e tão cheio de coisas (as quais ninguém jamais classificaria,
falto de critério) que pudesse ser considerado, ao mesmo tempo, escrito e não
escrito, sempre foi um dos meus secretos desejos.
Os dias passaram sobre esse projeto e não o fizeram mais nítido; ambições
mais diretas me agitaram; nunca soube quando chegaria o tempo desse livro, e
nunca senti em mim a plenitude insuportável da maturação; será hoje?
Se me disponho a escrevê-lo (o livro inútil) é porque já está feito...O
mesmo seria dizer que minha vida está acabada. Quando me sinto capaz de
nascer nesse escasso momento e olhar com olhos ingênuos essa janela que se
insere entre mim e a paisagem; ou aquela porta, que esconde um gato; ou o céu,
260
da palavra
onde passam aeroplanos postais. O homem acabado, o livro acabado são
fórmulas; o homem que continua, o livro que continua, e, sobretudo, o leitor
que continua estão insinuando como é audacioso esse projeto e como é difícil
‘pintar a passagem’, com o pincel que foge da minha mão, com a mão que se
desprega do braço e navega por conta própria, sobre a crista móbil da onda, da
onda que, por sua vez ...” 4.
“O Livro Inútil” é ficção teórica de um livro autonomizado de toda determinação.
Põe em cena a dualidade característica da grande arte moderna lembrada por
Deleuze: faz uma teoria da sensibilidade, como forma da experiência individual
possível, e uma teoria da arte, como reflexão da experiência social real. As duas
teorizações correm paralelas sem unir-se, pois Drummond sabe que as condições
individuais da experiência artística não são as condições da experiência social
real5. A dissimetria de sensibilidade e razão, de possível e real que escande “O
Livro Inútil” é o núcleo da forma da poesia e da prosa que passa a escrever a
partir de Confissões de Minas. Nela, o corpo, sempre determinado pela fratura do
sujeito e condicionado pela divisão de classe, dissolve-se em afetos divergentes,
nunca sublimados nem sublimes. Distanciamento da ironia, que nega a brutalidade
da história, e imersão no humor, que afirma a solidariedade com o sofrimento,
a dissimetria mescla revolta, recusa, angústia e resignação. Na leitura de
Drummond, é difícil apreender ou definir essa experiência como uma unidade,
pois se repete prismaticamente como ressonância de timbres nos modos muito
variados da extrema condensação dos poemas, aparecendo na prosa de maneira
menos condensada, mas não menos insistente. Seria inútil, por isso, comparar a
prosa e a poesia de Drummond só para afirmar a superioridade de uma delas.
Em ambas atua a mesma negatividade com o mesmo sentido moderno, mas
com intensidades e significações diferentes, específicas das duas.
“O Livro Inútil” faz a teoria da sensibilidade e da arte. Significa o que não se
deve fazer no momento; também o que se quer fazer, mas que ainda não é
possível. Escrever o livro inútil é impossível, pois seria repetição que afirmaria a
memória frustrada da experiência histórica. Se fosse possível escrevê-lo, a
linguagem o faria cheio de coisas ausentes, mas seria vazio de experiência, porque
acumularia experiências arruinadas sem nenhum caminho; talvez tivesse sentido
completo, mas isso não teria sentido, pois não teria direção material futura. O
livro inútil significaria a “plenitude insuportável da maturação”: não só a posse
perfeita da técnica, mas a posse total do tempo, como se o escritor estivesse fora
dele, pois já estaria completado. Em sua plenitude de abolido bibelô sonoro, o
livro já estaria acabado, escrito antes de ser escrito. Assim, afirmaria que o presente
do ato da sua escrita seria eterno, pois a história teria acabado nele. Toda imagem
de futuro estaria bloqueada ou já incluída e antecipadamente domada nele, pois
seu texto seria o do tempo de uma memória repetida e repetível como o tempo
morto de um arquivo total da experiência acabada: “Se me disponho a escrevêlo é porque já está feito... O mesmo seria dizer que minha vida está acabada”.
4
Drummond. Confissões de Minas (Caderno de Notas) ed. cit.
p.585.
5
Deleuze, Gilles. Lógica do Sentido. Trad. de Luiz Roberto Salinas Fortes. São Paulo, Perspectiva, 1974, pp.265-266 (Estudos, 35).
Como a vida felizmente não está acabada, o “livro inútil” significa outra
coisa, fundamental. Por exemplo, significa o estilo. Se fosse possível escrevê-lo,
o estilo do “livro inútil” seria o de uma vida acabada, por isso mesmo estilo que
fixaria numa fórmula estática o dinamismo do pensamento dividido que, no
presente, passa de um motivo contraditório a outros motivos contraditórios dos
da palavra 261
temas, fazendo alusões parciais aos possíveis do futuro. Drummond afirma que
o estilo é justamente a negação da completude da memória na experiência do
presente, pois figura a razão dividida que analisa sua própria falta de ser e unidade
nas formas incompletas ou contingentes do devir da sensação, realizando a
experiência de dissolução própria da grande arte moderna em que é “insuportável”
a “plenitude da maturação”6. Aqui, teoriza a ética utópica da sua arte: para não
escrever o livro inútil, é preciso sentir-se “(...) capaz de nascer nesse escasso
momento”. Ou seja: ser capaz de escolher a cada novo momento a forma
precária, entre as formas possíveis da experiência do passado e da expectativa
do futuro, sabendo que o escritor está limitado por condicionamentos e
determinações - também os inconscientes- do “escasso momento” do presente
ruim. A inteligência, a sensibilidade, o caráter, a família, a educação, a província,
a cultura pessoal, as escolhas que modelam a vida de um homem; a situação de
classe do escritor funcionário público, a posição de classe do escritor funcionário
público, as amizades e as inimizades do escritor funcionário público, os amores
do escritor funcionário público, as dores do escritor funcionário público, as trocas
simbólicas do escritor funcionário público; e as instituições, políticas e artísticas,
a luta de classes, o fascismo, os acontecimentos terríveis do país e do mundo do
escritor funcionário público, tudo sem remédio imediato... É impossível escrever
o livro inútil porque, num tempo em que todos os homens continuam a nascer
num escasso momento, o “olhar com olhos ingênuos” do trabalho infindável da
arte ainda nem começou. Se já começou, já não é mais, já não pode ser mais o
mesmo, pois não pode fixar-se: a vida do escasso momento do presente não está
e provavelmente nunca estará acabada. Drummond afirma que o livro inútil,
como livro acabado, é mais que inútil, pois pressupõe o homem acabado, a vida
acabada, a história acabada. Fórmulas a evitar, porque o homem, o escritor, o
livro e o leitor continuam, “nesse escasso momento”, a nascer escassamente,
mas, apesar de tudo, a nascer, demonstrando que a escrita nunca está acabada,
porque a vida verdadeira ainda nem sequer começou. Essa incompletude feita
de divisões é orientada pelo futuro improvável e deve ser o núcleo raciocinado
da forma, orientando-lhe politicamente o sentido estético.
Logo, o “livro inútil” é também a metáfora do livro que ainda não veio: é
do futuro que vem o tempo da escrita. A repetição é insuportável porque o
moderno não admite cânone nem canonização; toda arte será, antes de tudo,
auto-reflexão da impossibilidade de totalização da forma da sensibilidade partida
que escreve no “escasso momento” já o deixando livremente para trás no ato,
pois também o leitor continua a nascer nele. A fidelidade ao acabado é uma
contrafação, pois repete o mesmo num momento precário em que tudo já está
mudando ou já terá mudado ou já mudou, sem que ainda tenha vindo o terceiro
pensamento, a precária síntese das contradições. Quando vier - se vier- o livro
inútil então será realmente inútil. Por enquanto, o fundo da imaginação individual
do artista continua sendo a memória social dos signos e seu radical fracasso. A
escrita que transforma essa memória não pode naturalizar e repetir sua divisão,
seu sofrimento, sua morte. Os conteúdos sociais da memória só interessam como
matéria da experiência de um presente em que a escrita programaticamente
262
da palavra
6
Provavelmente, é em poemas de A Rosa do Povo, como “
Vida Menor”, “Nosso Tempo”
e principalmente em alguns
de Claro Enigma , como “Os
Bens e o Sangue”, “Rapto”, e
em um dos melhores já escritos de toda a história da
poesia, “Elegia”, de Fazendeiro
do Ar (1952-1953), que o arabesco dessa dissolução aparece na sua liberdade livre,
suspenso no ar, como o quarto de Manuel Bandeira e a sintaxe de Mallarmé. “Fragilidade”, de A Rosa do Povo, teoriza
a suspensão do sentido formulada antes, no pequeno texto de Confissões de Minas sobre
“pintar a passagem”. A suspensão aludida é a do ato que
figura não propriamente conceitos cheios, mas o instante
mesmo das passagens do uso
de uma palavra a outra, o átimo dos intervalos daquela indecisão entre som e sentido
que finalmente acha a chave.
Berkeley dizia que a ideia do
movimento é antes de tudo
uma ideia inerte. No auge da
sua arte, em A Rosa do Povo e
Claro Enigma, Drummond figura o movimento da linguagem mesma no incessante
deslocamento vazio e silencioso dos signos, não-ser das
coisas.
inacabada se anula na negação de si mesma como completude, abrindo-se
dividida para o futuro donde tantas coisas apenas pressentidas hão de vir, entre
elas principalmente o sopro da revolta que destrói os limites do “escasso
momento”.
A utopia da arte moderna anunciada nessa pequena prosa moderna de
Drummond “pinta a passagem” do seu próprio devir futuro ainda nem sequer
imaginado e, hoje, quando o pop norte-americano domina, esquecido. Enunciados
poéticos - “com o pincel que foge da minha mão, com a mão que se desprega do
braço e navega por conta própria, sobre a crista móbil da onda, da onda que, por
sua vez...”- apontam para a linguagem como a realidade do possível de uma
experiência plena só aludida, pois ainda não vivida por ninguém. Nessa
linguagem, tal “a mão que se desprega do braço e navega por conta própria”, a
estrutura estética tende a transcender-se a si mesma como auto-negação
pressionada pelo conteúdo aludido de verdade que anuncia o conceito totalmente
irrealizável de sublime como síntese final. Do que decorre o “audacioso desse
projeto” e, certamente, enquanto “o pincel foge da mão”, também o impossível
utópico dele, pois a divisão dos materiais do passado e do “escasso momento”
do presente do escritor os torna radicalmente inconciliáveis com o ideal
pressuposto. Logo, para ainda lembrar Adorno, ideal e material se afastam um
do outro na tensão com que o escritor figura o infigurável em uma arte cuja
utopia faria enfim coincidir a dissimetria de reflexão e sensibilidade, possível e
real, abolindo a experiência frustrada das violências do passado, o tempo horrível
do presente do autor e do leitor divididos pela classe e pela morte, e a si mesma,
ficção, como coisas finalmente acabadas e verdadeiramente inúteis, na forma
de um livro afinal e muito justamente inútil. Por enquanto, isso é impossível. É
o “durante” do trabalho de “pintar a passagem” para o devir de outra coisa que
essa prosa anuncia generosamente como a futura radicalidade que o tema do
“nada” terá na poesia de Drummond.
***
Em um texto de Confissões de Minas, que situa a poesia pessimista de Abgar
Renault no modernismo, lê-se o enunciado que funde referências à ação de
Mário de Andrade e ao Mallarmé de Crise de vers:
“Consumada a função destruidora do modernismo, e desmoralizadas, por sua
vez, as convenções novas com que se procurava substituir as velhas convenções,
ficou para o poeta brasileiro a possibilidade de uma expressão livre e arejada,
permitindo a cada um manifestar-se espontânea e intensamente, no tom e com
o sentido que melhor lhe convenha”7.
7
“Pessimismo de Abgar Renault”, Confissões de Minas, Obra
Completa. Rio de Janeiro, Aguilar, 1964, p. 529. “Selon moi
jaillit tard une condition vraie
ou la possibilité, se s’ exprimer non seulement, mais de
se moduler, chacun à son gré”,
escreve Mallarmé em Crise de
Vers
A referência à possibilidade de “uma expressão livre e arejada” é útil para
especificar os pressupostos da ética utópica do estilo da prosa de Drummond.
Nela, a negatividade alia-se ao exercício de uma função que sua poesia não
prevê, pelo menos imediatamente: a comunicação de informações feita como
comentário crítico, principalmente quando o gênero é a crônica. Rubem Braga
dizia que Drummond é mais moita na crônica porque o gênero o obriga a ser
da palavra 263
mais claro. Como na poesia o hermetismo não é de todo impróprio, pois na boa
arte a falta de clareza é antes de tudo falta de clareza do leitor, Drummond
guarda para o poema o mais íntimo da experiência8.
A tensão ética desse ocultamento na clareza é construída por procedimentos
técnicos que modelam sua prosa como função comunicativa e função crítica. A
função comunicativa é obtida pela propriedade vocabular, clareza e linearidade
sintáticas, estilo médio, análise, exemplo, citação de autoridades, explicação etc.;
a função crítica, por meio da elisão de termos redundantes, pelo uso de marcas
optativas de dúvida, negação e indeterminação, da formulação aforismática, da
análise do “eu” como não-unidade, da ironia e do humor quanto à matéria tratada
etc. Tais procedimentos, recombinados a cada texto, constituem o conteúdo
material da prosa de Drummond como instrumentos gramaticais e retóricos ou,
ainda, como procedimentos técnicos mobilizados para “manifestar-se espontânea
e intensamente” no estilo eticamente orientado.
Na crônica, a eficácia técnica desse conteúdo material associa-se
funcionalmente à análise das matérias, constituindo a maneira singular ou “estilo
Drummond” de efetuar valores simbólicos propostos à leitura como “conteúdo
de verdade” relativizador e relativizado9. O valor- ou os valores- nascem da
transformação das significações transportadas das matérias para a cena
comunicativa do texto como sentido utópico que nega a facticidade das
“verdades” das matérias, demonstrando que são perspectivas parciais datadas;
com isso, transforma as significações das matérias em um “conteúdo de verdade”
parcial e orientado pela moralidade técnica como ponto de vista que se autocritica a cada momento, fazendo a distinção de “bom” e “ruim” como tensão
não-resolvida. A tensão escande o discurso como destruição construtiva de um
outro, possível, sempre aludido.
Assim, o que é o “conteúdo verdadeiro” de que fala? O resto que sobra
do ato crítico do mundo torto realizado como crítica de linguagens na linguagem.
Reconhecendo a particularidade datada dos textos que publica, Drummond
afirma que Confissões de Minas é insuficiente: falta-lhe justamente o tempo, pois
teria sido escrito para contar ou consolar um homem das Minas Gerais, o
indivíduo Carlos Drummond de Andrade. Em várias crônicas, tratou dos
condicionamentos desse “indivíduo das Minas Gerais” e da sociabilidade letrada
em que se escolheu a si mesmo nos anos de 1920, em Belo Horizonte. Numa
delas, “BH”, publicada no Correio da Manhã, em 10/12/1967, escreve:
“Nas calçadas da Avenida Afonso Pena, moças faziam footing, domingo à noite,
como deusas inacessíveis, estrelas; a gente ficava parado no meio-fio, espiando
em silêncio. E divertimento era esperar o trem da Central, que trazia os jornais
matutinos do Rio; era fazer interminavelmente a crônica oral da cidade nas
mesinhas de café do Bar do Ponto, literaturar à noite na Confeitaria Estrela, do
Simeão, que nos fiava a média, com pão e manteiga. Não acontecia nada. Que
paisagem!Que crepúsculos!Que tédio!”
Nesse tempo referido na crônica, 1923, como escreve em “Recordação
de Alberto Campos”, de Confissões de Minas, ele e Abgar Renault, Gustavo
264
da palavra
Rubem Braga. “Fala, Amendoeira”. Diário de Notícias, Rio
de Janeiro, 19/9/1957.
9
Por exemplo: “Não somos
bastante hábeis para extrair de
nosso instrumento a nota mais
límpida, bastante honestos
para confessá-lo, bastante hipócritas para disfarçá-lo, bastante cínicos para nos consolar, bastante obstinados para
tentar de novo e sempre. Por
fim, cumprimos a nossa carreira. E não há outra”. Cf.
Drummond. “Do Homem Experimentado”. Passeios na Ilha.
Ed. cit. p. 666.
