A PRODUÇÃO DA CULTURA ESCOLAR EM MINAS GERAIS: PRÁTICAS DE PROFESSORAS E ALUNOS DA ESCOLA PRIMÁRIA. Irlen Antônio Gonçalves Doutorando em Educação – Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Educação da UFMG Professor de História da Educação – Faculdade de Ciências Humanas –FUMEC O objeto de estudo deste trabalho, que é a produção da cultura escolar em Minas Gerais, tem em vista compreender a cultura escolar que se formou no Estado nas primeiras três décadas do século XX. O intento de compreensão da cultura, a partir das práticas escolares das professoras e alunos, implica em trazer como problematização central e geral as questões relacionadas à constituição da cultura que emergiu no dia-a-dia da escola primária. Pois será nesse cotidiano que as ações dos sujeitos serão inventadas ou reinventadas, gerando não somente as ações passivas de reprodução das imposições formais dos regulamentos e programas prescritos, mas sobretudo, desenvolvendo uma relação complexa de astúcias com tais imposições, com tramas de sociabilidades com seus pares e com outros sujeitos implicados nas relações mais extensas, seja no seio familiar, comunitário, ou outros. Relações amplas de negociações, de conflitos, de burlas, de transgressões, de criação e de resistência. O conceito de cultura escolar aparece nos mais variados campos disciplinares, estando, sobretudo, presente na sociologia, na filosofia, na antropologia e na história. Esse conceito tem sido utilizado, abundantemente, na produção da pesquisa sobre a constituição da prática escolar, em especial na realidade brasileira. A produção da pesquisa em História da Educação tem dialogado com diversos autores, tais como, Forquim, Viñao Frago, Julia, Nóvoa, Vincent, Lahire, Thin, Hébrard, Chervel e Perrenoud, dentre outros. Assim, para explicitar melhor o conceito de cultura que será aqui utilizado, buscarei compreendê-lo a partir de alguns desses autores que se debruçaram em sua construção, tendo em vista aclarar aqueles elementos que podem ser considerados centrais na composição do fenômeno educativo, a saber: os tempos e os espaços escolares, os saberes e os sujeitos da escola e a materialidade das práticas pedagógicas. Esses autores têm aplicado o conceito de cultura escolar sob formas diversas, cada um buscando adotá-lo sob a ótica orientadora de suas perspectivas de explicação das práticas internas da instituição escolar. Portanto, o olhar para as práticas cotidianas da escola se fixa nos acontecimentos silenciosos do seu funcionamento interno. Silenciosos pela ausência dos 2 documentos, ou pouco conservados ou ainda não encontrados. Destarte, o conceito de cultura abre a “caixa preta da escola, ao buscar compreender o que ocorre nesse espaço particular” (Julia, 2001)1. Para Vinão Frago, a compreensão da cultura escolar passa necessariamente pela consideração que vai desde a sociologia das organizações até a antropologia das práticas cotidianas. Nesse sentido, “a cultura escolar pode ser definida como um conjunto de idéias, princípios, critérios, normas e práticas sedimentadas ao longo do tempo das instituições educativas” (Vinão Frago, 2000, p. 100). Isso significa dizer que no interior da escola produzem-se “modos de pensar e de atuar que proporcionam” a todos os sujeitos envolvidos nas práticas escolares “estratégias e pautas para desenvolver tanto nas aulas como fora delas” condutas, modos de vida e de pensar, materialidade física, hábitos e ritos. (Vinão Frago, 1995, p. 68-69). Numa direção bem próxima, acrescentando a ênfase na consideração de que a análise da cultura escolar precisa ser feita na relação com o conjunto das culturas contemporâneas, Dominique Julia compreende a cultura escolar como “um conjunto de normas que definem conhecimentos a ensinar e condutas a inculcar, e um conjunto de práticas que permitem a transmissão desses conhecimentos e a incorporação desses comportamentos” (Julia, 2001, p. 10). São normas e práticas que precisam ser entendidas nos aspectos relativos ao contexto de sua produção, à sua finalidade, que varia segundo o tempo, podendo atender às questões de ordens diversas como: religiosa, sociopolítica ou de socialização e, por fim, a consideração que recai sobre os sujeitos que estarão envolvidos na obediência ou