UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA Faculdade de História, Direito e Serviço Social ANTONIO SERGIO ESCRIVÃO FILHO UMA HERMENÊUTICA PARA A CONCRETIZAÇÃO DO PROGRAMA CONSTITUCIONAL DO TRABALHO RURAL Franca – SP 2009 2 ANTONIO SERGIO ESCRIVÃO FILHO UMA HERMENÊUTICA PARA A CONCRETIZAÇÃO DO PROGRAMA CONSTITUCIONAL DO TRABALHO RURAL Dissertação apresentada à Faculdade de História, Direito e Serviço Social da Universidade Estadual Paulista, para obtenção do título de Mestre em Direito. Área de Concentração: Direito Obrigacional Público e Privado. Orientadora: Profª. Livre-Docente Maniglia Franca – SP 2009 Elisabete 3 ANTONIO SERGIO ESCRIVÃO FILHO UMA HERMENÊUTICA PARA A CONCRETIZAÇÃO DO PROGRAMA CONSTITUCIONAL DO TRABALHO RURAL Dissertação apresentada à Faculdade de História, Direito e Serviço Social, da Universidade Estadual Paulista, para obtenção do título de Mestre em Direito. BANCA EXAMINADORA Presidente: ____________________________________________________ Drª. Elisabete Maniglia Universidade Estadual Paulista 1º Examinador: ________________________________________________ 2º Examinador: ________________________________________________ Franca, 04 de Setembro de 2009. 4 À minha família, Sergio, Ana, Mariana e Marco: a medida de todas as coisas na minha vida. 5 AGRADECIMENTOS À Profª. Elisabete Maniglia, pela oportunidade, paciência e confiança em meu trabalho, ao longo deste período de mestrado. À Raquel Sant’Ana, Nani, Ana Paula, Tito e todos os integrantes do NATRA destes últimos dois anos de companheirismo! Ao Rob, sempre pronto a desafiar os problemas alheios; a contribuir com a sua práxis, e dedicar sua atenção, sem nunca, nem um só minuto, deixar calar o incentivo! Aos integrantes da última geração da Dise´s: Bibinha, Panguo, Padreco e Pedrão – valendo um chorinho pro Glad e Piratinha – que compartilharam comigo toda a caminhada cotidiana por este mestrado. À Ísis, que causou, partilhou e participou das angústias e alegrias deste período! 6 ESCRIVÃO FILHO, Antonio Sergio. Uma hermenêutica para a concretização do programa constitucional do trabalho rural. 2009. 152f. Dissertação de Mestrado em Direito – Faculdade de História, Direito e Serviço Social, Universidade Estadual Paulista, Franca, 2009. RESUMO A Constituição Federal de 1988 traz em seu bojo um princípio dirigente da transformação social no país, expresso, sobretudo, em um dos seus objetivos fundamentais: a erradicação da pobreza, marginalização e desigualdades sociais. Este princípio dirigente, por seu turno, realiza-se à medida da atuação dos sujeitos constitucionais, desde os agentes públicos até as organizações sociais, em suas competentes funções concretizantes. Compreende-se que este princípio dirigente deve ser interpretado/aplicado nos termos de uma hermenêutica que identifica uma estrutura normativa dotada de um programa e do âmbito material, culminando em uma hermenêutica principiológica que admite tão somente a concretização da Constituição em sua unidade programática. Sendo uma das características das constituições dirigentes a previsão de mecanismos aptos a conferir eficácia jurídica ao programa constitucional, a Constituição Cidadã prevê o instituto da desapropriação por interesse social para fins de reforma agrária, ativado pelo descumprimento da função social da propriedade, concebida através de sua multifuncionalidade intrínseca, que pressupõe a unidade das dimensões econômica, ambiental, do trabalho e bem-estar. Verifica-se, no entanto, que, agarrados à literalidade isolada do inciso constitucional que afirma que a propriedade produtiva é insuscetível de desapropriação para fins de reforma agrária, os agentes públicos vêm omitindo-se na concretização do programa constitucional, uma vez que se verifica junto à Procuradoria Federal Especializada na matéria, aliado à análise de selecionada jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, a ineficácia das dimensões do trabalho e bem-estar da função social da propriedade rural, do sentido da absoluta ausência de desapropriações para fins de reforma agrária motivadas juridicamente no descumprimento de tais dimensões, a despeito da constatação cotidiana da precarização das condições de trabalho no campo, da prática do trabalho escravo, e da própria tensão social que o descumprimento da função social ocasiona por si, culminando nos indesejados conflitos sociais. Por fim, apresenta-se uma compreensão acerca do trabalho enquanto direito humano fundamental, o que orientou a sua inscrição enquanto programa constitucional específico, e identifica na função social da propriedade, sobretudo a partir das dimensões do trabalho e bem-estar, um instrumento de sua eficácia, nos termos do programa constitucional do trabalho rural, compreendido a partir da unidade principiológica da dignidade da pessoa humana e dos valores sociais do trabalho; em coordenação com o objetivo fundamental da erradicação da pobreza, marginalização e desigualdades sociais no campo; orientado pelo princípio do acesso à terra e pela função social da propriedade, sobre as bases da valorização do trabalho humano, no intuito do alcance da justiça social. Palavras-chave: Constituição de 1988. Princípio dirigente. Hermenêutica. Função Social da Propriedade. Trabalho Rural 7 SUMÁRIO INTRODUÇÃO ...................................................................................................................... 08 CAPÍTULO 1 QUESTÃO DE MÉTODO: UMA HERMENÊUTICA PARA A EFICÁCIA DA CONSTITUIÇÃO DIRIGENTE ............................................................... 12 1.1 Um princípio dirigente da transformação social ........................................................... 12 1.2 Um método hermenêutico para a eficácia da Constituição dirigente: do programa ao âmbito da norma, e a pluralidade das funções constitucionais .......................................... 22 CAPÍTULO 2 ANÁLISE DA EFICÁCIA DO INSTITUTO DA FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE RURAL...................................................................................................... 39 2.1 Uma função social à propriedade.................................................................................... 39 2.2 E no meio do caminho havia uma pedra: a noção hermenêutica de propriedade produtiva..................................................................................................................................50 2.3 A questão da eficácia das dimensões do trabalho e bem-estar, na função social da propriedade rural ................................................................................................................... 62 CAPÍTULO 3 DO ÂMBITO AO PROGRAMA CONSTITUCIONAL DO TRABALHO RURAL .................................................................................................................................... 82 3.1 O trabalho como direito humano fundamental ............................................................. 82 3.2 O trabalho enquanto programa constitucional ............................................................. 95 3.3 A função social da propriedade enquanto instrumento do programa constitucional do trabalho rural........................................................................................................................ 102 CONSIDERAÇÕES FINAIS............................................................................................... 129 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ............................................................................... 135 ANEXO.................................................................................................................................. 141 8 INTRODUÇÃO A presente dissertação de mestrado parte de uma inquietação identificada já na atuação prática junto à questão agrária brasileira, desde a advocacia popular, em especial junto ao Setor de Direitos Humanos do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST), quando, nos idos do ano 2006, começaram a vir à tona as notícias acerca das mortes dos cortadores de cana-de-açúcar no Estado de São Paulo. Diante da constatação de cerca de vinte mortes relacionadas ao trabalho rural na agroindústria canavieira surgiu a questão: cumpriam, as propriedades onde ocorreram estas mortes, a sua função social? Ou, de outra forma, guardaria, o princípio constitucional da função social da propriedade, alguma relação com estas mortes? Neste sentido, acompanhando o movimento da realidade – que muitas vezes apresenta verdadeira tendência ao retrocesso social, desde que orientado pelo progresso econômico – os questionamentos não se fizeram calar: e no tangente à prática do trabalho escravo, como incidiria a questão da função social da propriedade? Teria o capítulo constitucional da “Política Agrícola e Fundiária e da Reforma Agrária” alguma competência em relação à matéria, ou a incidência jurídica resumir-se-ia às multas administrativas e à esfera penal? Finalmente, à medida do processo de formação da consciência acerca desta questão, sempre a partir da realidade concreta, levantou-se a questão: não seriam estas, dentre outras situações de descumprimento da função social da propriedade – a saber, a improdutividade econômica; a degradação ambiental; a expulsão de comunidades tradicionais, v.g. – causas geradoras de tensões sociais que culminam em conflitos agrários? E guardariam, tais conflitos, alguma relação com a função social da propriedade? Todos estes questionamentos, identificados na práxis, e consolidados à medida do estudo acerca da questão agrária em sua dimensão constitucional, constituem os elementos que deram origem à presente dissertação de mestrado. Note-se que a análise já nasce de determinada constatação sociológica, qual seja, a degradação das condições de trabalho na agroindústria canavieira, a corrente prática do trabalho escravo, e a ocorrência de tensões e conflitos sociais coletivos, todos no âmbito da questão agrária brasileira. Desta constatação, portanto, surge a pesquisa no sentido de apurar em qual medida o instituto da função social da propriedade rural se relaciona com tais situações que, a priori, aparentam significar o seu descumprimento. Na esteira, pretendia-se verificar em que medida 9 este instituto da função social da propriedade rural, nos termos do artigo 186 da Constituição Federal de 1988, era dotado de eficácia. Surge, neste ponto, a própria determinação daquela relação que se cogitava no início, qual seja, da relação entre o instituto da função social da propriedade e a realização do trabalho rural ali desenvolvido. Neste sentido, verifica-se que o trabalho rural apresenta-se enquanto dimensão do instituto da função social da propriedade rural, aliado, ainda, à dimensão do bem-estar, o que acaba por revelar uma condição multifuncional intrínseca à função social da propriedade rural. Partindo desta condição multifuncional, a presente dissertação tem o intuito de verificar o grau de eficácia das dimensões do trabalho e bem estar, no sentido de avaliar a própria eficácia da Constituição de 1988. De fato, a inédita constitucionalização desta multifuncionalidade – o que ocorrera com a Constituição Cidadã – perde importância na medida da ineficácia das suas dimensões específicas, o que não deixa de significar, senão, a própria ineficácia do princípio da função social da propriedade. Ocorre que a verificação da ineficácia constitucional da norma que dispões acerca do princípio da função social da propriedade acaba por comunicar-se, em última instância, à própria Constituição em si, dada a sua unidade principiológica e programática. De fato, tratando-se da Constituição Federal de 1988, há que se ter em mente um elemento informado pela Teoria Constitucional; um princípio que conforma toda a Constituição, conferindo-lhe uma unidade revelada na forma de um programa de ação que vincula a atuação de toda a sociedade: a condição dirigente. Nos termos do princípio dirigente que conforma toda a Constituição de 1988, e confere-lhe uma unidade programática, a presente dissertação desenvolve, no Capítulo 1, um estudo na busca por um método hermenêutico que melhor compreenda a essência da constituição dirigente, de modo a informar, adiante, uma análise acerca da eficácia das dimensões do trabalho e bem estar, da função social da propriedade. A questão do método hermenêutico adequado adquire especial relevância na medida em que a sua compreensão informa, ainda, a própria interpretação/aplicação da Constituição Federal, orientando os sujeitos constitucionais no sentido de uma práxis voltada para a ótima concretização da Constituição. Identifica-se tal método, enfim, ainda no Capítulo 1, na síntese da dialética histórica do constitucionalismo alemão do pós-guerra, em especial na relação entre as idéias de Konrad Hesse, Friedrich Müller, Peter Häberle. A paritr daí, agregam-se as análises de constitucionalistas brasileiros, sobretudo José Afonso da Silva, Eros Roberto Grau e Gilberto Bercovici. 10 Compreendida a essência dirigente da Constituição Cidadã, sobretudo a partir do seu objetivo fundamental de erradicação da pobreza, marginalização e desigualdades sociais (artigo 3º, IV), no Capítulo 2 realiza-se um estudo acerca do instituto da função social da propriedade rural, no intuito de avaliar a sua eficácia. Para isso, utiliza-se da doutrina agrarista, identificando no direito agrário a gênese da função social da propriedade, sem olvidar, neste sentido, que a evolução constitucional do direito de propriedade, no Brasil, acompanhou o próprio movimento histórico da formação da sociedade brasileira, até culminar na constitucionalização da função social da propriedade, esbarrando-se, no entanto, na questão da eficácia, desde a sua multifuncionalidade, em especial das dimensões do trabalho e bem-estar. Neste sentido, identifica-se no inciso II, do artigo 185, da Constituição Federal, a condição de verdadeira pedra constitucional no caminho da concretização da função social da propriedade, e portanto da própria Constituição, na medida em que impera entre os agentes públicos, em suas competentes funções, a interpretação/aplicação da literalidade do texto isolado do referido inciso, em detrimento de todo o restante do ordenamento jurídico pátrio, de modo a retirar da propriedade produtiva – compreendida em sua dimensão estritamente econômica – a própria determinação estrutural de sua função social intrínseca, o que, na prática, vem significando a estrita eficácia da dimensão econômica da função social da propriedade, em detrimento das demais dimensões, ou, mutatis mutandis, a própria ineficácia das dimensões do trabalho e bem-estar. De fato, ainda no Capítulo 2, verifica-se tal ineficácia, a partir da análise daquelas funções constitucionais públicas, em especial no tangente à atuação da autarquia federal competente para a desapropriação por interesse social, para fins de reforma agrária, e na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. Ressalta-se já aqui, no entanto, a ausência da devida análise em relação ao Ministério Público, dada a complexidade da matéria, em contraposição da própria natureza acadêmica do presente trabalho. Constatada a ineficácia das dimensões do trabalho e bem-estar da função social da propriedade rural, no Capítulo 3 desenvolve-se uma perspectiva hermenêutica de análise acerca do significado da inscrição do trabalho rural no bojo da Constituição de 1988, o que, nos termos do seu princípio dirigente, acaba por ser identificado enquanto programa constitucional do trabalho rural, compreendido a partir da unidade principiológica dos fundamentos da dignidade da pessoa humana (art.1º, III), em coordenação com os valores sociais do trabalho (art. 1º, IV); orientado pelos objetivos fundamentais do desenvolvimento nacional (art. 3º, III), e da erradicação da pobreza, marginalização e desigualdades sociais 11 (art. 3º, IV); tendo por princípio fundamental as garantias do direito de acesso à terra (art. 5º, caput), e da função social da propriedade (art. 5º, XXIII), e dos direitos sociais (art. 6º); aliado à valorização do trabalho humano no intuito do alcance da justiça social (art. 170, caput), e da condição instrumental da função social da propriedade rural (art. 170, III e 184), em especial de suas dimensões do trabalho e bem-estar (art. 186, III e IV), enquanto instrumento de eficácia desse programa que se cogita. Buscando subsídio na sociologia rural para melhor compreender o âmbito concreto deste programa constitucional do trabalho rural, verifica-se que a sua concretização aproxima-se do conceito sociológico de terra-de-trabalho, o que acaba por se concretizar nos termos do modelo da agricultura familiar, donde conclui-se que, tratando-se da estrutura fundiária brasileira, não há outro mecanismo de concretização, que a realização da reforma agrária. 12 CAPÍTULO 1 QUESTÃO DE MÉTODO: UMA HERMENÊUTICA CONSTITUCIONAL DO PROGRAMA E DO ÂMBITO DA NORMA 1.1 Um princípio dirigente da transformação social O estudo sobre as relações de trabalho traz a discussão constitucional acerca da finalidade do Estado Democrático de Direito de garantir e efetivar a dignidade humana, em consonância com a justiça social, o que faz referência direta, por seu turno, à própria dupla dimensionalidade do trabalho enquanto direito humano fundamental. Da análise da Constituição de 1988, tal natureza multidimensional pode ser observada já no Título dos Princípios Fundamentais1, quando, ainda no artigo 1º, eleva a fundamento da República a dignidade da pessoa humana, em consonância com os valores sociais do trabalho2. Note-se que tais princípios fundamentais devem ser compreendidos em consonância com os objetivos também fundamentais informados pelo artigo 3º do texto constitucional, sobretudo, “erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais”3, objetivo que pode representar a própria essência da justiça social, se compreendida enquanto finalidade do direito4. De fato, o próprio artigo 3º reveste-se, segundo Gilberto Bercovici, da natureza de “cláusula transformadora”, natureza própria das constituições que identificam problemas sociais a serem superados (também) pela força normativa da Constituição: A “cláusula transformadora” explicita o contraste entre a realidade social injusta e a necessidade de eliminá-la. Deste modo, ela impede que a Constituição considere realizado o que ainda está por se realizar, implicando a obrigação do Estado em promover a transformação da estrutura econômico-social. Os dois dispositivos constitucionais supra citados [art. 3º da Constituição italiana de 1947 e art. 9º, 2, da Constituição espanhola de 1978] buscam a igualdade material através da lei, vinculando o Estado a promover meios para garantir uma existência digna para todos. A eficácia jurídica destes artigos, assim como a do nosso art. 3º, não é incompatível com o fato de que, por seu conteúdo, a realização destes preceitos tenha caráter progressivo e dinâmico e, de certo modo, sempre inacabado. Sua 1 CF/88, arts. 1º ao 4º. In: BRASIL. Ministério do Desenvolvimento Agrário. Coletânea de Legislação e jurisprudência agrária e correlata. PINTO JUNIOR, Joaquim Modesto, FARIAS, Valdez (Orgs.). Brasília: MDA, Núcleo de Estudos Agrários e Desenvolvimento Rural – NEAD, 2007. t. 1. 2 CF/88, art. 1º, §§ III e IV. 3 CF/88, art. 3º, III. 4 FARIA, José Eduardo. O Judiciário e os direitos humanos e sociais: notas para uma avaliação da justiça brasileira. In: _______ (Org.). Direitos Humanos, direitos sociais e justiça. São Paulo: Malheiros, 2002. p. 97. 13 materialização não significa a imediata exigência da prestação estatal concreta, mas uma atitude positiva, constante e diligente do Estado.5 Mas o rol principiológico pertinente ao tratamento constitucional do trabalho não pára por aí, sob risco de apresentar-se de forma sobremaneira genérica, enquanto programa isolado despido de força normativa, a despeito da eficácia inerente à sua condição constitucional6, e mesmo da aplicabilidade imediata imposta pelo notório § 1º do art. 5º7. A verdade é que tais princípios não representam normas meramente programáticas destinadas exclusivamente ao legislador, como pretendia a doutrina tradicional8, sabendo-se aqui o perigo conceitual em tratar das “normas programáticas”, chegando-se mesmo a sugerir o abandono da expressão, por portar vícios ideológicos perniciosos, não sem antes deixar a ressalva da eficácia normativa das referidas normas, uma vez que “[...] o adjetivo não desqualifica o substantivo a que vem acoplado”9. Ocorre que a referida doutrina e jurisprudência pátria tradicional aderiram antes à concepção norte-americana de normas diretórias (directory provisions)10 que à concepção européia no tangente à natureza normativa e vinculação dos agentes estatais, sobretudo o legislador, o que não representa, senão, verdadeiro contra-senso, na medida em que o modelo constitucional adotado na Constituição de 1988 é de inspiração européia de Constituição Dirigente (Lei Fundamental Alemã e Constituições Portuguesa, Italiana e Espanhola)11, chegando mesmo a contrapor-se à estrutura liberal de Constituição, da qual a última representante em vigor é a norte-americana, de 178712. Assim, adota-se um modelo constitucional, e opta-se por aplicá-lo a partir de concepções adequadas a um modelo constitucionalmente distinto, quando não contrário. De fato, como aponta José Afonso da Silva, rechaçando o entendimento norte-americano, adotado, por seu turno, também por parte 5 BERCOVICI, Gilberto. Constituição econômica e desenvolvimento. São Paulo: Malheiros, 2005. p. 36-37. SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das normas constitucionais. 7. ed. São Paulo: Malheiros, 2008. p. 4748. 7 CF/88, art. 5º, §1º: 8 GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na Constituição de 1988. 10. ed. rev. atual. São Paulo: Malheiros, 2005. p. 366. 9 Ibid., p. 365. 10 “É certo que a jurisprudência norte-americana pretendeu distinguir as normas constitucionais em duas categorias: a) as mandatory provisions (prescrições mandatórias), que seriam cláusulas constitucionais essenciais ou materiais cujo cumprimento é obrigatório e inescusável; b) as directory provisions (prescrições diretórias), de caráter regulamentar, podendo o legislador comum dispor de outro modo, sem que isso importasse inconstitucionalidade de seu ato”: SILVA, op. cit., p. 71. 11 SILVA, op. cit., p. 78. 12 BERCOVICI, op. cit., p. 32. 6 14 da doutrina italiana, “[...] normas puramente diretivas não existem nas constituições contemporâneas”13, entre as quais, completaríamos, a brasileira. Neste sentido, a orientação mais pertinente à interpretação/aplicação da Carta Política de 1988 parece emanar, originalmente, do Tribunal Constitucional da República Federal Alemã, já de um instigante acórdão proferido no ano de 1969, cuja síntese nos apresenta Rolando E. Pina14: a) Quando a teoria sobre normas constitucionais programáticas pretende que na ausência de lei expressamente reguladora da norma esta não tenha eficácia, desenvolve uma estratégia mal-expressada de não vigência (da norma constitucional), visto que, a fim de justificar-se uma orientação de política legislativa – que levou à omissão do Legislativo –, vulnera-se a hierarquia máxima normativa da Constituição. b) O argumento de que a norma programática só opera seus efeitos quando editada a lei ordinária que a implemente implica, em última instância, a transferência de função constituinte ao Poder Legislativo, eis que a omissão deste retiraria de vigência, até a sua edição, o preceito constitucional. c) Não dependendo, a vigência da norma constitucional programática, da ação do Poder Legislativo, quando o atribuível a este a edição de lei ordinária –, dentro de um prazo razoável, não resultar implementado o preceito, sua mora implica violação da ordem constitucional. d) Neste caso, tal mora pode ser declarada inconstitucional pelo Poder Judiciário, competindo a este ajustar a solução do caso sub judice ao preceito constitucional não implementado pelo legislador, sem prejuízo de que o Legislativo, no futuro, exerça suas atribuições constitucionais. Assim, compreende-se que o valor maior da programaticidade constitucional é a continuação e vinculação das atividades normativas, entre elas, a legislativa, no desenrolar histórico de determinada ordem constitucional, a esta Constituição; é o compromisso normativo, no sentido da própria atuação dos agentes públicos, com o programa constitucional, em sentido material, e não simplesmente formal, hierárquico. A importância, talvez a essência, ou melhor, o essencial, dessa programaticidade é a vinculação dos agentes públicos, dentre eles o legislador, ainda que com diferentes graus de intensidade vinculativa15. A aproximação dessa essência orienta-se no sentido do movimento que parte da Constituição para àqueles agentes, como o legislador, e não o contrário. Ao cogitar das normas programáticas, portanto, não há que se vincular a sua vigência e conseqüente eficácia à atividade legislativa, senão realizar, justamente, o questionamento 13 SILVA, op. cit., p. 81. apud GRAU, op. cit., p. 365. 15 Ibid., p. 367. 