8
Capanema, Alberto Campos, Emílio Moura, Milton Campos, Pedro Nava, Mario
Casasanta, Martins de Almeida, Gabriel Passos e outros, esporádicos, preparavam
“materiais de cultura”. Como costuma acontecer nos grupos intelectuais de
província condenados ao autodidatismo e à vigilância ferozmente irônica e autoirônica contra os poderes da sombra do lugar, também os intelectuais do grupo
de Drummond eram vítimas da própria ironia; impiedosos, não se perdoavam
nenhuma fragilidade a si mesmos10. Será talvez preciso ter vivido no interior
para lembrar a desesperada náusea dessas noites relatadas sem auto-indulgência
nas crônicas de Drummond? Lá e então, como aqui-agora, os poderes que faziam
o deserto crescer eram imediatamente visíveis em tipos emblemáticos, padre,
delegado, vereador, dono de cartório, juiz, comerciante, gerente de banco,
professora, aluno promissor que um dia ainda iria ser alguém na vida prestando
serviços bajulando medalhões. A ironia aí tinha pasto. Mas Drummond também
sabe que os poderes são principalmente ativos na invisibilidade das micro-formas
sutis do gregarismo, do individualismo, do tédio, do compromisso amoroso, das
mães terríveis, da família e do Ideal com que o entusiasmo da cruel abstração
da juventude é mistificado. As redes tentaculares dos poderes que constituem o
provincianismo conseguem transformar a auto-ironia em irrisão para os próprios
indivíduos que tentam, e como! resistir contra eles com suas mesmas formas. É
magnífica a formulação dessa irrisão em outra crônica de Confissões de Minas:
“Era ainda naquele tempo (bom tempo) em que se tomava cerveja e café
com leite na Confeitaria Estrela. Entre dez e onze horas, o pessoal ia aparecendo
e distribuindo-se pelas mesinhas de mármore. Discutia-se política e literatura,
contavam-se histórias pornográficas e diziam-se besteiras, puras e simples
besteiras, angelicamente, até se fechar a última porta (você se lembra, Emílio
Moura?Almeida? Nava?). Ascânio chegou quando o Estrela já entrara em
decadência, e nas melancólicas mesinhas o mosquito comia o açúcar derramado
sobre as últimas caricaturas de Pedro Nava.”11
10
“Recordação de Alberto
Campos”, p. 524.
11
Idem, p. 525
“(...) o Estrela já entrara em decadência, e nas melancólicas mesinhas o mosquito
comia o açúcar derramado sobre as últimas caricaturas de Pedro Nava”. Aqui,
mais uma vez, é o poeta quem escreve: o mosquito que come o açúcar derramado
sobre as caricaturas condensa agudamente os restos da memória desse tempo na
alegoria que figura qualquer experiência análoga, reavivando a lembrança de quem
já tenha vivido sua irrisão, pois não se trata só de Belo Horizonte ou Para-lá-domapa, mas de Brasil. Segundo Drummond, orgulhoso e duro consigo mesmo,
o provincianismo de Minas Gerais diria pouco das relações do mesmo indivíduo
mineiro que escreve a nota com o período histórico em que vive. Obviamente,
é sinceridade de quem viveu a coisa pra valer; mas também modéstia afetada.
Embora o provincianismo seja fortíssimo na formação intelectual de qualquer
brasileiro, não é necessariamente determinante da orientação política que se dá à
experiência da história. Desde cedo, Drummond foi internacionalista e o
provincianismo não é determinante do modo como seu pensamento material
dá sentido crítico à sua poesia e prosa. Também se deve lembrar que, em 1924,
ele teve a oportunidade de, no meio do caminho da sua estrada de Minas
pedregosa, topar com intelectuais como Mário de Andrade e Oswald de Andrade.
O jeito provinciano permanecerá, contudo, ativamente transformado como
da palavra 265
posição não-provinciana à esquerda, na timidez ousada do estilo que vai como
que de cabeça baixa e mãos pensas, cismando sobre o que é cheio de si sem si,
lucidez da descrença e a angústia de sempre. Como afirma Drummond, sua
prosa marcada pela vida provinciana, por isso mesmo prosa limitada, tem um
saldo: deve ser lida como depoimento negativo que indicará aos mais novos o
que fazer. O que fazer?
Diferentemente da poesia, em que o conteúdo é a forma, a crônica
comunica informações, pressupondo que a forma é meio para conteúdos
dirigidos a uma imagem pré-constituída de leitor. O gênero comunica a própria
comunicação. Essa estrutura faz a crônica tender, independentemente da
qualidade do texto particular, a ser uma adequação comunicativa à recepção
pressuposta. Muitas vezes, uma facilidade e mesmo uma facilitação comunicativa,
que fará o leitor sorrir agradado com a própria inteligência capaz de reconhecer
a engenhosidade amena da crítica das matérias, e, pensando por instantes em
como realmente a vida brasileira não presta, passar para a seção esportiva. Até
o dia seguinte, quando o jornal sai novamente. Pois a forma da crônica prevê o
esgotamento de si mesma quando é lida, mais ainda quando aparece onde deve
, o jornal e o tempo brevíssimo da sua leitura recortada na simultaneidade das
informações que compõem o ato como repetição das trocas mercantis onde a
crônica se dissolve naturalmente, como um fait divers entre outros.
Além disso, a crônica sempre é meio para outra coisa fora dela, meio por
assim dizer “iluminista” ou pragmático, sempre atravessado por uma tensão. A
crônica escrita “criticamente” propõe as informações para o leitor apostando
na capacidade de produzir mudanças dos seus hábitos com comentários mais
ou menos divergentes da normalidade suposta das matérias cotidianas. Para
realizar a pretensão, tem que manter a normatividade da estrutura comunicativa,
modulando-se como um paralelismo de forma convencional e conteúdos
“críticos”. Toda crônica é sempre “interessante”, no estrito sentido material de
realizar o inter esse fático de mensagem situada “entre” a intencionalidade autoral
e a recepção pressuposta. Em termos comunicacionais, basta que realize essa
função de contato para ser eficaz. Já em termos artísticos, não, pois a
subordinação dos enunciados ao contato a determina como reprodução simples
dos esquemas perceptivos habituais que organizam a experiência das matérias
sociais que seus conteúdos “críticos” pretenderiam superar. A crônica é não só
interessante, no sentido referido, mas literariamente boa, quando é inventada
programaticamente como tensão de função comunicativa e conteúdo crítico,
direcionando os enunciados em sentido divergente do pressuposto na reprodução
da nor matividade comunicativa, numa espécie de auto-sabotagem
maliciosamente irônica.
Por isso mesmo, a função comunicativa do gênero, que no jornal é virtude,
é o seu maior defeito estético quando os textos são juntados em livro. No caso,
a brevidade do tempo da recepção jornalística, pressuposta no contrato
enunciativo do gênero, é eliminada pela contiguidade dos textos no livro, que os
compacta e simultaneamente põe em relevo segundo outros protocolos de leitura,
deslocando-os do tempo da sua recepção inicial e tornando ainda mais tênue a
266
da palavra
atualidade do seu comentário dos temas. Daí, muitas vezes, esse ar meio paradão
de depósito de coisas usadas que os livros de crônicas costumam ter. Neles, os
aspectos das matérias cotidianas escolhidos e transformados pelo autor como
temas de interesse imediato, que no jornal são o nervo do gênero, tornam-se
apenas póstumos, bastando lembrar o óbvio: o livro é compilação feita e editada
depois, quando a atualidade da crônica já passou e ela sobrevive a si mesma na
leitura como um casulo de inseto que já voou ou memória exterior de matérias
mortas desprovidas de imediaticidade. É por isso, talvez, que crônicas despertam
o interesse de historiadores, que se apropriam delas como documentos de ruínas.
Muitas vezes, as crônicas de Drummond sofrem desses defeitos. Eles
são determinados não propriamente pelo seu estilo, mas pela simples mudança
do meio material de publicação. Mesmo assim, a passagem do tempo e a função
comunicativa própria do gênero não conseguem eliminar totalmente o sentido
negativo que imprime aos temas nos textos publicados como livro. Isso porque
usa a crônica tendendo a subordinar sua estrutura comunicativa à dramatização
de conflitos, tensões e contradições da memória coletiva depositada nas matérias
que transforma nela, orientando o comentário com o sentido utópico da
perspectiva ética que, compondo o estilo como negatividade, consegue derrotar
a facticidade e a obsolescência das matérias, flutuando, por assim dizer, aquém
e além delas, para ganhar autonomia análoga- análoga, não idêntica- à da
poesia. Isso é ainda mais evidente hoje, quando o eventual leitor lê suas crônicas
e zomba da sua ética, como de um morto de sobrecasaca. O tempo das crônicas
de Drummond realmente passou, mas não as determinações capitalistas dele,
que aí estão intensificadas como um verme a roer também o leitor pós-utópico,
fazendo pior o soluço de vida criticada nelas. Seria equivocado, de qualquer
modo, aplicar os critérios de leitura da poesia à leitura das crônicas de
Drummond, pois equivaleria a esperar delas uma condensação que não têm
nem pressupõem.
***
12
Cf. Santiago, Silviano. “Introdução à leitura dos poemas
de Carlos Drummond de Andrade”. In Carlos Drummond
de Andrade. Poesia Completa.
Volume único.Fixação de textos e notas de Gilberto Mendonça Teles. Introdução de
Silviano Santiago. Rio de Janeiro, Editora Nova Aguilar S.A.,
2002, pp. III-XLI.
Quando afirma, na mesma nota introdutória de Confissões de Minas, que
uma sutileza que não resista à prova da convivência mais larga é apenas um
vício, alegando justamente a necessidade política da socialização da inteligência,
Drummond propõe a mesma orientação ética que se lê nos trechos da carta de
Mário de Andrade transcritos em outra crônica comovidíssima e comovedora
de Confissões de Minas. Mário de Andrade foi fundamental para Drummond,
ensinando-lhe, quando era moço de província, a esquecer o bovarismo de
Joaquim Nabuco e as afetações céticas de Anatole France12. A mesma lição do
amigo se lê quando Drummond afirma que é necessário reformar a capacidade
de admirar e de inventar, inventando olhos novos ou novas maneiras de olhar
para estar à altura do espetáculo do tempo: “estamos começando a nascer”.
Esse mário-oswaldiano “ver com olhos novos” exige um olhar armado, culto e
informadíssimo sobre as coisas estrangeiras, ao mesmo tempo sem prevenção,
ingênuo e como que primeiro na consideração das coisas antigas, velhas e novas
do país. Ele caracteriza os melhores momentos da prosa de Drummond, como
da palavra 267
os textos de Confissões de Minas, Contos de Aprendiz e Passeios na Ilha. Drummond
declara com todas as letras sua apropriação dos paulistas de 1922, principalmente
as lições de Mário de Andrade sobre a moralidade da técnica e o “bárbaro e
nosso”, de Oswald de Andrade. Mas, diversamente do nacionalismo limitador
de Mário de Andrade - “É preciso evitar Góngora, é preciso evitar Mallarmé”a concepção de palavra poética de Drummond deve muito a Mallarmé,
principalmente porque não dissocia a formulação estética do pensamento da
economia política do signo.
Por isso mesmo, em Confissões de Minas e na sua prosa posterior, são
recorrentes temas e procedimentos da sua poesia. Sempre orientados como
“expressão livre e arejada”, recebem o mesmo direcionamento negativo do
sentido. Desde o início, Drummond escolhe a direção negativa do sentido em
função da sua ética do estilo, mas como que a disfarça, discreto, em amabilidades
finas, convenientes à vertiginosa liberdade da sua inteligência sempre analítica,
fiel antes de tudo a si mesma no exame de sua matéria, a palavra. Uma leitura
paciente de toda a sua prosa que a compare com sua poesia encontrará mais
evidências desse trânsito dos temas de um campo para outro e poderia ser útil,
quem sabe, para elucidar o sentido de formulações condensadas e por vezes
herméticas de muitos poemas. Lê-se em um pequeno texto de Confissões de Minas,
“Neblina”:
“Mas como é impossível partir -os caminhos são compridos e os meios são
curtos e a vida está completamente bloqueada-, tu te resignas a tomar o teu
grogue do hotel, nessa hora mais que todas tristíssima - seis horas da tarde,
enquanto a neblina cai lá fora, e as mulheres passam monstruosas e vagas como
desenhos indecisos, que a mão constrói para apagar logo depois”13
Em “Ciclo”, de A Vida Passada a Limpo, voltam as mulheres monstruosas
e vagas, transformadas na formulação: “Sorrimos para as mulheres bojudas que
passam como cargueiros adernando”. Aqui, o termo “monstruosas” da prosa se
repete parcialmente em “bojudas”, que mantém a significação de /quantidade/
, mas agora com conotações sexuais e de fertilidade, como a de /vaso/, em
“bojudas”; a fórmula genérica “como desenhos indecisos” torna-se “como
cargueiros adernando”, em que se acumulam várias noções, /carga/, /viagem/
, /missão/, /peso/, /dificuldade/ etc., tornando a imagem muito condensada.
Mantém-se nos dois casos a prótase da similitude, “como”, indicativa da operação
intelectual de comparação. Por vezes, a estrutura de uma frase personifica o
inanimado: “o mole consentimento das peras”, de um texto de Confissões de
Minas14, reaparece na poesia como “o sono rancoroso dos minérios”. Ou, ainda,
a crônica “Natal U.S.A. 1931”: “Possível alusão a Papai Noel, se bem que o
indivíduo se haja desprestigiado terrivelmente em literatura. O bom ladrão que,
não podendo insinuar-se por outra abertura mais cômoda, introduz-se pelo
buraco da fechadura”15, que cita o poema “Papai Noel às Avessas”, de Alguma
Poesia. Do mesmo modo, a crônica “Viagem a Sabará”, em que trata da arte
colonial mineira, reaparece estilizada em poemas de “Selo de Minas”, de Claro
268
da palavra
13
“Neblina”, in Confissões de
Minas, ed. cit., p. 588
14
Confissões de Minas, p. 598
15
Idem,ibid. p.598
Enigma. Também seria útil comparar a estrutura de textos postos na forma
sequencial de prosa em muitos poemas com os textos que publicou como prosa
e nos quais a condensação onírica dos significados tem efeitos análogos aos da
poesia. É, por exemplo, o caso de “Enquanto descíamos o rio”, de Confissões de
Minas, e de “O Enigma”, de Novos Poemas, que têm andamento e processos
analíticos análogos:
“E quando as águas pareciam calmas, um peixe voou que se escondia em camadas
mais fundas que o mais fundo suspiro. Logo se formaram círculos, elipses,
triângulos e mais desenhos alheios à vã geometria. Entre esses ressaltava a corola
de uma flor, que era como uma cobra rastejando na corrente, mordendo apenas,
com o seu breve contato, a planta úmida de nossos pés e assumindo a cada
instante uma nova complexidade.”16.
“As pedras caminhavam pela estrada. Eis que uma forma obscura lhes barra o
caminho. Elas se interrogam, e à sua experiência mais particular. Conheciam
outras formas deambulantes, e o perigo de cada objeto em circulação na terra.
Aquele, todavia, em nada se assemelha às imagens trituradas pela experiência,
prisioneiras do hábito ou domadas pelo instinto imemorial das pedras. As pedras
detêm-se. No esforço de compreender, chegam a imobilizar-se de todo”17.
A negatividade tem, na prosa e na poesia, modulações de tom e de
intensidade. Nos poemas de Drummond, ainda na maior empatia pelo outro, a
palavra sempre é escarpada e escarninha, arredia ao contato: “toda sílaba/acaso
reunida/ a sua irmã, em serpes irritadas vejo as duas”, diz em “Nudez”, de A
Vida Passada a Limpo. Mas a prosa é ávida de contato humano. Se às vezes
implica a facilidade de alguns textos posteriores, que fazem o leitor sorrir por
instantes antes de esquecê-los, como acontece em alguns de Contos Plausíveis,
não elimina o sentido negativo do conjunto. Vejam-se, como exemplo de diferentes
intensidades e tons, um trecho de prosa e um poema que, praticamente
contemporâneos, têm a mesma referência, o mundo visto do apartamento.
A prosa:
16
“ Enquanto descíamos o
rio”, Confissões de Minas, p. 594.
17
“O Enigma”, Novos Poemas,
p. 231.
18
“Esboço de uma Casa”, Confissões de Minas, p. 579
“Casa fria, de apartamento. Paredes muito brancas, de uma aspereza em que não
dá gosto passar a mão. Aí moram quatro pessoas, com a criada, sendo que uma
das pessoas passa o dia fora, é menina de colégio. Plantas, só as que podem
caber num interior tão longe da terra (estamos em um décimo andar), e apenas
corrigem a aridez das janelas. Lá embaixo, a fita interminável de asfalto, onde
deslizam automóveis e bicicletas. E ao longo da fita, uma coisa enorme e estranha,
a que se convencionou dar o apelido de mar, naturalmente à falta de expressão
sintética para tudo o que há nele de salgado, de revoltoso, de boi triste, de cadáveres,
de reflexos e de palpitação submarina. Do décimo andar à rua, seria a vertigem,
se chegássemos muito à janela, se nos debruçássemos. Mas adquire-se o costume
de olhar só para a frente ou mais para cima ainda”18.