não das normas e no estabelecimento das práticas diárias do fazer escolar. Destaca-se ainda um outro conceito de singular significado para a compreensão da constituição da cultura escolar: o conceito de forma escolar, de Vicent, Lahire e Thin. Para esses autores a forma escolar é “um modo de socialização” que se impôs no transcurso histórico, principalmente a partir do século XVII, “a outros modos de socialização” (Vicent, Lahire e Thin, 2001, p. 11). Esse modo de socialização que vem se impondo, ainda que inventado no interior da produção da escola, não é estanque aos outros modos também de socialização, mas está ligado a eles. Isso se confirma na afirmação dos autores, quando concebem que “toda aparição de uma forma social está ligada a outras transformações; que a forma escolar está ligada a outras formas, notadamente políticas” (idem, 12). Assim sendo, a forma escolar, ao se constituir enquanto tal, inaugura novas situações nas relações cotidianas vivenciadas pelos elementos chaves que compõem o cenário educativo, 1 A expressão “caixa preta” é utilizada por Julia ao se referir à importância da história das disciplinas escolares para a explicação do funcionamento interno da escola. 3 fazendo com que a escola seja inventada como uma unidade com suas características próprias e com um modo social próprio de ser, impondo-se como “referência, como modo de socialização reconhecido por todos, legítimo e dominante” (idem, 42). No processo de invenção de novos modos de socialização, a relação professor e aluno é modificada, os tempos e espaços são reconfigurados e novas regras e novas ordens são estabelecidas e repensadas, e isso em função da emergência caracterizada pelos novos tempos - tempos históricos - e pelos novos contextos - contextos particulares e peculiares a cada realidade escolar. O estudo da cultura escolar pode assim ser encaminhado em duas dimensões complementares. A primeira pode ser visualizada na ação reguladora interposta pelas estratégias de imposição de uma cultura escolar, pela via da circulação dos dispositivos e objetos escolares postos a demarcar e a prescrever o tipo pedagógico novo, moderno, experimental e científico que se desejava como modelo escolar, nos primórdios do século XX. A segunda, na ação ocorrida no cotidiano escolar que recebeu prontos, definidos e prescritos todos os dispositivos didáticos e os objetos escolares, que determinariam a realização pedagógica desejada e pensada de acordo com o modelo imposto. Diante dessa dupla dimensão, há de se considerar que existe um distanciamento entre o que foi prescrito pela estratégia de imposição e o que realmente aconteceu no subterrâneo das práticas cotidianas escolares. Nesse caso, é pertinente a intervenção da explicação das práticas escolares a partir do conceito de tática, concebido por Michel de Certeau (2000), que o compreende enquanto movimento que ganha vida no fazer da prática escolar, criando sua maneira de fazer e utilizando, manipulando e alterando os procedimentos, bem como estabelecendo novos usos dos objetos, que lhe são impostos. A escola, ao constituir-se historicamente, constrói uma cultura que lhe é bastante peculiar. Ela, no seu processo de constituição “sofre e adapta-se ao exterior, mas a escola também ordena, organiza-se e gera a sua própria exterioridade”, como bem afirmado por Magalhães (1996, p. 15). Concebido como produção histórica, o modelo escolar que se delineia vai-se constituindo a partir de uma cultura e, também, de uma forma escolar própria, caracterizada por dispositivos de normatização pedagógica e de práticas dos agentes que se apropriam deles, por meio de estratégias e de táticas reveladoras de saberes socialmente acumulados que permitem que a identidade escolar seja construída e que os seus valores e comportamentos sejam difundidos. Segundo Carvalho (1998, p. 33), ao se operar com os conceitos de forma e cultura escolares, “são postas em foco as práticas constitutivas de uma sociabilidade escolar e de um modo, também escolar de transmissão cultural”. Acrescenta-se, ainda, que, “são 4 focalizados, a partir desses conceitos, os dispositivos que normatizam tais práticas”, que são “os dispositivos de organização do tempo e do espaço escolar; dispositivos de normatização dos saberes