14 15 contrário: a vinculação de que se trata é da validade da lei ordinária em relação ao programa constitucional. Situa-se aí a importância das normas programáticas, no seio da Constituição dirigente, e não a preocupação acerca de suas condições de vigência, porque estas dizem respeito, em verdade, à ordem constitucional como um todo. De fato, no ordenamento pátrio, todas as normas constitucionais são dotadas de vigência e eficácia, já por constarem do sistema constitucional, desde a sua promulgação, o que emana da própria rigidez formal característica16. Desse modo, enquanto potência, as normas programáticas já vêm produzindo efeitos, à medida da consolidação constitucional e de sua concretização pelos diferentes intérpretes, em suas determinadas funções17. Vale notar que se trata aqui de verdadeira tendência que se potencializa à medida da própria consolidação do Estado Democrático de Direito. As normas programáticas foram positivadas no núcleo do ordenamento jurídico brasileiro, revestidas daquele caráter revolucionário emancipatório que, no entanto, depende dos sujeitos constitucionais para se concretizar. Sendo tendência já posta em movimento – desde o ano de 1988, ressalte-se – cuja gênese identifica-se com a promulgação do texto constitucional, não há que se cogitar de um suposto retorno a uma condição anterior à sua própria origem, o que, em termos constitucionais, significaria um inaceitável retorno à ordem constitucional anterior. Isso quer dizer que, uma vez positivada no seio constitucional, a norma programática não pode mais retornar a um estágio juridicamente anterior a esta origem constitucional. Ela não pode ser promulgada junto da Constituição, e, ato contínuo, perder, ou mesmo suspender, sua vigência e decorrente eficácia jurídica18 constitucional; ela não pode voltar atrás no tempo e na história. É certo que a norma constitucional pode ser emendada, ou mesmo abolida – desde que não figure cláusula pétrea – mas não se cogita de sua suspensão, porque estaríamos aí diante do instituto da vacatio constitutionis19, que também se mostra de todo equivocado à questão. Portanto, no trato das normas constitucionais programáticas há que se falar apenas da sua vigência e, neste sentido, de sua eficácia jurídica. Uma vez juridicamente eficazes, devem 16 SILVA, op. cit., p.46-48. HÄBERLE, Peter. Hermenêutica constitucional: a sociedade aberta dos intérpretes da constituição: contribuição para a interpretação pluralista e “procedimental” da constituição. Tradução de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sérgio Fabris, 1997. p. 20. 18 Vide item 2.3, infra. 19 SILVA. op. cit., p. 54. 17 16 ser aplicadas, quer dizer, tornadas exeqüíveis, no sentido de sua efetividade20, à medida das condições desta aplicabilidade, em especial de mecanismos relativos à atuação do Poder Executivo, o que, por seu turno, não passa da própria concretização específica desta função, impondo-se-lhe, portanto, enquanto dever, poder-dever, mais precisamente, sob pena de crime de responsabilidade. A questão de sua aplicabilidade mediata, e a limitação de sua eficácia, representam apenas um momento de sua vigência – note-se que já se trata de sua vigência – justamente o momento de sua gênese constitucional, o que ocorrera, frise-se, há mais de duas décadas. Vale o esclarecimento da pertinência em se enfrentar a natureza normativa das normas programáticas – apesar de verdadeiro pleonasmo – uma vez que se intenta, aqui, explorar uma concepção hermenêutica acerca do significado do trabalho no sistema constitucional, significado que deve aproximar-se de sua natureza de direito social, com a finalidade de justiça social, à qual faz apenas menção o art. 6º da Carta Política, e parece emanar, sobretudo, da norma principiológica – programática, portanto – do art. 1º, quando expressa os valores sociais do trabalho, em coordenação com as disposições que delimitam os direitos individuais dos trabalhadores, constantes no rol de garantias apresentadas pelo art. 7º, a maioria já consagrada pela própria Consolidação das Leis Trabalhistas - CLT, desde 1943. De notar que o art. 7º é constantemente identificado, por seu turno, com os direitos que emanam das relações de emprego (teoria contratualista)21 - em oposição à tutela de toda relação de trabalho – interpretação que reduz, de saída, o âmbito de sua aplicação, criando um verdadeiro quadro binário de tutela dos trabalhadores: aqueles incluídos, e outros excluídos da proteção do conceito jurídico-formal de relação de emprego22. De fato, como anota Arnaldo Süssekind, a relação contratual de trabalho “[...] não constitui, senão formalmente, uma relação jurídica; na sua essência, representa um fato de dominação”23. 20 GRAU, op. cit., p. 320. Cf. SUSSEKIND, Arnaldo. Direito constitucional do trabalho. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2004. p.100; MAIOR, Jorge Luiz Souto. O direito do trabalho como instrumento de justiça social. São Paulo: LTr, 2000. p. 299. Em sentido próprio, a corrente crítico-européia do direito do trabalho: “Los críticos opinan que el hecho de que cambien la concepción de contrato de trabajo por la de relación de trabajo, no cambiará la realidad social de que el trabajador, desposeído de los medios de trabajo, vende al capitalista lo único que tiene, que es su energía de trabajo generadora de valor”: VAZQUEZ, Florencia Correas. La sociología del derecho laboral. Revista Crítica Jurídica: revista latinoamericana de política, filosofia y derecho, Cidade do México, nº 17, p. 88, 2000. 22 ESTEVE, Eugenia Revilla. El escenario europeo y comunitario de la relación de trabajo bajo el prisma que ofrece la figura del trabajador. Revista Crítica Jurídica: revista latinoamericana de política, filosofia y derecho, Cidade do México, nº 21, p. 256, ju./dez, 2002. 23 SÜSSENKIND, op. cit., p. 08. 21 17 Interessante é a proposição da doutrina espanhola no tangente ao âmbito da norma juslaboral, redefinindo o elemento da subordinação, antes restrito ao ambiente empresarial, agora a tratando nos termos de uma subordinação econômica e social: Con esta nueva visión del trabajo y de la noción de trabajador más material y dinámica se pretenden dos cosas: de un lado, relativizar las diversas formas que el trabajo ha adoptado hasta el momento en el seno de la sociedad capitalista, y así proteger el trabajo como actividad fundamental de la persona en la sociedad actual; y de otro, proporcionar modelos normativos que sigan a la persona en sus diferentes actividades a lo largo de toda su vida.24 Neste sentido, cogita-se aqui de todo e qualquer trabalho enquanto direito constitucional, na esteira do trabalho enquanto direito humano fundamental. A questão que se coloca, é saber qual a orientação que emana da Constituição Cidadã no tangente à proteção, garantia e exercício do trabalho digno, no sentido das necessidades essenciais25 ou do trabalho decente, nos termos da “agenda” da Organização Internacional do Trabalho (OIT). Cogita-se do significado, da força e intensidade da eficácia normativa daqueles valores sociais do trabalho, no sentido, evidentemente, de sua plena realização. Note-se que se trata ainda da passagem da noção, reivindicação e conquista dos direitos humanos fundamentais de primeira à sua segunda dimensão, direitos positivados, porém carentes de garantia, sobretudo na esfera processual. Como questiona o professor José Reinaldo de Lima Lopes, “[...] quais as ações que asseguram, garantem e viabilizam os tais ‘direitos sociais’? A quem corresponde o dever reflexo respectivo?”. Logo à frente, complementa o professor, trazendo à tona a complexidade que envolve a temática da tutela dos direitos sociais, e que acaba por se transmitir à presente dissertação: A resposta a esta indagação ultrapassa a análise pura e simples do texto legal, ou dos textos legais, supera a exegese e a filologia jurídicas. Coloca-se na esfera da teoria geral do direito, pois trata do ordenamento de modo geral e de uma categoria jurídica em si, antes de ser um instituto jurídico particular. Coloca-se também na esfera da Teoria do Estado, pois diz respeito às reações fundamentais da organização da cidadania. Coloca-se também na esfera da Filosofia do Direito, visto que diz respeito à justificação racional da justiça de uma norma e, muito particularmente, à realização da justiça.26 A partir da análise da construção histórica dos direitos humanos, podemos observar que o direito assume diferentes formas históricas, à medida das demandas da organização social da qual é reflexo. No Brasil, com a derrocada da ditadura militar, a sociedade civil 24 SÜSSENKIND, op. cit., p. 259. PERELMAN apud MAIOR, op. cit., p. 252. 26 LOPES, José Reinaldo de Lima. Direito subjetivo e direitos sociais: o dilema do judiciário no Estado Social de Direito. In: FARIA (Org.), op. cit., p. 113-114. 25 18 conquistou a forma histórica do Estado de Democrático de Direito, com o advento daquela que fora chamada por Ulisses Guimarães – Presidente da Assembléia Nacional Constituinte – no ato de sua promulgação, de Constituição Cidadã. E qual seria a forma histórica dessa Constituição Cidadã que elege os valores sociais do trabalho enquanto fundamento da República? Para encontrar a resposta, é necessária uma breve análise acerca do desenvolvimento da Teoria da Constituição. Neste ponto, vale ressaltar a pertinência da concepção de Ferdinand Lassalle, no sentido de apontar que a Constituição reflete os fatores reais de poder de determinada sociedade, assim como o próprio direito, trazendo à esfera constitucional a noção de que concorrem ali questões políticas e jurídicas27, o que remete à consagrada designação de Carta Política. De outro lado, há que se reconhecer que, em complemento aos fatores reais de poder, da Constituição também emana uma força normativa diretiva da sociedade, instalando-se, aí, a polêmica que motivou a clássica obra de Konrad Hesse28. Ao que parece, Lassalle realiza, à maneira ontológica, antes uma verificação da relação de poder que se trava entre a Constituição política e a jurídica na realidade, que uma projeção de como estas dimensões constitucionais deveriam realizar-se29. Nesse sentido, tem razão quando afirma que, para além de apenas informar a Constituição jurídica, quer dizer, para além de atuar no momento da gênese constitucional, dando-lhe impulso inicial, os fatores reais de poder (Constituição política) continuam dirigindo a sociedade, ora à parte da Constituição jurídica, ora mesmo contra ela, como, inclusive, intenta-se demonstrar adiante30. Compreender que os fatores reais de poder determinam o texto e a interpretação constitucional – e, portanto, o núcleo do ordenamento jurídico de uma nação31 – significa admitir um fundamento sociológico ao direito, ou seja, implica em assumir uma perspectiva 27 apud BERCOVICI, op. cit., p. 12; SILVA, op. cit., p. 23. HESSE, Konrad. A força normativa da constituição. Tradução de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sérgio Fabris, 1991. 29 O que nos remete a mais uma frase síntese do filósofo Karel Kosík: “a filosofia não ‘se realiza’; é o real que ‘filosofa”: Dialética do concreto. Tradução de Célia Neves e Alderico Tobírio, 7. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002. p. 168. 30 De outro lado, não há que admitir in totum a teoria de Lassalle, chegando ao cúmulo de negar qualquer força normativa à Constituição, desde que assumido que tal força se realiza, única e exclusivamente, a partir da atuação humana (dos intérpretes em sentido lato). 31 Segundo Clémerson Merlin Cléve, a Constituição deve ser entendida enquanto elemento central do ordenamento jurídico – ainda que hierarquicamente superior – tangenciando e influenciando toda a produção jurídica em relação ao caso concreto [e completaríamos: ao invés de significar um elemento isolado no topo de uma pirâmide poucas vezes escalada]: O controle de constitucionalidade e a efetividade dos direitos fundamentais. In: SAMPAIO, José Adércio. Jurisdição constitucional e direitos fundamentais. Belo Horizonte: Del Rey, 2003. p. 385. 28 19 de análise sócio-constitucional32. De fato, à positivação de um direito precede a luta popular pelo seu reconhecimento e garantia, afinal, “[...] o ordenamento jurídico não constitui um conjunto de regras jurídicas cujo sentido e alcance independe do contexto político e social”33. Um modelo clássico desta percepção pôde ser observado na evolução das dimensões dos direitos humanos, quer o reconhecimento dos direitos civis e políticos em oposição ao Absolutismo, quer a garantia de direitos aos trabalhadores, que atingiu status constitucional, a partir da Revolução Mexicana. É a Constituição Mexicana de 1917, fruto de uma revolução levada a cabo por trabalhadores rurais, que inaugura o chamado “constitucionalismo social”, alçando à esfera constitucional, de maneira pioneira, os direitos sociais34 – naquele sentido do imperativo de prestação estatal em relação à garantia e efetivação destes direitos – ao lado dos direitos fundamentais individuais, que já eram constantes das Constituições de modelo liberal. Para além da inserção dos direitos sociais na esfera constitucional, o “constitucionalismo social” também pode ser caracterizado por mais dois fatores inovadores: a opção pela sistematização dos preceitos pertinentes ao direito econômico, a chamada Constituição Econômica, na forma de uma ordem econômica constitucional; e, sobretudo, a constitucionalização de uma vontade, em forma de programa, de transformar as estruturas sociais então existentes – estruturas eminentemente liberais – através de um princípio dirigente que inspira toda a Constituição35. A inserção dos direitos econômicos no estatuto constitucional não configura novidade, vez que estes já constavam das Constituições de modelo liberal. A inovação, neste sentido, surge da sistematização e consolidação desses direitos na forma de uma ordem econômica, enquanto parcela de um ordenamento constitucional que realiza a unidade da ordem pública, da privada, da econômica e da social. No Brasil, a origem de uma ordem econômica e social constitucional remonta à Constituição de 1934. Mas é no texto de 1946 que a organização da ordem econômica e social aparece condicionada aos princípios da justiça social36, que figura como princípio 32 HÄBERLE, op. cit., p. 19. GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na Constituição de 1988. 3.ed. São Paulo: Malheiros, 1997. p. 75. 34 BERCOVICI, op. cit. p. 11; NASCIMENTO, Amauri Mascaro. Direito do trabalho na Constituição de 1988. 2. ed. atual. São Paulo: Saraiva, 1991. p. 02. Em sentido contrário, afirmando que foram outras as Constituições que genuinamente positivaram os direitos sociais: Arnaldo Sussekind afirma que a Constituição Francesa de 1848 já aludiu ao direito do trabalho, mas foi a Constituição Suíça de 1874 que demarcou originariamente os direitos do trabalhador na ordem constitucional: Op. cit., p. 13. 35 CANOTILHO apud BERCOVICI, op. cit., p. 35. A questão da “vontade de Constituição”, no sentido da vontade em se efetivar o texto constitucional, já pode ser observada em Konrad Hesse, op. cit., p. 19. 36 Constituição dos Estados Unidos do Brasil de 1946, art.145: In: BRASIL. Ministério do Desenvolvimento Agrário. Coletânea de Legislação e jurisprudência agrária e correlata. Tomo I. PINTO JR., Joaquim 33 20 constitucional conformador, e quer significar a superação das injustiças e desigualdades na repartição do produto econômico37. De notar que, até a Constituição de 1967, ordem econômica e ordem social andaram juntas, vindo a ser dissociadas apenas com o advento da Constituição de 1988. Entendendo que a ordem econômica diz respeito à esfera da produção, ao passo que a ordem social está ligada à distribuição, Eros Grau aponta o equívoco em se desvincular tais elementos que, na realidade social, constituem dimensões distintas de um mesmo processo produtivo38. É certo que a inserção de uma ordem econômica na Lei Maior dá ensejo à afirmação da existência, no interior do texto constitucional, de uma Constituição econômica, que compreende um “[...] conjunto de preceitos que institui determinada ordem econômica (mundo do ser) ou conjunto de princípios e regras essenciais ordenadoras da economia”39. Ressalte-se que esta constituição econômica não é autônoma, mas antes atua no sentido lógico-sistemático da unidade entre as especificidades do sistema constitucional. As Constituições econômicas – que se consolidaram entre as nações ocidentais – trazem a concepção de mudança da própria política econômica desenvolvida pelo Estado, com conseqüências também na atuação da iniciativa privada. Tal mudança significa o abandono do liberalismo econômico, e, portanto, o reflexo da intenção em se construir um Estado Social de Direito, através da intervenção do Estado na economia40. A Constituição Econômica que conhecemos surge quando a estrutura econômica se revela problemática, quando cai a crença na harmonia preestabelecida do mercado. Ela quer uma nova ordem econômica; quer alterar a ordem econômica existente, rejeitando o mito da auto-regulação do mercado. As Constituições Econômicas do século XX buscam a configuração política do econômico pelo Estado. Deste modo, a característica essencial da atual Constituição Econômica, uma vez que as disposições econômicas sempre existiram nos textos, é a previsão de uma ordem econômica programática, estabelecendo uma Constituição Econômica diretiva, no bojo de uma Constituição Dirigente.41 Não resta dúvida acerca da importância da inserção dos direitos sociais e sistematização da Constituição econômica no seio dos textos constitucionais modernos, no sentido de garantir uma ordem econômica e social. No entanto, a mais estrutural das inovações implementadas pelo “constitucionalismo social” assenta sobre a noção de constituição dirigente. Modesto, FARIAS, Valdez (Orgs.). Brasília: MDA, Núcleo de Estudos Agrários e Desenvolvimento Rural – NEAD, 2007. . 37 GRAU, op. cit., 1997. p. 245. 38 Ibid., p. 52. 39 Ibid., p. 62. 40 Ibid., p. 122. 41 BERCOVICI, op. cit., p. 33-34. 21 Se de um lado a constituição econômica configura parte integrante do todo constitucional, não podendo dele ser dissociada no sentido daquela unidade dos campos constitucionais específicos, e representa uma mudança na forma como o Estado atua nas relações econômicas, a constituição dirigente, por seu turno, na concepção de Joaquim José Gomes Canotilho, inspira todo o texto constitucional, atuando já em sua estrutura, sendo representante do mecanismo através do qual o Estado e a sociedade irão atingir os objetivos estipulados no art. 3º da Carta Política de 198842. Em uma constituição dirigente, o legislador constituinte opta por inserir no texto constitucional um programa a ser implementado no tempo. Desse modo, ele avalia a importância de já incluir ali preceitos e normas com um sentido não apenas de garantia do existente, mas também de objetivos futuros. Admite uma dimensão política em coordenação com a social, e projeta tarefas políticas que se refletem na esfera econômica, não raro identificando a necessidade constitucional de se transformar as estruturas existentes. Como afirma Gilberto Bercovici: “[...] a Constituição Dirigente é um programa de ação para a alteração da sociedade. Neste sentido, a Constituição de 1988 é, claramente, uma Constituição Dirigente”43. E no mesmo sentido aponta Eros Grau: Que a nossa Constituição de 1988 é uma Constituição dirigente, isso é inquestionável. O conjunto de diretrizes, programas e fins que enuncia, a serem pelo Estado e pela sociedade realizados, a ela confere o caráter de plano global normativo, do Estado e da sociedade. O seu art. 170 prospera, evidenciadamente, no sentido de implantar uma nova ordem econômica.44 (grifos do autor) A noção de ordem econômica da Constituição Cidadã representa uma importante evolução da concepção de direito, superando a compreensão que o identifica e o restringe à solução de conflitos, para concebê-lo enquanto instrumento de implementação de políticas públicas45, o que significa aquela tendência da passagem dos direitos individuais aos sociais. De fato, esta nova ordem econômica, assim como todo o texto constitucional, apresenta diversas cláusulas transformadoras. É o que ocorre, como supra mencionado, com o art.3º da CF/88. Revestindo-se, o art. 3º, da condição de cláusula transformadora, o constituinte entendeu que tais objetivos devem ser buscados, porque ainda não estão presentes na sociedade brasileira, de modo que Estado e 42 Constituição da República Federativa do Brasil/88, art. 3º: “Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I – construir uma sociedade livre, justa e solidária; II – garantir o desenvolvimento nacional; III – erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV – promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”. 43 BERCOVICI, op. cit., p. 35-36. 44 GRAU, op. cit., 1997. p. 195. 45 Ibid., p. 13. 22 a sociedade são impelidos a lançar mão dos mecanismos e diretrizes da constituição dirigente para concretizá-los. Neste sentido, a ordem econômica apresenta as bases para a construção de uma sociedade de bem-estar46 fundada na valorização do trabalho humano, que tem por fim assegurar a existência digna a todos, conforme os ditames da justiça social, observados, entre outros princípios, a função social da propriedade47. Note-se que, complementando aquela programaticidade, a saber, o texto dos arts. 1º e 3º, vem o art. 170 da Constituição Federal coroar um programa que apresenta os termos de sua efetivação ao Estado e à sociedade: busca fundamento nos valores sociais do trabalho; objetiva erradicar a pobreza, a marginalização e as desigualdades sociais e regionais; e, finalmente, é fundado na valorização do trabalho humano, e no cumprimento da função social da propriedade. Parecem estar aí os elementos que informam um programa constitucional do trabalho; normas-princípios que, no bojo de uma Constituição dirigente, informam toda e qualquer aplicação do direito pátrio, aplicação esta que, nos termos do póspositivismo europeu, não é relegada aos agentes do Estado, sendo, por certo, prerrogativa de toda a sociedade. 1.2 Um método hermenêutico para a eficácia da Constituição dirigente: do programa ao âmbito da norma, e a pluralidade das funções constitucionais Como afirmado acima por ocasião da discussão acerca da força vinculativa e da eficácia das normas programáticas, o modelo constitucional adotado pela Constituição de 1998 remonta ao constitucionalismo europeu pós 2ª Guerra Mundial. Neste sentido, cumpre investigar os elementos teóricos desse constitucionalismo, a fim de melhor compreender, interpretar e aplicar a Constituição vigente, visando sua “ótima concretização”, através da chamada hermenêutica constitucional. De saída, cumpre ressaltar o caráter normativo de que se revestem os princípios na Constituição dirigente, porque é justamente ali que se expressa aquele programa de transformação social; programa que informa a ordem constitucional, e conforma a atuação do Estado e de toda a sociedade; programa que fora positivado para ser efetivamente 46 47 GRAU, op. cit., 1997. p. 327. CF/88, art. 170, caput, e inciso III. 23 concretizado, por todos os intérpretes da Constituição, desde as diferentes e competentes funções estatais, até as forças pluralistas da sociedade, que acabam por instituir uma “sociedade aberta dos intérpretes da Constituição”, mais condizente com o regime democrático. Como afirma Peter Häberle, “[...] a sociedade é livre e aberta na medida em que se amplia o círculo dos intérpretes da Constituição em sentido lato” 48. É em Konrad Hesse, ex-presidente da Corte Constitucional Alemã, que encontramos as bases para esta virada na teoria constitucional e do próprio direito. Como anotaria – e criticaria – mais tarde Friedrich Müller, o Tribunal Alemão adotou, da década de 1950 em diante, uma postura vanguardista no sentido da aplicação da Constituição – no caso, a Lei Fundamental de Bonn – e da efetivação dos direitos fundamentais, o que não seria censurável, segundo Müller, não fosse a ausência de um método científico definido e demonstrável na jurisprudência daquela Corte49. É importante salientar, no entanto, o contributo de Hesse à teoria constitucional, apresentando uma noção histórica e dinâmica de constituição, afrouxando as amarras em que o positivismo jurídico, em especial o normativismo kelseniano, havia encerrado o direito constitucional. Sem negar a existência daqueles fatores reais de poder de que falava Fedinand Lassalle já no século XIX, porém não lhes atribuindo primazia na relação entre a constituição real e a escrita, Konrad Hesse afirma: A norma constitucional não tem existência autônoma em face da realidade. A sua essência reside na sua vigência, ou seja, a situação por ela regulada pretende ser concretizada na realidade. Essa pretensão de eficácia (Geltungsanspruch) não pode ser separada das condições históricas de sua realização, que estão, de diferentes formas, numa relação de interdependência, criando regras próprias que não podem ser desconsideradas. Devem ser contempladas aqui as condições naturais, técnicas, econômicas e sociais. A pretensão de eficácia da norma jurídica somente será realizada se levar em conta essas condições.50 Note-se o importante atrelamento da “condição de eficácia” da Constituição à sua realização histórica, para além de requisitos absolutamente formais de validade, afinal, “[...] o Direito Constitucional depende das ciências da realidade mais próximas, como a História, a 48 HÄBERLE, op. cit., p. 40. MÜLLER, Friedrich. Método de trabalho do direito constitucional. Tradução de Peter Naumann, 2. ed. rev.São Paulo: Max Limonad, 2000. p. 28. 50 E prossegue o autor, em trecho contínuo, reivindicando também a influência do “espírito do povo”, formulação clássica de von Savigny, que figuraria aquele elemento da crítica materialista de Müller: “Há de ser, igualmente, contemplado o substrato espiritual que se consubstancia num determinado povo, isto é, as concepções sociais concretas e o baldrame axiológico que influenciam decisivamente a conformação, o entendimento e a autoridade das proposições normativas”: HESSE, op. cit., p. 14-15. 