E a poesia:
da palavra 269
“Silencioso cubo de treva;
um salto, e seria a morte.
Mas é apenas, sob o vento,
a integração na noite.
Nenhum pensamento de infância,
nem saudade nem vão propósito.
Somente a contemplação
de um mundo enorme e parado.
A soma da vida é nula.
Mas a vida tem tal poder:
na escuridão absoluta,
como líquido, circula.
Suicídio, riqueza, ciência...
A alma severa se interroga
e logo se cala. E não sabe
se é noite, mar ou distância.
Triste farol da Ilha Rasa.19
A diferença é a condensação. A imagem poética de Drummond é sempre
tão extraordinariamente condensada que se torna símbolo. Como a “pedra”, o
“no meio do caminho”, o “gauche”, o “e agora, José?”, o “João amava Teresa”,
o “elefante”, “Luísa Porto” ou a “flor”, os motivos que convergem nela abrem a
leitura para associações inesperadas em que não há intervalo temporal entre
significante e significado, por isso imediatamente densas e imediatamente
sentidas-vividas pelo leitor como sínteses da experiência. Como ocorre com as
associações da oposição semântica de “Triste” e “farol”, da expressão “Triste
farol”, que é um correlato objetivo construído como oxímoro ou síntese
disjuntiva da tristeza que tolda a lucidez do juízo metaforizada na luz-guiaaltura do farol a brilhar na treva. O mesmo oxímoro da lucidez obscurecida do
juízo que se distancia de si e do mundo, no alto, para avaliar a existência, é
redistribuído nos significados de /isolamento/ e /solidão/ da palavra “ilha” e
no significado novo, inesperado, que irrompe quando a categoria /quantidade/
, de “rasa”, se transforma pela associação com “ilha” em /qualidade/, que traduz
a lucidez triste como irrisão generalizada da vida banal. “Triste farol da Ilha
Rasa” é mais um símbolo drummondiano, pois num átimo condensa, para
separá-la, a unidade contraditória de sujeito-objeto na experiência angustiada
que lê o leitor.
A prosa, como a do trecho, avança movida analiticamente por alguns
impulsos básicos encontráveis na poesia: a enunciação descendente, restritiva e
quase pejorativa, demonstrando com minúcias a mesquinhez do objeto
polifacetado pelo distanciamento triste e sem ênfase, não obstante curioso e
onívoro; o senso agudo do nonsense da opacidade bruta dos processos limitadores
270
da palavra
19
“Noturno à Janela do Apartamento”, Sentimento do Mundo,
p.117.
da vida; a desconfiança e a descrença das soluções acabadas; o raríssimo senso
de alternativa; a particularização analítica de coisas, pessoas, personagens,
situações, eventos; o desejo quase sempre incontido de evidenciar a nãonaturalidade do que é dito; e a dramaticidade do terrível que espreita no mínimo
detalhe inocente.
Na poesia, a elisão dos nexos gramaticais impede, obviamente, a
representação do processo analítico do pensamento como linearização sintática
dos atos do juízo. A mesma elisão produz o discurso como justaposição de
pedaços que significam a divisão social do “eu” e das matérias e,
simultaneamente, funcionam como diagrama sintático do trabalho crítico de
desorganização programática da forma. A possível análise dos temas é feita
pelo leitor como inferência parcial das significações condensadas agudamente
nas palavras e entrevistas nos intervalos semânticos do deslocamento contínuo
dos pedaços justapostos. Interceptando-se em vários planos semânticos
associados como politematismo, as imagens dão-se à leitura como metonímias
do desejo dividido e símbolos extremamente condensados.
***
Drummond não escreve prosa experimental como Oswald de Andrade.
Não dissolve os nexos sintáticos, como faz na poesia; ao contrário, como é uma
inteligência extremamente analítica, quando escreve prosa parece ter predileção
pela oração contínua e seus incisos e acidentes particularizadores. Veja-se uma
formulação típica do seu estilo, que se afunila na particularização crescente de
um tema observado e fixado na tensão que constitui sua referência, a cidade
capitalista contemporânea, tensão visível na formulação optativa, hipotética “pode ser”, “poderá explicar”; no gosto das duplicações - “o paralisa e o priva”,
“liberta e ao mesmo tempo oprime”, “desta solidão está cheia a vida” e oposições“mas, poeticamente” etc.:
“No formigamento das grandes cidades, entre os roncos dos motores e o barulho
dos pés e das vozes, o homem pode ser invadido bruscamente por uma terrível
solidão, que o paralisa e o priva de qualquer sentimento de fraternidade ou temor.
Um desligamento absoluto de todo compromisso liberta e ao mesmo tempo
oprime a personalidade. Desta solidão está cheia a vida de hoje, e a instabilidade
nervosa do nosso tempo poderá explicar o fenômeno de um ponto de vista
científico; mas, poeticamente, qualquer explicação é desnecessária, tão sensível e
paradoxalmente contagiosa é esta espécie de soledade”20
20
“Fagundes Varela, Solitário
Imperfeito”-Três Poetas-Confissões de Minas- pp. 512-513.
Drummond vê em sua prosa, antes de tudo, o exercício de uma função
que sua poesia não prevê, pelo menos imediatamente: a comunicação. A essa
função se relacionam a propriedade vocabular, a formulação aforismática e a
clareza. Os textos de Confissões de Minas são escritos com a propriedade vocabular
que será, durante toda a vida do autor, adequação da palavra à representação
dos temas e à avaliação deles pelo juízo da enunciação. A propriedade vocabular
de Drummond não é purista, como a unificação monocórdica do estilo em um
registro restrito ao “bem dizer” gramaticalesco, normativo e lusitanista dos
da palavra 271
gramáticos brasileiros de fins do século XIX e começos do século XX, mas
estilização modernista e moderna de vários padrões da língua portuguesa como
variedade necessária pressuposta no conceito de mot juste. Leitor de Machado
de Assis, Gustave Flaubert e Marcel Proust, aplica os termos com propriedade
e variedade, pressupondo que a justeza da palavra - como adequação
representativa aos temas- deve ser simultaneamente evidência da justiça dos
atos do juízo que, enquanto os avalia, não discorre pelas matérias, simplesmente,
mas antes de tudo as decompõe para especificar os mecanismos que as
particularizam e, distinguindo o bom do ruim, evidenciar a distinção operada
na mesma propriedade do uso do termo. Fazendo distinções, Drummond é
discreto, pois acredita, como dizia Adorno, que o sujeito precisa sair de si na
medida em que se oculta. Saindo de si com discrição, incorpora à seleção
vocabular de suas primeiras crônicas a lição modernista da contribuição
milionária de todos os erros. E é nisso que se revela um estilista dos bons, pois
sua prosa dá nome aos bois. Nunca a simplicidade kitsch das tentativas de
singeleza humanista de um sujeito cheio de boas intenções aquém do objeto,
mas a simplicidade artificialíssima que resulta da depuração obtida por operações
técnicas extremamente complexas21. A “poesia mais rica/ é um sinal de menos”,
lemos em A Vida Passada a Limpo. Ou, em prosa:
“À medida que envelheço,vou me desfazendo dos adjetivos. Chego a crer que
tudo se pode dizer sem eles melhor talvez do que com eles. Por que ‘noite
gélida’, ‘noite solitária’, ‘ profunda noite’? Basta ‘a noite’. O frio, a solidão, a
profundidade da noite estão latentes no leitor, prestes a envolvê-lo, à simples
provocação dessa palavra noite”22.
***
Como qualquer outro, o estilo que “pinta a passagem” na poesia e na
prosa de Drummond é uma sintaxe, uma maneira particular de ver e de dizer as
coisas. Mas não só, porque antes de tudo é a impossibilidade de vê-las e dizêlas de outra maneira23. Essa restrição, decisiva na sua arte de poeta do finito e
da matéria, determina a composição das significações de seus textos como
divisão pelo “fatal meu lado esquerdo”, expressão-síntese de sua poética legível
no primeiro poema de A Rosa do Povo (1945). Drummond é, antes de tudo, uma
sensibilidade comovida com o tempo, mas capaz, como dizia T.S. Eliot dos
poetas metafísicos ingleses do século XVII, de controlar e devorar
intelectualmente qualquer experiência afetiva24. Desde seu primeiro livro, Alguma
Poesia (1930), a inteligência da forma dessa sensibilidade aparece unida
materialmente à afirmação da liberdade como dicção irônica e auto-irônica muito
pessoal, mas sem subjetivismo, orientada pelo firme e desencantado senso
utópico de justiça que a faz atenta a tudo quanto é dor. A partir de Sentimento do
Mundo (1935-1940), humaniza-se mais, se é possível dizê-lo assim, como maneira
auto-reflexiva de dizer as coisas daqui e do vasto mundo que evidencia a
particularidade da sua angústia anti-heróica. Acentuando a auto-reflexão com
gravidade trágica, o poeta opera o sentido “esquerdo” da ética do estilo em dois
níveis complementares e antitéticos de significação, a angústia de viver as formas
272
da palavra
21
Cf. “Simplicidade”, em
Confissões de Minas. Ed. cit.,
p. 591.
22
Cf. Confissões de Minas, p.581
23
Drummond “Apontamentos literários”. Correio da Manhã, Rio, 1/9/1946.
24
“Mas Carlos Drummond de
Andrade, timidíssimo, é ao
mesmo tempo, inteligentíssimo e sensibilíssimo. Coisas
que se contrariam com ferocidade. E desse combate toda
a poesia dele é feita”. Mário de
Andrade. “A Poesia em 1930”.
Aspectos da Literatura Brasileira.
5 ed. São Paulo, Martins, 1974,
p. 33.
25
Cf. Lima, Luiz Costa. “O
princípio-corrosão na poesia
de Carlos Drummond de Andrade”. Lira e Antilira. Mário,
Drummond, Cabral. 2 ed. revista. Rio de Janeiro, Topbooks,
1995.
26
“Vila de Utopia”, Confissões
de Minas. Obra Completa. ed. cit.
p. 561. Por exemplo dessa
melancolia racional e ceticismo sentimental, leia-se “O
Enigma”: “Ai! de que serve a
inteligência- lastimam-se as
pedras. Nós éramos inteligentes, e contudo, pensar a ameaça não é removê-la; é criá-la.
Ai! de que serve a sensibilidade- choram as pedras. Nós éramos sensíveis, e o dom da
misericórdia se volta contra
nós, quando contávamos aplicá-lo a espécies menos favorecidas.” ( Novos Poemas, ed. cit.
p. 231).
27
“ Se a realidade dada perde
seu valor para o ironista, não é
enquanto é uma realidade ultrapassada que deve dar lugar
a uma outra mais autêntica,
mas porque o ironista encara
o Eu fundamental, para o qual
não há realidade adequada”.
“Kierkegaard, O Conceito de
Ironia”. In Ménard, Pierre. Kierkegaard, sa vie, son oeuvre, pp.
.57-59, cit. por Deleuze, Gilles.
Lógica do Sentido.Trad. Luiz
Roberto Salinas Fortes. São
Paulo, Perspectiva, 1974, p. 142
(Estudos, 35).
28
Aqui, escolhi estabelecer
algumas relações da prosa inicial de Confissões de Minas e de
livros de poesia publicados
opressivas da vida capitalista e a resistência contra a sua essencial barbárie. Ser
e tempo, vida profunda e miséria histórica, a complementaridade antitética das
significações é estranhamento, tensão e contradição das normas sociais que
organizam a naturalidade das representações que o leitor habitualmente faz de
si e do mundo. O estranhamento acontece em todos os níveis do discurso como
dramatização dos temas por meio de duas perspectivas antagônicas25. Dividem
a figuração em afetos irônico-sentimentais irreconciliáveis e opõem os
enunciados como elevação lírica e trágica das matérias humildes e baixas e
rebaixamento cômico e satírico das matérias altas e graves: “anjo torto”, “sublime
cotidiano”, “vísceras sentimentais”. As mesclas estilísticas dessa divisão negam
a unidade suposta do sujeito e a racionalidade suposta das coisas do seu mundo,
evocando no leitor as incongruências de um abismo de melancolia racional e
ceticismo sentimental26.
Na auto-reflexão sobre a impossibilidade da poesia em um tempo de
miséria, Drummond dissolve as formas artísticas que naturalizam a arte como
evidência. A particularidade histórica do artifício aparece à leitura como
suspensão e desvanecimento do sentido, pois incide negativamente sobre os
condicionamentos sociais, materiais e institucionais da sua própria possibilidade
como poesia em um mundo no qual o leitor está inteiramente subordinado à
lógica da mercadoria. O real não é racional, propõe sua forma, transformando e
dissolvendo as ideologias correntes sobre o tempo e a história. Dissolvendo-as,
esvazia também o ato da invenção em um vácuo posto entre limites denegados:
o ainda impossível futuro das formas da sensibilidade livre anunciadas no “livro
inútil”- a inteireza da memória da infância, a vida sem culpa, o amor sem medo
e extorsão, o trabalho significativo, a simplicidade da beleza, a liberdade coletiva,
a revolução- e o real do presente intolerável, objeto da reflexão em “livros
inúteis”- a miséria da história, a exploração, a mercadoria, a feiúra da cidade, a
falta de sentido, a opressão de classe, a solidão do indivíduo, a falta de amor, a
injustiça, o fascismo.
Como em Mallarmé, a destruição é sua Beatriz. Poesia da experiência,
nunca é harmônica, pois sabe que o sofrimento humano é histórico. Sua divisão
mesclada corresponde à desarmonia essencial da vida, pois sabe que o sofrimento
nunca é anedótico, menor, pouco ou insignificante. Vamos morrer. Máximo poeta
moderno da memória, do esquecimento esquecido de si mesmo e da
impossibilidade de esquecer o peso horrível do passado, sabe que qualquer dor
é mal, devendo ser tratada com a delicadeza e a honestidade de uma comoção
só possível porque fundada na maior solidão de todas, a solidão do indivíduo
que vai morrer sabendo que a injustiça não acabou, uma solidão anti-heróica,
portadora da peste coletiva transfigurada na recusa da Grande Saúde que faz a
vida improvável. Sua poesia lembra que a morte, tal o gavião molhado de “Morte
das Casas de Ouro Preto”, baixou entre nós, em nós e não vai embora. Com
comovedora exemplaridade por assim dizer compendiária, dramatizando
experiências que nunca tiveram vez nem voz, impensável amargo da beleza e
impensado recalcado da herança das violências das estruturas coloniais
sintetizadas na memória da família patriarcal e das modernidades oligárquicas
da sociedade urbana instaurada no país pela Revolução de 1930 e pelo Estado
da palavra 273
Novo, a força negativa da sua recusa da vida ruim é extraordinária.
A materialidade da palavra em “estado de dicionário”, a mescla estilística,
a sintaxe gaga, a dissolução do verso, a ausência de música, as incongruências
de ironia, comoção, humor, desprezo e angústia da poesia retomam a autoreflexão irônico-sentimental praticada pelos românticos como contraste de ideal
sublime e de realidade grotesca. Como reflexão infinita de um Eu ilimitado
sobre a essência da forma poética, a ironia romântica expressa o distanciamento
que a perspectiva de uma consciência infeliz, mas superiormente crítica, toma
em relação ao mundo mau e incapaz, em suas formas finitas, de oferecer consolo
à má generalidade da sua solidão saudosa de Absoluto. Fundamentando as
sentimentalidades em unidades metafísicas tidas como soluções, os românticos
recusam as únicas existentes, as humanas, por isso nadificam o finito no mito27.
Nada desse idealismo no estilo da poesia e da prosa de Drummond. Antiromântico, seu pensamento é material. Sabe, com a lição romântica de Baudelaire,
que o “eu” é abominável; com a lição cética de Montaigne, que é vário e
desinteressante; com a lição do rigor de Mallarmé, que a transposição e a estrutura
produzem a desaparição elocutória do sujeito, cedendo lugar às palavras em
estado de dicionário. E sabe, com a sabedoria do seu fazer, que o eu lírico eleva
a voz do fundo do abismo do ser, pois sua subjetividade é pura imaginação,
como diz o Nietzsche do Nascimento da Tragédia28. Mas sabe principalmente,
com a simples, comum, rotineira e imediata experiência da vida brasileira, que
a destruição da vida besta é mais fundamental que o “eu”, a poesia e o Ser.