a ensinar e das condutas a inculcar”. A escola e, igualmente, a sua cultura constitutiva vêm no movimento histórico tomando forma nos mais variados lugares pelo mundo afora. Num determinado lugar social concreto, isto é, em Minas Gerais, vem produzindo os contornos da conformação de uma cultura escolar, sedimentada por meio da construção de uma legislação própria que visava regular e normatizar a instituição escolar e, bem assim, produzindo uma identidade peculiar através dos vários sujeitos que nela vem atuando, tanto nos aspectos relativos às estratégias de imposição, quanto naqueles relativos às táticas de apropriação. Considerando o momento histórico analisado, encontra-se em construção a ciência pedagógica, o professor2 em processo de profissionalização e o aluno3 tendo sua identidade de aprendiz delineada. Conhecer as apropriações feitas pelos sujeitos no cotidiano da escola é produzir uma história das práticas escolares e, portanto, compreender a produção da cultura escolar. Práticas que produziram os sujeitos - professoras e alunos - que vivenciaram o dia-a-dia da escola primária em Minas Gerais e que também foram produzidos por elas. Tais práticas serão concebidas como maneiras de fazer peculiar da escola e que ocorreram no seu cotidiano, mas que não se constituíram como um lugar próprio e, sim, como uma “ação calculada que é determinada pela ausência de um próprio”, uma tática, segundo Certeau (2000, p. 100), que opera no espaço daquele que detém o poder da imposição. Sua ação é de astúcia, de tática de apropriação das prescrições e das materialidades que lhes são impostas pelas estratégias postuladas pelos promotores da modernização da educação no Estado. As táticas apropriadas não significam uma ação de reprodução dos interesses impostos, mas, ao contrário, as ações são ressignificadas a partir de um não-lugar que se estabelece no interior das práticas escolares e no qual os sujeitos desenvolvem usos particulares dos 2 Aqui a referência professor está sendo tomada enquanto uma categoria universal. O docente da escola primária no período que será investigado, majoritariamente do sexo feminino, será produzido, e com certeza se produzirá, a partir e simultaneamente com a produção da própria escola primária. Por esse motivo, opto no desenvolvimento desse trabalho pela generificação feminina, uma vez que poucos foram os homens que exerceram a docência nas escolas primárias, quando isso aconteceu, eles se ocuparam apenas do ensino profissional. (Faria Filho, 2000, p. 107) 3 A noção de aluno é uma invenção que se dá no encontro das várias ciências – antropologia, psicologia, biologia, medicina e psiquiatria – com a pedagogia. No contexto da produção do aluno, a escola projeta uma imagem de aluno, construída por meio das referências dos conhecimentos das ciências e definida a partir das características extraídas dos experimentos científicos, quer de ordem psicológica, física ou mental. Segundo Carvalho (1997, p. 273) a “compleição física, tipo racial, traços morais, marcas hereditárias, ambiente familiar constituíam um roteiro de observação e medida [...]” para que “no cruzamento dessas medidas e observações” ganhasse “contorno o caráter específico do aluno”. 5 dispositivos e dos objetos inovadores e, ainda, se constituem em representações que fazem os vários sujeitos envolvidos em tais práticas escolares. Nesse sentido, a visibilidade das práticas das professoras e dos alunos vem se dando no diálogo com as fontes, tais como: as Mensagens dos Presidentes ao Congresso Mineiro e os encaminhamentos das Leis e Decretos, principalmente quando precedidos de orientações, prescrições e reflexões. A partir dessas fontes procuro estabelecer um diálogo que possibilite compreender como esses documentos foram produzidos e quais foram as estratégias utilizadas no itinerário percorrido entre o seu contexto de produção e a circulação no interior da escola. Os relatórios dos inspetores de ensino e das diretoras dos grupos escolares e escolas isoladas possibilitam a reconstituição das práticas das professoras e dos alunos, na perspectiva dos sujeitos responsáveis pelo acompanhamento, pelo controle e pela avaliação do trabalho escolar. A partir das cartas, dos ofícios, das circulares e de alguns trabalhos