49 24 Sociologia e a Economia”51. Na esteira, ressalta-se, ainda, a verdadeira condição dinâmica que tal concepção atribui à aplicação da Constituição – talvez ainda de modo espontâneo, característico das vanguardas, ora resvalando em concepções jusnaturais, o que certamente não lhe ofuscou o brilho, mas não escapou à crítica de seu tempo52. Tal dinâmica vem dar início, abrir caminho, à noção de que o direito não está pronto e acabado no texto constitucional, revelando, ou desvelando, que a concretização da constituição está atrelada ao ato de interpretar, para além de uma mecânica subsunção: A interpretação tem significado decisivo para a consolidação e preservação da força normativa da Constituição. A interpretação constitucional está submetida ao princípio da ótima concretização da norma (Gebot optimaler Verwirklichung der Norm). Evidentemente, esse princípio não pode ser aplicado com base nos meios fornecidos pela subsunção lógica e pela construção conceitual. Se o direito e a Constituição têm sua eficácia condicionada pelos fatos da vida, não se afigura possível que a interpretação faça deles tábula rasa.53 Essa noção dinâmica, aberta, da concretização constitucional afigura-se de suma importância para a compreensão da própria realização do direito, aproximando-se da verificação ontológica de sua existência na realidade e na história, para além do que determinada consciência – o que não necessariamente signifique uma dimensão individual – ou conseqüente teoria imponha à realidade54. A questão de que se trata é da própria eficácia do direito, no sentido da realização dos fins propostos pela norma55. Quanto maior a observação e conseqüente verificação do movimento da realidade social, melhor a identidade da proposição normativa e, assim, mais eficaz a sua concretização, no sentido da efetividade material56 da norma, ou seja, no sentido da efetiva observação e cumprimento da proposição normativa pelos destinatários, em seu cotidiano, quer agentes públicos, em suas funções, quer particulares. 51 HESSE, op. cit., p. 26. Em sentido contrário, afirma Hans Kelsen: “Quando se intitula Teoria “Pura” do Direito é porque se orienta apenas para o conhecimento do direito e porque deseja excluir deste conhecimento tudo o que não pertence a este exato objeto jurídico. Isso quer dizer: ela expurgará a ciência do direito de todos os seus elementos estranhos. Este é o princípio fundamental do método e parece ser claro: Teoria Pura do Direito. Versão condensada pelo próprio autor. Tradução de J. Cretella Jr. e Agnos Cretella. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001. p. 51. 52 “A força que constitui a essência e a eficácia da Constituição reside na natureza das coisas, impulsionando-a, conduzindo-a e transformando-se, assim, em força ativa”: HESSE, op. cit., p. 20. Para a crítica à fundamentação que busca assento na “natureza das coisas”, cf. MÜLLER, op. cit., p. 32. 53 HESSE, op. cit., p. 22. 54 Ressalte-se que se trata de uma aproximação das bases ontológicas do direito, e não de sua adoção enquanto método científico, visto que concorrem ainda em Konrad Hesse, de forma espontânea, elementos jusnaturalistas, como a questão do “espírito do povo”, e da força normativa que emana da “natureza das coisas”. 55 GRAU, op. cit, 2005. p. 324. 56 Vide item 2.3, infra. 25 A necessidade de uma adequada concepção material do direito, em especial o Constitucional, de modo a superar o formalismo positivista, de um lado, e o “[...] pragmatismo motivado no caso individual pela coisa, em parte também pelo resultado”, que não apresenta “[...] o quadro de um trabalho consciente dos seus métodos, que representa, fundamenta, e documenta os métodos aplicados”57; necessidade de construir, portanto, bases sólidas e fundamento científico-metodológico àquela concepção dinâmica e histórica de constituição, foi o que motivou Friedrich Müller a desenvolver a chamada teoria estrutural pós-positivista da norma jurídica58. A grande intuição de Müller, em sua teoria, foi justamente desenvolver um método hermenêutico que identifica uma estrutura interna à norma, verdadeira estrutura normativa que revela ser a norma algo mais que uma prescrição lingüística dotada de imperatividade. Questiona o método de validade formal do direito, método fundamentado sobre a concepção de uma norma pronta e acabada, que se identifica com a sua expressão literal – o texto da lei – e resolve-se pela interpretação que visa “reelaborar a vontade da norma ou do seu dador”, que se manifesta através dos métodos tradicionais de interpretação (gramatical, histórica, sistemática, teleológica); uma atividade em que o direito realiza-se já no texto da norma, premissa maior à qual os fatos concretos devem ser subsumidos59; um “[...] positivismo absorvido amplamente de forma acrítica e praticado sem coerência”60; desinteressado pela história, sociologia e economia em sua influência sobre a realização do direito e que, justamente por tal desinteresse, não consegue mostrar-se adequado à concretização, no tangente àquela eficácia que verifica a observação e efetivo cumprimento da prescrição jurídica, a verificação da realização dos fins para que foi positivada. Segundo Norberto Bobbio, quando apresenta os elementares do positivismo jurídico, “[...] o direito é considerado como um conjunto de fatos, de fenômenos ou de dados sociais em tudo análogos àqueles do mundo natural”61. No tangente à interação do direito com a realidade, e com as ciências que contribuem para sua compreensão, no sentido do alcance daquela pretendida eficácia, a cegueira juspositivista é expressa: “[...] a concepção formal do direito define portanto o direito exclusivamente em função de sua estrutura formal, 57 MÜLLER, op. cit., p.38. Ibid., p. 109. 59 Ibid., p. 26. 60 Ibid., p. 40. 61 BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico: lições de filosofia do direito. São Paulo: Ícone, 1995. p. 131. 58 26 prescindindo completamente do seu conteúdo – isto é, considera somente como o direito se produz, e não o que estabelece”62. No mesmo sentido, leciona Agostinho Ramalho Marques Neto: A eficácia da norma se mede muito mais por sua adequação às proposições teóricas da ciência do direito e por sua correspondência às realidades e aspirações do meio social, do que por critérios puramente formais, como, por exemplo, a coerência lógica interna do sistema jurídico, ou a validade formal de cada norma assegurada por outra hierarquicamente superior, embora tais critérios não sejam desprezíveis.63 De modo contrário, nos termos da “metódica estruturante” desenvolvida por Müller, a norma é composta por uma estrutura interna que parte de sua expressão lingüística – o texto da norma – mas não deposita ali a sua normatividade, que, na verdade, “[...] resulta dos dados extralingüísticos de tipo estatal-social: de um funcionamento efetivo, de um reconhecimento efetivo e de uma atualidade efetiva desse ordenamento constitucional para motivações empíricas na sua área”64. Note-se, de saída, o elevado teor sociológico dos elementos da normatividade, para além da expressão literal. Quer dizer, a norma não se resume ao texto da norma, à letra da lei. De fato, a normatividade revela-se verdadeiro processo que se realiza à medida da estrutura da norma, na qual se identifica duas dimensões: o “programa da norma” e o “âmbito da norma”: O teor literal expressa o “programa da norma”, a “ordem jurídica” tradicionalmente assim compreendida. Pertence adicionalmente à norma, em nível hierárquico igual, o âmbito da norma, isto é, o recorte da realidade social, na sua estrutura básica, que o programa da norma “escolheu” para si ou em parte criou para si como seu âmbito de regulamentação (como amplamente no caso de prescrições referentes à forma e questões similares). [...] No direito Constitucional evidencia-se com especial nitidez que uma norma jurídica não é um “juízo hipotético” isolável, diante do seu âmbito de regulamentação, nenhuma forma colocada com autoridade por cima da realidade, mas uma inferência classificadora e ordenadora a partir da estrutura material do próprio âmbito social regulamentado. Correspondentemente, elementos “normativos” e “empíricos” do nexo de aplicação e fundamentação do direito que decide o caso no processo de aplicação prática do direito provam ser multiplamente interdependentes e com isso produtores de um efeito normativo de nível hierárquico igual. [...] O âmbito da norma não é idêntico aos pormenores materiais do conjunto dos fatos. Ele é parte integrante material da própria prescrição jurídica. Da totalidade dos dados afetados por uma prescrição, do “âmbito material”, o programa da norma destaca o âmbito da norma como componente da hipótese legal normativa [Normativtatbestand]. O âmbito da norma é um fator co-constitutivo da normatividade.65 62 BOBBIO, op. cit., p. 145. MARQUES NETO, Augustinho Ramanho. A ciência do direito: conceito, objeto e método. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2001. p. 100. 64 MÜLLER, op. cit., p. 55. 65 Ibid., p. 58. 63 27 Pela teoria pós-positivista de Müller é possível vislumbrarmos, portanto, uma Ciência do Direito que não admite seu distanciamento em relação à realidade à qual o direito vem ordenar, adequada, pois, a uma noção ontológica do direito, na medida em que não resume a sua realização já na previsão normativa, senão na interação estrutural entre a norma e a realidade, de modo que não há que se falar em ser e dever ser de maneira dicotômica, enquanto mundos opostos; de maneira que já não se admita uma “característica puramente formal” à categoria jurídica do dever ser66. De fato, “[...] a filosofia não ‘se realiza’; é o real que ‘filosofa”67. De notar como o real filosofa na estrutura normativa: o texto da norma propõe um “programa” que, por seu turno, partiu da análise da realidade concreta. O “programa da norma” é expresso pelo texto, mas fora posto ali porque a realidade informou o legislador daquela necessidade normativa. De outro lado, este programa volta os olhos à realidade, retornando a ela, mas não somente para impor-se-lhe, senão também para adequar-se, porque é ela quem lhe informa, agora, qual o âmbito de aplicação daquele texto legal; quais são as determinantes desta aplicação, quais os elementos concretos, históricos, sociológicos, econômicos que criaram e influem na situação que reivindica a intervenção normativa. Este texto “escolhe” o âmbito de aplicação específico, o recorte jus-social pertinente ao caso concreto, selecionado da realidade; quer dizer, dentre a totalidade concreta da realidade dos fatos, o texto indica qual a situação a que se ele refere. Selecionada a situação, o texto expõe um programa de ação para aquela situação, mas não está completada a estrutura da norma, senão que se encontra ela apenas em seu início. Identificado o “âmbito da norma”, este recorte da realidade – que não pode descolar-se dela, nem da compreensão de interação causal no interior da totalidade concreta68 – vem complementar aquela estrutura normativa, que já estava à sua espera. O encaixe material da norma encontra-se “aberto”, e busca no fato concreto a peça que faltava para dar força e sentido ao texto legal. Isso significa que não existe uma verdade absoluta na interpretação/aplicação do direito; não existe uma única solução pronta e acabada em um texto, muito além dos mecanismos formais de sua alteração. A compreensão da estrutura material da norma permite, sim, reconhecer a dimensão dialética e histórica do direito, ainda que positivado. A questão que se coloca aqui, neste sentido, não é que esta seja a única, ou a 66 KELSEN, op. cit. p. 68. KOSÍK, op. cit., p. 168. 68 “Em França, Michel Miaille afirmou que na sociedade capitalista a instância jurídica faz parte de um todo em que o modo de produção dá a essa instância ‘um lugar, uma função, uma eficácia particulares”: MACHADO, op. cit., p. 43. 67 28 verdadeira maneira de compreender o direito, ou a sua realização. A questão que se coloca, é que talvez seja este o método em que ele se concretize de modo mais eficaz – mas antes se apresenta a questão da real vontade de tornar o direito, ou a Constituição, eficaz. A importância desta concepção não assenta, portanto, na “revelação” da estrutura normativa em si, mas no desenvolvimento que se proporcionou, a partir daí, de um método científico de trabalho que oriente a atuação dos “sujeitos constitucionais” de forma a potencializar a concretização da Constituição, em uma tentativa de superar o formalismo que resseca a vitalidade constitucional na medida em que lhe sonega, cotidianamente, a dimensão material, e com isso não logra êxito em ver-se efetivado, sem descartar, no entanto, a perniciosa hipótese que identifica na não efetivação, na ausência de cumprimento da Constituição brasileira, sobretudo no tangente ao seu programa, a própria eficácia deste, justamente porque teria ele sido positivado, para não ser aplicado69. De fato, de nada vale a compreensão da estrutura normativa, e da potência de sua eficácia, se o elemento mais fundamental do direito – e talvez o único inegavelmente fundamental – não concorra para sua concretização: o homem. Cabe, portanto, ao jurista conhecer e admitir a estrutura normativa em questão, e a partir daí optar pelo método de trabalho que reconheça mais adequado à sua intenção quanto à realização do direito. Note-se que tal intenção pode, perfeitamente, ser orientada para a ineficácia do programa normativo. Assim, parafraseando Karel Kosík, não é a norma que é ineficaz, mas a ineficácia que é “realizada”, pela omissão do jurista70. De outro lado, pode, ainda, a ineficácia ser realizada pela ação do jurista, quando opta por aplicar a norma negando sua dimensão material, descolando-a da realidade concreta, abstraindo suas determinações históricas, sócio-econômicas, o que também se manifesta desde muito além de uma simples opção metodológica, senão a partir de uma posição ideológica, historicamente – concretamente, portanto – adquirida. Como lembra o professor Antônio Alberto Machado: O direito é um fenômeno ideológico. Os teóricos são mais ou menos unânimes em afirmar que a idéia de direito, a metodologia empregada para o seu conhecimento, as variadas possibilidades de seu uso e, principalmente, os objetivos que se pretende alcançar com ele, no fundo, são mesmo o resultado de operações valorativas, ou axiológicas, que expressam sempre o desejo, as ambições, os propósitos, as preocupações e, enfim, os interesses de quantos se envolveram com o fenômeno jurídico, quer para instituí-lo, quer para estudá-lo, quer para aplicá-lo, quer ainda 69 70 GRAU, op. cit., p. 333. “Na história se realiza o homem e somente o homem. Portanto, não é a história que é trágica, mas o trágico está na história; não é absurda, mas o absurdo que nasce da história; não é cruel, mas as crueldades são cometidas na história; não é ridícula, mas as comédias se encenam na história”. KOSIK, op. cit., p. 238. 29 para a ele se submeter. A idéia do direito, sua metodologia e fins são mesmo condicionados pelos interesses e, portanto, pela visão de mundo de quantos se propuseram à tarefa de lidar com o fenômeno jurídico.71 Se a intenção é efetivamente concretizar a norma constitucional, cumpre orientar-se pela chamada “metódica estruturante”, proposta por Friedrich Müller, baseada naquela concepção pós-positivista de conferir fundamento metodológico à práxis que identifica na norma uma estrutura dotada de uma dimensão material; uma estrutura que credita a elementos sociológicos a normatividade traduzida no texto legal, e não encerra sua eficácia em si mesma, desde que cumpra um requisito meramente formal. Segundo a metódica de Müller, a postura que o jurista deve assumir já parte da concepção de que a normatividade apresenta-se como um processo estruturado72, cabendo a ele, jurista, percorrer esse processo, a fim de concretizar a norma. Neste sentido, tal “processo de concretização estruturado” assume um movimento que parte da interpretação do texto da norma para a aplicação de seu “programa”, informado pelo âmbito da norma. Da interação entre interpretação e aplicação atinge-se a concretização da norma, de modo que “[...] não mais devemos falar de interpretação ou explicação [Auslegung], mas sim de concretização da norma”73. Isso porque se interpreta o texto da norma, não a norma em si; “[...] o teor literal é a forma da lei”74, mas não congrega seu conteúdo, eminentemente material, e por isso não se identifica com a norma que, por seu turno, não se resume ao texto. Os métodos de interpretação do texto da norma já estão presentes na doutrina tradicional. Esta, no entanto, identificando ou reduzindo a norma ao seu teor literal, acredita explorar e aplicar a norma em si, mas acaba por incorrer em um equívoco que virá prestar contas à medida dos efeitos concretos dessa interpretação. Como acima mencionado, porque o método tradicional positivista não compreende a complexidade da estrutura normativa, não admitindo sua dimensão material, acaba por não conseguir imprimir eficácia à concretização da norma, o que se refletirá, em última instância, nas mazelas sociais, oprimidas por uma violência estrutural, e reprimidas por uma violência penal. De fato, a expansão da esfera penal, da sua cotidianidade “periférica”, passando da última para a única ratio do direito para significativa parcela da sociedade, de sua necessidade enquanto controle social, não deixa de refletir aquela ineficácia do próprio método em si, “[...] porque é um saber que funciona 71 MACHADO, op. cit., p. 39. MÜLLER, op. cit., p. 56. 73 Ibid., p.111. 74 Ibid., p. 109. 72 30 apenas no plano abstrato, incapaz de dar respostas concretas para os problemas reais, típicos de uma sociedade desigual e em constantes transformações”75. No entanto, a noção de que isto se trate de ineficácia, depende, novamente, não apenas de método, mas mesmo de uma concepção de mundo anterior a ele, que lhe informa os fundamentos elementares: A Teoria Pura do Direito desfaz a imagem de que os homens, por meio de um ato antijurídico, “violem” ou “infrinjam” o direito. Mostra que o direito, pela antijuridicidade, mal pode ser violado ou infringido, já que só pela antijuridicidade atinge sua função essencial. A antijuridicidade não significa – como faz crer a ótica tradicional – uma interrupção na existência do direito, mas precisamente o oposto: na antijuridicidade confirma-se a existência do direito, que consiste em sua validade: no “dever ser” do ato coercitivo, como consequência da antijuridicidade.76 Mas assume-se aqui a postura, a intenção, de concretizar as normas da Constituição brasileira de 1988, e, para isso, propõe-se apresentar como a métodica estruturante parece indicar os mecanismos para atingir sua “ótima concretização”, e a real eficácia de suas normas. Propondo-se superar metodologicamente o positivismo tradicional, esta metódica admite ao processo estruturante a interação de variados elementos concretizadores, desde a “hermenêutica”, enquanto dimensão principiológica, até os tradicionais métodos de interpretação. Cumpre, a partir daí, incorporar ainda aos referidos métodos, mas também para além deles, elementos conceituais pertinentes àquela noção ausente na concepção normativa do positivismo lógico-formalista: o âmbito da norma. Ao sistematizar os elementos de concretização da norma, Müller aponta, entre outros, os elementos metodológicos ‘strictiore sensu’ (interpretação gramatical, histórica, genética, sistemática e ‘teleológica’, bem como princípios isolados da interpretação da constituição); os elementos do âmbito da norma; e os elementos de política do direito e política constitucional77, aos quais nos apoiaremos durante toda a dissertação. Os elementos metodológicos ‘strictiore sensu’, como supra mencionado, consistem em elementos já incorporados pelo método tradicional de interpretação, de modo que o que seja relevante, aqui, é a inserção daquela dimensão material, do âmbito da norma, à concepção normativa, e a sua influência sobre a própria interpretação do texto; ou seja, o relevante é a incorporação dos elementos trazidos pela realidade que informam os métodos em questão. 75 MACHADO, op. cit., p. 64. KELSEN, op. cit., p. 71. 77 MÜLLER, op. cit., p. 111. 76 31 De início, há que ressaltar que, sendo o texto apenas parte da estrutura normativa, não há que se imprimir-lhe grau hierárquico superior em relação ao âmbito78. São dimensões interdependentes e, sempre, complementares. O âmbito sempre concorre com o texto no conteúdo positivo da norma; na determinação das situações e das soluções propostas; na abrangência destas situações; no alcance da norma; na pluralidade de condições; e na determinação dos fatores relevantes, fundamentais que devem informar a concretização normativa79. Em última instância, no entanto, segundo Müller, há que se considerar uma prioridade do texto na determinação do sentido da concreção normativa, no tangente ao seu conteúdo negativo. Quer dizer que o texto da norma é o limite negativo, intransponível da sua nãoaplicação; é a fronteira através da qual o jurista não pode voltar atrás80. De fato, o autor chega a criticar o Tribunal Constitucional Alemão por decisões contra legem, em especial no tangente à concretização dos direitos fundamentais, porque seriam eivadas de traços axiológicos. No final do trajeto processual de concreção estruturante, em sede de contradição parcial negativa, deve o jurista recorrer aos métodos “sistemático” e “gramatical”. Tocada a porta final, a interpretação gramatical prevalece, mas apenas se o método sistemático não tiver elementos a contribuir com essa concretização81, o que nos leva a crer que, para abrir essa porta, é o método sistemático que apresenta a chave definitiva. Outro fator incorporado por Müller são os elementos de política do direito e política constitucional, que configuram elementos auxiliares, por não se referirem diretamente à norma, quer dizer, por não emanarem de método que lida com estrutura da norma concretizanda, não sendo dotados, pois, de obrigatoriedade, no tangente à atuação do jurista, que não fica vinculado a eles. Os elementos de política são referidos a uma dimensão teleológica genérica do direito e da Constituição; são elementos que buscam realizar na concretização de determinada norma os fins abstraídos do texto constitucional como um todo, e, para isso, exploram já a análise eminentemente sociológica dos possíveis “efeitos práticos e.g. também sobre os âmbitos de normas de outras prescrições e áreas da constituição, não diretamente participantes do caso, no caso do ponto de vista da adequação à finalidade”: 78 MÜLLER, op. cit., p. 57. Ibid., p. 58. 80 Ibid., p. 101. 81 “Tal decisão se torna imperiosa se o “nexo sistemático” – como frequentemente – não pode ser comprovado de forma cogente”: Ibid., p. 105. 79 32 O estilo de raciocínio da política constitucional refere-se à ponderação das conseqüências, à consideração valorativa dos conteúdos. Em contrapartida, tal raisonnement não consegue indicar pormenores de modos de trabalho metódicos. Elementos de política constitucional fornecem valiosos pontos de vista de conteúdo à compreensão e implementação prática de normas constitucionais. Mas os aspectos por eles aduzidos só podem ser introduzidos para fins de comparação, delimitação e clarificação, não podem ser introduzidos como premissas por assim dizer normativas. Nesse sentido, todo e qualquer ato de normatização cortou, no âmbito da ordem vinculativamente normatizada e com a reserva de uma alteração da constituição, outras discussões de política constitucional.82 Logo à frente veremos como os elementos da metódica estruturante explorados nesta breve argumentação podem colaborar para a efetiva concretização do argüido programa do trabalho na Constituição de 1988, e também acerca da própria eficácia do instituto da função social da propriedade rural. Neste ponto, a título de coerência, devemos prosseguir e finalizar a análise proposta do constitucionalismo alemão moderno, trazendo resumidamente os significativos elementos incorporados por Peter Häberle à Teoria Constitucional, quando vem apresentar interessantes conceitos sociológicos acerca da concretização da constituição, sobretudo no tangente à condição e competência de seus intérpretes. De fato, observa-se na metódica de Müller certa erudição jurídica que parece destinar a “tarefa” constitucional quase exclusivamente para os juristas. O autor chega a discorrer sobre as funções concretizantes, atribuindo grande importância à competência dos agentes estatais, e apenas mencionado que os destinatários da norma constitucional também concorrem para sua concretização. De notar que todos os elementos de concretização elencados por Müller referem-se diretamente à práxis do jurista, quer processual, quer acadêmica, não havendo ali qualquer elemento concretizante aberto e competente aos destinatários, sendo este, exatamente, o ponto a ser desenvolvido por Häberle. Em sua perspectiva sócio-constitucional, Häberle reivindica uma abertura do processo de concretização da Constituição, abertura digna da sociedade democrática, reivindicando a importância e o reconhecimento dos mecanismos de concretização para além das competentes funções estatais, e do ambiente jurídico acadêmico (dogmático-teórico), elevando a participação concretizante das forças sociais pluralistas. Antes tidas apenas por destinatários, que concretizavam a Constituição na medida em que observavam e cumpriam o mandamento constitucional, agora essas forças sociais pluralistas conquistam também uma função concretizadora própria, quer dizer, conquistam o reconhecimento da concretização que parte da sua própria condição histórico-social; o 82 MÜLLER, op. cit., p. 97. 