274
da palavra
pelo autor até 1945. Mas avanço, um tanto, para lembrar
rapidamente que o arabesco
em movimento anunciado em
Confissões de Minas no pequeno
texto sobre a “pintura da passagem” torna-se princípio estruturador da forma em Claro
Enigma e Fazendeiro do Ar. Neles, o conceptismo já classificado como “barroquismo” da
dicção do enovelar-se intelectualista da linguagem sobre si,
deslizando-se, estrutura, em
palavra e palavra no vazio que
vai de uma a outra, como se
em torno de um eixo de ar
intensificado na suspensão
encantatória do sentido livre
de nexos de representação na
fictícia aparência do presente,
tem certamente sentido alegórico de resposta política ao
estalinismo do PCB aludida
também na prosa de Passeios
na Ilha. Mas, antes de tudo,
isso- ou aquilo - que também
já foi chamado de “formalismo” pelos que falam de “literatura e história” ignorando a
historicidade das transformações históricas da forma da
poesia moderna- aponta de
novo, poeticamente, para o
mestre do Valér y citado na
epígrafe, o Mallarmé do
“nada”, o Mallarmé “syntaxier”, o Mallarmé do “enunciar
é produzir”, o Mallarmé que
relaciona auto-reflexão, linguagem, ficção e crítica da
representação: “Minha matéria é o nada”, lê-se em “Nudez”, de A Vida Passada a Limpo (1958). Tratando do ser e do
tempo sem perder-se na floresta negra ou no mato nacionalista, Drummond busca o
tema do “nada” também em
outro mestre da indeterminação rigorosamente construída,
Machado de Assis, desenvolvendo-o como palavra “em
estado de dicionário”. Mas não
só. Desde A Rosa do Povo, principalmente, passou a fazer
poemas narrativos e dramáticos longos, que lembram contos e peças teatrais postos em
forma de romance ritmado e
rimado, como “Caso do Vestido”. Nesses textos, a distinção tradicional de poesia/prosa já não funciona mais. Já em
Alguma Poesia e Brejo das Almas,
tinha escrito textos como “O
Sobrevivente” e “Outubro
1930”, em que a prosa comparece. Lição de Coisas continua a
experiência narrativa e dramática em poemas como “Os
Dois Vigários” e “O Padre e a
Moça”.
da palavra 275
276
da palavra
A “Ode marítima”:
representações metafóricas
da viagem no texto de Álvaro
de Campos
Audemaro Taranto Goulart*
Para o Mestre Benedito Nunes,
Navegante de todas as águas.
Ao lado:
Fernando Pessoa,
reprodução
*
Professor nos cursos de graduação e pós-graduação da
PUC Minas Gerais. Atua nas
áreas de Letras - Literatura, Filosofia e Literatura Comparada. Autor de diversos livros
entre eles: Do heróico ao erótico: uma leitura de O Guarani. 1. ed. Belo Horizonte: Ópera Prima Editora, 2002
1. Glória, frustração e medo: metáforas de um mesmo tema
O tema da viagem sempre estimulou a criação literária, aparecendo tanto
na sua dimensão mais reconhecível – de transição dinâmica no espaço – quanto
em variantes metafóricas que vão desde a viagem interior à viagem definitiva,
representada pela morte. Numa síntese rápida, pode-se lembrar o tema na
Odisséia, a grande viagem das narrativas homéricas, n’Os Lusíadas – livro que
tem a viagem como assunto, motivo, tema, numa configuração até mesmo
obsessiva – no Dom Quixote das andanças do cavaleiro da triste figura, n’As
viagens na minha terra, de Garrett, espécie de redimensionamento do Voyage autour
de ma chambre, de Xavier de Maistre, n’As viagens de Gulliver, de Jonathan Swift,
e o fantástico mundo dos homens pequeninos, nas viagens a que, na literatura
canadense, se impunham as personagens dos romances, Maria Chapdeleine, de
Louis Hémon, e Le Survenant, de Germaine Guèvremont, no grandioso poema
“Ode marítima”, do heterônimo Álvaro de Campos, em que se movimenta
singularmente o gênio de Fernando Pessoa, chegando até aos brasileiros Oswaldo
França Júnior, com sua obra máxima que é Jorge, um brasileiro, e Guimarães Rosa,
com seu inexcedível Grande sertão: veredas.
Essa síntese rápida pretende apenas mostrar a diversidade de modos sob
que se apresenta a temática da viagem e, principalmente, apontar uma direção
específica: a da transformação metafórica. Apenas a título de ilustração, destaco
como a metaforização da temática da viagem incide n’Os Lusíadas e nas duas
da palavra 277
obras canadenses. Quero enfatizar esse desdobramento como forma de introduzir
uma leitura do poema “Ode marítima”, objeto maior deste trabalho.
Quanto a’Os Lusíadas,1 é desnecessário lembrar que circunda o poema
toda uma tradição que o coloca no primeiro plano da literatura ocidental,
mostrando como o poema camoniano celebra as glórias portuguesas, levantando
um passado glorioso e se fazendo, o próprio texto, esse passado que a cultura
lusófona não se cansa de exaltar.
Entretanto, é preciso ver que o tema dá muitas voltas – talvez fosse melhor
dizer que ele faz muitas viagens –, plantando surpresas. É o que ocorre, por
exemplo, quando se lê o romance As naus,2 de Lobo Antunes. A crítica tem
reconhecido no romance uma espécie de inversão especular do poema
camoniano. Se neste se tem o apogeu glorioso das conquistas portuguesas, nas
fabulosas viagens em busca de novos mundos, na narrativa de Lobo Antunes
essa glória é posta em xeque, na medida em que representa o retorno sem glória
daqueles que “entre gente remota edificaram Novo Reino, que tanto sublimaram”.
Trata-se do retorno da África, na descolonização, dos portugueses que encarnaram
o papel de heróis no poema de Camões. Se aqueles foram os heróis celebrados,
estes, de agora, são os próprios anti-heróis, amargando, séculos depois, a
frustração anunciada, n’Os Lusíadas, pelo Velho do Restelo. No Jornal de Letras,
Artes e Idéias, de Lisboa, comentou-se, à época do lançamento de As naus, que o
romance seria “a sequência lógica do Canto X d ‘Os Lusíadas’, ou seja, o
necessário decrescendo que, desglorificando, nos reconcilia e aproxima dos vultos
que povoam a nossa memória escolar”.
Como segundo exemplo ilustrativo, lembro que, nas narrativas canadenses
referidas, Maria Chapdeleine, de Lous Hémon,3 e Le Survenant, de Germaine
Guèvremont,4 o tema da viagem aparece numa forma inusitada. Na verdade, a
permanente mobilização das personagens masculinas representa uma fuga ao contato
amoroso com a mulher, o que faz dos homens um ser em constante deslocamento,
como se tais personagens fossem incapazes de ver a mulher como objeto do desejo.
É o que ocorre, por exemplo, no Maria Chapdeleine, quando a personagem François
Paradis, um andarilho nas matas, morre durante uma tempestade de neve, deixando
Maria na vã espera de um casamento anunciado mas que jamais aconteceria. No Le
Survenant, o homem foge quando a tímida Angélina confessa seu amor com a singeleza
da frase: “Se você quiser, Survenant...”.
Essa fuga ao contato amoroso, marca do medo do homem diante da
mulher, caracteriza-se, na verdade, como uma representação metafórica do
episódio histórico da Conquista Inglesa de 1760, quando se dá a capitulação de
Québec e Montreal e o Canadá torna-se uma colônia britânica. Desapossado de
sua classe dirigente, o Canadá passa por uma ruptura política, econômica, social
e lingüística. Assim, a história marcará os canadenses-franceses com a humilhação
de sobreviverem, buscando a agricultura, o artesanato e o pequeno comércio.
Tudo isso decorre da angústia do arrebatamento do território, fazendo surgir,
nas narrativas canadenses-francesas da segunda metade do século XX, um
recobrimento metafórico que faz do homem, da personagem masculina, um ser
viajante, em fuga desesperada, justamente para não ter de confrontar a figura
feminina que lhe provoca um medo incontornável.
278
da palavra
1
2
3
4
Camões, 1970
Antunes, 1988.
Hemon, 1956.
Guevremont, 1974.
Feitas essas considerações introdutórias ao tema, passo, então, à leitura
do poema “Ode marítima”,5 do heterônimo Álvaro de Campos, em que a viagem
se desloca do exterior para o interior do eu poético, numa busca do desejo
inconsciente.
2. A “Ode marítima”: a viagem de um eu atormentado
A “Ode marítima” é um longo poema de Álvaro de Campos que sempre é
considerado paralelamente a um outro, a “Ode Triunfal”. A crítica tem visto
uma articulação entre os dois textos, considerando a “Ode Triunfal”, publicada
em março de 1914, como uma espécie de ilustração que Pessoa procurou fazer
dos tempos modernos, da presença da tecnologia e de suas conquistas, papel
que caberia bastante bem a Álvaro de Campos, a quem o poeta atribuía uma
espécie de contemporaneidade do futuro. Mas a crítica registra também que
bem cedo Pessoa se deu conta de que suas convicções futuristas eram um
equívoco, razão por que, um ano depois, em junho de 1915, o poeta como que
procura uma correção de rumo, publicando a “Ode marítima”. Assim, o
entusiasmo do primeiro poema é substituído, no segundo, por um tom soturno,
quase desesperado, em que fica patente que só o sofrimento e a dor podem
representar, senão um rumo, pelo menos uma perspectiva de encontro.
Essas considerações é que me levam a ver a “Ode marítima” na dimensão
de uma viagem para dentro de si mesmo, numa nítida busca do mais profundo
do ser. Não posso, pois, negligenciar a afirmação de que se trata de uma busca
especial, da busca do inconsciente. É dessa forma que vejo o tom soturno, a
escuridão redimensionada, a dor e a frustração que a crítica tem detectado no
poema. Veja-se, pois, como essa articulação pode ser feita.
A ode inicia-se com o eu poético contemplando a entrada de um navio na
barra:
Sozinho, no cais deserto, a esta manhã de Verão,
Olho pro lado da barra, olho pro Indefinido,
Olho e contenta-me ver,
Pequeno, negro e claro, um paquete entrando.
O fato – a chegada do navio – é saudado como um acontecimento, porque
ele acende no espírito do poeta “uma doçura dolorosa que sobe em mim como
uma náusea”. Aí já se fazem presentes alguns elementos que indiciam o mergulho
no labirinto interior. Desse modo, enunciam-se algumas metáforas, como a do
próprio navio que dirige essa volta do eu para si mesmo, partindo de um cais em
busca de um outro porto:
Ah, quem sabe, quem sabe,
Se não parti outrora, antes de mim,
Dum cais; se não deixei, navio ao sol
Oblíquo da madrugada,
Uma outra espécie de porto!
5
Campos, 1995, p. 314-335.
da palavra 279
Parecem nítidas as imagens que apontam o rumo de uma busca interior,
na direção de um lugar diferente, desconhecido. E tais circunstâncias revelam a
íntima conexão que as aludidas metáforas estabelecem com o desejo. Basta
atentar para os termos que sustentam as metáforas para observar-se que “o
paquete vem entrando” o que faz o eu poético confessar o tremor que toma
conta de sua carne e de sua pele. É interessante verificar como o próprio texto
revela a natureza metafórica do significante “navio” quando afirma:
Os navios que entram na barra
.............................................................
Todos esses navios assim comovem-me como se fossem outra coisa
E não apenas navios indo e vindo
......................................................................................................
E os navios vistos de perto, mesmo que se não vá embarcar neles,
......................................................................................................
Os navios vistos de perto são outra coisa e a mesma coisa,
Dão a mesma saudade e a mesma ânsia doutra maneira.
Assim, o poeta tenta delinear essa “outra coisa”, que provoca “a mesma
ânsia doutra maneira” de um modo peculiar, vendo-a entrando num cais, “Um
grande cais cheio de pouca gente / Duma grande cidade meio-desperta”, que
ele, significativamente situa “Tanto quanto isso pode ser fora do Espaço e do
Tempo”, o que, de resto, parece sugerir a irrupção do desejo numa vertente que
não se define claramente para o sujeito mas que lhe impõe uma busca que parte
para o mais íntimo de seu ser.
Se insistirmos numa pauta psicanalítica na leitura, poderemos encontrar
outras sugestões muito significativas para essa ideia do desejo ardentemente
buscado. Assim, logo depois de trazer à tona o significante “cais”, articulandoo, na importante imagem dos “navios entrando”, é de se notar o modo como o
poema caracteriza o cais. Ele traz toda a sugestão do “útero materno”. Senão,
vejamos o texto na sua clareza:
Ah o Grande Cais donde partimos em Navios-Nações!
O Grande Cais Anterior, eterno e divino!
De que porto? Em que águas? E por que penso eu isto?
Grande Cais como os outros cais, mas o Único
Chamam a atenção, nos versos, alguns aspectos importantes: o fato de o
cais e toda a referência a ele serem grafados com letra maiúscula; a ideia de um
Lugar de onde se partiu, assim como a convicção de se tratar de um Lugar
Único – “Grande Cais como os outros cais, mas o Único”. Tais elementos
sugerem bastante nitidamente a ideia do nascimento e o desejo de recuperação
do Lugar perdido – quase se poderia dizer, do Paraíso Perdido.
Os versos que se seguem aos que acabo de citar só fazem reforçar essa
ideia de nascimento como perda, na dimensão psicanalítica da falta, como o
buraco que se impõe inexoravelmente ao ser. Nesse sentido, é impossível não
enxergar tudo isso nos versos seguintes, que ilustram o que acabo de dizer:
280
da palavra
E todo o nosso corpo angustiado sente,
Como se fosse a nossa alma,
Uma inexplicável vontade de poder sentir isto doutra maneira:
Uma saudade a qualquer coisa,.
Uma perturbação de afeições a que vaga pátria?
A que costa? a que navio? a que cais?
Que se adoece em nós o pensamento.
E só fica um grande vácuo dentro de nós,,
Uma oca saciedade de minutos marítimos,
E uma saciedade vaga que seria tédio ou dor
Se soubessem como sê-lo...
Essa alusão à falta, à hiância insuperável, é que move o sujeito na
elaboração do desejo, na busca do prazer e do gozo de cuja satisfação ele, sujeito,
guarda apenas alguns laivos. Daí a necessidade do mergulho no interior, na
tentativa de retomada da satisfação, uma vez que, segundo Freud, “o desejo
está indissoluvelmente ligado a traços mnésicos e encontra a sua realização na
reprodução alucinatória das percepções tornadas sinais dessa satisfação”.6 Tais
traços ligam-se, de modo inconsciente, a sinais infantis indestrutíveis, pois, como
diz A. Ehrenzweig, “as formas simbólicas inconscientes não são destruídas;
elas estão ainda lá, abertas para os olhos e os desejos infantis recalcados que
ainda reagem a elas”.7 Desse modo, pode-se perceber como o poema é pródigo
no registro de cenas e situações que indicam bastante bem essa busca alucinada
de um gozo anterior que não é fácil encontrar. Não é por outro motivo que até
mesmo a morte – o gozo supremo – aparece como uma possibilidade, tal como
se vê nos versos “Todos os mares, todos os estreitos, todas as baías, todos os
golfos, / Queria apertá-los aos peitos, senti-los bem e morrer!”.
É interessante verificar como essa articulação do desejo na busca do prazer
elege o marinheiro como o seu principal significante. O encantamento é tanto e
a busca de identificação funciona de modo tão imperioso que o eu poético
como que grita:
Quero ir convosco, quero ir convosco,
.................................................................
Ter braços na vossa faina, partilhar das vossas tormentas,
Chegar como vós, enfim, a extraordinários portos!
Fugir convosco à civilização!
Perder convosco a noção da moral!
A ânsia de identificação com os marinheiros chega ao paroxismo de evocar,
por alusões, que se fazem no deslizamento de significantes, figuras como as de
Cristo e Ulisses:
6
Laplanche e Pontalis, 1977,
p. 159.
7
Ehrenzweig, 1977, p. 107.
Sim, sim, sim... Crucificai-me nas navegações
E as minhas espáduas gozarão a minha cruz!
Atai-me às viagens como a postes
E a sensação dos postes entrará pela minha espinha
da palavra 281
Essa entrega completa, total, absoluta à figura do marinheiro, tal como
insinuada nos versos anteriores, é que gera o surgimento do lado feminino do eu
poético. Nesse ponto, é bom lembrar os sinais infantis indestrutíveis aos quais o
adulto se liga, assim como os desejos infantis recalcados que reagem aos
mergulhos no inconsciente, pois, como ensina Juan-David Nasio, nas suas
considerações sobre o etapa do Édipo no menino, a “fantasia mais típica do
desejo de ser possuído é uma cena em que o menino sente prazer em seduzir um
adulto para se tornar seu objeto. Essa fantasia é uma fantasia de sedução sexual
em que o menino sedutor imagina-se seduzido pela mãe, por um irmão mais
velho ou até mesmo, ainda que isso os surpreenda, pelo próprio pai. Com efeito,
um menino pode desempenhar o papel passivo, eminentemente feminino, de
ser a coisa do pai e fazê-lo gozar”.8
Essa posição diante do ser com quem o poeta quer identificar-se gera
uma idolatria que o leva, voluntariamente, a ser uma vítima diante da majestade
do outro:
Ah, ser tudo nos crimes! ser todos os elementos componentes
Dos assaltos aos barcos e das chacinas e das violações!