de alunos torna-se possível dar a ver as práticas das professoras e dos alunos a partir de suas próprias perspectivas. Nesse trabalho com as fontes procurei desvelar, ainda que indiciariamente, a ótica desses sujeitos em suas manifestações táticas de organização, de mobilização e de produção das ações de uso de objetos didáticos, do espaço e do tempo escolar, e, dentro disso, entender a constituição da escola, esforçando-me na compreensão da produção do seu dia-a-dia. A inserção a essas fontes documentais vem sendo mediada por algumas questões que têm aguçado o interesse do conhecimento das práticas escolares desenvolvidas por professoras e alunos da escola primária no Estado, especialmente aquelas que se referem às táticas de apropriação dos dispositivos e dos objetos escolares. Nesse sentido, algumas questões precisam ser respondidas: quais dispositivos e objetos foram colocados (distribuídos) a circular no interior da escola? Quais foram absorvidos pelas práticas escolares cotidianas de professoras e alunos? Quais os usos fizeram? Quais representações foram construídas a partir dos usos prescritos (estabelecidos pelas estratégias de imposição) ou ainda dos usos efetivos (estabelecidos pelas táticas de apropriação)? A escola primária em Minas Gerais encontra-se num processo crescente de desenvolvimento, sobretudo, nas três primeiras décadas do século XX. Inicia o século com uma organização bastante modesta, além do baixo índice de atendimento da população em idade escolar, que ficava nos 5% e uma freqüência de alunos reduzida. Os relatórios dos inspetores, políticos e autoridades são quase unânimes em acordar que a situação da escola era de precariedade, pois as escolas se achavam, em sua grande maioria, mal instaladas, em prédios acanhados, sem 6 conforto e não observavam as regras de higiene. Além disso, faltava mobília e o necessário material pedagógico. A exemplo, o Presidente Francisco Silviano de Almeida Brandão, em sua mensagem ao Congresso Mineiro em 1899, assim se expressava: “verifica-se que as escolas primárias em geral funcionam em prédios que não são próprios, acanhados, sem as necessárias condições higiênicas, desprovidos quase todos de mobília e material escolar convenientes”. Da mesma forma, em 1903, o Presidente Francisco Antônio Salles ratifica, ao avaliar as condições do ensino primário: ... infelizmente não se podem considerar boas as condições do ensino primário, em nosso Estado [...] a decadência do ensino público é visível. Há falta de prédios próprios onde funcionem as escolas, em condições higiênicas, providas de mobília e material escolar conveniente. À maior parte do professorado falta o preparo necessário, a educação pedagógica, o estímulo e, enfim, a inspeção do ensino. A freqüência de alunos que se nota nas escolas é a conseqüência desse estado a que o ensino se acha reduzido. A partir do Congresso Agrícola, Comercial e Industrial de 1903, o interesse pela instrução pública ganha força, aparecendo como uma alternativa para a formação do trabalhador e do cidadão republicano, conforme evidenciado no relatório de um dos participantes do Congresso, ao afirmar que a ... instrução e produção são os fatores da riqueza e da grandeza física e moral de um povo (...) sem instrução não pode haver produção vantajosa, quer na ordem física e material, quer na ordem moral e intelectual (...) portanto, instrução, a difusão do ensino é a necessidade imperiosa de um povo, é a condição essencial sine qua non de sua prosperidade4. Mas, será principalmente com a ascensão de João Pinheiro ao Governo do Estado de Minas, em seu curto mandato, de 1906 a 1908, que a instrução pública irá receber a proeminência de uma Reforma de peso. Essa Reforma viria contemplar a formação do professorado e a criação dos Grupos Escolares, como já vinha sendo anunciado anteriormente por outras autoridades5. Como se pode perceber já é possível, no início do século XX, visualizar sinais de mudanças do quadro educacional, principalmente com a implementação do projeto de construção dos Grupos Escolares no Estado, a partir da Reforma do Ensino, no ano de 1906. Mas, vale a consideração de que não foram resolvidos todos os problemas da educação primária no Estado e nem mesmo os Grupos Escolares foram construídos para atender a todas as demandas. 