33 reconhecimento de que a práxis cotidiana de grupos e movimentos sociais também possui legitimidade para apresentar uma outra interpretação do texto constitucional, e realizar formas alternativas de concretização, na medida em que ocupam espaços distintos em relação àqueles agentes estatais, e, por isso, vivenciam e identificam outro ponto de vista acerca do âmbito da norma. De fato, tal concepção permite, para além de ampliar o próprio rol de possibilidades de aplicação da Constituição, admitir seu caráter dinâmico, complexo e multifacetado83. A inserção das forças pluralistas em uma concepção de que a ciência do direito abrange a dimensão normativa e também a realidade aproxima-se de uma noção ontológica de direito, à medida que admite que esta realidade só pode ser conhecida em sua diversidade, e, somente a partir daí, pode o direito adequar-se a ela. A ampliação do círculo dos intérpretes aqui sustentada é apenas a consequência da necessidade, por todos defendida, de integração da realidade no processo de interpretação. É que os intérpretes em sentido amplo compõem essa realidade pluralista. Se reconhece que a norma não é uma decisão prévia, simples e acabada, há que se indagar sobre os participantes no seu desenvolvimento funcional, sobre as forças ativas da law in public action (personalização, pluralização da interpretação constitucional)!. Qualquer intérprete é orientado pela teoria e pela práxis. Todavia, essa práxis não é, essencialmente, conformada pelos intérpretes oficiais da Constituição.84 De notar que o desenvolvimento da teoria alemã aqui relatada vem coroar a noção dialética da história, na medida em que à teoria de um autor vem outro contrapor-se, sem, no entanto, negá-la, admitindo conceitos relevantes e propondo avanços no tangente a elementos tidos por contraditórios, ou insuficientes. Se Hesse e Müller trazem importantes elementos históricos e materiais para a concretização da norma, permitindo-nos explorar uma concepção hermenêutica para um programa constitucional do trabalho, e para a eficácia da função social da propriedade, a incorporação das forças pluralistas, de Häberle, nos permite compreender a importância da atuação dos movimentos sociais no sentido desta concretização que se analisa. Müller esforça-se em construir um método para negar o positivismo, imprimindo-lhe coerência interna invejável – como o havia feito o próprio positivismo – com bases demonstráveis de argumentação, sendo a ausência desta metodologia, inclusive, um dos elementos de sua crítica a Konrad Hesse, e à jurisprudência de vanguarda, o decisionismo, do Tribunal Constitucional Alemão85. No entanto, ao que nos parece, na ânsia de conferir cientificidade à sua metódica, Müller acaba por incorrer em formalismo semelhante ao do positivismo, quando intenta expurgar qualquer fator axiológico na concretização da norma, o 83 HÄBERLE, op. cit., p. 40; MACHADO, op. cit., p. 66. HÄBERLE, op. cit., p. 30-31. 85 MÜLLER, op. cit., p. 30. 84 34 que, em última instância, não deixa de afastar-se da própria realidade, porque não há atuação humana que prescinda dos valores que lhes informam a existência individual. No intuito de responder à altura à hermética positivista, Müller parece utilizar um recurso semelhante ao de Kelsen, qual seja, expurgar da ciência do direito elementos subjetivos, valorativos, axiológicos, ideológicos que a maculariam86. Ocorre que, ao contrário de todo o procedimento ontológico que imprime na revelação do âmbito material da norma – o que não afasta, de modo algum, a própria relevância e pertinência da revelação deste âmbito material – o autor desliza para a gnosiologia, afirmando que, neste ponto – que acaba por comunicar-se a toda a teoria, porque diretamente referida ao elemento humano que a aplica – a ciência deve ser diferente da realidade; a ciência deve negar um fator intrínseco e inexpurgável da existência humana: a motivação valorativa de seus atos. De notar a contraditória semelhança com o recurso kelseniano: Na verdade, Kelsen pretendeu mesmo estabelecer um certo rigorismo lógico para o conhecimento jurídico, buscando com isso conferir à ciência do direito um sólido estofo científico, no melhor estilo positivista. Nesse afã, reduziu o conhecimento jurídico-científico ao conhecimento do sistema normativo, sem, contudo, negar as outras dimensões não normativas do direito, apenas considerando que estas outras dimensões não deveriam ser objeto da ciência jurídica propriamente dita.87 É, sem dúvida, de grande valia e suma importância a compreensão desta construção dialética da teoria constitucional alemã para a compreensão do que aqui se denomina programa constitucional do trabalho. Neste sentido, parece ser o professor José Afonso da Silva quem nos brinda com a definição mais completa de constituição: Busca-se, formular uma concepção estrutural de constituição, que a considera no seu aspecto normativo, não como norma pura, mas como norma em sua conexão com a realidade social, que lhe dá o conteúdo fático e o sentido axiológico. Trata-se de um complexo, não de partes que se adicionam ou se somam, mas de elementos e membros que se entrelaçam num todo unitário. O sentido jurídico de constituição não se obterá, se a apreciarmos desgarrada da totalidade da vida social, sem conexão com o conjunto da comunidade. Pois bem, certos modos de agir em sociedade transformam-se em condutas humanas valoradas historicamente e constituem-se em fundamento do existir comunitário, formando os elementos constitucionais do grupo 86 De fato, neste ponto exato vale para Müller o alerta de Antônio Alberto Machado contra o argumento de neutralidade do normativismo kelseniano: “Convém sempre lembrar que a norma, na sua gênese, envolve sempre opções valorativas e é o resultado de uma correlação de forças políticas no parlamento”: Op. cit., p. 129. Talvez Müller conseguiu até mesmo superar Kelsen na hermética de sua teoria, uma vez que este acaba por sustentar toda a validade de sua pirâmide normativa característica da Teoria Pura em uma “norma hipotética fundamental”, transcendental, portanto, enquanto Müller mantém-se firma sobre a proposta materialista de sua Metódica. 87 MACHADO, op. cit., p. 126. 35 social, que o constituinte intui e revela como preceitos normativos fundamentais: a 88 constituição. Esta é noção que inspira a concepção de constituição dirigente, elevando a elemento essencial, a proposição de um programa de mudança social, de transformação social; esta é a essência da constituição dirigente; esta é a essência deste modelo constitucional, e a diferença para o modelo liberal: neste, o intuito é coroar a sociedade existente, e garantir a sua conservação, conseqüência clássica da própria revolução francesa, o que ressalta o seu caráter genético em relação a este modelo constitucional. Conforme Roberto Lyra Filho, superada a fase eminentemente revolucionária, transformadora, embasada em concepções jusnaturalistas, tratou-se de positivar as normas da nova organização social, engessando-a, de modo a conservar aquela estrutura social: “Está visto que, chegando ao poder, a burguesia descartou o seu iusnaturalismo, passando a defender a tese positivista: já tinha conquistado a máquina de fazer leis e porr que, então, apelar para um Direito Superior? Bastava a ordem estabelecida”89. Já a constituição dirigente surge, em um ambiente de superação das estruturas sociais existentes. Na verdade, surge, justamente, para superar estas estruturas sociais conservadas pelo modelo liberal. Seu germe é identificado nas normas programáticas informadas pela ascensão da organização dos trabalhadores enquanto sujeitos constitucionais; normas informadas pelo reconhecimento de que a igualdade formal é direito, mas não garantia de existência digna, que oculta a desigualdade social, desigualdade que não pode ser juridicamente conservada pela proteção constitucional. Se não pode ser conservada, é porque se clama por mudança. Mudança que viria a ser implementada por um programa constitucional de transformação social. Mas, já não bastava programar-se; já não bastava em-si, o programa. A previsão constitucional não transformava por-si aquela realidade; ela não comportava em-si os instrumentos daquela mudança. Como afirma Fábio Konder Comparato, com argumento válido para a Constituição, “[...] a lei isoladamente considerada, revela-se um instrumento deficiente. Pois a edição de normas não impulsiona, não cria o movimento; apenas estabelece balizas para o seu curso ordenado”90. De fato, a constatação viria, necessariamente: o agente da mudança era o homem, não o programa constitucional. 88 SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 20. ed. rev. e atual., São Paulo: Malheiros, 2002. p. 39. 89 LYRA FILHO, Roberto. O que é direito. vol. 16, São Paulo: Brasiliense, sem data (Coleção Primeiros Passos). p. 142. 90 Apud GRAU, op. cit., 2005. p. 317. 36 No âmbito da teoria de constituição, a necessidade de um fundamento antropológico é reiteradamente afirmada: “uma teoria democrática do Estado e da constituição não pode assentar numa vontade do Estado formal, mas apenas no homem, na sua situação social e política, no problema do que é que lhe pode ser oferecido e do que é que dele se pode esperar.91 O que fazer, então? Qual o mecanismo para garantir a realização do programa? Em primeiro lugar, o reconhecimento do protagonismo humano, e das diferentes e indissociáveis funções concretizadoras, ou seja, da coordenação entre os agentes públicos e as forças pluralistas92 - no tangente aos trabalhadores, leia-se sindicatos, associações e movimentos socais. Admite-se, assim, que a concretização do programa constitucional compete, mais que a uma genérica “vontade de constituição”, aos sujeitos constitucionais em suas funções concretas. Isso significa que se atribui a tais sujeitos um poder-dever de concretização, com graus e instrumentos de efetivação pertinentes às respectivas funções, todas elas, no entanto, vinculadas ao programa constitucional. Note-se que este programa exaspera, neste momento, a esfera propriamente constitucional; transcende o seu texto, para inspirar toda a atuação, pública e particular, que tangencie alguma norma constitucional. Atribuindo competências funcionais aos sujeitos constitucionais, transfere-se responsabilidades vinculadas ao programa constitucional, de modo que este programa não seja, mais, “apenas” constitucional. Agora é a atuação dos sujeitos, sobretudo dos agentes públicos, que é vinculada àquele programa. Em sede das funções públicas, estamos tratando, sobremaneira, do universo do programa normativo – que já não se resume à esfera constitucional, mas a ela é estritamente vinculado – elaborado e concretizado à medida das especificidades daquelas funções. Toda esta construção culmina, assim, na constatação de que a Constituição passa de programa de mudança social por-si, para instrumento desta mudança; supera a condição de programa normativo bastante em-si, projetando instrumentos de sua eficácia, na medida em que vincula a atuação dos agentes públicos nos termos de seu programa, que passa a ser concretizado à medida das suas funções específicas, que devem, de maneira indissolúvel, apontar para a mesma direção, qual seja, o horizonte constitucional. No alcance deste horizonte, a constituição assume a dupla condição de instrumento e modelo a ser concretizado, sempre em referência à realidade e à medida da práxis social. 91 CANOTILHO, Joaquim José Gomes. Constituição dirigente e vinculação do legislador: contribuição para a compreensão das normas constitucionais programáticas. Coimbra: Coimbra Ed. 1982. p. 31. 92 HÄBERLE, op. cit., p. 33. 37 O programa (não apenas) constitucional é processo social, concretizado à medida da atuação humana. Tratando-se do ordenamento jurídico-estatal, esta atuação deve, necessariamente, ser orientada por aquele programa, descrito em seu texto. Mas a constituição não se resume ao texto, pois que emana da realidade social, em sua determinação histórica. Parte do embate entre os fatores reais de poder em torno de um texto escrito, que representa, ressalte-se, justamente a posição destas forças na estrutura de determinada sociedade, daí os variados graus da intensidade desta mudança programada. Mais que um programa de mudança bastante em-si mesmo, a constituição revela-se um instrumento político-jurídico desta mudança; ela aponta a direção que deve ser seguida pela atuação dos sujeitos constitucionais, sobretudo dos agentes estatais, que devem assumirse guiados, dirigidos por ela. Mais que um programa positivado que guia a atuação, a constituição revela-se um processo social de concretização do direito, de acordo com determinada forma e inspiração histórica e, portanto, socialmente positivada. A constituição transcende, assim, o texto, porque o texto já nasce enquanto resultado de um processo social, resultado que, por seu turno, ressalta-se, não está pronto e acabado na sua totalidade. É resultado de um momento, que passa a mero elemento daquele processo social. De notar que a constituição transcende o texto, mas não a própria realidade, porque é fruto da vontade e atividade humana, nos termos de sua organização social historicamente construída. Isto quer dizer que a constituição é reflexo da vontade da própria organização social respectiva. Traz um programa em seu texto, e concretiza-se à medida da atuação dos agentes públicos e da organização das forças sociais concretas. Neste complexo sentido, a constituição é instrumento que indica a direção que a sociedade quer e deve seguir, donde se extrai a noção que a identifica enquanto constituição dirigente. Este princípio dirigente informa toda a constituição, e admite sua condição de processo histórico-social. No dizer de Gomes Canotilho, “[...] a sociedade, palco de controvérsias políticas e de lutas de interesses, é, porém, uma realidade dialéctica. É nesta que se tem de inserir a problemática da constituição dirigente”93. Neste sentido, não há que se conformar com a positivação das normas ali inscritas; não há que acomodar com a promulgação de um texto que revela anseios por mudanças, porque, como se sabe, é da interpretação deste texto que parte a ação – e da ação, por seu turno, parte o movimento da realidade – e a interpretação varia conforme a consciência do intérprete. Assim, é necessário cuidado com uma adesão romântica à constituição, descolando-a da realidade social em seu 93 CANOTILHO, op. cit., p. 461. 38 processo histórico. Neste sentido, não há que se olvidar que aqueles fatores reais de poder continuam o curso de seu embate social, a saber, a luta de classes, em sua complexidade peculiar a este momento da história94. Se a constituição dirigente orienta-se por determinada mudança social, a concretização de seu programa significa, necessariamente, a transformação de posições historicamente construídas, poderíamos dizer arraigadas; na esfera agrária, enterradas, e que, certamente, à revelia da constituição, pretendem-se fazer conservar. 94 Para uma compreensão acerca de uma adequada concepção da forma histórica assumida atualmente pelo processo social denominado de luta classes, cf. Karl Marx Apud KOSIK, Karel. Dialética do concreto. op. cit., p. 193, nota 34: “As funções desempenhadas pelo capitalista são apenas funções do próprio capital desempenhadas com a consciência e a vontade do valor que se valoriza graças à absorção do trabalho vivo. O capitalista funciona somente como capital personificado, assim como o operário funciona como trabalho personificado”. 39 CAPÍTULO 2 ANÁLISE DA EFICÁCIA DO INSTITUTO DA FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE RURAL 2.1 Uma função social à propriedade O presente capítulo parte de um breve estudo acerca da evolução do direito de propriedade nas Constituições brasileiras, com enfoque na perspectiva agrária, qual seja, uma perspectva “[...] vivida, fundamentalmente, no relacionamento ‘terra-homem’”95, culminando na análise da eficácia do instituto da função social da propriedade na Constituição Federal de 1988. O estudo acerca daquela evolução constitucional tem seu início com a “Constituição Política do Império do Brasil”, de 1824, deflagrada pela Independência. Diante disso, pode-se afirmar que esta consiste na primeira Constituição brasileira96, haja vista que, ao menos formalmente, superava-se ali o período colonial, dando início à construção de um Estado brasileiro. No tangente à propriedade, dispõe o art.179, inciso XXII, da Constituição do Império: É garantido o Direito de Propriedade em toda sua plenitude. Se o bem público legalmente verificado exigir o uso e emprego da Propriedade do Cidadão, será ele previamente indenizado do valor dela. A Lei marcará os casos em que terá que lograr esta única exceção, e dará as regras para se determinar a indenização. Atribuindo uma plenitude ao direito de propriedade, o Imperador – que destituiu a Assembléia Constituinte através de um golpe97 – afirma a noção de propriedade individual e absoluta. De saída, nota-se a determinação histórica do direito, quer dizer, da influência daqueles fatores reais de poder – dos quais alertava Lassalle98 – já na concepção do direito de propriedade. Isto porque, como é notório, a plenitude que revestia o direito de propriedade dizia respeito não apenas aos bens, mas também aos seres humanos, sob a categoria jurídica de escravos. 95 LARANJEIRA, Raymundo. Propedêutica do direito agrário. São Paulo: LTr, 1975. p. 01. Ibid., p. 12. 97 BERCOVICI, Gilberto. Constituição econômica e desenvolvimento. São Paulo: Malheiros, 2005. p. 129. 98 Cf. SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das normas constitucionais. 7. ed. São Paulo: Malheiros, 2008. p. 23-25. 96 40 Aquela plenitude, portanto, que não possui caráter meramente jurídico, senão amplamente sociológico, dada a própria determinação reflexiva entre a Ciência do Direito e a Sociologia, significava, na prática, que o direito de propriedade, absoluto, recaía sobre a propriedade dos bens e meios de produção de riqueza, quer dizer, a propriedade significava propriedade da terra, e dos homens e mulheres trabalhadores. De notar o grau de concentração de riqueza característico deste modelo agrário que viria a fundar as bases sociais e jurídicas da sociedade brasileira, até o advento da Constituição de 1988. Sem olvidar o advento da Lei de Terras99, e a abolição da escravatura, é fato que aquela gênese da propriedade privada da terra, esta a instituição do trabalho rural “livre”, porém alienado daquela propriedade da terra, viria a representar uma nova, ou moderna, forma histórica de uma mesma estrutura agrária de produção social da riqueza. De fato, segundo Gilberto Bercovici, a Lei de Terras fora promulgada no intuito de superar a situação juridicamente caótica do regime sesmarial, o que se buscou fazer apoiandose nas propostas de Wakefield, à maneira da colonização britânica na Inglaterra: “O fundamento de sua proposta era a criação de obstáculos para a obtenção da propriedade. Deste modo, os trabalhadores, privados do acesso à terra, teriam de se empregar nas grandes fazendas, responsáveis pela agricultura de exportação”100. Como relata o professor Rayundo Laranjeira, acerca da interação entre estes fatos históricos, quais sejam, a Lei de Terras e a abolição da escravatura: Era o princípio da “integração da massa trabalhadora no conjunto da sociedade brasileira”, consoante distinguido por Caio Prado Júnior, coisa que mais tarde se fortaleceu, finalmente, com o término da escravatura no Brasil, em 1888; e foi, também, o revolver de fórmulas contratuais relacionadas com o trabalho pessoal e/ou familiar dos despossuídos, em proveito dos donos das terras, ou afetas aos alugueres dessas mesmas terras alheias, quando lavradores independentes conseguiam, assim, usá-las em proveito próprio, mas sob a carga de pagas extorsivas à classe dos proprietários. Sempre em destaque – para que se não fugisse de garantir um meio de sobrevivência – a velha submissão dessa gente à vontade dos “senhores” ia importando que estes continuassem a ditar as regras das contratações relativas ao amanho da terra: ora ordenando cláusulas que se endureciam na proporção do aumento da mão-de-obra disponível, face ao contingente e roceiros se agregando às fazendas ou com a vinda dos imigrantes, ora inventando formas “aprimoradas” obterem melhor rendimento, com o mínimo de gastos e maior desforço alheio, como um manhoso político e fazendeiro o fez na parceria rural [Senador Vergueiro].101 99 Lei nº 601, de 18 de Setembro de 1850. In: BRASIL. Ministério do Desenvolvimento Agrário. Coletânea de legislação e jurisprudência correlata. Tomo I. PINTO JR., Joaquim Modesto; FARIAS, Valdez (Orgs.). Brasília: MDA, Núcleo de Estudos Agrários e Desenvolvimento Rural – NEAD, 2007. 100 BERCOVICI, op. cit., p. 130. 101 LARANJEIRA, op. cit., p. 20. 41 Lembra Alberto Passos Guimarães, acerca do direito de propriedade, que até o advento da Lei de Terras, a propriedade da terra era alienada, no Brasil, através do regime original das capitanias hereditárias, e posteriormente de sesmarias102, sendo imprópria, ou extra-legal, tanto a compra e venda, como qualquer alienação que fugisse àquele regime, o que acabou por dificultar, ou, no mínimo, desprestigiar a pequena propriedade familiar103. De fato, no ambiente da Independência, constatou-se que “[...] a sesmaria já perdia a sua razão de ser. [E que] O Brasil exigia novas normas jurídicas para o disciplinamento do seu problema de terras”104. Ressalta-se que a compreensão do próprio descabimento daquele regime proprietário que dava fundamento a uma estrutura fundiária ausente de qualquer projeto de nação já estava presente nos debates que antecederam a Constituinte golpeada, não sem motivações de poder, pelo Imperador: E dentre as vozes autorizadas, que procuravam esclarecer Govêrno e povo, para u’a melhor utilização do solo, uma reforma da estrutura e a formação de uma classe rural estável, de pequenos e médios proprietários, estava a de José Bonifácio de Andrada e Silva. Propôs êle, em 1821, ao país, uma revisão de sua estrutura agrária [...]: [“O Patriarca da Independência”] ‘11. IV – Que haja uma caixa ou cofre em que se escolha o produto destas vendas, que será empregado em favorecer a colonização de europeus pobres, índios, mulatos e negros fôrros, a quem se dará de sesmarias pequenas porções de terreno para cultivarem e se estabelecerem. [...]’ Parece que não teve muito sucesso a Indicação do ilustre Patriarca da Independência; ou a fôrça dos grandes proprietários de terras, que ajudaram o Príncipe D. Pedro a fazer o 7 de Setembro e a consolidar o nôvo regime, foi maior que a visão do estadista patrício. Êsse, um dos motivos porquê na nossa primeira Constituição, já se inscrevia (consequência também da influência do Código Napoleônico), no § 22 do art. 179, que [...] é garantido o DIREITO DE PROPRIEDADE, em tôda a sua PLENITUDE. (destaques no original)105 Note-se, de outro lado, que, apesar da plenitude do direito de propriedade, já consta do texto constitucional a hipótese do Estado intervir na propriedade do cidadão, quando o bem público assim o exigisse, mediante prévia indenização. Importa ressaltar, neste ponto, que a Constituição do Império já traz uma noção de interesse público, e da sua supremacia sobre o interesse privado. Note-se que se trata de verdadeira desapropriação por necessidade ou utilidade pública, conceito que só viria a ser positivado na “Constituição da República dos 102 Na verdade, assevera Fernando Pereira Sodero: “Juridicamente, não tivemos sesmarias e sim datas e concessões da Corôa, de que aquela foi usada como sinônimo” (grifo no original): Direito agrário e reforma agrária. São Paulo: Ed. Legislação Brasileira, 1968. p. 180. 103 apud LARANJEIRA, idem, p. 22. 104 SODERO, op. cit., p. 192. 105 Ibid., p. 193-195; Cf. BERCOVICI, op. cit., p. 128. 42 Estados Unidos do Brasil”106, de 1891, já sob a égide do regime da propriedade privada da terra, nos termos mercantis. A desapropriação por necessidade ou utilidade pública é a representação clássica do instituto da desapropriação, do direito administrativo. Observe-se que, nestes casos, a intervenção do Poder Público na propriedade privada, transferindo o direito de propriedade ao Estado, decorre da imprescindibilidade (necessidade) ou conveniência (utilidade)107 da atuação estatal, o que independe da atuação do proprietário, que possui papel eminentemente passivo na desapropriação. Isso significa que a motivação fática, revestida de caráter jurídico, da desapropriação por necessidade ou utilidade pública, não está baseada, ou adstrita, ao exercício do direito de propriedade, por parte de seu titular. Tal motivação parte de uma condição fática pertinente antes à propriedade em si que ao direito de propriedade correspondente. De fato, é a necessidade objetiva de aproveitamento público da propriedade, dada sua localização, v.g., que motiva a desapropriação. Neste sentido, a desapropriação é motivada por uma condição objetiva, que emana do próprio bem, o que viria a se diferenciar com o instituto do interesse social. No Governo Provisório, a Constituição de 1934 apresenta-se repleta de inovações, como o surgimento da ordem econômica, atribuindo uma nova dimensão à propriedade, ao passo que direciona seu exercício ao interesse social e coletivo108: É garantido o direito de propriedade, que não poderá ser exercido contra o interesse social ou coletivo, na forma que a lei determinar. A desapropriação por necessidade ou utilidade pública far-se-á nos termos da lei, mediante prévia e justa indenização [...]109. É possível observar uma dupla inovação no trato constitucional da propriedade: inaugura-se o conceito de interesse social e coletivo, e transfere-se ao titular do direito de propriedade uma responsabilidade em relação ao exercício do direito. De fato, ao proprietário não se atribui mais aquela passividade, nem a noção de plenitude ainda presente na Carta de 1891, que acaba, no entanto, por se comunicar ao Código Civil de 1916. 106 Art. 72, § 17: “O direito de propriedade mantém-se em toda a sua plenitude, salva a desapropriação por necessidade ou utilidade pública, mediante indenização prévia”. In: BRASIL, op. cit. 107 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 15.ed. São Paulo: Atlas, 2003. p. 163. 108 GODOY, Luciano de Souza. Direito agrário constitucional: o regime da propriedade. 2. ed. São Paulo: Atlas, 1999. p. 48. 