Ser quanto foi no lugar dos saques!
Ser quanto viveu ou jazeu no local das tragédias de sangue!
Ser o pirata-resumo de toda a pirataria no seu auge,
E a vítima-síntese, mas de carne e osso, de todos os piratas do mundo!
Essa vítima-síntese tem como consequência natural a identificação com
a figura feminina, numa ânsia de entrega total e de encontro com um lado
feminino que a educação e a formação do adulto obscureceram e recalcaram,
ao longo do tempo, mas que agora aparece com todas as cores:
Ser o meu corpo passivo a mulher-todas-as-mulheres
Que foram violadas, mortas, feridas, rasgadas p’los piratas!
Ser no meu ser subjugado a fêmea que tem de ser deles!
E sentir tudo isso – todas estas coisas duma só vez – pela espinha!
Não é por outro motivo que Eduardo Lourenço vê, na “Ode marítima”,
manifestações da sexualidade de Fernando Pessoa. Nesse passo, o poema parece
confirmar aquela afirmação de J.-D. Nasio, de que, na evolução do Édipo, o
“menino pode desempenhar o papel passivo, eminentemente feminino, de ser a
coisa do pai e fazê-lo gozar”, de vez que não é difícil identificar a figura do pai
nas referências ao marinheiro. Em alguns momentos, essa identificação é,
inclusive, explícita, como nos versos em que o poeta faz alusão à figura paterna
proscrita, tal como acontece no chamado acidente do simbólico:
Ah, os paquetes, as viagens, o não-se-saber-o-paradeiro
De Fulano-de-tal, marítimo, nosso conhecido!
Ah, a glória de se saber que um homem que andava conosco
Morreu afogado ao pé duma ilha do Pacífico!
8
282
da palavra
Nasio, 2007, p. 31.
São bastante significativas as alusões ao “Fulano-de-tal”, com letra
maiúscula, ao “marítimo, nosso conhecido”, ao “homem que andava conosco”.
Mas o confuso e labiríntico mundo penetrado, mundo do inconsciente, no qual
se busca desesperadamente o desejo, espelha o turbilhão em que o sujeito
mergulha, num choque de situações que dão bem uma mostra de como se convive
nele com o paradoxo e a confusão. Nesses termos, se o marinheiro pode encarnar
a figura do pai que intercepta a busca daquele desejo que quer restaurar a antiga
e perdida unidade com a mãe, é de se notar também uma outra passagem do
poema em que o marinheiro ganha um nome próprio e, aí, ele passa a ser o pai
com quem o eu se identifica. Trata-se da referência que o poeta faz à figura do
marinheiro inglês Jim Barns, a quem atribui o apelo ao eu para que mergulhasse
nas águas. Entretanto, é preciso notar que essas águas que o chamam enviamlhe um “chamamento confuso”, o que, em termos metafóricos, é uma bela
referência ao mundo interior, ao inconsciente. Vejam-se, pois, os versos:
Chamam por mim as águas,
Chamam por mim os mares.
Chamam por mim, levantando uma voz corpórea, os longes,
As épocas marítimas todas sentidas no passado a chamar.
Tu, marinheiro inglês, Jim Barns meu amigo, foste tu
Que me ensinaste esse grito antiqüíssimo, inglês,
Que tão venenosamente resume
Para as almas complexas como a minha
O chamamento confuso das águas.
Mas é importante notar que todas as identificações realizadas pelo eu
poético, na tentativa de alcançar o seu imo profundo e, desse modo, capturar o
desejo que implicaria a restauração de sua antiga unidade, levam-no ao encontro
de um mundo informe, de forças incontroláveis, confuso, ameaçador. Pois é do
encontro com essas pulsões desestruturadoras – poderia dizer, o encontro com
as forças dionisíacas – que o eu poético vai derivar o sentimento do medo. É
nesse momento que ele, sentindo “Grandes desabamentos de imaginação sobre
os olhos dos sentidos, / Lágrimas, lágrimas inúteis, / Leves brisas de contradição
roçando pela face a alma...”, busca uma saída, conforme de pode ver nos versos:
Evoco, por um esforço voluntário, para sair desta emoção,
Evoco, com um esforço desesperado, seco, nulo,
A canção do Grande Pirata, quando estava a morrer:
Fifteen men on the Dead Man’s Chest,
Yo-ho-ho and a bottle of rum!
É importante ter em mira que esse “Grande Pirata” que estava a morrer,
tendo quinze homens debruçados sobre ele, continua a indiciar a figura paterna,
só que, agora, esse pai tem todas as características do pai da tradição religiosa
cristã. Embora o poeta tenha dito que essa “canção do Grande Pirata” seria “uma
da palavra 283
linha reta mal traçada dentro de mim” – um claro traço da incerteza quanto a essa
presença de um pai Jesus Cristo – vai-se verificar que, ante as agruras do que a
imaginação da mente profunda produziu, o poeta se dá conta da inviabilidade
dessa busca e do preço que teria de pagar por ela. Assim, ante o terror que já lhe
afiguram as ações do pirata como o “paladar do saque”, a “chacina inútil de
mulheres e de crianças”, a “tortura fútil... dos passageiros pobres”, a “sensualidade
de escangalhar... as coisas mais queridas dos outros”, o eu poético sente a
necessidade de renunciar ao seu desejo. Até mesmo porque forças mais altas se
levantam contra esse apetite, tal como se pode ver nos versos seguintes:
Lembro-me de que seria interessante
Enforcar os filhos à vista das mães
(Mas sinto-me sem querer as mães deles)
Enterrar vivas nas ilhas desertas as crianças de quatro anos
Levando os pais em barcos até lá para verem
(Mas estremeço, lembrando-me dum filho que não tenho e está dormindo tranqüilo em casa).
É aí, então, que o Grande Pirata ganha a dimensão do Grande Pai, ou
seja, Deus, mas, curiosamente, essa é uma dimensão também daquele pai que já
fora invocado, ou seja, Jim Barns:
De repente – oh pavor por todas as minhas veias! -,
Oh frio repentino da porta para o Mistério que se abriu dentro de mim e deixou
/entrar uma corrente de ar!
Lembro-me de Deus, do Transcendental da vida, e de repente
A velha voz do marinheiro inglês Jim Barns com que eu falava,
Tornada voz das ternuras misteriosas dentro de mim, das pequenas coisas de
/regaço de mãe e de fita de cabelo de irmã,
Mas estupendamente vinda de além da aparência das coisas,
É nesse momento que se alcança o grande momento epifânico do poema.
Ele já se insinuara momentos antes quando, ao tentar chamar a “fúria da
pirataria”, percebera que isso seria feito através “duma imaginação quase
literária”. Pois é aí que se alcança a revelação que a “Ode marítima” explicita. A
volta à realidade, a uma realidade marcada pela ordem, pela claridade apolínea
que vem substituir a escuridão dionisíaca. Tudo “tão maravilhosamente
combinando-se / Que corre tudo como se fosse por leis naturais / Nenhuma
coisa esbarrando com outra!”, graças ao reconhecimento de que “Nada perdeu
a poesia”. Tem-se, assim, o momento redentor da arte enquanto forma de
equilíbrio, de justa medida, de superação das tensões e do pânico ante o
desconhecido. Tem-se, pois, a função estética, naquela dimensão que foi tão
bem exposta por Schiller de articulação entre sensibilidade e racionalidade. Isso
está indicado no poema através da imagem com que ele se iniciou: a metáfora
do navio. Só que, agora, os navios enchem os portos e é essa presença num
mundo claro, compreensível, confortável que traz a paz interior ao poeta. E
esse mundo pacificado estabelece-se ainda na metáfora do navio. Mais
precisamente, de um navio inglês, evocando a simpatia do poeta:
284
da palavra
Despeço-me no corpo deste outro navio
Que vai agora saindo. É um tramp-steamer inglês,
Muito sujo, como se fosse um navio francês,
Com um ar simpático de proletário dos mares,
.........................................................................
Enternece-me o pobre vapor, tão humilde vai ele e tão natural.
Parece ter um certo escrúpulo não sei em quê, ser pessoa honesta,
Cumpridora duma qualquer espécie de deveres.
Lá vai ele tranquilamente, passando por onde as naus estiveram
Outrora, outrora...
Fica bem patente nos versos a mudança de rumo exibida pela metáfora
do navio. Agora tudo é naturalidade, é humildade, é tranquilidade. É a prevalência
do escrúpulo, da honestidade. Como se vê, o mundo do inconsciente ficou para
trás, submerso, novamente, nas suas profundezas insondáveis. Para substituir
esse mundo ameaçador, veio a poesia. Anton Ehrenzweig delineia esse
mecanismo criador, dizendo que “o processo de elaboração secundária (a criação
literária) ajuda a mente de superfície a recuperar a carga de energia perdida e
essa carga de energia passa a ser usada como um prazer estético”.9
Para finalizar, e me valendo do psicanalista alemão citado, diria que a
“Ode marítima” é um exemplo do que ele chama de “elaboração secundária em
um estilo”, ou seja, elaboração de um texto literário. Como Ehrenzweig pontua,
o texto artístico oferece “uma gratificação inconsciente aos desejos recalcados
na nossa mente profunda”. Mas, acentua o autor, devido “à enorme pressão
que os desejos inconscientes exercem contra as forças da censura do superego”,
a mente de superfície vê-se tomada de uma emoção dionisíaca dolorosa. Essa
sensação é afastada pelo prazer estético presente na elaboração literária que
compensa a perda da gratificação inconsciente, funcionando, assim, como um
mecanismo substituto. É nesse sentido que se pode compreender as preciosas
articulações linguísticas de que Fernando Pessoa se vale na urdidura metafórica
de seu poema. Numa palavra, diria que o eu poético desce ao inconsciente,
debate-se por entre suas ameaçadoras e dionisíacas forças, mas faz retornar a
claridade do mundo através de seu poema. Permito-me, nesse passo, por
ilustrativos, ler seus versos finais:
9
Ehrenzweig, 1977, p. 107.
Passa, lento vapor, passa e não fiques...
Passa de mim, passa de minha vista,
Vai-te de dentro do meu coração.
Perde-te no Longe, no Longe, bruma de Deus,
Perde-te, segue o teu destino e deixa-me...
Eu quem sou para que chore e interrogue?
Eu quem sou para que te fale e te ame?
Eu quem sou para que me perturbe ver-te?
Larga do cais, cresce o sol, ergue-se ouro,
Luzem os telhados dos edifícios do cais,
Todo o lado de cá da cidade brilha...
Parte, deixa-me, torna-te
da palavra 285
Primeiro o navio a meio do rio, destacado e nítido,
Depois o navio a caminho da barra, pequeno e preto,
Depois ponto vago no horizonte (ó minha angústia!),
Ponto cada vez mais vago no horizonte...,
Nada depois, e só eu e a minha tristeza,
E a grande cidade agora cheia de sol
E a hora real e nua como um cais já sem navios,
E o giro lento do guindaste que, como um compasso que gira,
Traça um semicírculo de não sei que emoção
No silêncio comovido da minh’alma...
REFERÊNCIAS
ANTUNES, António Lobo. As naus. Lisboa: Publicações Quixote, 1988.
CAMÕES, Luís de. Obras de Luís de Camões. Porto: Lello & Irmão - Editores,
1970.
CAMPOS, Álvaro de. Poesias de Álvaro de Campos. In: PESSOA, Fernando,
Obra poética. Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar S.A., 1995.
EHRENZWEIG, Anton. Psicanálise da percepção artística. Uma introdução à teoria
da percepção inconsciente. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1977.
GUEVREMONT, Germaine. Le Survenant. Montréal: Fides, 1974.
HEMON, Louis. Maria Chapdeleine. Paris: Nelson, 1956.
LAPLANCHE, J. e PONTALIS, J.B. Vocabulário da psicanálise. Lisboa: Moraes
Ediores, 4ª. ed., 1977.
NASIO, Juan-David. Édipo: o complexo do qual nenhuma criança escapa. Rio de Janeiro:
Zahar Ed., 2007.
286
da palavra
da palavra 287
288
da palavra
Nietzsche, Freud e Marx:
Ricouer, Foucault e a questão
da hermenêutica
Ernani Chaves1
Ao lado: Michel Foucaut,
reprodução
1
Professor da Faculdade de
Filosofia da UFPA.
2
Este livro tinha sido publicado em 1967, pela Editora
Buriti, de São Paulo. Proferi a
presente palestra quando do
lançamento da 2ª edição do
livro, na Livraria da UFPA, no
Campus Universitário do
Guamá, em 2004. Fiz alguns
acréscimos e modificações
para esta publicação.
O título desta palestra merece, de início, um esclarecimento. Pois se trata,
neste momento, de homenagear mais uma vez o Prof. Benedito Nunes, por
ocasião do relançamento de seu livro Filosofia Contemporânea, pela Editora da
UFPA.2 É que, ao olhar o índice da nova edição, percebi que diversos acréscimos
foram feitos, entre eles, a inclusão de dois dos principais pensadores de nossa
época. Refiro-me a Paul Ricouer e Michel Foucault. Dois pensadores que, num
momento muito preciso de minha trajetória acadêmica, me foram muito caros.
Quando escrevia minha dissertação de mestrado sobre Foucault e a Psicanálise,
no começo dos anos 1980, foi por indicação do Prof. Benedito que comprei e li
o livro de Ricouer sobre Freud. Por isso, achei que seria interessante, para esta
ocasião, fazer uma espécie de “prestação de contas” ao Prof. Benedito, da leitura
que fiz há tanto tempo atrás e que não apareceu na dissertação. Na verdade, o
livro de Ricouer sobre Freud nunca teve no Brasil uma grande acolhida, sempre
foi deixado à margem, por diversas razões que não são importantes agora discutir.
E eu, ao retirá-lo de meu trabalho, acabei por corroborar esta situação marginal.
Assim sendo, ao mesmo tempo em que presto contas ao Prof. Benedito, também
faço justiça ao impressionante trabalho de Ricouer.
Vou me deter num único ponto, dentre muitos que poderia abordar, nesta
conjunção entre Ricouer e Foucault, um ponto que também é central na reflexão
do Prof. Benedito: trata-se da questão da hermenêutica, ou melhor, dos destinos
da hermenêutica na modernidade, a partir da posição que Ricouer e Foucault
atribuem, cada um a seu modo, a Nietzsche, Freud e Marx. Para isso, tomarei
como referências básicas o livro de Ricouer sobre Freud - Da Interpretação: ensaio
sobre Freud (originado de três conferências na Universidade de Yale, em 1961,
publicado na França em 1965 e no Brasil em 1977) - e a célebre conferência de
da palavra 289
Foucault, intitulada justamente “Nietzsche, Freud e Marx” e proferida, em 1964,
no Colóquio “Nietzsche”, realizado na Abadia de Royaumont, na França. Gostaria
então de mostrar um pouco da confrontação possível entre as posições desses
dois grandes pensadores de nossa época, a propósito da questão da hermenêutica.
I
Partindo da ideia de que o problema filosófico contemporâneo por
excelência é o da linguagem, Ricouer pode justificar assim, seu interesse por
Freud. Desta perspectiva, ao lado das investigações de Wittgenstein, da filosofia
lingüística dos ingleses, da fenomenologia oriunda de Husserl, das pesquisas de
Heidegger , dos trabalhos dos exegetas do Novo Testamento como Bultmann,
dos trabalhos de história comparada das religiões e de antropologia, Ricouer
alinha a Psicanálise. E desde o início do primeiro capítulo do livro, já deixa
enunciar sua tese: as “vissicitudes das pulsões”, diz ele, “só podem ser atingidas
nas vissicitudes do sentido”. Com isso, Ricouer antecipa sua vinculação da
problemática da linguagem e da interpretação em Freud aos seus próprios
pressupostos teóricos, ou seja, a ideia, que vem da Fenomenologia de Husserl e
que se amplia com Heidegger, de que a interpretação supõe a busca do sentido.
Entretanto, qual é a grande tensão, a “tração extrema” que marca a
modernidade, como nos diz Ricouer, senão aquela que existe entre a
hermenêutica como “restauração do sentido” - este é o lado onde o próprio
Ricouer se coloca (1977, p. 33) - e a hermenêutica oriunda da “escola da
suspeita”, cujos mestres, é ele ainda quem nos diz, são Freud, Nietzsche e Marx?