4 Dr. Carlos Ferreira de Sá Fortes, presidente da comissão fundamental do Congresso. In: Anais do Congresso Agrícola, Comercial e Industrial de 1903, Fundação João Pinheiro, v. 11, n 5 e 6, 1981. p. 186. 5 A Lei no 41, de 1892, que deu uma nova organização à instrução pública, incluiu no seu art. 331 um programa de construção de prédios escolares e aquisição de mobílias para as escolas, provendo em 10 anos o ensino primário de prédio próprio e mobiliado. Dois anos mais tarde, não sendo ainda posto em prática tal programa, o então Presidente Affonso Augusto Moreira Penna, em seu discurso ao Congresso Mineiro, proporá a votação de verbas para pagamento dos aluguéis das “casas escolares”. 7 Contudo, o empreendimento de construção dos Grupos Escolares significou, como adverte Faria Filho (2000, p. 37) ... não apenas uma nova forma de organizar a educação, mas, fundamentalmente, uma estratégia de atuação no campo do educativo escolar, moldando práticas, legitimando competências, propondo metodologias, enfim impondo uma outra prática pedagógica e social dos profissionais do ensino. O processo de implantação dos Grupos Escolares não ocorreu repentinamente, ao contrário, foi lentamente sendo desenvolvido ao longo das primeiras décadas do século XX. O “Primeiro Grupo” – posteriormente denominado de “Barão do Rio Branco” - a começar a funcionar no Estado não tinha prédio próprio, pois ocupou o espaço destinado à residência do Secretário do Interior. Foram nove os Grupos construídos em Belo Horizonte até no ano de 1917 (Faria Filho, 2000). E em todo Estado de Minas Gerais, até a mesma dada, apenas 153 Grupos foram criados, incluídos os de Belo Horizonte. Neste mesmo período o ensino primário ainda era atendido pelas muitas 1.701 Escolas Isoladas (ou singulares) espalhadas pelos recantos mineiros, nas áreas urbanas, distritais e rurais6. No decorrer dos primeiros 30 anos do século XX a escola primária em Minas se renova, assumindo e produzindo novos contornos e modos próprios desde os primeiros momentos de seu funcionamento, quando ainda somente se pensava em construir um local próprio, mas a sua caracterização não passava de uma escola de importância secundária, isolada e somente funcionando com uma cadeira de instrução. No espaço próprio da escola que se produziu, os sujeitos escolares ocuparam lugares distintos, alguns mais privilegiados, reservados àqueles que serão os responsáveis pelo exercício do poder e, outros, de “importância menor”, ocupando os espaços do não-lugar, como nos fala Certeau (2000). Menores e maiores, privilegiados e não privilegiados, todos produtores da escola e produtores de uma cultura escolar. A construção dos grupos escolares retrata a importância do espaço escolar, pois nele estaria a condição ideal para o desencadear de uma proposta pedagógica propiciadora da instrução inovadora. Era possível nele o uso do quadro-negro, das lousas individuais, dos cadernos e livros além do aprendizado no manejo das ferramentas. A novidade dos Grupos Escolares viabilizava para os que se encontravam fora dos ‘muros’ o sinal visível, na beleza e suntuosidade da arquitetura, do empreendimento desenvolvido para a realização do “banquete da modernidade”. (Veiga & Faria Filho, 1997) 6 Mensagem do Presidente Delfim Moreira da Costa Ribeiro ao Congresso Mineiro em 1917 8 O espaço escolar, as metodologias propostas e os equipamentos utilizados foram os elementos modernos apropriados, escolhidos para o deslanchar de um projeto de instrução que visava a atender a aspiração ordeira e progressista vislumbrada pelo projeto republicano7. Se de um lado é dado a ver uma escola que é produzida a partir do interesse oficial dos dirigentes do Estado, por outro, é de igual importância ressaltar a visibilidade da escola que se produz no dia-a-dia, procurando evidenciar as apropriações que os sujeitos escolares fizeram com os dispositivos que objetivavam normatizar tais práticas e, sobretudo, enfatizando a produção da cultura escolar na invenção do cotidiano dos praticantes escolares. Tomando de empréstimo uma fonte já utilizada por Faria Filho (2000) é possível evidenciar alguns casos de tática de professoras, principalmente quando o autor irá se referenciar às manifestações