109 Inciso 17, art. 113, da Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil, de 16 de julho de 1934. In: BRASIL, op. cit. 43 Outrossim, por virtude de haver sido programa do sem nenhum destino social, o Código Civil tendeu a funcionar como adjutório dos interesses dos senhores da terra, devido, particularmente, à perspectiva adotada em torno do domínio e uso dos bens imóveis rurais.110 No entanto, apesar da inovação constitucional, na prática, foi mesmo o conceito civilista que imperou, haja vista que, apesar de constar o condicionamento do exercício do direito de propriedade ao interesse social, este parece ainda não surtir efeitos, uma vez que a Constituição reafirma apenas as modalidades de desapropriação por necessidade e utilidade pública. De notar que a Constituição do Governo Provisório já está inserida no ambiente inspirado pelo ideário dos direitos humanos sociais, donde se explica a própria inserção da questão referente à ordem econômica, além da gênese do instituto jurídico do interesse social, em relação direta com exercício do direito de propriedade. Neste sentido, a inserção destes institutos – da ordem econômica, e do interesse social que condiciona o exercício do direito de propriedade – corresponde à própria condição programática da qual se reveste aquela Constituição, acompanhando o movimento histórico que se consolidava entre as Constituições ocidentais. Elemento que evidencia e caracteriza esta condição programática – e a diferencia da condição dirigente que viria a conformar a Constituição de 1988 – é justamente a previsão normativa do condicionamento do exercício do direito de propriedade ao interesse social, sem, no entanto, apresentar mecanismos constitucionais aptos a concretizar a norma deste interesse social, na medida em que prevê, apenas, as modalidades de desapropriação por necessidade e utilidade pública, fundadas sobre as bases daquela lógica de motivação objetiva, não decorrente do exercício do direito subjetivo de propriedade. Caracteriza-se aí a esterilidade das constituições programáticas, em oposição à eficácia das constituições dirigentes: da relação entre a previsão normativa de um programa, e a construção normativa da sua eficácia jurídica111. Neste sentido, é interessante a afirmação do professor Raymundo Laranjeira, quando afirma que fora “[...] a terceira Constituição do País, impressionante documento programático e analítico, mola mestra de tudo quanto se fez, deixou de ser feito e se procurou fazer, ou aprimorar, neste Brasil agrário de até hoje”112. 110 LARANJEIRA, op. cit., p. 22. Para o conceito de eficácia aqui empregado, vide item 2.3, infra. 112 Op. cit, p. 25. 111 44 Em matéria de propriedade, a Constituição do Estado Novo (1937) opera verdadeiro retrocesso, suprimindo o interesse social como condicionante ao exercício do direito de propriedade. Já a Constituição de 1946 retoma o condicionamento do exercício do direito de propriedade, agora ao bem-estar social, desta vez conferindo-lhe eficácia, inaugurando o instituto da desapropriação por interesse social, modalidade que passa a ser identificada com a justa distribuição da propriedade, plantando, assim, a semente constitucional da reforma agrária: Art. 141: §16: É garantido o direito de propriedade, salvo o caso de desapropriação por necessidade ou utilidade pública, ou por interesse social, mediante prévia e justa indenização em dinheiro. [...] Art. 147: O uso da propriedade será condicionado ao bem-estar social. A lei poderá, com observância do disposto no art. 141, §16, promover a justa distribuição da propriedade, com igual oportunidade para todos. É evidente que tais inovações técnicas no programa constitucional, conferindo-lhe instrumentos de eficácia, de modo a esboçar uma superação daquela esterilidade característica das constituições programáticas, não surgem à revelia do processo histórico. De fato, o ambiente que informa a Constituição de 1946 caracterizou-se pela intensa participação política e organização social, participação e organização talvez características de períodos pós-ditatoriais – dada a semelhança com o próprio ambiente que viria a informar a Constituição Cidadã de 1988. Um dos elementos de maior destaque neste período, no sentido desta organização social em busca daqueles direitos humanos sociais em curso na história, foi a organização dos trabalhadores nas chamadas Ligas Camponesas113, que vieram a contribuir, sobremaneira, para a evolução do próprio conceito de direito de propriedade, e consequentemente para do próprio direito agrário no Brasil. Resulta de toda a organização social daquele período a ascensão do governo João Goulart à Presidência da República. Dado o Programa de Reformas de Base por ele proposto, sobretudo a realização da reforma agrária, foi deposto através do golpe militar de 1964, com a conseqüente instituição de um retrocesso político e social, representado pela ditadura. Por força daquela organização social – ainda que paulatina e violentamente reprimida – o governo golpista se viu pressionado a fazer uma concessão formal à população agrária, no intuito de 113 Cf. item 3.3, infra. 45 amortecer aquela pressão social advinda, sobretudo, das Ligas Camponesas, donde surge, no Brasil, o marco histórico da sua legislação eminentemente agrária e da conseqüente autonomia do Direito Agrário: a Lei nº 4.504, de 30 de novembro de 1964, conhecida como o Estatuto da Terra114. Com o advento do Estatuto da Terra, o ordenamento jurídico brasileiro atinge a autonomia de seu direito agrário115, e conhece finalmente o conceito de função social da propriedade, já em sua multifuncionalidade. Lei nº 4.504/64: Art. 2º: É assegurada a todos a oportunidade de acesso à propriedade da terra, condicionada pela sua função social, na forma prevista nesta Lei. §1º: A propriedade da terra desempenha integralmente sua função social quando, simultaneamente: a) favorece o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores que nela labutam, assim como o de suas famílias; b) mantém níveis satisfatórios de produtividade; c) assegura a conservação dos recursos naturais; d) observa as disposições legais que regulam as justas relações de trabalho entre os que a possuem e a cultivem. De fato, é com o Estatuto que o Brasil consolida o instituto da desapropriação por interesse social – nos termos da regulamentação prevista pelo artigo 141, §16, da Constituição de 1946 – enquanto mecanismo de eficácia da norma que agora determina ao direito de propriedade uma função social, identificando-o, por seu turno, com a justa distribuição da propriedade. Elemento de suma importância, ainda, já é a própria noção de multifuncionalidade incorporada ao direito de propriedade, em uma clara compreensão de que se trata, ali, do direito sobre a propriedade de um meio de produção social de riqueza, e, para além disso, um meio especial desta produção social, a terra. Nesse sentido, o direito de propriedade acaba por refletir esta condição da qual se reveste a terra, de modo a não se poder desvincular o exercício do direito de propriedade da maneira como aquela produção social de riqueza é explorada ali. Noutras palavras, não há, mais, que se desvincular – o que seria ainda elemento 114 Ressalte-se que um ‘estatuto da terra’ que fosse efetivamente “[...] destinado a conduzir reais modificações na ordem rural brasileira”, ou seja, instituidor da necessária reforma agrária já vinha sendo elaborado desde o ano de 1954. Cf. LARANJEIRA, op. cit., p. 28. 115 LARANJEIRA, op. cit., p. 29. 46 de intenso debate e divergentes concepções doutrinárias – o direito “agrário” de propriedade, do direito ambiental e do trabalhador rural. Diante do Estatuto da Terra, é definitivamente na “Constituição do Brasil”, do ano de 1967, que a função social da propriedade alcança status constitucional, figurando já como princípio da ordem econômica, instrumentalizando-a no sentido da realização da justiça social, através da desapropriação para fins de reforma agrária116: Constituição do Brasil, de 24 de Janeiro de 1967: Art. 157: A ordem econômica tem por fim realizar a justiça social, com base nos seguintes princípios: [...] III – função social da propriedade; [...] § 5º: Os planos que envolvem desapropriação para fins de reforma agrária serão aprovados por decreto do Poder Executivo [...]. Mas, como é notório, não basta a uma nação a positivação de direitos, sem qualquer oportunidade e possibilidade de efetivá-los. Neste sentido, apesar de a Constituição de 1967 determinar a condição estrutural de uma função social inerente ao direito de propriedade, não se verificava nos agentes do Estado a postura condizente com a eficácia da função social, não possuindo real interesse na realização de uma reforma agrária, a despeito do clamor popular. Desse modo, os agentes do Estado usurpavam os direitos civis e políticos dos cidadãos, reprimindo qualquer manifestação que reivindicasse a efetivação daquela justiça social programada, como ocorrera com as próprias Ligas Camponesas. Diante disso, parece ser somente com o advento da Constituição Federal de 1988, e a conquista do Estado Democrático de Direito, que a função social da propriedade passa a gozar de alguma efetividade formal117, dado o reconhecimento constitucional da legitimidade da organização e manifestação popular na busca por seus direitos, o que configura, por seu turno, a sua própria função constitucional, o que não significa, senão, “[...] apenas a consequência da necessidade, por todos defendida, de integração da realidade no processo de interpretação”, nos termos da 116 O termo desapropriação para fins de reforma agrária aparecera, de forma inédita, na Emenda Constitucional nº 10, de 9 de novembro de 1964, art. 5º, § 5º. 117 Para o conceito de efetividade formal aqui utilizado, vide item 2.3. 47 concepção de Peter Häberle118, em coordenação com as funções constitucionais eminentemente públicas. Da análise da propriedade em sua determinação social, a primeira questão que se coloca é a da verdadeira superação da noção clássica de direito de propriedade absoluta, quer na versão sacra, quer na versão da ideologia liberal119. Acerca das versões sacra e liberal de propriedade absoluta, que acabam por se confundir, relata o professor Orlando Gomes: “[...] a propriedade foi um dos direitos de mais pronunciado cunho individualista. Considerado direito natural do homem, consistia no poder de usar, gozar, e dispor das coisas de maneira absoluta”120. E complementa Gilberto Bercovici: “[...] a propriedade dos bens é vista como uma manifestação interna do indivíduo. A propriedade é absoluta porque corresponde à natural vocação do indivíduo de conservar e fortalecer o que é seu”121. Da opinião de Orlando Gomes e Gilberto Bercovici é possível verificar a estreita relação entre a noção de direito absoluto, e direito individual. De outro lado, trazendo o direito de propriedade à sua determinação social, ou seja, passando a considerá-lo tãosomente em relação à sociedade na qual é exercido, em outras palavras, dotando-o de uma estrutura de direito humano social, o conceito de função social vem atacar as bases da noção individual e absoluta de direito de propriedade. Talvez o maior significado da funcionalização da propriedade seja a verdadeira condição de afetação social122 que lhe é atribuída. Segundo Celso Antonio Bandeira de Mello, na seara do direito administrativo afetação é a preposição de um bem a um dado destino123. De fato, não é outro o significado da expressão função social senão dar uma destinação social ao exercício do direito de propriedade, o que “[...] traz ao Direito Privado algo até então tido por exclusivo do Direito Público: o condicionamento do poder a uma finalidade”124. Note-se que o conceito jurídico de função expressa um poder-dever característico da atividade pública. Se de um lado o cargo público exerce certo poder político sobre o cidadão, a propriedade, de outro, é fonte de poder econômico e social. 118 HÄBERLE, Peter. Hermenêutica constitucional: a sociedade aberta dos intérpretes da constituição: contribuição para a interpretação pluralista e “procedimental” da constituição. Tradução de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sérgio Fabris, 1997. p. 30. 119 BERCOVICI, op. cit., p. 117. 120 GOMES, Orlando. Introdução ao direito civil. 18. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2001. p. 74. 121 BERCOVICI, op. cit., p. 139. 122 GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na Constituição de 1988. 3. ed. São Paulo: Malheiros, 1997. p. 256. 123 MELLO, Celso A. Bandeira de. Curso de direito administrativo. 12.ed. São Paulo: Malheiros, 2000. p. 728. 124 SUNDFELD apud GRAU, op. cit., p. 255. 48 Ocorre que, assim como na função pública, o poder que emana da propriedade está adstrito a um dever inerente ao seu exercício – na esfera do direito subjetivo do titular, para Eros Roberto Grau, ou à sua própria existência objetiva, independentemente do direito de propriedade de determinado titular, na concepção do francês Léon Duguit, quando afirma: “[...] on verra que la fonction n’est ni un simple droit subjectif, ni une chose, mais simplement une situaction objective”125. Considerando a função social enquanto situação objetiva, Léon Duguit está a atribuirlhe uma condição que antes diz respeito tão-somente do próprio ordenamento, quer dizer, a situação objetiva emana da estrita relação entre a propriedade, em si, e o ordenamento, encarnado na figura do Estado. Tal condição, no entanto, parece adequar-se mais àquelas modalidades de desapropriação por utilidade e necessidade pública que pelo interesse social inerente ao conceito de função social da propriedade, devendo-se ter em mente – senão a oposição – a dissociação entre interesse público e interesse social126, na medida em que este diz respeito è instrumentalização da igualdade material; na intervenção por direção, em busca de determinados fins sociais, em coordenação com o direito privado. Já o interesse público, de outro lado, origina-se na concepção de ordem pública em oposição ao direito privado, neste interferindo de forma apenas excepcional, apenas para a satisfação das demandas do Estado em si, desde o modelo liberal clássico127. De outro lado, compreendendo a função social da propriedade enquanto elemento estrutural do direito de propriedade, Eros Grau indica a natureza de direito subjetivo que ali se verifica – enquanto “[...] permissão jurídica para o uso da facultas agendi”128 – sem qualquer contradição em relação ao próprio dever que emana da condição funcional129, que determina uma finalidade ao exercício do direito, superando a oposição que identifica tão-somente no direito público um poder-dever estritamente vinculado a uma finalidade: Daí uma alteração na própria estrutura da propriedade. Expressão das modernas tendências que caracterizam o tratamento conferido pelo Direito à realidade social, as modernas concepções de propriedade são aplicadas à preservação de uma situação de equilíbrio entre o individual e o social. Por isso que, tendo em vista a sua integração como elemento inerente às estruturas dos direitos de propriedade, a introdução do conceito de função social no sistema que reconhece e garante a propriedade implica a superação da contraposição entre público e privado – isto é, a 125 DUGUIT, Léon. Traité de droit constitutionnel. 3.ed. Paris: A. L. Fontemoing, 1930. p.67. GRAU, op. cit,, 2005. p. 350. 127 Ibid., p. 62-63. 128 Ibid., p. 241. 129 “Não se perca de vista, ademais, que não é a coisa objeto da propriedade que tem a função, mas sim o titular da propriedade. Em outros termos: quem cumpre ou deve cumprir a função embutida na propriedade – isto é, no direito subjetivo – de que é titular é o proprietário da coisa”: GRAU, Eros Roberto. Direito Urbano. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 1983. p. 70. 126 49 evolução da propriedade em sentido social implica uma verdadeira metamorfose qualitativa do direito na sua realização concreta, destinada à satisfação de exigências de caráter social. A propriedade passa, então, a ser vista desde uma prospectiva comunitária, não mais sob uma visão individualista.130 Portanto, a afetação de uma função social não constitui limite negativo ao direito de propriedade, como algo externo que vem cortar-lhe alguma potencialidade da qual o proprietário fica impedido de usufruir. Na verdade, a função social passa a integrar o próprio conceito jurídico de propriedade, atuando já em sua estrutura, “[...] desde uma concepção positiva, isto é, como princípio gerador da imposição de comportamentos positivos ao proprietário”131. Como conclui Eros Grau, “[...] o que atualmente divisamos, nas propriedades impregnadas pelo princípio [da função social], são verdadeiras propriedades-função social e não apenas, simplesmente, propriedades”132. Observe-se que Eros Grau trata tão-somente das propriedades impregnadas pelo princípio da função social, o que indica a existência de propriedades que não sejam impregnadas pela função social. De fato, ao lado de uma função social, há que se admitir a existência de uma função individual da propriedade, conforme sua natureza, e fundamento. Neste sentido, a função individual reveste a propriedade dos bens de consumo – que se esgotam à medida de sua fruição – e sobretudo aquelas cujo fundamento é a garantia da subsistência individual e familiar133. De outro lado, o princípio da função social afeta a propriedade dos bens de produção – na medida em que representam o motor da produção econômica e, assim, estão adstritos aos ditames da ordem econômica constitucional – tendo por fundamento seus fins, serviços e a própria função. Mas cabe ressaltar que, segundo Eros Grau, mediante da noção de fundamento, a função social pode afetar a propriedade individual que esteja excedendo sua função individual. Neste sentido, “entenda-se como excedente desse padrão especialmente a propriedade detida para fins de especulação ou acumulada sem destinação ao uso a que se destina”134. Retornando à inscrição constitucional da função social da propriedade, verifica-se que, à semelhança do que ocorrera com a Constituição de 1946, é fato notório o ambiente de ascensão da organização popular no período que informa a Constituição Cidadã, de 1988. 130 GRAU, op. cit., 2005. p. 243. Ibid., p. 246. 132 Ibid., p. 243. 133 Neste sentido, a Constituição Federal de 1988 exclui a pequena e a média propriedade da hipótese de desapropriação por interesse social, para fins de reforma agrária, desde que seu proprietário não possua outra: CF/88, art. 185, I. 134 GRAU, op. cit., 1997. p. 254. 131 50 Datam desse período, v.g., duas das mais importantes organizações sociais de luta pela reforma agrária, e transformação social, do país, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra – MST, e a Comissão Pastoral da Terra – CPT. Após o golpe militar de 1964, percebe-se que os movimentos sociais agrários quase desapareceram. EM 1978, após digerirem o sucesso dos latifúndios em detrimento da reforma agrária, os trabalhadores retomaram as lutas com movimento que objetivava mais do que a reforma das estruturas fundiárias, almejava derrubar a ditadura e participar do processo para a democratização do país, forma esta de garantir os direitos de todos. Enquanto os operários realizaram greves na região do ABC paulista (que eram proibidas), no campo eram feitas ocupações de terra, por muitas famílias juntas, no mesmo dia e local, iniciando o chamado Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra.135 Na esteira da participação popular organizada, na ocasião da elaboração da própria Carta Política, e nos termos de sua condição dirigente, fora inscrita ali um programa para o direito de propriedade, disposto em um sistema interno em interação com o próprio programa constitucional, representado pela concepção que não ignora a propriedade enquanto direito humano social136; que não tolera o seu uso egoístico137; que a identifica enquanto instrumento de realização da dignidade humana e da justiça social138; e, finalmente, no tangente à propriedade rural, que a compreende a partir de sua inerente conexão com elementos que compõem a produção social da riqueza, quais sejam, os recursos naturais e o trabalho humano, de modo que seja, a propriedade da terra, instrumento do bem-estar social139. 2.2 – E no meio do caminho havia uma pedra: a noção hermenêutica de propriedade produtiva Quando analisado sob uma perspectiva dialética da história e do direito, verificamos que, superada a concepção de propriedade absoluta, deparamo-nos, agora, com a dificuldade em consolidar a compreensão da função social da propriedade a partir de sua multifuncionalidade. De fato, esta parece ser a “tarefa” do momento para o jurista brasileiro, bem como para toda a sociedade. 135 VARELLA, Marcelo Dias. Introdução ao direito à reforma agrária. Leme: Ed. de Direito, 1997. p. 149. CF/88, artigo 5º, caput. 137 CF/88, artigo 5º, XXIII. 138 CF/88, artigo 170, III. 139 CF/88, artigos 184 e186. 136 51 Foi árdua a luta conceitual e concreta pelo reconhecimento de que à propriedade é inerente uma função social, um poder-dever constitucional, em contraposição àquela noção de direito individual e absoluto. Tratando-se do ambiente do direito agrário, por seu turno, há que se reconhecer-lhe, ainda, a condição de preceito fundamental; “elemento fisiográfico donde se abrem todas as implicações sócio-econômicas que cimentam o ordenamento jurídicoagrário”140. Ocorre que, na linha principiológica deste ramo jurídico, com a sua devida dimensão constitucional, a função social da propriedade orienta-se, no dizer de Raymundo Laranjeira, a partir do binômio “produtividade-justiça social”. De fato, verificando a dupla determinação intrínseca à propriedade da terra, qual seja, de ativação econômica e bem coletivo, observa-se que a justiça social figura elemento-meta, enquanto a produtividade caracteriza o elementomeio de realização da função social da propriedade141. De notar que a produtividade constitui elemento de suma importância, desde a sua natureza de ativação econômica, mas não compreende a totalidade da função social inerente à propriedade da terra, e muito menos dela se dissocia. Atualmente, no entanto, aqueles que se escoravam, ainda, sobre os mourões da outrora propriedade absoluta, agora travam, na mesma guerra, nova batalha, qual seja, a redução – verdadeiro esvaziamento – da função social da propriedade à noção de produtividade tãosomente, a despeito da própria literalidade do texto do artigo 186 da Constituição Federal, que determina: A função social é cumprida quando a propriedade rural atende, simultaneamente, segundo graus e critérios de exigência estabelecidos em lei, aos seguintes requisitos: I – aproveitamento racional e adequado; II – utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente; III – observância das disposições que regulam as relações de trabalho; IV – exploração que favoreça trabalhadores.(grifo nosso) o bem-estar dos proprietários e dos É certo, de outro lado, que a redução da função social da propriedade ao requisito da produtividade advém de outra literalidade constitucional, qual seja, o texto do artigo 185, inciso II, que vem perniciosamente configurando, parafraseando o poeta, verdadeira pedra 140 141 LARANJEIRA, op. cit., p. 116. LARANJEIRA, op. cit., p. 134, 171. 52 constitucional no caminho da reforma agrária. De fato, o referido inciso fora redigido da seguinte maneira: Art. 185. São insuscetíveis de desapropriação para fins de reforma agrária: I – a pequena e média propriedade rural, assim definida em lei, desde que seu proprietário não possua outra; II – a propriedade produtiva. (grifo nosso) Como já é notório na seara jusconstitucional-agrária brasileira, agarrados à letra do inciso II do art. 185 da Constituição Federal, de forma absolutamente isolada no ordenamento jurídico pátrio em vigor, aqueles que, outrora, defendiam o absolutismo proprietário, agora, dada a impossibilidade jurídica deste retrógrado “pedido”, identificam na solidão deste inciso constitucional a “Caixa de Pandora” que resguarda o direito de propriedade da afetação multifuncional que a sociedade consagrou com a conquista democrática. Ignorando a hermenêutica própria ao direito agrário, cuja característica, notadamente, assenta-se sobre as bases de uma “profunda textura social”142, e remontando à exegese digna do Código Napoleão, setores conservadores da sociedade brasileira, como a própria Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil – CNA, apoiados sobre o histórico poder político-econômico, ainda se esforçam para afirmar que a propriedade produtiva, ainda que descumprindo as dimensões ambiental, do trabalho e bem-estar, não pode ser desapropriada por interesse social, para fins de reforma agrária. Não é outro o objeto da ação direta de inconstitucionalidade nº 3.865, proposta por aquela Confederação da Agricultura no ano 2007, junto ao Supremo Tribunal Federal143, que visa a declarar a inconstitucionalidade da submissão da produtividade ao princípio da função social, afirmando, justamente, que à propriedade produtiva não é imperativo o cumprimento de sua função social. Decerto, se houvesse a possibilidade jurídica, o pedido seria pela própria inconstitucionalidade da função social da propriedade: É que, atendido o requisito do grau de eficiência em sua exploração, o imóvel, só por este motivo, estará a cobro da expropriação-sanção, na conformidade do disposto no inciso II do artigo 185, independentemente de vir cumprindo, ou não, sua função social, objetivo que será alcançado mediante tratamento especial que a lei específica garantirá à propriedade produtiva, na conformidade do disposto no parágrafo único do referido artigo.144 142 LARANJEIRA, op. cit., p. 32. Vide Anexo. 144 Anexo, p. 05. 