Para nos esclarecer acerca desta tensão, Ricouer parte da ideia de Deutung
ou ainda de Auslegung, tal como enunciada no livro fundamental de Freud acerca
do tema: Die Traumdeutung, A Interpretação dos Sonhos, de 1900. Ele nos diz que
devemos a Nietzsche a introdução do conceito filológico de Deutung na reflexão
filosófica. De todo modo, Nietzsche o fez, continua ele, a partir de um novo
conceito de Vorstellung, “representação”, que teria implodido a posição kantiana
sobre o tema: não se trata mais, a partir de Nietzsche, como o era ainda para
Kant, de saber como uma representação subjetiva pode ter uma validade objetiva,
mas de referir-se a “uma nova possibilidade que não é mais nem o erro no
sentido epistemológico, nem a mentira no sentido moral, mas a ilusão (...)” (1977,
p. 32). Trata-se portanto, de um deslocamento do conceito de símbolo como
“duplo sentido”. Se uma hermenêutica da restauração do sentido supõe a
existência necessária do sentido e, desse modo, símbolo e sentido caminham
juntos, na escola da suspeita, nessa hermenêutica da destruição, mais do que o
lugar do sentido está em questão o próprio ato de interpretar e com isso,
desaparece do horizonte, toda ideia de uma hermenêutica geral, de um cânon
universal para a exegese e, em seu lugar, surgem teorias separadas e opostas,
dizendo respeito às regras mesmas da interpretação. A consequência disso, para
Ricouer, seria o rompimento do que ele chama de “campo hermenêutico”, ou
seja, dessa esfera de atuação específica do símbolo ou do duplo sentido, no
interior do campo maior e mais vasto da própria linguagem.
290
da palavra
O tema de Ricouer é o pensamento de Freud e sua ambição é examinar se
Freud está inteiramente do lado dos “mestres da suspeita” ou se a Psicanálise
pode ainda também ser entendida como “busca do sentido”. A argumentação
de Ricouer começa confrontando Freud com a hermenêutica do sentido e
alinhando-o aos seus companheiros de “suspeita”, Nietzsche e Marx. Ao final
do livro - que provocou reações bastante inflamadas - Freud está situado a
meio-caminho entre uma e outra atitude hermenêutica. Entretanto, cabe-nos
no momento apenas perguntar, com Ricouer, o que liga Freud a Nietzsche e a
Marx. Em outras palavras, em que consiste a “escola da suspeita” por oposição
à “escola da reminiscência”, o outro nome que Ricouer dá à hermenêutica como
“restauração do sentido”.
Ricouer começa por “recuperar”, como se diz hoje, Freud, Nietzsche e
Marx. Marx deve ser libertado da redução ao economicismo e da absurda teoria
da consciência como reflexo; Nietzsche, do biologismo e da ideia de um
perspectivismo incapaz de enunciar-se a si mesmo sem contradição e Freud,
por sua vez, de um confinamento na psiquiatria e da redução a um pansexualismo
simplista. E se podemos indicar entre eles, malgrado as grandes diferenças, um
ponto em comum, este deve ser, de início, o da ideia da consciência como “falsa”:
“O filósofo formado na escola de Descartes sabe que as coisas são duvidosas,
que não são tais como aparecem. Mas não duvida de que a consciência não seja
tal como aparece a si mesma: nela, sentido e consciência do sentido coincidem.
Depois de Marx, Nietzsche e Freud, duvidamos disso. Após a dúvida sobre a
coisa, ingressamos na dúvida sobre a consciência” (1977, p. 37). Assim sendo, a
teoria da ideologia, o conceito de vontade de poder e o de pulsão formulariam,
em cada um dos três pensadores, o meio pelo qual eles pretendem “destruir” o
edifício da filosofia moderna da consciência que se erigiu a partir de Descartes.
Entretanto, mais uma vez Ricouer “recupera”, a sua maneira, Nietzsche,
Freud e Marx. E desta vez, a partir da ideia de “destruição” presente em Ser e
Tempo, de Heidegger. Não se trata, portanto, de dizer que os “mestres da suspeita”
são os “mestres do ceticismo”. Muito pelo contrário, pois segundo Heidegger, o
momento da destruição é fundamental e constitutivo de “toda nova fundação”.
E assim, torna-se imperioso para Ricouer, justamente para indicar as limitações
da “escola da suspeita”, dizer em que consiste a “nova fundação” da “escola da
suspeita”: a invenção de uma arte de interpretação! E, com isso, todos os três se
dirigem para o horizonte de “uma palavra mais autêntica”, de um “novo reino
da Verdade”, vencendo “a dúvida sobre a consciência através de uma exegese
do sentido”. A partir deles, ainda Ricouer, “a compreensão se torna uma
hermenêutica: doravante procurar o sentido não significa mais soletrar a
consciência do sentido, mas decifrar suas expressões”.
A “escola da suspeita”, nesta perspectiva, torna-se também, aos olhos de
Ricouer, na “escola da astúcia”. Em vista disso, instaura-se uma nova relação
entre o patente e o latente, na qual a categoria fundamental da consciência não
é mais a clareza e a distinção, mas a relação entre o que se mostra e o que se
oculta, entre o que se manifesta e o que se simula, em outras palavras, a “ilusão”
da palavra 291
torna-se agora constitutiva da própria consciência. A “escola da suspeita”,
portanto, nos ensinaria, fundamentalmente, a não apenas suspeitar, mas também,
insidiosamente, astuciosamente, a nos indicar algo que vai além da suspeita:
Freud, através da dupla entrada do sonho e do sintoma neurótico, nos conduz à
decifração da “econômica das pulsões”; Marx, a partir dos limites da alienação
econômica fomentada pela ideologia, nos conduz a uma outra “economia”, a
“política” e Nietzsche, a partir do problema do “valor”, nos conduz, do lado da
“força” e da “fraqueza” da vontade de poder, para o desvendamento das máscaras
e ilusões. Processo de “desmistificação”, que se apresenta em cada um desses
autores, com objetivos diferentes, mas que, no fundo, remetem a uma única
coisa, qual seja, a da consciência como máscara, como veículo de representações
ilusórias, que nos aprisionam, seja à alienação de classe, seja aos imperativos
morais, seja às injunções do recalque. Assim, revolução, transvaloração e processo
analítico se constituiriam numa espécie de “grande astúcia”, através da qual a
“escola da suspeita” acabaria por se legitimar. Esta é, grosso modo, a posição de
Ricouer, que aponta, como pretendi mostrar, uma espécie de insuficiência, de
incompletude, por parte da “escola da suspeita”, da qual deveríamos, com os
pressupostos fenomenológicos, também “suspeitar”. Sem desconhecer a
importância de Nietzsche, Freud e Marx, Ricouer assinala, entretanto, os
impasses de suas respectivas posições para enfatizar a sempre necessária “busca
do sentido”. No outro extremo desta posição, podemos situar Michel Foucault.
II
No Colóquio “Nietzsche” de Royaumont, em 1964, onde estiveram
presentes grandes intérpretes de Nietzsche, oriundos da Alemanha (como Karl
Löwith) da Itália (como Gianni Vattimo, mas também Giorgio Colli e Mazino
Montinari, organizadores da edição crítica de Nietzsche) e da própria França (Jean
Wahl, Gabriel Marcel, Jean Beaufret, Gilles Deleuze e Pierre Klossowsky, entre
outros), Foucault, já então o conhecido autor de História da Loucura na Idade Clássica
retoma, por outras vias, como veremos, a mesma questão de Ricouer, qual seja, o
conceito de interpretação em nossa época e o papel desempenhado na formulação
de uma nova hermenêutica, por Nietzsche, Freud e Marx.
Comecemos pelo final, ou seja, pela posição de Foucault diante da
hermenêutica como “restauração do sentido”. Digo, do “final”, porque esta
questão só vai aparecer explicitamente, no debate que se seguiu à exposição de
Foucault. E dentro de um contexto bem específico, uma vez que falar de uma
her menêutica do sentido na perspectiva de Ricouer é falar do papel
desempenhado na história da interpretação, da exegese religiosa, em especial,
da exegese bíblica. Ora, para Ricouer ainda, a “escola da suspeita” ao se opor à
hermenêutica como “restauração do sentido”, se opõe a toda fenomenologia do
sagrado: “o contrário da suspeita, dizendo de modo brutal, é a fé” (1977, p. 33).
Mas, não se trata, evidentemente, da fé ingênua, mas da fé do hermeneuta, isto
é, “de uma fé racional”, na medida em que se põe a caminho da interpretação.
292
da palavra
3
Sobre Foucault e a Fenomenologia neste período, ver
LÉBRUN, 1985. Há um afastamento progressivo de Foucault em relação a Fenomenologia, tendo como cerne a
questão do “sujeito”: ao “sujeito do tipo fenomenológico, trans-histórico”, que não
“é capaz de dar conta da historicidade da razão”, Foucault
opõe o corte operado por
Nietzsche (1994c, p. 436).
4
Para a concepção de “arqueologia” em Foucault, a referência fundamental ainda é
MACHADO (1982).
Pois bem: uma das eminentes figuras que acompanhou a exposição de
Foucault era um conhecido filósofo da religião, o vienense e judeu Jacob Taubes
(1923-1987), que desde 1975, era professor na Freie Universitât, de Berlim.
Taubes perguntou a Foucault porque ele havia excluído as técnicas de exegese
religiosa de sua exposição e, mais ainda, afirmava, ao contrário do que dissera
Foucault, que era a Hegel (e não à tríade Nietzsche, Freud e Marx), que devíamos
o deslocamento do conceito de interpretação em nossa época. A resposta de
Foucault foi a seguinte (1967, p. 194; 1994, p. 575): ele não se referiu à exegese
religiosa, embora reconhecesse sua importância, “porque na brevíssima história
que retracei, me coloquei ao lado dos signos e não do sentido” e, acrescenta,
que “o corte do século XIX bem poderia ter acontecido sob o nome de Hegel”,
embora existam outros aspectos tão “importantes quanto à filosofia hegeliana,
para concluir, de maneira lapidar: “é preciso não confundir história da filosofia
com arqueologia do pensamento”.
Ora, por isso é que resolvi começar pelo final, ou seja, para mostrar que o
duplo ponto de partida de Foucault, o privilégio do signo sobre o sentido e o
método (não uma história da filosofia, mas uma arqueologia do pensamento),
se constitui numa distância bastante grande em relação a Ricouer. Poder-se-ia
dizer, grosso modo, que Foucault, que já havia assinalado os impasses da
Fenomenologia em As Palavras e as Coisas, assuma um ponto de partida ainda
impregnado pelo Estruturalismo.3 Embora, tanto quanto Ricouer, Foucault
colocava, naquela época, a questão da linguagem no centro de seu pensamento.
Entretanto, sua aproximação do Estruturalismo, fazia-o valorizar o signo e não
o sentido. Por outro lado, ao dizer que faz “arqueologia” e não “história da
filosofia”, Foucault demarca também sua perspectiva diante da tradição
universitária na qual ele mesmo foi formado4. Talvez, não por acaso, na sua aula
inaugural no Collège de France, em 1971, ele tenha feito o elogio de seu professor
Jean Hypolite. Foucault entendia talvez, que a grande obra de Hypolite sobre a
Fenomenologia do Espírito, de Hegel, fosse algo mais do que uma obra de História
da Filosofia e sim uma escavação aprofundada no solo do pensamento hegeliano
e com isso, ao mesmo tempo, revolvia o solo do próprio pensamento ocidental.
Não que Foucault quisesse dizer que o livro de Ricouer sobre Freud pudesse ser
restringido a uma obra de História da Filosofia. Mas que, ele mesmo, quando
escrevia sobre filósofos, não o fazia a partir dos pressupostos de leitura,
historicamente assentados na universidade francesa.
Ao afastar-se da questão do sentido, Foucault afasta-se de toda tentativa
de entender a hermenêutica como “restauração do sentido”. E, com isso, não
há, do ponto de vista em que ele se coloca uma “escola da suspeita” em oposição
a uma “escola da reminiscência”, pura e simplesmente porque, segundo ele, a
história das técnicas de interpretação não mostra a suspeita contra a
reminiscência, mas sempre a suspeita, inegavelmente a suspeita (1967, p. 183;
1994a, p. 564). E isso em dois aspectos: a primeira suspeita é a de que a
linguagem nunca diz o que diz, aquilo que os gregos chamavam de “allegoria” e
“hypnoïa” e a segunda suspeita é a de que a linguagem ultrapassa sua forma
da palavra 293
propriamente verbal e que há muitas outras coisas no mundo que também falam,
o que os gregos chamavam de “semaïnon”. Estas duas suspeitas, que fundam o
pensamento ocidental junto com os gregos, nos acompanham até hoje diz Foucault:
“Creio que cada cultura, quero dizer, cada forma cultural na civilização ocidental
teve seu sistema de interpretação, suas técnicas, seus métodos, suas maneiras de
suspeitar que a linguagem quer dizer outra coisa do que ela diz e de suspeitar que
há linguagem para além da linguagem” (1967, p. 184; 1994a, p. 565).
Foucault inicia então seu texto estabelecendo um modelo de comparação
para que compreendamos melhor a renovação de Freud, Nietzsche e Marx, nos
lembrando de que, no século XVI, por exemplo, o trabalho da interpretação se
baseava no império das “semelhanças”: “Lá onde as coisas se assemelham, lá
onde isso se assemelha, alguma coisa quer ser dita e pode ser decifrada; sabe-se
bem a importância do papel desempenhado na cosmologia, na botânica, na
zoologia, na filosofia do século XVI, da semelhança e de todas as noções que
gravitam em torno dela, como satélites” (1967, p. 184; 1994a, p. 565). Assim,
é a episteme da semelhança (e aqui Foucault antecipa a linguagem de Les mots e les
choses, livro no qual já se encontrava trabalhando naquela época), que domina
no século XVI e a teoria do signo e das técnicas de interpretação nesta época
repousam sobre uma definição perfeitamente clara de todos os tipos de
semelhança que fundam, por sua vez, dois tipos distintos de conhecimento: a
“cognitio”, a passagem de uma semelhança a outra e a “divinatio”, o
conhecimento em profundidade, que ia de uma semelhança artificial a outra
mais profunda. Apesar da crítica que Descartes e Bacon fizeram à rede de
semelhanças, Foucault não reconhece neles e em nenhum de seus pósteros, o
privilégio de ter, de fato, instaurado uma nova técnica de interpretação, pois
apenas Nietzsche, Freud e Marx fundaram, diz Foucault, a possibilidade de
uma nova hermenêutica. Este é o ponto de maior convergência entre Foucault
e Ricouer. Entretanto, repito, Foucault não oporá, como Ricouer, uma escola da
suspeita a uma escola da reminiscência. Isso porque nesta época ele já se afastara
da Fenomenologia, para se inscrever mais radicalmente na tradição que tenta
pensar a partir da constatação e da afirmação da “morte de Deus”. Em outras
palavras, se Foucault não se interessa pelo sentido, é porque, como veremos, já
não há mais nenhum sentido a encontrar.
Qual deslocamento então foi operado por Nietzsche, Freud e Marx na
concepção de signo, de tal modo que eles fundam uma nova “arte de interpretar”?
Os argumentos de Foucault poderiam ser resumidos da seguinte maneira:
1. pela negação de uma profundidade ideal, uma vez que se abre um novo
espaço de repartição dos signos: o espaço da superfície. Aqui, por exemplo,
Foucault relembra uma passagem da abertura do Capital, de Marx, quando este
diz que deverá , à diferença de Perseu, se afundar na bruma para mostrar, de
fato, que não há nem monstros nem enigmas profundos, pois tudo que há de
profundo na concepção burguesa da moeda, do capital, do valor, não passa de
“superficialidade”.
294
da palavra
2. os signos não se reenviam mais uns aos outros (como na episteme da
semelhança renascentista), mas por sua inesgotável profusão, pelas suas infinitas
facetas, abrindo portanto a possibilidade de uma interpretação infinita, sempre
inacabada; neste ponto, Foucault lembra a diferença entre “começo” (le
commencement) e “origem” (l’ origine) em Nietzsche. O “começo”, ao contrário da
“origem”, remete ao caráter infinito da interpretação, a uma abertura que lhe é
irredutível. Como sabemos, alguns anos depois, em 1971, Foucault, em
“Nietzsche, a genealogia e a história”, refinará a distinção nietzschiana entre
“começo” e “origem”: aquele, recoberto com mais intensidade pelos termos
Entstehung (proveniência, ponto de surgimento) e Herkunft; (emergência, entrada
em cena das forças em confronto, num jogo perpétuo, que deixa suas marcas no
corpo); esta, como busca metafísica, Ursprung, do que é sempre dado antes como
verdadeiro, belo e bom (1994b, p. 136; 1979, 15).