de tais professoras em relação às imposições, por parte dos inspetores, no cumprimento dos horários. Os inspetores operavam com os horários prescritos nos regulamentos, enquanto as professoras comportavam-se de acordo com as especificidades temporais de organização do próprio tempo da aula, denotando assim, que os critérios eram diferenciados no tratamento das questões cotidianas da escola. Com relação à imposição ao cumprimento do Programa de Ensino, especificamente quanto à organização dos conteúdos escolares que chegavam às escolas como receitas, Faria Filho vai afirmar que as diretoras e professoras “darão ênfase a alguns, substituirão outros, abandonarão outros tantos, enfim, priorizarão outros elementos não autorizados”, modificando-os para uma melhor adequação “à melhoria do ensino”. (2000, p. 185 -186) No contato com algumas cartas de professoras à Secretaria do Interior8, deparei-me com uma que muito me chamou atenção por retratar uma situação de tática. Em 10 de maio de 1913, treze professoras do “Grupo Escolar de Vila Nova de Lima” encaminharam, ao Secretário do Interior, uma correspondência fazendo algumas reivindicações de mudanças no funcionamento da escola quanto ao tempo escolar, pois o que era prescrito pelo Regulamento Geral da Instrução do Estado9 em vigor, não correspondia, ou mesmo não se conformava às experiências vividas pelos sujeitos escolares. O Regulamento no seu Capítulo VI assim organizava o período de funcionamento das escolas: 7 Durante o período que vai de 1906 a 1930 foram constatadas diversas modificações no funcionamento da escola primária. Foram encontrados 6 decretos modificando o programa de ensino e 6 o regulamento de funcionamento da escola primária. Essas modificações visavam dar ao ensino primário a condição de funcionalidade e, sobretudo, o caráter de moderno como enfatizado pelo Presidente Antônio Carlos R. de Andrada, em 1928, ao fazer referência à reforma implementada por ele em 1927: ...moldar a escola primária – a sua organização e os seus processos – em formas aconselhadas pelas recentes experiências dos povos mais cultos da terra...[Alemanha, Áustria, Estados Unidos e Bélgica] 8 SECRETARIA DO INTERIOR. Cartas recebidas, SI 3449, 1913. 9 Regulamento Geral da Instrução do Estado aprovado em 1911, decreto nº 3.191. 9 Art. 321. As escolas do Estado funcionarão desde o dia 1º de fevereiro até o dia 30 de novembro de cada ano. Art. 322. Nelas o exercício se não interromperá por motivo algum, a não ser por impedimento superveniente dos docentes, de que deverão dar parte imediata aos inspetores municipais e diretores dos grupos. Art. 323. O trabalho nas escolas cessa absolutamente: 1. nos domingos; 2. no dia 24 de fevereiro; 3. no dia 21 de abril; 4. no dia 3 de maio; 5. no dia 13 de maio; 6. no dia 15 de junho; 7. no dia 14 de julho; 8. no dia 7 de setembro; 9. no dia 12 de outubro; 10. no dia 2 de novembro; 11. no dia 15 de novembro; 12. nos três dias de carnal; 13. nos últimos quatro dias da Semana Santa. Art. 324. As escolas não funcionarão as quintas-feiras, salvo havendo outro dia feriado na mesma semana. Art. 325. O período das férias nas escolas começará no dia 1º de dezembro e terminará no dia 31 do mês de janeiro de cada ano. Parágrafo único. As férias são concedidas para descanso dos alunos. Segundo as professoras, a escolha das quintas-feiras para descanso dos alunos era uma sábia medida, pois, além de facilitar a atividade docente de correções dos trabalhos desenvolvidos pelos alunos, liberava-os para o auxílio nas tarefas caseiras, como lavar roupas e arrumar a casa, entre outras. Caso a semana transcorresse sem nenhum feriado, a atividade escolar não sofreria alteração, mas, se houvesse feriado e ele não coincidisse com o dia de quinta-feira, toda a vida escolar ficaria desarrumada. Nesse sentido, com o propósito de organizar o tempo de funcionamento da escola, a partir das experiências vivenciadas no seu cotidiano, as professoras reivindicaram medidas que alterariam o Regulamento, de modo que a sua mudança, respaldada nas práticas escolares, viria propiciar o bom funcionamento da escola. Em relação a essa situação, as professoras sugeriram a seguinte mudança: ... dos feriados nacionais 9 ocorrem durante o ano letivo; se destes forem