143 53 Representa, a referida ADIN, a verdadeira ambivalência do chamado agronegócio145, que se apóia sobre a propaganda e o discurso da modernidade produtiva, e a recentemente incorporada (à propaganda) responsabilidade social, em contraposição, de outro lado, a práticas fundadas sobre uma arcaica estrutura agrária de produção, qual seja, o monocultivo extensivo de produtos agrícolas voltados, em sua grande maioria, para o mercado internacional, em detrimento do próprio desenvolvimento nacional. De notar, neste sentido anacrônico, a semelhança com a descrição acerca da modelo agrário do período colonial: De fato, a legislação avulsa, margeante das Ordenações, deixa transparecer vivamente que só a função econômica da terra colonial interessaria à Coroa, ávida de melhores rendimentos sobre nossas culturas. Por isso mesmo, quando mais importasse a Portugal a proliferação de grandes latifúndios – pois enormes tratos de terra sesmariada eram compatíveis com a lavoura canavieira do litoral e a pecuária extensiva dos sertões – daí se fez tabula rasa das normas legais existentes, sobremaneira as relativas à delimitação de cada sesmaria e as referentes às concessões de mais de uma data. De conseguinte, por virtude de querer avivar a aristocracia latifundiária, estimulando-se desde o Regimento de Tomé de Souza, de 1548, a própria Coroa esbarrondou a intenção primitiva, do ponto de vista social, que era de favorecer, indistintamente, um maior número de pessoas, dentro dos programas de colonização para o Brasil.146 Nestes termos, portanto, de uma concepção agrária que remonta ao desenrolar do período colonial, a CNA propugna pela supressão, no texto infraconstitucional que regulamenta o artigo 186 da Carta Magna147, das expressões que determinam, de maneira lógico-sistemática, que a atividade agrícola seja realizada, unívoca e simultaneamente, de forma racional e eficiente. Demonstrada que se encontra a relevância do fundamento da flagrante ofensa, pelos dispositivos sob enfoque, às normas constitucionais mencionadas, e tendo em vista, ainda, a necessidade da sustação dos efeitos danosos das inúmeras desapropriações de imóveis rurais (63 nos últimos 4 meses – cf. relação anexa) que, sistematicamente, vêm sendo efetuadas sob o critério estabelecido pelos dispositivos legais impugnados, independentemente de serem eles, ou não, considerados produtivos pela Constituição, VEM A AUTORA REQUERER, [...], a concessão de MEDIDA CAUTELAR de suspensão da vigência: a) no texto do artigo 6º da Lei nº 8.629, de 25 de fevereiro de 1993, das expressões: “explorada econômica e racionalmente”, “simultaneamente” e “utilização da terra e”; e, b) no texto do § 1º do artigo 9º do mesmo diploma legal, da expressão: “e de eficiência na exploração”, presentes que se encontram, à evidência, como demonstrado, os requisitos autorizadores da medida”148. (grifos no original) 145 Vide item 3.3, infra. LARANJEIRA, op. cit., p. 07-10. 147 Lei nº 8.629, de 25 de Fevereiro de 1993: Dispõe sobre a regulamentação dos dispositivos constitucionais relativos à reforma agrária, previstos no Capítulo III, Título VII da Constituição. 148 Anexo, p. 08. 146 54 Diante disso, pleiteia a CNA, à revelia da simultaneidade das dimensões da função social da propriedade, que seja reconhecida a incapacidade do modelo do agronegócio em realizar, simultaneamente, exploração agrícola de forma racional, adequada e eficiente. De fato, nos limites do agronegócio, e nas palavras da própria CNA, ou a exploração é racional e adequada – no sentido do processo sócio-produtivo que respeita ao meio ambiente e à preservação dos recursos naturais, aliado ao respeito às normas que regulamentam as relações de trabalho e à garantia da realização bem-estar dos envolvidos naquelas relações sociais de produção – ou, de forma dissociada e excludente, a exploração é eficiente – no sentido da sua produtividade. Nos termos de sua competente função concretizadora, enquanto força social enraizada sobre determinada posição social historicamente ocupada na produção agrária brasileira – e impulsionada, consequentemente, pela concepção de mundo e de direito diretamente informada por aquela posição social, donde transbordam determinados valores sociais imanentes à própria condição humana, o que reivindica à Ciência do Direito a admissão daquela axiologia, que acaba por assumir a forma de verificação ontológica – enquanto força social historicamente posicionada, portanto, os agentes do agronegócio pretendem furtar-se da concretização da norma da função social da propriedade, ao invés de buscarem mecanismos que apontem para a efetiva concretização da função social da propriedade enquanto princípio impositivo nuclear da Constituição Cidadã, direito e garantia fundamental da coletividade149, princípio instrumental e objetivo final a ser atingido pela ordem econômica constitucional, em sua intrínseca determinação reflexiva com a questão ambiental, e com o próprio programa constitucional de existência digna150, concretizado através do trabalho e do bem-estar social; função social que reconhece, finalmente, que a propriedade da terra é meio de produção social de riqueza, e por isso se diferencia do objeto individual do direito de propriedade; função social que admite, juridicamente, a necessidade social da produção agrícola, mas não ignora, sociologicamente, que esta produção é realizada, intrinsecamente, a partir da exploração dos recursos naturais, e fundada sobre as bases do trabalho humano, à medida do processo tecnológico. De fato, ao invés de buscar concretizar tal programa constitucional da propriedade, percebe-se a construção, de uma espécie de hermenêutica estritamente exegética que, ao invés 149 Como afirma Juvelino Strozake, “[...] a função social carrega em seu seio o interesse difuso de toda a coletividade, e, se aliarmos a função social da propriedade à política pública de reforma agrária estabelecida a partir da Constituição federal e leis ordinárias, teremos aí, explicitamente, o interesse coletivo dos trabalhadores sem terra”: STROZAKE, Juvelino José. O acesso à terra e a Lei de Ação Civil Pública. Tese (Doutorado em Direito). Pontifícia Universidade Católica. São Paulo: PUC, 2006. p. 147. 150 GRAU, op. cit, 2005. p. 197. 55 de interpretar a propriedade da terra enquanto elemento do programa constitucional dirigente, sem ignorar o âmbito concreto da questão agrária brasileira, em suas dimensões sociais e ambientais, reduz a concretização do direito de propriedade à literalidade isolada de um inciso, à revelia de todo o ordenamento jurídico brasileiro, vinculado que está ele ao conteúdo do programa constitucional. Ao interpretar que a propriedade produtiva está imune ao cumprimento da função social da propriedade – não pelo clamor constitucional, ressalte-se, mas por condições concretas que se sustentam sobre uma estrutura agrária historicamente concentrada – se está afirmando, de fato, a prevalência do inciso II, artigo 185 da Constituição sobre todo o programa constitucional, fundamentado sobre a existência digna e os valores sociais do trabalho; sobre os objetivos de erradicar a pobreza, a marginalidade, e as desigualdades sociais; sobre o princípio fundamental da função social da propriedade; sobre os direitos sociais que emanam das relações de trabalho, sobre os princípios da ordem econômica, sobre os mandamentos constitucionais referentes à política agrícola e fundiária e, finalmente, sobre as normas que determinam a preservação ambiental151. Agarrar-se ao texto isolado do referido inciso constitucional é ignorar a consagrada interpretação sistemática; é identificar a norma e a própria realização do direito com o texto da lei, ignorando, assim, princípios fundamentais da hermenêutica. Lembrando a metódica de Friedrich Müller, por exemplo, identifica-se no texto da norma um limite negativo que deve sempre ser levado em conta, mas que, por outro lado, deve ser interpretado/aplicado à medida do sistema constitucional, sempre, de modo que o teor literal de uma norma acabe por prevalecer somente da hipótese de não existirem outras normas diretamente referentes à matéria em análise, o que, certamente não o caso da relação que se estabelece entre os artigos 184 a 186 da Constituição de 1988: Muitas vezes, se pode tomar no resultado uma decisão unívoca: em favor do aspecto gramatical, quer dizer, do texto da norma da prescrição “pertinente” e em detrimento dos textos de normas de outras normas que não são pertinentes para o caso, mas foram aduzidas pela via sistemática. Tal decisão se torna imperiosa se o “nexo sistemático” – como frequentemente – não pode ser comprovado de forma cogente. [...] Na sua função negativa, como limite, como limitação das possibilidades de decisão remanescentes na margem de atuação dos resultados parciais concretizados, o aspecto gramatical tem igualmente precedência em caso de conflito com o aspecto sistemático. [...] se, no entanto, a contradição entre os resultados parciais não estiver tão acirrada, se e.g. o aspecto gramatical deixar margem de ação para duas possibilidades, a seleção poderá ser efetuada entre eles com base no ponto de vista 151 VARELLA, op. cit., p. 252-253. 56 sistemático (concretamente fecundo). Neste caso, não teremos um conflito, mas uma relação normal de complementaridade entre os elementos envolvidos.152 Agarrar-se, portanto, ao texto isolado do referido inciso constitucional é negar a condição dirigente que emana da Constituição de 1988, já em sua unidade principiológica. Assim, no âmbito daquela interpretação reducionista do direito de propriedade, não importa a histórica concentração fundiária e a conseqüente concentração de riqueza; não concorre a flagrante degradação do meio ambiente; é indiferente a precarização do trabalho, o descumprimento das normas trabalhistas, ou até mesmo a utilização de trabalho escravo; não admite que cada uma destas questões, ainda que isoladamente, possa ser a causa estrutural da tensão social e dos conflitos fundiários que impedem o alcance do bem-estar no campo. Sob tal concepção, sendo produtiva, a propriedade não tem o dever de cumprir com sua função sócio-ambiental. É inegável a literalidade do inciso II, artigo 185, da Constituição Federal. É sabido, de outro lado, que sua inserção ali foi motivo de ampla e aclamada discussão no Congresso Constituinte153, reflexo da inédita pluralidade de posições sociais que a compunham, dado o momento histórico de mobilização e organização popular que culminou com a conquista do Estado Democrático de Direito. Sim, o texto do inciso II do artigo 185 da Constituição Federal fora redigido e inserido pela mesma bancada congressual que hoje atende pelo nome de “ruralista”, representante e defensora dos interesses do chamado agronegócio. Não há, nem mesmo motivo, para se negar isso. Permita-nos até mesmo, com a devida vênia, mesmo afirmar que este inciso fora inserido, justamente, para garantir a inaplicabilidade do princípio da função social da propriedade, em sua totalidade dimensional. Reside, aí, a sua eficácia, naquele sentido apontado por Eros Grau. Definitivamente, trata-se da pedra constitucional no caminho da concretização da função social da propriedade. Mas, qual o sentido da resignação do poeta, em relação àquela pedra que lhe cruza o caminho? Lamúria, e conformismo, diante de uma pedra irremovível? Mas onde está escrito que a pedra é irremovível? Onde está escrito que é preciso removê-la? A pedra no caminho nos apresenta a instigante constatação da existência de uma contradição na práxis cotidiana, e da necessidade de identificar meios e atuar no sentido de superá-la. Há que se removê-la? Desviar-se, ou lapidá-la? 152 MÜLLER, op. cit., p. 105. FERNANDES, Florestan. Que tipo de República?. 2. ed. São Paulo: Globo, 2007. p. 61; Cf. SOUZA, Marcos Rogério de. Regime jurídico da propriedade produtiva no direito brasileiro. Dissertação (Mestrado em Direito). 169 p., Faculdade de História, Direito e Serviço Social. Franca: UNESP, 2007. 130-132. 153 57 O que há de se fazer com o inciso II do artigo 185 da Constituição de 1988? Removêlo, sob o argumento de inconstitucionalidade, é certo que não, porque não há que se cogitar de normas constitucionais inconstitucionais154. Removê-lo, porque representa um retrocesso normativo155, seria tarefa herculana, dada a composição de forças no Congresso Nacional, sobretudo da bancada ruralista, suas concepções de mundo e de direito, e os respectivos interesses, como resta evidente na ADIN supra mencionada. Desviar-se do referido problema, ignorando sua existência no corpo constitucional, também seria demasiado leviano. Ao que parece, não resta alternativa em relação a essa pedra constitucional, senão lapidá-la. Não resta outra solução para a concretização da função social da propriedade, em sua interação intrínseca ao programa constitucional, senão interpretá-la e aplicá-la nos termos de um método hermenêutico que pugne pela ótima concretização da Constituição. De saída, há que se identificar a diversidade coordenada dos elementos que compõem a estrutura normativa, qual seja, o programa e o âmbito da norma, de modo a admitir que a norma jurídica não se resume à literalidade, e nem mesmo ao texto legal, o que há de afastar, assim, aquele agarramento isolado e desesperado à letra do inciso II do artigo 185 da Constituição. Já reside aqui, neste ponto estritamente técnico, a intensidade jus-sociológica desse famigerado inciso, uma vez que cabe ao jurista – em sentido lato de agente constitucional – definir qual a própria concepção de propriedade produtiva que corresponde ao programa constitucional. Inserida em uma Constituição dirigente, como a Carta Política de 1988, que tem por fundamento a dignidade da pessoa humana e os valores sociais do trabalho; por objetivo fundamental o desenvolvimento nacional em coordenação com a erradicação da pobreza, marginalidade e, sobretudo, das desigualdades sociais; que é fundamentada e orientada pela direção que aponta para a função social enquanto princípio que compõe a própria estrutura do direito de propriedade, questiona-se: qual o sentido da expressão propriedade produtiva? A compreensão do âmbito concreto da norma enquanto elemento intrínseco à sua estrutura interna parece indicar o sentido para encontrar a resposta. De fato, é a partir do fato concreto que se identifica qual o sentido da expressão de que se cogita. Assim, ressurge a questão: uma propriedade é produtiva, nos termos da Constituição dirigente, quando atinge aos graus de utilização e eficiência de exploração da terra, à custa da 154 Vide item 2.3, infra. De fato, apesar de representar um avanço normativo no tangente o status jurídico das normas de direito agrário no ordenamento brasileiro, a Constituição de 1988 também apresenta uma série de retrocessos materiais, no conteúdo de algumas disposições, sendo o mais relevante, o texto do inciso II, do artigo 185. Cf. STOREL FILHO, Antonio Oswaldo et.all. A legislação e os impasses da Política Agrária. Reforma Agrária: Revista da Associação Brasileira de Reforma Agrária – ABRA, vol.32, nº 1, p. 67-84, ago/dez, 2005. 155 58 degradação ambiental? A partir da exploração de trabalho escravo? Da incorporação e utilização de terras pertencentes a comunidades tradicionais? Ao que parece, a expressão propriedade produtiva não se resume ao âmbito econômico, não por motivações subjetivas, mas pelas questões concretas identificadas no âmbito cotidiano da questão agrária brasileira. Admitir-se o contrário seria, no mínimo, irracional, não no sentido filosófico, ou por convicções individuais subjetivas, mas no sentido jurídico da questão: Lei nº 8.629, de 25 de Fevereiro de 1993: Art. 6º Considera-se propriedade produtiva aquela que, explorada econômica e racionalmente, atinge, simultaneamente, graus de utilização da terra e de eficiência na exploração, segundo índices fixados pelo órgão federal competente. (grifo nosso) A expressão propriedade produtiva inserida no texto do artigo 185, inciso II, da Constituição Cidadã diz respeito, portanto, tanto ao requisito econômico, quanto à sua dimensão social. De fato, o próprio requisito econômico é elemento do processo social, na medida em que a produção econômica é produção social da vida. Como nada se produz sem a atividade humana – ainda que observada a tendência à sua redução, mas não extinção, no processo produtivo – e sem matéria-prima, seria lógico deduzir que no processo produtivo seja coordenada, racionalmente, a utilização e exploração destes elementos. Não é outra coisa que determina a Constituição. A propriedade produtiva não se resume, portanto, e de uma vez por todas, à produtividade econômica, adstrita que está, desde o texto legal, à utilização racional e adequada dos elementos que compõem o processo produtivo, quais sejam, os recursos naturais e a força de trabalho, o que já foi chamado de “propriedade socialmente produtiva”156. Tal concepção já fora reconhecida na chamada “Carta de Ribeirão Preto pela Reforma Agrária em Defesa do Meio Ambiente”, elaborada pelos membros do Ministério Público Estadual e Federal, que nos idos do ano de 1999 já afirmavam: 11) Ainda que a produtividade, do ponto de vista estritamente econômico, esteja presente, a propriedade rural poderá ser desapropriada para fins de reforma agrária se descumprido um dos demais requisitos caracterizadores da função social (elemento ambiental ou social).157 A hipótese contrária, quer dizer, da ocorrência de produção que atinja os graus de utilização e eficiência à custa de degradação ambiental e desrespeito às normas referentes às 156 SOUZA, op. cit., p. 137. A Carta reflete as conclusões do Seminário “Meio Ambiente e Reforma Agrária”, realizado no dia 13 de dezembro de 1999, em Ribeirão Preto/SP (fonte xerocopiada). 157 59 relações de trabalho e garantia do bem-estar, representaria o corolário da própria produtividade ilícita, de modo que deve ser considerada, nos termos do artigo 185, inciso II, como improdutividade ficta. O professor Gilberto Bercovici, em parecer elaborado por ocasião de decreto presidencial de desapropriação por interesse social, para fins de reforma agrária, de propriedade improdutiva que descumpria, ainda, a sua função sócio-ambiental, afirma: O próprio conceito de “propriedade produtiva” da Constituição de 1988 não é puramente econômico. A produtividade protegida pelo texto constitucional não é apenas a produtividade econômica, mas esta no que significa socialmente útil, no que contribui para a coletividade, em suma, no que efetivamente cumpre de sua função social.158 Ressalte-se que já neste sentido a concepção de propriedade produtiva deve ser interpretada como elemento do programa constitucional, o que acaba por retomar aquela técnica da interpretação e concretização sistemática, aliada à própria noção da política constitucional, que se orienta pela interpretação/aplicação da norma constitucional sem olvidar a análise das conseqüências sociais de sua concretização. Neste sentido, não há que se cogitar de qualquer antinomia entre os artigos 185 e 186 da Constituição Federal. Ora, se o artigo 185 fala em propriedade produtiva, que é aquela econômica e racionalmente explorada, e o artigo 186 dispõe que o aproveitamento racional e adequado é elemento e dimensão que conforma a função social intrínseca à propriedade, o que há que se buscar, nos termos da concretização estruturante do programa constitucional, é a verificação da propriedade que contemple uma produção econômica, racional e adequada. A propriedade que produz de forma racional e adequada é aquela que atende a sua função social constitucional. Como supra mencionado, a racionalidade e adequação desta produção econômica deve ser verificada junto ao âmbito concreto da norma em questão, qual seja, o princípio da função social da propriedade rural. Observado o âmbito normativo, verificar-se-á que à produção econômica são indissociáveis tanto os recursos naturais quanto o trabalho humano, de modo que a utilização racional e adequada destes elementos de produção condicione a própria noção do direito de propriedade. Assim, a propriedade cumpre a sua função social quando se utiliza, de forma racional e adequada, dos recursos naturais e do trabalho humano. 158 BERCOVICI, Gilberto. Parecer sobre a constitucionalidade da desapropriação por interesse social para fins de reforma agrária de imóvel rural denominado “Fazenda e Castanhal Cabaceiras”. São Paulo, 2005. p. 04 (fonte xerocopiada). 60 Não é outro o sentido da expressão “simultaneamente” do artigo 186 da Constituição Federal, quando apresenta as dimensões que compõem, desde o Estatuto da Terra, a multifuncionalidade da função social da propriedade. Observa-se portanto que aliada ao âmbito concreto, já o programa constitucional afirma que a propriedade produtiva é insuscetível de desapropriação quando atende, simultaneamente, aos requisitos econômicos, ambientais e sociais que compõem, assim, de maneira intrínseca e indissociável, tanto a própria realização da produção como, consequentemente, o conceito de função social que, por seu turno, determina a própria estrutura do direito de propriedade. Neste ponto, há que se render homenagem ao Parecer Conjunto elaborado no âmbito da Consultoria Jurídica do Ministério de Desenvolvimento Agrário159, do Poder Executivo da União, no sentido de firmar entendimento, com força normativa, acerca da relação de complementaridade que se trava entre os artigos 184, 185 e 186 da Constituição Federal, delimitando a noção hermenêutica da expressão propriedade produtiva, constante naquele artigo 185: Diante do exposto e considerando o ordenamento jurídico vigente, nosso parecer alcança as seguintes conclusões: a) Deflui da ordem jurídica positivada que no conceito de função social está contido o conceito de produtividade, mas que no conceito de produtividade também estão contidas parcelas dos conceitos de função ambiental, função trabalhista e função bem estar, isto é, que a função social é continente e conteúdo da produtividade. b) A vedação do art. 185 da CF/88 não pode excepcionar ipso facto o comando do art. 184, senão nos casos em que a produtividade provenha de atividades não contrapostas a vedações legais, e, pois, não pode ser invocada para tutelar os casos em que a produtividade derive de descumprimento de preceitos de regime ambiental e trabalhista, já que, em essência, esses ilícitos, além de impedirem o aperfeiçoamento da função social, viabilizam desincorporação dos ganhos de produtividade correspondentes, expondo o imóvel à desapropriação-sanção inclusive por improdutividade ficta, ou produtividade irracional. c) No contrário senso da expressão “exploração racional”, preceituada no caput do art. 6º da Lei nº 8.629/93 se desenham todas as situações de ilícito possíveis, e previstas em regimes jurídicos próprios, entre elas cada qual que vier a configurar vulneração dos incisos II a IV do art. 186 da CF/88, na tipificação a eles dada pelos parágrafos 2º a 5º do art. 9º da Lei nº 8.629/93. [...] f) Nos casos das alíneas anteriores, a propriedade, embora produtiva do ponto de vista economicista, suscetibiliza-se à desapropriação-sanção de que cuida o art. 184 da Constituição Federal da República Federativa do Brasil, se flagrada como 159 PARECER CONJUNTO/CPALNP~CGAPJP/CJ/MDA/Nº 011/2004 (VAF/JMPJ); CGAPJP – Coordenação Geral Agrária, de Processos Judiciais e de Pesquisas Jurídicas; CPALNP – Coordenação de Processos Agrários, Legislação, Normas e Pesquisas Jurídicas. In: PINTO JR., Joaquim Modesto, FARIAS, Valdez Adriani. Função social da propriedade: dimensões ambiental e trabalhista. Brasília: Núcleo de Estudos Agrários e Desenvolvimento Rural - NEAD, 2005. p. 48-49. 61 descumpridora das outras condicionantes da função social elencadas no art. 186, II, III e IV da CF/88, (II – utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente; III – observância das disposições que regulam as relações de trabalho; IV – exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores). Vale ressaltar a construção hermenêutica constante da alínea “b” do referido Parecer, quando delimita o entendimento de mecanismo lógico que identifica a improdutividade ficta, ou produtividade ilícita ou irracional. Nos termos do Parecer, tal compreensão – dotada de força normativa no âmbito de atuação da autarquia federal competente para a realização da reforma agrária, qual seja, o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária - INCRA – indica que sejam depurados dos cálculos que visam a aferir os graus de utilização e eficiência (GUT e GEE) o “quantum obtido à custa da ilicitude”160. Isso significa que não há que se declarar a propriedade produtiva nos termos restritos da aferição matemática dos índices referentes à produção econômica, sendo imperativo ao órgão federal competente pelo processo de desapropriação desconsiderar, por ocasião da fiscalização do cumprimento da função social da propriedade, a medida em que a produtividade fora alcançada, justamente, através do desrespeito às dimensões ambiental, do trabalho e do bem-estar. De notar que este próprio Parecer já emana de uma preocupação acerca da eficácia das diferentes dimensões da função social. A despeito daquela indissociabilidade intrínseca das dimensões econômica, ambiental e social do direito de propriedade rural-função social, verifica-se, na prática, que a eficácia da norma do artigo 186 da Constituição Federal varia de intensidade de acordo com o inciso, ou seja, da dimensão de que se trata. De fato, ao longo da presente pesquisa, desenvolvida a partir de uma atuação prática na advocacia junto à temática da desapropriação para fins de reforma agrária; aliada ao estudo da doutrina jus-agrarista, trabalhista e constitucional; em coordenação com a análise das disposições normativas pertinentes ao tema, desde o núcleo constitucional às instruções normativas editadas pelo Poder Executivo; culminando na observação da jurisprudência, pôde-se constatar, enfim, e com pesar, que a dimensão do trabalho, da função social da propriedade rural, não possui qualquer eficácia material na realidade agrária brasileira, tema que será desenvolvido no item que segue. 160 PINTO JR., FARIAS, op. cit., p. 43. 