3. ao negar qualquer referência a um significado absoluto, a chave da
hermenêutica moderna é que tudo já é interpretação, que todo signo não remete
a uma coisa, mas sempre a um outro signo (o que não quer dizer, evidentemente,
que todas as interpretações sejam verdadeiras); aqui, por sua vez, podemos
lembrar de Freud. Com efeito, pergunta Foucault, o que ele descobre por trás
dos sintomas senão outros signos, os “fantasmas”, com sua carga de angústia,
isto é, um cerne que já é no seu próprio ser, uma interpretação? E, em decorrência
da distinção entre “começo” e “origem”, ele dirá que, em Nietzsche, “não há
um significado original” (1994a, p. 572; 1967, p. 190).
4. a negação de qualquer referência a um significado absoluto submete a
interpretação à tarefa de interpretar-se a si mesma: “Não se interpreta o que há
no significante, mas se interpreta no fundo: quem interpreta” (1994a, p. 573;
1967, p. 191).5 Disso, Foucault tira uma dupla consequência: primeiro, que o
princípio da interpretação nada mais é do que o intérprete e segundo, que a
interpretação não se dá num tempo linear e homogêneo, mas sim num tempo
que lhe é próprio, num tempo circular. Enfim, uma vez que não há crença em
signos imóveis, irreversíveis e absolutos, a vida da interpretação seria uma
espécie de “eterno retorno” das interpretações ou ainda, segundo uma famosa
afirmação de Nietzsche: “não há fatos, somente interpretações”.
O destaque em quem existe
apenas na publicação de 1967
e não na de 1994.
5
Em que medida Foucault segue Ricouer e em que medida se afasta dele?
Sem dúvida, como Ricouer, Foucault também considera, pelo menos neste
período de seu pensamento, que a questão da linguagem é a questão central da
filosofia. Do mesmo modo, ele também concede a Nietzsche, Freud e Marx um
lugar privilegiado na história das técnicas de interpretação. Com isso, ele também
considera que a Filosofia precisa confrontar-se com a Psicanálise, ou que sem
essa confrontação com Freud o pensamento filosófico contemporâneo não pode
ir muito longe. Mas, talvez eu pudesse resumir numa palavra, a distância que
separa Foucault de Ricouer: a figura de Nietzsche, o pensamento de Nietzsche.
Eis o ponto onde, pelo menos neste momento,6 não pode haver acordo entre
eles. É Nietzsche o fiel da balança e é ele quem, no fundo, dá as cartas quando
da palavra 295
Foucault se refere à questão da interpretação. Interpretação e perspectivismo
no sentido nietzschiano se constituiriam assim, nos grandes antípodas, para
Foucault, da hermenêutica enquanto restauração do sentido.
REFERÊNCIAS
FOUCAULT, Michel (1967), “Nietzsche, Freud et Marx”. In: Nietzsche. Cahiers
de Royaumont. Paris: Éditions de Minuit.
(1979), “Nietzsche, a genealogia e a história”. In: Microfísica do Poder.
Rio de Janeiro: Graal.
(1994a). “Nietzsche, Freud et Marx”. In: Dits et écrits. Paris:
Gallimard, vol. I.
(1994b). “Nietzsche, la généalogie, l’ histoire”. In: Dits et écrits.
Paris: Gallimard, vol. II.
(1994c). “Structuralisme and Post-Structuralisme”. In: Dits et écrits.
Paris: Gallimard, vol. IV.
LEBRUN, Gérard (1985). “Transgredir a finitude”. In: RIBEIRO, Renato Janine
(Org.). Recordar Foucault. São Paulo: Brasiliense.
MACHADO, Roberto. Ciência e saber: a trajetória da arqueologia de Foucault. Rio de
Janeiro: Graal, 1982.
MARTON, Scarlet (1985). “Foucault, leitor de Nietzsche”. In: RIBEIRO, Renato
Janine (Org.). Recordar Foucault. São Paulo: Brasiliense.
RICOUER, Paul (1977). Da interpretação: ensaio sobre Freud. Rio de Janeiro: Imago.
(2000). La mémoire, l´histoire, l’ oublie. Paris: Éditions du Seuil.
296
da palavra
6
Posteriormente, Ricouer
vai nuançar bastante sua interpretação de Nietzsche, além
de utilizar largamente a Arqueologia do saber, de Foucault, para
seus próprios projetos teóricos (RICOUER, 2000). Para
uma leitura crítica da interpretação foucaultiana de Nietzsche, que remete aos mesmos
textos que estou comentando,
ver Marton, 1985.
Para que fenomenologia “da”
educação e “na” pesquisa
educacional?
Aniceto Cirino da Silva Filho1
1
Mestre em Educação: Ensino Superior e Gestão Universitária pela Universidade da
Amazônia e professor de Filosofia da UNAMA e do Instituto Regional de Formação
Presbiteral – IRFP.
2
SILVA FILHO, Aniceto Cirino da. Produção/transmissão de conhecimento na Universidade: uma questão a investigar. Belém: UNAMA,
2003
No início de um estudo, já publicado2, cujo tema foi “Produção/
Transmissão de conhecimento na Universidade: Uma questão a investigar”,
meu propósito foi refletir a Universidade, como locus eminente do pensar/
criar e de servir à comunidade, tendo em vista a formação docente no ensino
superior, os determinantes do ensinar e do aprender que se experienciam na
vida acadêmica numa correlação noesis-noema-noesis e as interrelações essenciais
entre as concepções de conhecimento e as concepções de aprendizagem e
ensino.
Foi com esta prematura intenção de pesquisa que decidi – para obter
algumas orientações teórico-metodológicas – conversar (que aqui se entenda
perguntar e responder entre pessoas unidas pelo interesse comum da busca)
com a maior expressão viva da Filosofia no Pará, meu ex-professor Benedito
Nunes.
Num primeiro diálogo e, não ficou somente neste, em sua própria
residência, Benedito me recebeu para que esclarecesse acerca desse “objeto” de
investigação. Disse a ele que minha trajetória, diferentemente das pesquisas
empíricas, era para interrogar os fundamentos epistemológicos da educação que
têm constituído eixos de estudo da produção do conhecimento nas áreas da
Pedagogia, apontando problemas, limitações e exclusivismos. Decerto, não como
modelo, mas numa tentativa de colocar em suspensão (epoché) o próprio ensino
e a pesquisa educacional como um “que fazer” sem as quais a educação (exducere) nada significa, tomei intuitivamente a Fenomenologia à descrição da
existência de tendências teórico-metodológicas que incidem na produção
científica e que ficam subtendidas sobre as quais nem mesmo alguns
pesquisadores têm consciência.
da palavra 297
Assim, partilhei com o mestre as minhas inquietações, mas fui logo
advertido por ele de que a fenomenologia só é um qualificativo da pedagogia
porque constitui uma teoria da experiência humana alargada. Era, pois, minha
tarefa, num valor de tentativa, pôr em ordem e justificar um discurso sobre as
práticas pedagógicas na universidade e elaborar uma crítica da educação. Daí
em diante persegui a ideia de tornar visíveis abordagens epistemológicas que
norteiam a docência e fui buscar um método e/ou filosofia (fenomenologia) para
que as atividades educacionais se mostrassem (phainomenon) na sua clareza
(aletheia) à consciência intencional dos sujeitos (visée de la conscience), sobretudo,
através de minha “existência” (Dasein) como professor (ser/pessoa de
possibilidades) que se desoculta mundanamente e se auto-conhece nas relações
inter-pessoais, aberto às coisas e aos outros (ser com mit-sei), no espaço e no
tempo (Kairós) social.
Para que fenomenologia “da” educação e “na” pesquisa educacional? Esta
foi a interrogação introdutória, porém essencial a uma boa conversa com o meu
instigador. Ora, se introduzir (introducere) é a ‘ação de levar para dentro’, a questão
me possibilitou um deslocamento eficiente numa direção que eu mesmo escolhi.
Certamente, Benedito Nunes me instigou a lavrar um tento ao escolher
conscientemente um procedimento de investigação organizado (methodus)
importante para alcançar a realização de minha perspectiva.
Como todo problema filosófico - cuja resposta é desconhecida, porém a
sua essência é a necessidade de conhecer -, retomei as práticas educacionais como
quem retorna às coisas mesmas tendo em vista que essas próprias práticas se
apresentam a mim como algo que existe e que precisa ser “novamente”
investigado para encontrar o sentido único, o significado próprio, a forma
verdadeira de educare.
Eis aí uma afecção (significado na tradição filosófica), indispensável ao
conhecimento intelectual, cujo artigo teria de se iniciar com aquela indagação
que se impôs objetivamente e foi assumida subjetivamente:
PARA QUE FENOMENOLOGIA “DA” EDUCAÇÃO E “NA”
PESQUISA EDUCACIONAL?
Durante muito tempo, a educação brasileira empacou numa concepção e
tendência idealistas imputando uma ação pedagógica cujo aprendizado apoiavase, essencialmente, na consciência do educando. Como não fosse suficiente,
modelou-se também pelos ditames do autoritarismo e da prática antidialógica,
próprios da educação positivista que visava tão somente a integrar e/ou adaptar
o ser humano à ordem social estabelecida.
Contudo, entre as mais diversas criações culturais que são sustentadas e
melhoradas – no tempo histórico – por meio das experiências ativas,
profundamente humanas, a educação será sempre o fenômeno da aprendizagem
da cultura. Todavia, é preciso compreendê-la, procurando os sentidos da existência
do ser humano como aquele que a realiza, torna-a possível, ou seja, é preciso
significar a educação vivida humanamente como tal.
298
da palavra
A essência da educação é compreender o sentido global da existência
humana inacabada para que, nesta existencialidade, o projeto humano se realize
buscando o seu ser-possível. Não há educação, mas alienação, se nós, seres
humanos, vivermos sem perceber o significado compreensivo de que as nossas
vidas realmente têm com relação ao inesgotável mundo. Isso supõe que
precisamos “estar sendo” e, do mesmo modo, necessitamos qualificar uma
educação num processo contínuo do refazer-se.
Devemos, sim, considerar a educação como um produto cultural, isto é,
aprendizagem da cultura, mas,é por meio da aprendizagem que alcançamos a
esfera da humanização propriamente dita e nos tornamos diferentes do resto
dos entes que habitam o mundo, visto que somos, pelo trabalho, capazes de
criação cultural, acrescentando sempre algo de novo à natureza e aprimorando
o nosso mundo-vida-educacional:
Promover a aprendizagem é promover a cultura, e isto também é trabalho.
Tanto mais que a aprendizagem humana e significativa tem exigências que não
permitem a improvisação e a superficialidade. Neste sentido, a qualificação dos
docentes é tão importante quanto a preparação da “mão-de-obra” especializada
para os outros setores da atividade humana. É mesmo mais importante, uma
vez que se trata de um trabalho mais especial, visando a geração da cultura pela
transformação dos sujeitos humanos e da sociedade. (REZENDE, 1990 p. 72)
Jamais se ignora que a permanente transformação da mulher e do homem
se realiza em torno da necessidade de melhorar o seu modo de viver, procurando
formas adequadas de crescer e progredir em seu sistema social, em contínua
troca de saberes não só entre humanos, como também entre humanos e o mundo,
possibilitando novas aprendizagens.
Redescobrir o significado da compreensão educacional, o tipo de sociedade
em que essa está inserida, segundo a esfera vivencial dos sujeitos que a ela se
remetem, impõe a todos os educadores vários desafios. Assim, interrogar a
educação, uma vez que a sua existencialidade envolve pessoas que a manifestam
intencionalmente e a acolhem, é considerá-la como um fenômeno próprio,
universal e necessário, da experiência humana.
A análise da experiência educacional, voltando-se para o lado-sujeito ou
noético, se torna, fundamentalmente, análise da vida do sujeito no qual e para o
qual se constitui o sentido da educação e da existência do sujeito no mundo.
Isto significa, igualmente, que o fenômeno educação é humano, demasiadamente
humano.
É próprio, então, da reflexão fenomenológica, ao se voltar para a experiência
humana como fenômeno, ressignificar o sentido existencial do Ser, mas, para
tanto, é necessário compreendermos – a exemplo de Heidegger em sua analítica
da existência – um Ser transformado num ente, em algo concreto, um Ser que
constitui o mundo-vida e assim aparece como homem, que, no seu sentido
particular, é o “Ser-aí”.
Para não digredir da linguagem heideggeriana cuja palavra predominante
é Dasein, insistimos com a sua etimologia: da (aí, lugar onde o Ser se desvela no
da palavra 299
próprio homem) e Sein (presença existencial). O Dasein designa o homem, ente
singular e concreto; não o homem em si mesmo substancializado na tradição
ontológico-metafísica, mas aquele que, ao se encontrar aí, coloca o seu Ser em
questão; portanto, o Dasein pertence ao campo ôntico do existente, daquilo tal
qual é (ação e abertura), ou seja, “o ente que temos a tarefa de analisar somos
nós mesmos” (HEIDEGGER, 1993 p. 67).
O Dasein é o Ser situado, engajado numa dada realidade concreta; sua
essência é se lançar no mundo-vida e neste se fazer presente, colocando a sua
própria existência em questão. O homem realiza sua essência na existência,
uma vez que o seu caráter mais universal e particular de existir é a sua própria
essência:
O dasein sempre se compreende a si mesmo a partir de sua existência, de uma
possibilidade própria de ser ou não ser ela mesma. Essas possibilidades são ou
escolhidas pelo próprio dasein ou um meio em que ele caiu ou já sempre nasceu
e cresceu. [...] a questão da existência sempre só poderá ser esclarecida pelo
próprio existir. (HEIDEGGER, 1993 p 39)
Na vida cotidiana, o homem – caracterizado pela sua facticidade, “ser-nomundo” sem ter escolhido tal mundo para viver – projeta-se para fora de si
mesmo, relaciona-se com outros homens (“Ser-com”), mas não consegue escapar
de sua total ruína, o que implica dizer que o Dasein, ao desviar-se de seu projeto
essencial para se ocupar com preocupações rotineiras da vida cotidiana, tornase alienado, isto é, inautêntico.
Em suma, para Heidegger, a vida cotidiana faz do homem um ser preguiçoso e
cansado de si próprio, que, acovardado diante das pressões sociais, acaba
preferindo vegetar na banalidade e no anonimato, pensando e vivendo por meio
de ideias e sentimentos acabados e inalteráveis, como ente exilado de si mesmo
e do ser. (HEIDEGGER apud CHAUÍ, 1989 p. IX)
Nessa compreensão, o ser humano se define pela sua própria existência
cotidiana, porém, mais que isso, ele é existência idealizada (Existenz). Isto
significa dizer que, ao invés de retornar para a vida cotidiana, pode transcender,
ou seja, dar sentido ao seu próprio ser, voltando-se à sua realidade mais íntima,
longe de tudo que lhe retira a possibilidade de uma vida autêntica.
O “Ser-no-mundo”, o Dasein, não está sozinho. Ele exige necessariamente
a presença de um outro Dasein para, em comunhão, manter a intersubjetividade,
isto é, a relação com outrem, coexistindo o amor e a comunicação direta entre
eles, por meio da temporalidade (ser temporal, finito, ‘ser-para-a-morte’) e da
mundanidade (um mundo existencial). Todavia, se toda a existência humana é feita
de encontros de subjetividades nas mais diversas situações históricas; então, uma
dessas situações é a possibilidade de, também, encontrar-se com a educação [em
relação à qual eu não deixo de me situar], “estar junto” dela, (pre)ocupar-se “com” ela.
Ao colocarmos a existência humana e nela a alteridade – como especial
exemplo, o ser-aluno “com” o ser-professor numa relação de “ser-para-outro” –
300
da palavra
reconheçamos que, entre os fenômenos culturais, a experiência educacional,
por sua dimensão, extensão, amplitude e profundeza, é a mais significativa a
uma fenomenologia da educação. Mas, se a fenomenologia da educação é um
processo permanente de elucidação da experiência pedagógica, não se pode
negar que a educação habita sutilmente nossa vida cotidiana e, por assim dizer,
está mais próxima de nossa experiência pessoal do que desejamos admitir.
Ao considerar a educação um fenômeno próprio dos seres humanos,
devemos começar por reconhecer que não há como procurar o seu sentido, sem
refletir acerca da existencialidade humana, isto é, precisa-se compreender a
educação a partir das relações humanas vivenciadas “com” e “no” mundo,
sobretudo porque a educação é, sem dúvida, experiência universal essencialmente
constitutiva do homem engajado efetivamente no mundo.