conservados 2 para serem realmente feriados, não sendo substituídos pelas quintas-feiras, e mandando o regulamento que nos outros funcionassem as classes, aproveitando os professores a ocasião para fazerem, sobre a data do dia, preleção sobre o acontecimento que ela relembrasse, a exemplo do que se pratica no Estado de São Paulo. Uma outra situação, também relacionada à questão da organização do tempo, diz respeito à delimitação do período anual das aulas. O Regulamento previa um período de aulas, sem interrupção, de 1º de fevereiro até o dia 30 de novembro. Sob o argumento de que o trabalho do professorado era estafante e excessivo nas tarefas de cumprimento dos seus deveres, as professoras sugeriram a inclusão de um descanso de 15 dias, no final do 1º semestre letivo. Com isso o professorado teria o ganho do descanso merecido e, sobretudo, a renovação das forças para galgar resultados pedagógicos mais satisfatórios na continuidade das suas tarefas. Além disso, como afirmado pelas próprias professoras a medida “traria os melhores resultados imagináveis, mais gosto e coragem [...] no cumprimento dos deveres [...] em vez de dez meses de lições interrompidas”. Uma terceira reivindicação diz respeito ao tempo dedicado para as matrículas dos alunos no início do ano letivo. O Regulamento, no seu Art. 217, previa que o período de matrícula seria 10 de 7 a 31 de janeiro de cada ano. As professoras pediram a concessão de somente “comparecerem ao Grupo para o serviço de matrícula no dia 20 de janeiro”, argumentando que o volume de novas matrículas não era tão grande, principalmente pelo fato de que o Regulamento (Art. 221, § 2º) previa o lançamento dos alunos que freqüentaram a escola do ano anterior, considerando-os já matriculados. Nesse caso, não fazia sentido a presença das professoras no período aludido, pois os 11 dias restantes do mês seriam suficientes para o trabalho. As reivindicações não foram atendidas de imediato pela secretaria, pois todas elas exigiam mudanças legais no quadro do ensino em todo o Estado, segundo a argumentação da negativa. Mas, vale ressaltar que em dezembro do mesmo ano, de 1913, as mesmas professoras fizeram um outro encaminhamento ao Secretário do Interior, Delfim Moreira, ratificando o pedido de somente voltarem ao trabalho após o dia 20 do mês de janeiro. A diferença era a de que agora se tratava apenas de uma solicitação de permissão para o “Grupo Escolar de Vila Nova de Lima”. A resposta do secretario foi afirmativa. Outro aspecto interessante a ser observado é que no ano de 1917, quatro anos depois, estando na Presidência do Estado o sr. Delfim Moreira, o Regulamento foi modificado pelo decreto 4.798, contemplando duas daquelas reivindicações feitas anteriormente, ou seja, a do período de férias no intervalo entre semestres e a do período da matrícula no início do semestre. Alguns exemplos de tática de alunos foram também levantados por Vago (1999) nas leituras que fez dos relatórios de Diretores de Grupos Escolares. O autor constatou que, a despeito do rigor do Regulamento da Instrução, quanto ao controle da utilização dos espaços escolares, os alunos burlavam toda a vigilância, tanto para fugirem da escola quanto para brincarem nesse espaço da mesma maneira como o faziam nas ruas. As brincadeiras de rua eram abominadas pelos inspetores e pelas diretoras por considerarem-nas como “uma prática perniciosa e sem significado” para formação das crianças. Vago ressalta que “contra os dispositivos disciplinares impostos na escola, as crianças realizavam práticas de ocupação a seu modo dos tempos e espaços escolares” (1999, p. 123-125). Nesse caso a “burla” dos alunos pode ser entendida como uma tática de apropriação do espaço escolar que demarca a existência de uma produção de uma forma e de uma cultura escolares que escapa ao controle dos dispositivos legais. É oportuno ressaltar que a cultura escolar que se vai produzindo no cotidiano da escola encontra-se presente nas mais variadas relações de conflitos entre os sujeitos que participaram dessa construção. Portanto, estão presentes nas informações contidas nos relatórios dos inspetores e das diretoras, manifestações de elogios às atividades docentes e administrativas 11 da escola, mas, e sobretudo, avaliações