62 2.3 - A questão da eficácia das dimensões do trabalho e bem-estar, no princípio da função social da propriedade A análise acerca da noção hermenêutica de propriedade produtiva não se exauri em si mesma. De fato, ela foi realizada justamente porque, dada a força político-econômica e o conseqüente prestígio social dos agentes que se agarram àquela interpretação isolada e literal do texto do artigo 185, inciso II, da Constituição Federal, a questão da produtividade resumida à sua dimensão estritamente econômica vem representando, na prática, um óbice absoluto que se erige ante a concretização do programa constitucional, especialmente no tangente à sua política agrícola e fundiária, de modo que a própria função social da propriedade venha sendo identificada e resumida, ao menos junto aos Poderes da República, à noção de produtividade estritamente econômica, o que configura evidente equívoco. Partindo desta concepção, todos os Três Poderes da República, cada um nos termos de sua competência específica, vêm sonegando à sociedade brasileira o direito de ver cumprido e cumprir, ela mesma, o programa constitucional, uma vez que esteja, este programa, estritamente vinculado à concretização, no Brasil, do princípio constitucional impositivo e politicamente conformador da função social da propriedade rural, em suas múltiplas e indissociáveis dimensões econômica, ambiental e social – nesta última compreendidas as dimensões do trabalho e bem-estar.. Ao reduzir e limitar a função social da propriedade à dimensão estritamente econômica, resumindo e identificando o seu cumprimento com o estrito alcance dos graus de utilização e exploração do solo, ignorando os demais fatores que compõem a própria produção, como os recursos naturais e o trabalho humano, tem-se por esvaziado o sentido e a própria eficácia das demais dimensões que compõem, frise-se, de maneira indissociável – a Constituição diz simultaneamente – a função social da propriedade. A questão da eficácia merece, aqui, uma breve delimitação conceitual, dada a diversidade de concepções e a complexidade de conceitos que compõem o tema. Na presente dissertação, a eficácia é utilizada em sentido finalístico, qual seja, a efetiva realização, enquanto resultado, dos fins que foram propostos pelo programa da norma. Na concepção de Eros Roberto Grau, a eficácia “[...] designa o modo de apreciação das conseqüências das normas jurídicas e de sua adequação aos fins por elas visados”161. 161 GRAU, op. cit., 2005. p. 324. 63 De outro lado, José Afonso da Silva trata do efetivo cumprimento da norma sob o termo eficácia social, que se identifica, segundo o constitucionalista, com o conceito de efetividade. À eficácia social soma-se a eficácia jurídica, que diz respeito, por seu turno, às condições da norma em produzir efeitos jurídicos, quer dizer, da capacidade do ordenamento normativo, como um todo, de produzir os efeitos almejados pelo programa específico da norma de que se trata: O alcance dos objetivos da norma constitui a efetividade. Esta é, portanto, a medida da extensão em que o objetivo é alcançado, relacionando-se ao produto final. Por isso é que, tratando-se de normas jurídicas, se fala em eficácia social em relação à efetividade, porque o produto final objetivado pela norma se consubstancia no controle social que ela pretende, enquanto a eficácia jurídica é apenas a 162 possibilidade de que isso venha a acontecer. A diferença entre eficácia jurídica e social situa-se, portanto, na medida do resultado concreto do programa da norma, ou seja, no alcance de sua concretização. Ambas são momentos distintos de um mesmo processo de concretização da norma. A eficácia jurídica refere-se à medida indicadora de que o ordenamento jurídico, compreendido nos termos das competências específicas e interdependentes163 dos Três Poderes da República, está normativamente preparado e aparelhado para aplicar a norma. Já no que diz respeito à própria função concretizadora dos agentes públicos, em suas competências constitucionais, Eros Grau, apoiado nas doutrinas francesa e mexicana, distuingue-as em efetividade formal e efetividade material164: Antoine Jeammaud, de um lado, Oscar Correas, de outro, examinando o tema da efetividade na aplicação das normas por parte dos órgãos do Estado, a classifica em: a) efetividade jurídica (Jeammaud)/ efetividade formal (Correas) - que se manifesta quando realizada a conformidade de uma situação jurídica concreta ao modelo que constitui a norma [...]; ou - que se manifesta quando tiver sido produzida a norma individual que interpreta ou atualiza a norma aplicada; b) efetividade material (Jeammaud e Correas) - que se manifesta quando realizada a conformidade da situação de fato à situação jurídica outorgada ou imposta ao sujeito mercê da efetividade jurídica da aplicação da norma (Jeammaud); ou - que se manifesta quando tiver sido produzida a conduta requerida pela norma individual. 162 SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das normas constitucionais. 7. ed. São Paulo: Malheiros, 2008. p. 66. GRAU, op. cit., 2005. p. 321. 164 GRAU, op. cit., 2005. p. 324-325 163 64 Para evitar maior confusão entre os termos, adotaremos aqui a noção de efetividade formal e efetividade material. Ambas são estritamente vinculadas à própria atuação dos agentes constitucionais, em especial os agentes públicos em suas funções concretizantes, quer dizer, são verificadas na medida da atuação dos agentes, não dos mecanismos disponíveis para a sua atuação (eficácia jurídica), e nem mesmo do alcance e verificação dos resultados almejados (eficácia). Complementando o processo de concretização, no tangente à eficácia normativa, encontramos o conceito de efetividade material, o qual, finalmente, diz respeito à efetiva aplicação da norma através da atuação pública, ou, de outro lado, efetivo cumprimento de seu programa pela sociedade, em sua função concretizadora. Da interação entre estes dois momentos, quais sejam, da efetividade formal e material, nos termos da concepção de Eros Grau, surge a possibilidade de se atingir a eficácia da norma. Na presente dissertação, utilizaremos, justamente, da relação que se trava entre os momentos da eficácia jurídica (José Afonso da Silva), da afetividade formal e material (Oscar Correas) e a conseqüente eficácia. No tangente à função social da propriedade, a questão da eficácia demonstra-se em toda a sua complexidade conceitual. De saída, já foi mencionada a própria diferenciação de intensidade, sobretudo no tangente à efetividade material, da eficácia do referido princípio, à medida específica de cada uma de suas dimensões. Observe-se, nesse sentido, que o objeto deste estudo orienta-se pela análise das dimensões do trabalho e bem-estar, dada a impossibilidade em conseguir incorporar, a contento, a análise da dimensão ambiental, que merece estudo específico. Ressalta-se, no entanto, que de maneira indireta e incidental, dada a própria indissociabilidade das dimensões da função social, fora possível constatar que os problemas a seguir identificados em relação à eficácia das dimensões do trabalho e bem-estar comunicamse à própria eficácia da dimensão ambiental, no sentido da verificação de que estas três dimensões – ambiental, do trabalho e bem-estar – padecem de semelhantes omissões na esfera da efetividade material, que acabam por revelar-se verdadeira inércia do poder público – em todas as suas esferas, excetuadas algumas condutas e posicionamentos específicos – e conseqüente inconstitucionalidade de sua atuação, no tangente à função social da propriedade. Diante disso, afirma-se: as dimensões ambiental, do trabalho e bem-estar, da função social da propriedade rural, não possuem eficácia, no sentido de que o seu descumprimento não vem produzindo efeitos na esfera da política agrícola e fundiária, o que configura verdadeira inconstitucionalidade por parte do poder público e dos grandes proprietários de terra. 65 Faz-se mister ressaltar, no entanto, que não se trata aqui de ausência dos pressupostos de aplicabilidade da norma constitucional referente à função social da propriedade rural. De fato, sendo norma constitucional, a função social já adquire vigência e aplicabilidade desde a promulgação da Constituição. Constando, ainda, do rol dos direitos e garantias fundamentais, o princípio da função social da propriedade já nasce dotado de aplicabilidade imediata, nos termos do § 1º, do artigo 5º da Constituição. Cumpre, portanto, verificar quais os termos dessa aplicabilidade imanente à função social da propriedade. À época da promulgação da Constituição, pode-se afirmar que o princípio da função social da propriedade fora dotado de eficácia contida, e aplicabilidade imediata, nos termos da concepção de José Afonso da Silva165. A aplicabilidade imediata decorre, como supra mencionado, já daquela inscrição no rol dos direitos e garantias fundamentais, a despeito, data vênia, da própria jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, que chegou a afirmar a impossibilidade de sua aplicação ante a inexistência de lei que a regulamentasse: A inexistência das leis reclamadas pela Carta Política (art. 184, § 3º e art. 185, n.I) impede o exercício, pela União Federal, do seu poder de promover, para fins de reforma agrária, a modalidade especial de desapropriação a que se refere o texto constitucional (art. 184). (MS 21.348, Rel. Celso de Mello, julgamento em 2-9-93, 166 DJ de 8-10-1993). A eficácia contida advém da relação entre o programa e o âmbito da norma, na medida em que o programa indica que normatividade posterior virá delimitar o âmbito de aplicação da norma em questão. A norma constitucional de eficácia contida é imediatamente aplicável, mas lei posterior vem definir-lhe quais os termos “exatos” – na medida do possível – de sua concretização, ou seja, vem fornecer elementos para orientar a interpretação e aplicação da norma. Diferenciam-se, portanto, das normas de eficácia plena, na medida em que preveem a necessidade/possibilidade de uma regulamentação futura, mas a elas assemelham-se, à medida da aplicabilidade direta e imediata. Não se identificam, de outro lado, as normas de eficácia contida, com as de eficácia limitada, porquanto estas, na visão do mestre constitucionalista, possuem aplicabilidade mediata, e indireta, uma vez que possuem, justamente, uma eficácia limitada, reduzida, que 165 SILVA, op. cit., p. 113. Julgado selecionado pela Coordenadoria de Divulgação de Jurisprudência, do Supremo Tribunal Federal, In: Brasil. Supremo Tribunal Federal (STF). Desapropriação para reforma agrária. Brasília: Secretaria de Documentação, Coordenadoria de Divulgação de Jurisprudência, 2007. p. 18-19. 166 66 será ampliada pela norma regulamentadora. Neste exato sentido, qual seja, da previsão já textual de regulamentação futura, as normas de eficácia contida assemelham-se às de eficácia limitada. Mas a semelhança resume-se estritamente a essa previsão. Diferenciam-se, o que é mais importante, pelo fato de a regulamentação de que se cogita representar uma contenção de sua aplicabilidade, de modo que a eficácia da norma constitucional seja contida pela legislação, ao passo que, de outro lado, no tangente às normas de eficácia limitada, esta regulamentação vem, justamente, ampliar a sua aplicabilidade. Isso implica o surgimento de um grupo de normas constitucionais diferentes das de eficácia plena e das de eficácia limitada, exigindo tratamento à parte, porque, conquanto se pareçam com aquelas (são de aplicabilidade imediata) sob o aspecto da aplicabilidade, delas se distanciam pela possibilidade de contenção de sua eficácia, mediante legislação futura ou por outros meios; e, se, se assemelham às de eficácia limitada pela possibilidade de regulamentação legislativa, destas se afastam sob o ponto de vista da aplicabilidade e porque a intervenção do legislador tem sentido exatamente contrário: restringe o âmbito da sua eficácia e aplicabilidade, em vez de ampliá-lo, como se dá com as de eficácia limitada.167 A lei infra-constitucional vem, portanto, conter, restringir, delimitar, controlar a aplicação da norma constitucional que necessita de alguma regulamentação específica e talvez minuciosa. Note-se que a lei infra-constitucional não vem instituir a validade, nem mesmo a eficácia da norma constitucional. Esta já é dotada de validade e eficácia. Ela já é capaz de produzir efeitos jurídicos, nos termos da eficácia jurídica. Mas ainda nos termos desta eficácia jurídica, vem a lei infra-constitucional não conferir-lhe eficácia, mas delimitar-lhe a eficácia. De fato, “enquanto o legislador ordinário não expedir a normação restritiva, sua eficácia será plena”168. Ocorre que a função social da propriedade, especificamente, enquanto norma constitucional de eficácia contida, nos termos do caput do artigo 186, já nasceu regulamentada pelo Estatuto da Terra, que fora recepcionado pela Constituição de 1988. Mais certo, no entanto, é que a própria Lei nº 8.629/93 veio aprimorar tal regulamentação. De fato, é na Lei nº 8.629/93 – que, nos termos do seu preâmbulo, “dispõe sobre a regulamentação dos dispositivos constitucionais relativos à reforma agrária, previstos no Capítulo III, Título VII, da Constituição” – que se depositavam as esperanças de avanço em relação aos incisos III e IV do artigo 186 da Constituição, o que também parece não ter acontecido. De fato, após copiar o texto constitucional do artigo 186 ao regulamentar o instituto da função social da propriedade rural, a referida Lei dedica um tímido parágrafo à 167 168 SILVA, op. cit., p.104. Ibid., p. 104. 67 regulamentação da dimensão do trabalho, e outro à dimensão do bem-estar, o que nos parece insuficiente: Lei Federal nº 8.629/93: Art. 9º: A função social é cumprida quando a propriedade rural atende, simultaneamente, segundo graus e critérios estabelecidos nesta Lei, aos seguintes requisitos: [...] III – observância das disposições que regulam as relações de trabalho; IV – exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores. [...] § 4º: A observância das disposições que regulam as relações de trabalho implica tanto o respeito às leis trabalhistas e aos contatos coletivos de trabalho, como às disposições que disciplinam os contratos de arrendamento e parceria rurais. § 5º: A exploração que favorece o bem-estar dos proprietários e trabalhadores rurais é a que objetiva o atendimento das necessidades básicas dos que trabalham a terra, observa as normas de segurança do trabalho e não provoca conflitos e tensões sociais no imóvel. § 6º: A constatação inequívoca, nos termos e condições previstos em lei, do emprego de trabalho escravo importará em confisco do imóvel. (VETADO) Diante dessa discutível regulamentação do artigo constitucional, daquela condição dirigente da Constituição emana a questão acerca da eficácia jurídica dos incisos III e IV do artigo 186 da CF/88, em face da possibilidade da Lei Federal nº 8.629/93, que veio determinar os "critérios e graus de exigência”169 para o cumprimento da função social da propriedade, padecer de inconstitucionalidade por omissão parcial ao regulamentar e disciplinar tais dispositivos. Ao analisar o texto desta Lei Federal, verifica-se que o inciso I, do artigo 186 da Constituição Federal, foi minuciosamente regulamentado nos termos dos “graus de utilização da terra e de eficiência na exploração, segundo índices fixados pelo órgão federal competente”170, mediante um sistema normativo que disciplina os graus de utilização da terra (GUT) e de eficiência na exploração (GEE) ao longo de sete parágrafos de seu artigo 6º, complementado, ainda, pelos cinco incisos do artigo 10; enquanto os referidos índices 169 170 Constituição Federal, artigo 186, caput. Lei Federal nº 8.629/93, artigo 6º, caput. 68 receberam nova disciplina pelo artigo 11, vez que já haviam sido fixados pela Instrução Especial INCRA nº 19/1980171. De modo contrário, a regulamentação dos incisos III e IV do artigo 186 da Constituição da República ficou restrita aos §§ 4º a 6º, do artigo 9º da Lei Federal 8.629/93 – tendo sido, ainda, o § 6º vetado por inconstitucionalidade – o que configura omissão parcial do Poder Legislativo, à medida da insuficiência de sua prestação constitucional172, no caso em tela. Surge, desse modo, a necessidade de avaliar a eficácia jurídica com que foram regulamentados os critérios para atender aos requisitos constitucionais do inciso em questão. Constata-se que o dispositivo infra-constitucional quedou-se inerte, portanto, quando deveria disciplinar os graus referentes àqueles critérios, bem como o método de sua aferição, somado à hipótese da própria ausência de fixação da competência administrativa, ao limitar-se à expressão “órgão federal competente”173, o que acaba por suscitar um possível conflito de competência na esfera administrativa da União, “[...] haja vista vozes que peroram a incompetência do órgão federal executor da política fundiária e reforma agrária em assuntos ambientais ou trabalhistas”, em que pese entendimento contrário174. De fato, a despeito de o Pretório Excelso já haver afirmado que o artigo 6º da Lei Federal nº 8.629/93 conferiu eficácia total ao artigo 186 da Constituição Federal175, tal afirmação assenta-se, no entanto, em decisão que dirimia a constitucionalidade tão-somente dos incisos I e II, § 2º, do artigo 6º da Lei Federal nº 8.629/93176, que remontam, por seu turno, novamente ao inciso I do art.186, da CF/88, e, portanto, tão-somente à produtividade. 171 RAMOS, Pedro. Índices de rendimento da agropecuária brasileira. Brasília: Ministério do Desenvolvimento Agrário: NEAD, 2005. p. 24. 172 “Configura-se omissão legislativa não apenas quando o órgão legislativo não cumpre o seu dever, mas, também, quando o satisfaz de forma incompleta”: MENDES, Gilmar Ferreira. Direitos fundamentais e controle de constitucionalidade: estudos de direito constitucional. 2. ed. São Paulo: Celso Bastos Editor, 1999. p. 66. 173 Lei Federal nº 8.629/93, artigo 2º, caput: “A propriedade rural que não cumprir a função social prevista no artigo 9º é passível de desapropriação [...]; § 2º - Para os fins deste artigo, fica a União, através do órgão federal competente, autorizada a ingressar no imóvel de propriedade particular para levantamento de informações [...]” (grifo nosso). 174 “De nossa parte não há dúvidas de que a competência para proceder à fiscalização do cumprimento das condicionantes da função social dos imóveis rurais é do órgão federal executor da reforma agrária [Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária]” (PINTO JR., FARIAS, op. cit., p. 37, grifo do autor). 175 Mandado de Segurança nº 23.312/ PR, STF, Pleno, 16-12-99, DJ 25-2-00: “Ementa: Mandado de Segurança. Desapropriação de imóvel rural para fim de reforma agrária. [...] 4. Esta Corte já decidiu que o artigo 6º da Lei nº 8.629/93, ao definir imóvel produtivo, a pequena e a média propriedade rural e a função social da propriedade, não extrapola os critérios estabelecidos no artigo 186 da Constituição Federal; antes, confere-lhe eficácia total (MS nº 22.478/ PR, Maurício Corrêa, DJ de 26~9~97)”. 176 Mandado de Segurança nº 22.478/ PR, STF, Pleno, 30-6-97, DJ 26-9-97: “Ementa: Desapropriação por interesse social para fins de reforma agrária. Inconstitucionalidade do art. 6º, § 2º, incisos I e II da Lei 8.629/93. Alegação improcedente”. 69 Note-se que o problema aqui identificado possui natureza sobremaneira pragmática, talvez podendo ser interpretado por contraditório. Isto porque a textura aberta dos parágrafos que regulamentam as dimensões do trabalho e bem-estar dá ensejo a uma interessante e não menos importante interpretação da gama de situações que signifiquem o descumprimento da função social da propriedade. Neste sentido, devem ser objeto de desapropriação para fins de reforma agrária as fazendas onde há o emprego de trabalho assalariado sem carteira assinada e outros direitos trabalhistas cotidianamente sonegados aos trabalhadores rurais. Para além disso, devem ser desapropriados, ainda, imóveis onde não se constate a adequação às normas pertinentes à segurança do trabalhador, e à redução dos riscos inerentes ao trabalho – de responsabilidade do proprietário, desde o art. 7º, XXII, da Constituição Federal – e imóveis que não garantam as necessidades básicas dos trabalhadores, como é o flagrante caso das propriedades de canade-açúcar extremamente produtivas, que levaram à não menos extremada situação que causou a morte, por exaustão no trabalho, de cortadores de cana no estado de São Paulo177. Isto tudo, ressalte-se, sem olvidar a desapropriação de fazendas flagradas com a prática de trabalho escravo. Além disso, finalmente, deveriam ser desapropriados imóveis que constituam motivo de tensão e conflito social, quer pelo descumprimento, justamente, de qualquer das dimensões da função social da propriedade, quer por outro motivo, ainda que, aparentemente, fundado em situação “estritamente legal”, como a aquisição por empresa transnacional, v.g., de propriedade pertencente a território de comunidades tradicionais ou indígenas178; ou a sua grilagem – o que, de plano, já afasta o próprio instituto da desapropriação, sobretudo por prévia e justa indenização; ou a própria desapropriação de comunidades inteiras para projetos de obras para fins de infra-estrutura, antes identificados com o desenvolvimento nacional, mas ora, em nova forma, pertinentes à expansão produtiva de empresas transnacionais, como barragens para hidroelétricas. Talvez agora se revista de sentido a pragmática crítica aqui exposta: estando as situações de descumprimento da função social do trabalho e do bem-estar, na função social da propriedade, de tal modo evidentes, e gozando de plena eficácia jurídica, verifica-se, na 177 SILVA, Maria Aparecida Moraes. Se eu pudesse, eu quebraria todas as máquinas. In: ________; ANTUNES, Ricardo (Orgs.). O avesso do trabalho. São Paulo: Expressão Popular, 2004. p. 48. 178 “Uma análise do professor Alfredo Wagner de Almeida sobre os dados dos conflitos por terra no ano de 2006 identificou que em torno de 20% dos conflitos ocorrem envolvendo comunidades tradicionais, indígenas, quilombolas, ribeirinhos e outros”: CANUTO, Antonio. O agronegócio avança sobre novos territórios e alimenta a violência. In: Direitos Humanos no Brasil 2007: Relatório da Rede Social de Justiça e Direitos Humanos. São Paulo: Rede Social de Justiça e Direitos Humanos, 2007. p. 36. 70 esteira, a conseqüente concretização da norma do art. 186 da Constituição Federal, no sentido da desapropriação dos imóveis rurais flagrados em tais situações? Recentemente, com o intuito de solucionar a celeuma acerca da competência do INCRA para a verificação do descumprimento daquelas dimensões ambiental e social da função social da propriedade, além de já representar uma oportunidade de, finalmente, regulamentar os graus e critérios que informam qual a medida em que se incorre em tal descumprimento, de modo a não banalizar o instituto da desapropriação por interesse social, para fins de reforma agrária, foi editada a Norma de Execução nº 83, de 27 de maio de 2009, da qual transcrevemos o Capítulo referente à “vistoria e fiscalização” do cumprimento da função social da propriedade rural: NORMA DE EXECUÇÃO nº 83, de 28 de Maio de 2009 CAPÍTULO V DA VISTORIA DE FISCALIZAÇÃO Seção I Do Cumprimento da Função Social Art. 7º O Incra é o órgão federal competente para, na forma do § 2º do artigo 2° da Lei Nº 8.629/93, verificar o cumprimento da função social da propriedade rural, prevista no artigo 9º da mesma Lei. Art. 8º Conforme o artigo 9º da Lei Nº 8.629/93 a função social é cumprida quando a propriedade rural atende, simultaneamente, segundo graus e critérios estabelecidos na mesma lei, os seguintes requisitos: I. aproveitamento racional e adequado; II. utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente; III. observância das disposições que regulam as relações de trabalho; IV. exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores. [...] § 4º A observância das disposições que regulam as relações de trabalho implica tanto o respeito às leis trabalhistas e aos contratos coletivos de trabalho, como às disposições que disciplinam os contratos de arrendamento e parceria rurais, devendo complementarmente ser consultado o Cadastro de Empregadores, instituído pela Portaria/MTE No- 540 de 15 de outubro de 2004, no portal do respectivo Ministério na internet. § 5º A exploração que favorece o bem-estar dos proprietários e trabalhadores rurais é a que objetiva o atendimento das necessidades básicas dos que trabalham a terra, observa as normas de segurança do trabalho e não provoca conflitos e tensões sociais no imóvel. § 6º O indício ou a constatação de irregularidades referentes à legislação ambiental, trabalhista, fiscal, de registro público e quaisquer outros serão comunicados aos órgãos fiscalizadores competentes. (grifo nosso) 71 Como se pode observar, a norma executória em questão vem regulamentar a Lei nº 8.629/93, que, por seu turno, regulamentara o art. 186 da Constituição Federal de 1988. É inegável, de um lado, o avanço do texto supra, trazendo menção expressa à competência do INCRA para a lida com multifuncionalidade da função social (art. 7º). No entanto, causa surpresa a leitura do referido texto, na medida em que se verifica a cópia do art. 6º, §§4º e 5º da Lei 8.629/93, ao invés de regulamentá-los. Ao que parece, perdeu o Poder Executivo da União a oportunidade de conferir eficácia jurídica irrecusável às dimensões do trabalho e bem-estar da função social da propriedade. Tais dimensões foram regulamentadas pelos §§ 4º e 5º do art. 8º da normativa supra, nos exatos termos da redação dos §§ 4º e 5º, do art. 6º da Lei nº 8.629/93. Constatada a cópia do texto da Lei nº 8.629/93, adiante encontramos, no artigo 8º, § 4º, da Normativa a inserção da sentença: “[...] devendo complementarmente ser consultado o Cadastro de Empregadores, instituído pela Portaria/MTE Nº 540 de 15 de outubro de 2004, no portal do respectivo Ministério na internet”. Sabe-se que o referido cadastro lista as propriedades rurais flagradas com o ilícito do trabalho escravo. No entanto, até então, o referido cadastro não surte qualquer efeito jurídico em relação ao cumprimento da função social da propriedade rural, nos termos do capítulo constitucional da Política Agrícola e Fundiária e da Reforma Agrária; quer dizer, não demonstrou força normativa para desapropriar, nestes termos, a propriedade que se utiliza de trabalho escravo. Qual o sentido da consulta complementar ao cadastro referido? Quais os efeitos dessa consulta? Quais os critérios? O que ocorre se a propriedade inspecionada encontrar-se no referido cadastro? Será considerada descumpridora da função social do trabalho rural? Possuiria, o cadastro, a natureza jurídica de certa perda da primariedade, de modo que a simples inscrição não incorre no descumprimento? O descumprimento caracteriza-se, portanto, a partir do segundo flagrante do trabalho escravo? E o restante das situações em que há o descumprimento da dimensão do trabalho? O descumprimento da dimensão trabalho identifica-se e restringe-se à prática do trabalho escravo? Existiriam outras situações de degradação das condições de trabalho, quando ausentes os elementos que caracterizam o trabalho escravo contemporâneo, que significariam o descumprimento da dimensão do trabalho rural da função social, sobretudo no sentido do programa constitucional do trabalho rural179? 