A aprendizagem humana não ocorre somente na esfera do intelectual, do
lógico, do psicológico, etc. Aprendemos com a totalidade de nosso corpo, com
nossa sensação, percepção, imaginação e intuições estimuladas pela
intersubjetividade. Aprendemos vendo a nós mesmos ou vendo outros corpos
que se aproximam do nosso e juntos formamos novos corpos-videntes.
Aprendemos sentindo o outro ou sentindo a nós mesmos, pois nosso corpo é
tátil. Aprendemos ouvindo os próprios sons que nosso corpo emite como
ouvindo outros sons comunicados por outros corpos, uma vez que nosso corpo
é sonoro. Aprendemos, portanto, significando a existência da corporalidade do
“ser-no-mundo” visto que nosso corpo em potência esboça um ‘tipo de reflexão’,
“[...] este saber, como todos os outros, só se adquire por nossas relações com o
outro [...]” (MERLEAU-PONTY, 1999 p. 141).
Nosso modo fundamental de ser e de estar-no-mundo, de se relacionar
com o Outro e de ele se relacionar comigo, forma uma estrutura cuja
complexidade expressa o fenômeno humano com o qual se origina também o
fenômeno da aprendizagem, e esta só se permite numa unidade indissociável
entre o teórico e o prático proposta aos agentes da educação embricados no
contexto homem-mundo.
Isso tudo esclarece uma pesquisa de natureza qualitativa, sobretudo de
modalidade fenomenológica existencial-hermenêutica, cujo caráter é a
interpretação reflexivo-crítica acerca do sentido da experiência [educacional]
vivida pelos sujeitos em sua própria realidade cultural a partir das suas diversas
dimensões (sociais, econômicas, políticas, éticas e técnicas), bem como a
clarificação dos aspectos existenciais destes sujeitos.
Ao pretendermos usar o método fenomenológico ? cujo termo técnico é
usualmente conhecido como “descrição fenomenológica” ? lidaremos com aquilo
que é significativo ou com a experiência consciente, uma vez que, ao tentarmos
explicar a essência do fenômeno na sua própria existência, o seu sentido e a sua
estrutura manifesta, fá-lo-emos através de uma consciência aberta e livre dos
“prejuízos do mundo”.
O fenômeno (entendido como aquilo que se mostra em si mesmo), que
vai se revelando a partir do estudo em processo, ressignificará uma terminologia
(signos) do cotidiano dos sujeitos envolvidos e permitirá também apreender
uma nova maneira de dar sentido (através do logos) a esses signos constantes no
da palavra 301
mundo-vida [educacional] daquela realidade. E, por assim dizer, a própria palavra
fenomenologia, por sua origem e formação, compõe-se de dois vocábulos gregos
(fenômeno e logos) e significa “deixar e fazer ver por si mesmo aquilo que se
mostra, tal como se mostra a partir de si mesmo” (HEIDEGGER, 1993 p. 65).
Segundo Merleau-Ponty (apud BICUDO; ESPÓSITO, 1997 p.26-27) a
descrição fenomenológica constitui-se de três passos fundamentais:
1. A percepção assume a primazia do processo reflexivo. Isto quer dizer que o mundo
percebido é o fundamento, sempre suposto, de toda a racionalidade, de todos
os valores, de toda a existência. Tal tese não destrói a racionalidade, nem o
absoluto. Procura apenas traze-los para a terra, para o chão. Primazia da percepção
significa que a experiência da percepção é nossa presença no momento quando
as coisas, as verdades, os valores são constituídos para nós.
2. [...] a redução fenomenológica, que ilustra a comunicação das convenções.
Aqui também há três níveis de análise que constituem a redução:
2.1. A ideia de epoché derivada de Husserl. No primeiro nível, o pesquisador
suspende as proposições características da construção teórica.
2.2. No segundo nível, há a criação de uma perspectiva gestáltica radical, na qual
o observador e o sujeito são os pontos focais da descrição. Esse processo é
frequentemente referido como localização do temático nos dados da descrição.
2.3. No terceiro nível, o pesquisador tenta localizar as fontes pré-reflexivas do
tema, derivadas da descrição, indicando o que a experiência consciente era antes
da reflexão e do julgamento sobre ela.
3. O terceiro passo da descrição é a interpretação fenomenológica como uma
forma de legitimização comunicativa.
Então, temos aí, resumidamente, três complexos movimentos da
fenomenologia que, uma vez utilizada como recurso metodológico para a
compreensão da educação, no seio de uma totalidade de significados, assume
(1º passo) a primazia do processo reflexivo.
Edmund Husserl (1859-1938), criador do movimento fenomenológico,
já havia destacado que a consciência cognoscente é doadora de sentidos, por
isso intenciona um objeto para – por sua razão de ser – preenchê-lo de
significados.
A [primazia da] percepção não se confunde com as nossas isoladas sensações
(por ex.: sinto frio ou calor, vejo cores, ouço vozes, etc.), pois a percepção já está
prenhe de sentido e por isso ultrapassa os objetos empiricamente dados. Perceber,
mais que “puro sentir”, não é estar preso ao mundo e receber dele sensações
fragmentadas na psique, mas é a apreensão de uma qualidade. No entanto, ainda
permanecemos, segundo Merleau-Ponty (1999 p. 26), “presos ao mundo e não
chegamos a nos destacar dele para passar à consciência do mundo. Se nós o
fizéssemos, veríamos que a qualidade nunca é experimentada imediatamente e
que toda consciência é consciência de algo”.
Dada à primazia da percepção, temos a (2º passo) redução fenomenológica
que intenciona encontrar o sentido originário do fenômeno. Para tanto, é preciso
mostrar como o “mundo que eu distinguia de mim enquanto soma de coisas ou
de processos ligados por relações de causalidade, eu o redescubro “em mim”...
302
da palavra
revelando-me como “ser no mundo” (idem, p. 9), isto é, sou consciência
encarnada num mundo que agora tanto o mundo quanto o “eu” tem sentido
para mim.
Promover a redução, para Husserl, é voltar às coisas mesmas, é voltar ao eidos,
por isso toda redução é necessariamente eidética na medida em que procuramos uma
essência, um sentido sem o qual nada tem sentido. Mas, “as essências de Husserl
devem trazer consigo todas as relações vivas da experiência...” (idem, p. 12), ou
melhor, uma consciência intencional é aquela que se abre à experiência do mundo
e o apreende tal como ele é, extraindo-lhe o seu sentido essencial.
Heidegger também aguçou essa discussão quando procurou o “ser dos
entes”, isto é, o sentido que faz com que todas as coisas ou pessoas sejam
verdadeiramente o que são. Para Heidegger existe um “ente” que se distingue
dos demais: o Dasein, cujo privilégio é o de compreender-se a si mesmo. Contudo,
numa determinada aproximação, só o homem do ponto de vista de seu ser,
como Dasein, conceito mais importante de Ser e tempo (cf. NUNES, 2002 p. 8), é
capaz de significar o mundo e de dar sentido ao seu próprio ser. Por isso, o
sentido é aquilo em que “se apóia a compreensibilidade de algo” (HEIDEGGER
apud NUNES, 1992, p. 172-173), alguma coisa que se abre ao ser-aí numa relação
de pertença que a torna interpretada, pois ele sabe o que fazer dela, bem como
compreende a si próprio quando sabe perfeitamente acerca de seu estar-nomundo. A fenomenologia será, pois, esse esforço de interpretação das coisas e,
fundamentalmente, dos humanos que se revelam “no”, “com” e “para” o mundo.
Essa compreensão, conduzida pela epoché fenomenológica, exige a
“suspensão de todo o juízo” que temos de algo para alcançar a sua genuinidade,
a própria essência das coisas. Deste modo, tudo quanto sabemos sobre o homem
e sobre o mundo, através da atitude ingênua do senso comum ou mediante
qualquer filosofia, dogma ou até mesmo conforme o conhecimento científico
deve ser colocado fora de ação – “posto entre parênteses” – para que possamos
redescobrir o “ser dos entes”, o significado em toda a sua riqueza original da
experiência vivida, presente nas situações históricas em que são percebidas ou
expressas.
Tudo isso se acha em relação direta com a apreensão da estrutura
fenomenal da educação que, uma vez simbólica e intersubjetiva, deve ser
aprendida por meio da experiência íntima dos sujeitos que a projetaram
intencionalmente. Para tanto, é preciso encontrar o “princípio do princípio”
educacional vivido humanamente. É aí que a Fenomenologia põe-se (ao educador
e ao pesquisador) como necessária, isto é, como método de rigor ao indicar um
caminho lógico e como Filosofia ao “reaprender a ver o mundo”.
Se a descrição do discurso dos sujeitos envolvidos, de suas experiências
humanas [educacionais] vivenciadas para posterior interpretação (3º passo) e o
alcance dos significados atribuídos por estes sujeitos à (sua) práxis, qualificam
um modelo de pesquisa qualitativa de tipo fenomenológica, esta terá, como
apoio teórico-metodológico, a fenomenologia existencial-hermenêutica que se
caracteriza pela união do ‘conceito existencial de situação’ (somos no mundo
sempre afetados de alguma forma) com a ‘interpretação’ (o conhecimento mais
original é a compreensão interpretativa do real).
da palavra 303
Desse modo, esta fenomenologia, consequentemente, constitui-se também
como hermenêutica da existência, por renovar continuamente – no movimento
do compreender e interpretar – o projeto humano e nele o seu ‘fazer pedagógico’
inseparável da interpretação e, sobretudo, da linguagem e do diálogo crítico.
Compreende-se, pois, a importância que foi ganhando o conceito de
interpretação não só como simples método ou teoria metodológica, porém como
Filosofia, ou seja, elucidação sistemática das questões que determinam todo o saber e
o fazer humanos que, para Gadamer (2002 p. 391), “... é o que oferece a mediação
nunca acabada e pronta entre homem e mundo, e nesse sentido a única imediatez
verdadeira e o único dado real é o fato de compreendermos algo como algo”.
Se ocorrer a pesquisa de campo, podemos realizar entrevistas (e a
hermenêutica destas) com as pessoas inseridas na modalidade educacional em
estudo, a fim de coletar um material necessário que expresse, por exemplo, o
sentido da vontade de aprender dos educandos, a idiossincrasia dos educadores,
as escolhas e o envolvimento do professor e aluno com os problemas sócioculturais.
A coleta de dados (significante-significado) pode ser realizada através de
entrevistas fenomenológicas – um dos instrumentos que atendem mais de perto ao
estudo do vivido – com os sujeitos que, diretamente envolvidos, devem se
manifestar acerca de alguns signos (valores, ações sociais, adesões, engajamentos
políticos, etc.) relacionados às suas vivências educacionais tanto como alunos,
professores, diretores de escolas, etc. onde atuam, isto é, são vivências a serem
descritas e sobretudo a reflexão dessas mesmas experiências que estão
condensadas de vivos sentidos.
É importante salientar, desde já, que a análise dos dados coletados, isto
é, a descrição fenomenológica, deverá caminhar na direção de análise de discurso,
objetivando situar o fenômeno investigado a partir do contexto vivido.
No entanto, numa perspectiva descritiva sobre o que se pretende investigar,
uma fenomenologia da educação, lembrando o historiador Gerardus Van der
Leeuw e a sua Fenomenologia da Religião (apud HOLANDA, 2004 p. 53), não
pode deixar de:
1. Nomear os fenômenos, designando-os como tal [...];
2. Inseri-los na vida, ou seja, trazê-los de volta à experiência vivida;
3. Colocar-se de lado para, por meio da époché, tentar ver o que se mostra (o
fenômeno);
4. Tentar elucidar o que viu;
5. Tentar compreender o que se mostrou.
Para estabelecer o rigor nas ações educacionais e nas pesquisas, é essa
análise, método e atitude fenomenológica que garantirá uma concepção de
educação pautada nos “atos vivos” dos sujeitos que produzem cultura e
reconhecem as suas criações conscientemente, que constroem conhecimento
com atos de consciência intencionados “na” e “para a” educação.
Se nos dispomos ao “que-fazer” educacional numa perspectiva
fenomenológica, estaremos motivados a uma constante procura da verdade que
304
da palavra
se origina na inquietação humana; procuraremos clarear os problemas de fundo
da educação global do homem com uma preocupação radical com o rigor e a
evidência; garantiremos uma mediação dos sujeitos (professor e aluno) com os
saberes sistematizados, com a cultura e com o mundo. Entretanto, sabendo de
antemão que há sempre um horizonte de possibilidades a ser conquistado, a se
revelar e a dizer; à educação, então, retomaremos a cada instante, e toda e
qualquer compreensão fundante que dela tivermos jamais se dará por acabada
na ordem existencial.
Decerto, um caminho para o fundamento da educação e às pesquisas
educacionais se encontra na fenomenologia – daí a importância fundamental da
primazia da percepção intencional, da redução fenomenológica (da epoché, da
suspensão do juízo, da fidelidade ao que se dá de modo evidente) e da
interpretação – e é nela que a educação procurará o seu sentido essencial, a sua
reta direção para alcançar os fins e objetivos que deseja.
Assim sendo, a fenomenologia – compreendida para além de método – é
uma atitude intencionalmente consciente, crítica e criativa das experiências
vivenciais humanas que, aqui, está presente também nas práticas pedagógicas;
sem a fenomenologia, essas práticas estariam desorientadas em seus fins próprios
e as pesquisas educacionais seriam estéreis sem essa atitude investigativa que
se abre à possibilidade de refletir o fenômeno, rompendo com os cercos do
conhecimento estabelecido.
CONCLUSÃO
Refletir sobre a docência no ensino superior, analisando os determinantes
do ensinar e do aprender que se concretizam no espaço acadêmico, exige de
nós, professores inquiridores do saber, preparar “caminhos” para tal
empreendimento.
Numa descrição essencial do processo ensino e aprendizagem, a
característica fundamental desta relação não é a simples transmissão de
conhecimentos do professor ao aluno, mas assegurar comportamentos ativos de
sujeitos cognoscentes, preparados para o julgamento crítico, capazes de construir
e reconstruir por conta próprias novas ideias. Para tanto, é necessário apreender
procedimentos adequados (methodus) que possibilitem o exercício da atividade
pensante e permitam a pesquisa na universidade.
Busquei o método fenomenológico com o intuito de aprofundar e
fundamentar criticamente os problemas da educação superior, evitar desvios da
boa qualidade de ensino, fortalecer as práticas pedagógicas no sentido de conduzir
a educação como um processo de constante libertação do ser humano e estimular
o prazer e o gosto pela pesquisa.
Como professor universitário, mergulhado numa prática donde emerjo
ainda insatisfeito por não poder reestrurá-la, por perceber que muitas vezes a
própria prática não dá conta da teoria, pois há rupturas; procurei uma teoria que
me ensinasse a ir em direção às próprias coisas, que me deixasse “ouvir” a ordem
das próprias coisas (do ensinar/aprender/transmitir/produzir conhecimento) e
da palavra 305
“ver” o movimento delas no próprio mundo (sociedade/Universidade/sala de
aula,etc.). A fenomenologia pode estar na base da busca individual de muitos
professores-pesquisadores por mudanças de sentido; acreditei nela como certo
estou de que a verdadeira educação não separa ação da reflexão, teoria da prática,
consciência do mundo. Para completar a sua rigorosidade metódica, a
fenomenologia é uma atitude refinada para trabalhar o sentido essencial não
somente da educação, mas o aprimoramento ético da ciência, da filosofia e da
existência humana.
REFERÊNCIAS
BICUDO, Maria Aparecida Viggiani; ESPÓSITO, Vitória Helena Cunha (Org.).
Joel Martins... um seminário avançado em fenomenologia. São Paulo: EDUC, 1997.
CHAUÍ, Marilena. Heidegger – vida e obra (Introdução). In: Heidegger. São Paulo:
Nova Cultural, 1989. (Os Pensadores)
GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método II: complementos e índice. Petrópolis,
RJ: Vozes, 2002.
HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. Petrópolis: Vozes, 1993.
HOLANDA, A. (org.) Psicologia, religiosidade e fenomenologia. Campinas-SP: Átomo,
2004.
HUSSERL, Edmund. A idéia da fenomenologia. Rio de Janeiro: edições 70, 1990.
MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da percepção. 2ª ed. São Paulo: Martins
Fontes, 1999.
NUNES, Benedito. Passagem para o poético: filosofia e poesia em Heidegger. São
Paulo: Ática, 1992.
. Heidegger & ser e tempo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002.
REZENDE, Antonio. Concepção fenomenológica da educação. São Paulo: Cortez,
1990.
306
da palavra
da palavra 307
Download

03 PARTES VI ASAS DA PALAVRA - benedito nunes.pmd