contundentes das diversas práticas. São os inspetores avaliando os trabalhos de diretores e professoras e, por sua vez, essas criticando a avaliação daqueles. A esse exemplo, é valida a menção da resposta da Diretora10, do 3º Grupo Escolar da capital, à avaliação que o Inspetor Leopoldo Dayrell Junior11 fez do trabalho escolar sob sua gestão. Preocupada com os aspectos negativos ressaltados pelo Inspetor, no relatório encaminhado à Secretaria do Interior, a Diretora redige uma carta ao Secretário reagindo, veementemente, às suas críticas. Críticas que, inclusive, geraram uma chamada de atenção, por parte da Secretaria, numa tentativa de esclarecimento dos fatos narrados no relatório, sobre as ocorrências das práticas consideradas faltosas em sua escola. Dentre as críticas destacarei apenas uma: os alunos eram retirados do horário da aula de instrução primária para as atividades do exercício de canto, que deveria acontecer em horário especial. Segundo a Diretora, e ela argumentou que era do conhecimento do Inspetor, aquela ocorrência se deu, exclusivamente, em função dos preparativos para a festa de encerramento das aulas, pois, não seria possível o preparo dos alunos utilizando somente os 10 minutos que eram designados pelo Regulamento. Esse fato estava acontecendo esporadicamente no último mês do ano e não representava nenhum prejuízo para as outras disciplinas, pois apenas uma turma de cada vez realizava a referida atividade. Para o Inspetor, “vai nisso uma substituição arbitrária [...] é uma aula inconveniente que, além de prejudicar os alunos nas primeiras lições do dia, perturba com o barulho as classes vizinhas”. Diferentemente, para a Diretora era uma medida que visava organizar a vida escolar, levando-se em consideração as questões pertinentes à realidade vivenciada no seu dia-a-dia. Diante disso, é possível constatar a pertinência de que o espaço do não-lugar, ocupado pelos sujeitos escolares, as apropriações e as reapropriações que fazem das prescrições e dos usos que são postos a circular e, ainda, as outras práticas que são inventadas cotidianamente por diretoras, professoras e alunos permitem perceber como a cultura escolar vai sendo tecida lentamente no interior do cotidiano da vida escolar. Produzir a história das práticas escolares é, certamente, um grande desafio, principalmente, pelo fato de as fontes disponíveis se apresentarem lacunares, dispersas, exíguas e até mesmo silenciadas nos parcos registros encontrados nos arquivos oficiais. Essa situação em per si já seria suficiente para desmotivar qualquer trabalho de investigação, não fossem os 10 Carta da Diretora Anna Guilhermina Cândida de Carvalho, SI 2982, de 12 de janeiro de 1910. Essa Diretora também atuou como professora na escola. 11 Relatório Técnico Inspetor Carlos Leopoldo Dayrell, de 08 de janeiro de 1910 12 testemunhos, os sinais, ou mesmo os indícios da presença dos sujeitos produzindo o dia-a-dia da escola. Uma coisa pode ser afirmada: eles estavam lá. As fontes manuseadas, ainda que opacamente, informam essa presença. O papel que cabe ao historiador é o de dar voz a esses sujeitos silenciados e, a partir disso, produzir a história das suas práticas e, por conseguinte, a história das práticas escolares. E é isso que tenho me proposto a fazer. Referência Bibliográfica CARVALHO, Marta Maria C. de. Quando a história da educação é a história da disciplina e da higienização das pessoas. FREITAS, Marcos Cezar de (Org.). História Social da Infância no Brasil. São Paulo: Cortez, Bragança Paulista: UFS, 1997. _____________. Por uma história cultural dos saberes pedagógicos. SOUSA, Cynthia Pereira de & CATANI, Denice Bárbara. Práticas educativas, cultura escolares profissão docente. São Paulo: Escrituras Editora. 1998 CERTEAU, Michel de. A Invenção do Cotidiano. Artes de Fazer. Petrópolis: Vozes, 2000. FARIA FILHO, Luciano Mendes. Dos Pardieiros aos Palácios: cultura escolar e cultura urbana em Belo Horizonte na Primeira República. Passo Fundo: UFP, 2000. FUNDAÇÃO JP, Belo Horizonte, 11 (5/6), 121-220, mai./jun., 1981. JULIA, Dominique. A cultura escolar como objeto histórico. Revista Brasileira de História da Educação. Campinas, 2001, nº 1. pp. 9-43. MAGALHÃES, Justino. 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