179 Vide capítulo III. 72 Partindo do limite normativo, ainda no tangente ao trabalho escravo, considerando-se que, finalmente – 21 anos após a promulgação da Constituição Federal, e 45 anos após a promulgação do Estatuto da Terra – admite-se expressamente que a constatação da utilização de trabalho escravo, através dos critérios utilizados pelo Ministério do Trabalho, dão ensejo à desapropriação por interesse social, para fins de reforma agrária, algo de suma importância para o próprio programa constitucional do trabalho rural, resta ainda uma última pergunta que, no entanto, não deve servir à paralisia da concretização desta normativa, ressaltando-se que o questionamento vem no sentido da superação de entraves, não de sua edificação: qual o grau de descumprimento que dá ensejo à desapropriação que se cogita? Vale ressaltar que o ilícito do trabalho escravo tem gerado conseqüências no âmbito penal e multas na esfera administrativa, mas, por enquanto, não surtiu efeitos para desapropriar o criminoso revestido na condição de proprietário rural, o que compete à Lei 8.629/93, e espera-se seja superado pela prática do Poder Executivo Federal através da Norma de Execução nº83/2009, e a conseqüente concretização, em última instância, de competência do Judiciário. De notar que não se fala aqui em confisco, como propõe a PEC do Trabalho Escravo, mas em desapropriação, nos moldes do art. 184 e 186, inciso III, da Constituição Federal. Ressalte-se que o tom desta crítica e da própria consideração acerca da omissão parcial de que se trata não possui outra conotação senão de resignação, pela perda da oportunidade de uma vez por todas regulamentar a norma constitucional em questão, de modo a conferir maior potência à concretização do programa constitucional do trabalho rural. Note-se, no entanto, que se fala aqui em perda de potência, porém jamais de eficácia jurídica, no sentido da obrigatoriedade em serem observadas as normas descritas acima, ainda que hipoteticamente insuficientes. Na verdade, a resignação surge é da postura que se abriga naquela omissão argüida para afirmar que não há meios de se realizar o processo administrativo de desapropriação por interesse social, para fins de reforma agrária, com fundamento no descumprimento das dimensões do trabalho e bem-estar da função social da propriedade, porque não se sabe quais os verdadeiros critérios de aferição e do quantum, quer dizer, qual o grau em que este descumprimento motiva a desapropriação de que se cogita180. 180 Em verdade, admite-se a própria necessidade em se realizar uma reforma agrária ampla e estrutural, atingindo o próprio modelo de produção social no campo – e por que não na cidade – mas o argumento aqui centra esforço em garantir bases e critérios inafastáveis, ainda que de caráter meramente jurídico, à motivação da desapropriação por descumprimento da dimensão do trabalho. 73 De fato, aliado à prática do trabalho escravo, que já evidencia, de saída, o descumprimento das dimensões do trabalho e do bem-estar da função social da propriedade, há que se questionar se não existiriam outras situações em que há o descumprimento da norma dos incisos III e IV do art. 186 da Constituição Cidadã. Neste sentido, cumpre explorar qual o significado deste texto normativo, o que significa realizar sua analise enquanto programa constitucional do trabalho rural, o que será objeto do capítulo seguinte. Ressalte-se que a presente análise não parte de outro ponto, senão já da concepção de que o artigo 186 da Constituição Federal possui plena eficácia jurídica, mas não ignora que a efetividade formal e material ainda deixam a desejar. Isso porque esta efetividade diz respeito à própria concretização do referido artigo, pelos agentes públicos em suas funções constitucionais, ao passo que a eficácia jurídica diz respeito, a nosso ver, às condições de aplicabilidade da norma, à sua capacidade de produzir efeitos. Neste último sentido, verificase que as dimensões do trabalho e bem-estar, da função social da propriedade, são plena e juridicamente eficazes e aplicáveis. No entanto, não se observa, sobretudo na esfera do Poder Executivo, prática que aponte no sentido da concretização dos incisos III e IV do artigo 186, nos termos da efetividade material da sua específica competência e função constitucional, determinada desde o artigo 184. De fato, para além daquela possível insuficiência legislativa no tangente à delimitação dos graus e critérios que determinam o efetivo descumprimento da função social do trabalho e do bem-estar, não há que se negar a existência de mecanismos normativos, na esfera do Poder Executivo da União, a saber, do Ministério do Trabalho e Emprego, que já identifiquem o efetivo descumprimento da função social do trabalho e do bem-estar no âmbito da propriedade rural. Ressalte-se que, neste sentido, a insuficiência pode ser legislativa, porém não normativa, o que certamente confere plenitude à eficácia jurídica da norma em questão. É de conhecimento notório a existência de instrumental, nos termos de mecanismos normativos e a própria estrutura tecnocrática, ainda que insuficiente, à disposição do Poder Executivo para a fiscalização do cumprimento das disposições que regulam as relações de trabalho, e mesmo da exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores. O questionamento que ecoa, nesse sentido, é o seguinte: por que, então, até o momento, todo este instrumental nunca foi utilizado de modo a concretizar a norma da desapropriação por interesse social, para fins de reforma agrária? Por que tal instrumental não produz efeitos na esfera constitucional agrária? Por que, até o momento, não houve desapropriação alguma para fins de reforma agrária de fazenda flagrada na prática de trabalho 74 escravo? Ou então de fazendas reiteradamente autuadas por práticas degradantes da dignidade do trabalhador rural, como as que levaram à morte cortadores de cana-de-açúcar? Como alerta a professora Maria Aparecida de Moraes Silva: No que tange às usinas dessa região [Ribeirão Preto/SP], a intensificação do trabalho, associada às condições insalubres – calor excessivo, fuligem da cana queimada misturada aos resíduos de agrotóxicos, posição curvada do corpo, pois a cana precisa ser cortada a três centímetros do rés do chão – à fraca alimentação, reduz o trabalhador no final da safra a um “bagaço de cana”, com os nervos esgotados, sem contar aqueles em cujos atestados de óbitos não apareceram as causas da morte, aqueles que, após o trabalho nas estufas de preparação das gemas para as mudas de cana, vêm a falecer de câncer de garganta. No caso inglês, Marx afirma que houve a necessidade da intervenção do Estado para conter o extermínio dos trabalhadores pelo capital. No caso brasileiro, não há nenhuma medida neste sentido.181 Mecanismos, reafirma-se, já existem. Antes mesmo da Norma de Execução nº 83/2009, acima analisada, fora editada, pelo Ministério do Trabalho e Emprego uma interessante portaria: PORTARIA nº 101, de 12 de Janeiro de 1996 Dispõe sobre o encaminhamento de relatório de fiscalização do trabalho rural ao Instituto de Colonização e Reforma Agrária, para os fins da Lei Complementar nº 76, de 6 de junho, de 1993. O MINISTRO DE ESTADO DO TRABALHO, no uso de suas atribuições legais, e Considerando que, em muitas propriedades rurais, os trabalhadores têm sido submetidos, diuturnamente, a formas degradantes de trabalho, desrespeitando-se os direitos trabalhistas básicos; Considerando que as disposições que regulam as relações de trabalho têm sido reiteradamente infringidas nas propriedades rurais, apesar da ação da fiscalização do trabalho, descaracterizando-se a função social da propriedade; [...] Considerando que, nos termos do art. 2º da Lei nº 8.629/93, a propriedade rural que não cumprir a função social é passiva de desapropriação, respeitados os dispositivos constitucionais; Considerando que a ação da desapropriação é proposta pelo órgão federal executor da reforma agrária, resolve: Art. 1º O Ministério do Trabalho ao constatar, por via da fiscalização, que em função dos dispositivos violados, os trabalhadores, naquela propriedade, são submetidos a formas degradantes de trabalho, desvirtuando a função social da propriedade, encaminhará relatório circunstanciado ao Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária – Incra, a fim de subsidiar proposta de ação de desapropriação, de acordo com o art. 2º, § 1º, da Lei Complementar nº 76, de 6 de junho de 1993. 181 SILVA, op. cit., 2004. p. 49. 75 De notar que estão presentes todos os requisitos que conferem total eficácia jurídica às dimensões do trabalho e bem-estar da função social da propriedade. A referida Portaria constrói a interação necessária entre as competências agrária e trabalhista, no tangente ao cumprimento da função social da propriedade; delimita a esfera dessa competência nos termos de uma relação de complementaridade, e, sobretudo, admite que o Ministério do Trabalho possui mecanismos, nos temos dos graus e critérios pretendidos pelo artigo 186 da Constituição, aptos a verificar o cumprimento, ou não, das dimensões do trabalho e bem-estar, da função social da propriedade rural. No entanto, como supra questionado, verifica-se uma inércia que não põe em movimento ou indica efetiva atuação; inércia em relação à concretização da própria Portaria; à realização da efetividade material da função executiva, para além da previsão normativa, que antes diz respeito apenas à efetividade formal de sua atuação; inércia, portanto, em relação ao cumprimento da própria função constitucional em concretizar a norma da função social da propriedade. Ocorre que, não bastasse esta inércia, verdadeira omissão eivada de inconstitucionalidade, a referida Portaria nº 101/96, do MTE, foi revogada, ao que parece, sem mesmo ter sido utilizada, no ano de 2003, nos termos da seguinte Portaria: PORTARIA nº 1.234, de 17 de Novembro de 2003 Estabelece procedimentos para encaminhamento de informações sobre inspeções do trabalho a outros órgãos. O MINISTRO DE ESTADO DO TRABALHO E EMPREGO, [...], Considerando que a atividade econômica tem como fundamento a valorização do trabalho humano e como princípios a função social da propriedade, a defesa do meio ambiente e a redução das desigualdades regionais e sociais; [...] Considerando que a função social deve compreender o aproveitamento adequado e racional da propriedade rural, preservando-se o meio ambiente para um desenvolvimento sustentável, resolve: Art. 1º O Ministério do Trabalho e Emprego encaminhará, semestralmente, relação de empregadores que submetem trabalhadores a formas degradantes de trabalho ou os mantêm em condições análogas à de trabalho escravo aos seguintes órgãos, com a finalidade de subsidiar ações no âmbito de suas Competências: I – Secretaria Especial de Direitos Humanos; II – Ministério do Meio Ambiente; III – Ministério do Desenvolvimento Agrário; IV – Ministério da Integração Nacional; e V – Ministério da Fazenda. (grifo nosso) 76 A referida Portaria parece seguir a lógica da atuação integrada e complementar entre os órgãos do governo, no tangente à fiscalização e concretização da função social da propriedade, ampliando o rol dos destinatários das informações acerca do descumprimento das dimensões do trabalho e bem-estar. No entanto, novamente se constata que a positivação da referida norma não fora acompanhada da respectiva atuação, no sentido de sua concretização. Ressalte-se: a elaboração das referidas portarias, na esfera de competência do Poder Executivo, respeita à efetividade apenas formal de sua função, mas não significa, ainda, o alcance da efetividade material, quer dizer, de sua efetiva atuação no sentido da concretização da norma, nos termos de sua função específica; as portarias prevêem mecanismos de exeqüibilidade, mas não representam a própria exeqüibilidade, de modo a, finalmente, observar-se ao menos a possibilidade de se atingir a eficácia das dimensões do trabalho e bem-estar, da função social da propriedade. De fato, como observara o próprio Parecer da Consultoria Jurídica do Ministério do Desenvolvimento Agrário182: Nos procedimentos administrativos tendentes à decretação de interesse social de imóveis rurais para fins de reforma agrária, postos à CONJUR para análise, verifica-se ser exclusivamente o fator produtividade ativado como fundamento das propostas de decretação. Na esteira da análise retro acerca deste importante parecer, há que se ressaltar, aqui, a sua relação com a eficácia das dimensões do trabalho e bem-estar, da função social da propriedade. De notar que este Parecer vem complementar a eficácia jurídica das dimensões em tela, na medida em que indica, justamente na omissão das normas de grau hierárquico superior, soluções práticas à atuação, na esfera de competência do Poder Executivo, que visem à concretização das dimensões de que se cogita: Diante do exposto e considerando o ordenamento jurídico vigente, nosso parecer alcança as seguintes conclusões: [...] d) Em casos nos quais o descumprimento da função social da propriedade possa ser objetivável de plano e demonstrado por simples operação de conta e conferência, compete autonomamente ao órgão federal executor da política fundiária e reforma agrária proceder à objetivação, mediante fiscalização em que se assegure ao proprietário o devido processo legal administrativo. e) Nos demais casos, compete ao órgão federal executor da política e reforma agrária, em conjunto com os demais órgãos executores das políticas conexas às funções ambiental e trabalhista, a elaboração de norma técnica e adoção de medidas 182 Apud PINTO JR., FARIAS, op. cit., p. 09. 77 administrativas conjuntas de fiscalização, com vistas a conferir efetividade às normas constitucionais previstas no art. 186 da CF/88, e incisos II a IV do art. 9º, da Lei nº 8.629/93.183 Neste sentido, o referido Parecer já reflete uma atuação que contempla, em certa medida, a própria efetividade material no tangente à Consultoria Jurídica do Ministério do Desenvolvimento Agrário, uma vez que representa a efetiva realização de sua competente função concretizadora. De outro lado, no entanto, este Parecer surge justamente da omissão da função concretizadora pertinente ao órgão federal responsável pela política fundiária e da reforma agrária, apontando, assim, a própria inefetividade material de sua atuação, no tangente às dimensões do trabalho e bem-estar. Como se afirma no item referente à sua própria contextualização: Tais orientações [como as conclusões supra mencionadas] mostram-se imprescindíveis, pois afastariam ocorrências de procedimentos administrativos anulados a fundamento de produtividade, devido ao fato de não haver o órgão agrário mantido a preocupação de aferir também os demais elementos da função social, ante cuja ausência a pretensão de desapropriação poderia manter-se. Vale dizer, a fiscalização do cumprimento da função social por parte da autarquia agrária passaria a ter mais eficácia e melhores resultados. Além disso, imóveis descumpridores de outros aspectos da função social, além dos relativos à produtividade, de enfoque meramente economicista, também ficariam sujeitos à sanção estatal, de forma a maximizar a efetivação das normas constitucionais. (grifo nosso) A análise da eficácia das dimensões do trabalho e bem-estar da função social da propriedade percorreu, até aqui, caminho que, partindo da concreta constatação da ineficácia das normas referentes àquelas dimensões da função social da propriedade, explorou o âmbito de concretização pertinente às competências do Poder Legislativo e Executivo, nos termos de suas funções constitucionais, ou seja, nos termos do poder-dever de concretizar a norma da função social da propriedade, em suas esferas específicas e respectivos mecanismos de concretização. A avaliar pela composição normativa, quer dizer, pela disponibilidade de dispositivos normativos, verifica-se a plena eficácia jurídica das dimensões do trabalho e bem-estar, da função social da propriedade, de modo que a norma dos incisos III e IV do artigo 186 da Constituição Federal possa ser tida por plenamente capaz de produzir os efeitos a que se propõe alcançar, dotada, ainda, de aplicabilidade já direta e imediata. Ocorre que a previsão normativa não basta em si mesma, identificando-se mesmo uma perniciosa tendência de 183 PINTO JUNIOR; FARIAS, p. 48-49. 78 normas progressistas atingirem sua eficácia justamente na medida da ausência de sua aplicação184. De fato, o texto legal pouco realiza, senão inaugurar a institucionalização de alguma prática, ou concepção, já verificada no cotidiano social. É momento do movimento tendencial, e histórico, da realização do direito pertinente à norma positivada. Em verdade é potência de concretização, mas não alcança coisa alguma sem a ação humana185. Esta ação, por sua vez, nos termos de um direito traduzido em norma constitucional, deve ser realizada na esfera de competência das funções concretizantes, nos termos das funções públicas e das forças da organização social, com os respectivos mecanismos de concretização. Cumpre assim, a esta altura, analisar a questão da eficácia das dimensões do trabalho e bem-estar, da função social da propriedade, no âmbito de competência da função judiciária, através da análise da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal acerca desta temática. Como anota Juvelino Strozake: Por certo, vale a pena esclarecer que o campo principal da luta popular para a realização dos objetivos fundamentais da República são os Poderes Executivo e Legislativo. Todavia, o Judiciário, como órgão do Estado encarregado de distribuir Justiça, não pode ficar alheio à discussão acerca da efetividade dos direitos econômicos, sociais, culturais e ambientais, notadamente quando se verifica a incapacidade do Poder Executivo de atingir os fins para os quais foi criado.186 A eleição da jurisprudência da Suprema Corte, por seu turno, emana já do fato de que compete à União desapropriar por interesse social, para fins de reforma agrária, imóvel rural que esteja descumprindo a sua função social, nos termos do artigo 184 da Constituição Federal. De saída, a própria condição constitucional da função social da propriedade reivindica a função concretizante, ao menos em última instância187, do Pretório Maior. Ressalte-se que a pesquisa acerca da jurisprudência do STF não foi realizada a partir de buscas isoladas de julgados junto aos mecanismos de consulta, especialmente o sítio do Supremo Tribunal Federal na rede mundial de computadores. De outra forma, optou-se, aqui, por utilizar duas bases de julgados selecionados e compilados pelos agentes públicos que lidam diretamente com essa questão, qual seja, a ação judicial de desapropriação por interesse social, para fins de reforma agrária. Assim, a análise da função judiciária será realizada a partir de julgados selecionados e compilados, de um lado, pela Procuradoria Federal 184 GRAU, op. cit., 2005. p. 333. Ibid., p. 317. 186 STROZAKE, op. cit., p. 145. 187 GRAU, op. cit., p. 320. 185 79 Especializada do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária - INCRA188, e, de outro, pela Coordenadoria de Divulgação de Jurisprudência, da Secretaria de Documentação do Supremo Tribunal Federal189. De um lado, no tangente à função legislativa pertinente ao tema, identificou-se alguma insuficiência, porém não paralisante da eficácia jurídica das dimensões do trabalho e bemestar. No âmbito da função executiva, verificou-se, de outro lado, a plenitude da eficácia jurídica da norma analisada, o que já supera aquele problema legislativo de maneira, por assim dizer, plenamente eficaz, a despeito, no entanto, da inércia propriamente executória, que dá ensejo a uma inefetividade ainda material, vez que não se observa a efetiva atuação concretizante no âmbito da competente função constitucional. Ocorre que essa inefetividade formal que emana da função executiva acaba por comunicar-se à função judiciária, na medida em que compete ao Poder Executivo da União a titularidade do processo de desapropriação por interesse social, para fins de reforma agrária, desde o processo administrativo até a proposição da ação judicial, que determina os termos conclusivos daquela desapropriação190, a saber, o valor da indenização, sem olvidar a própria competência para avaliar qualquer nulidade. Como referido acima, a própria Procuradoria Federal Especializada na desapropriação para fins de reforma agrária afirma a ausência de decretação de desapropriações com fundamento outro que não o da produtividade. Assim, nos termos da interdependência dos Poderes da República, diante da inércia inconstitucional do Poder Executivo, aliada à inércia constitucional do Poder Judiciário, verifica-se a absoluta ausência de julgados da Suprema Corte que se refiram às dimensões do trabalho e bem-estar, da função social da propriedade. Em verdade, na base dos dados jurisprudenciais pesquisados, de todos os julgados analisados apenas um faz menção à multidimensionalidade da função social da propriedade, em sede de Ação Direta de Inconstitucionalidade, não se referindo, portanto, a processo de desapropriação em que houvesse sido suscitada tal questão: O direito de propriedade não se reveste de caráter absoluto, eis que, sobre ele, pesa grave hipoteca social, a significar que, descumprida a função social que lhe é inerente (CF, art. 5º, XXII), legitimar-se-á a intervenção estatal na esfera dominial 188 Brasil. Ministério do Desenvolvimento Agrário. Coletânea de Legislação e jurisprudência agrária e correlata. Tomo III. PINTO JR., Joaquim Modesto, FARIAS, Valdez (Orgs.). Brasília: MDA, Núcleo de Estudos Agrários e Desenvolvimento Rural – NEAD, 2007. – 121 julgados analisados. 189 Brasil. Supremo Tribunal Federal (STF). Desapropriação para a reforma agrária. Brasília: Secretaria de Documentação, Coordenadoria de Divulgação de Jurisprudência, 2007. 49 p. – 235 julgados analisados. 190 Lei Complementar nº 76, de 6 de Julho de 1993: “Dispõe sobre o procedimento contraditório especial, de rito sumário, para o processo de desapropriação de imóvel rural, por interesse social, para fins de reforma agrária”. 80 privada, observados, contudo, para esse efeito, os limites, as formas e os procedimentos fixados na própria Constituição da República. O acesso à terra, a solução dos conflitos sociais, o aproveitamento racional e adequado do imóvel rural, a utilização apropriada dos recursos naturais disponíveis e a preservação do meio ambiente constituem elementos de realização da função social da propriedade. A desapropriação, nesse contexto, reflete um importante instrumento destinado a dar conseqüência aos compromissos assumidos pelo Estado na ordem econômica e social. Incumbe, ao proprietário da terra, o dever jurídico-social de cultivá-la e de explorá-la adequadamente, sob pena de incidir nas disposições constitucionais e legais que sancionam os senhores de imóveis ociosos, não cultivados e/ou improdutivos, pois só se tem por atendida a função social que condiciona o exercício do direito de propriedade, quando o titular do domínio cumprir a obrigação (1) de favorecer o bem-estar dos que na terra labutam; (2) de manter níveis satisfatórios de produtividade; (3) de assegurar a conservação dos recursos naturais; e (4) de observar as disposições legais que regulam as justas relações de trabalho entre os que possuem o domínio e aqueles que cultivam a propriedade.191 Acompanhando a constatação da CONJUR, supra mencionada da ausência de decretos de desapropriação com fundamento jurídico nas dimensões do trabalho e bem-estar decorre a ausência de julgados sobre o tema. De fato, pode-se afirmar que a Suprema Corte ainda não emitiu opinião jurisprudencial acerca, por exemplo, da desapropriação de imóvel produtivo que se utilize de trabalho escravo. Na verdade, observa-se que, dada a exclusividade do fundamento da produtividade, tratado, por sua vez, nos termos daquela concepção estritamente econômica, a Suprema Corte não chegou ainda a enfrentar caso concreto que suscitasse uma compreensão acerca da relação entre os artigos 185 e 186 da Constituição Federal, de modo que se verifique nos julgados daquela Corte uma tendência à própria redução da temática da função social da propriedade, no caso concreto, à dimensão econômica, identificada, por seu turno, com a expressão produtividade. No entanto, ressalta-se, isso não significa que o STF tenha firmado posicionamento sobre a relação entre propriedade produtiva e função social. Essa redução de que se cogita emana, justamente, da absoluta ausência de ações que instigassem o debate acerca da multifuncionalidade enquanto elemento do próprio conceito de produtividade. Ou seja, a redução da temática da função social da propriedade à concepção estritamente econômica de produtividade, na jurisprudência do STF, decorre da própria redução da decretação das desapropriações ao fundamento da produção econômica. Na esteira das decretações que emanam do Poder Executivo Federal, constam na jurisprudência do STF tão-somente julgados acerca da questão da produtividade, tratados, todos, em seu âmbito estritamente econômico, nos termos dos graus de utilização e eficiência do solo. Não se verifica naquela corte, ao menos na jurisprudência analisada, sequer o debate acerca do conceito de propriedade produtiva. 191 (ADI 2.213-MC, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 4-4-02, DJ de 23-4-04) Apud STF, op. cit., p. 17. 81 Enfim, a questão que aqui se coloca é a seguinte: o tema da multidimensionalidade da função social da propriedade nunca foi enfrentado pelo Supremo Tribunal Federal, justamente porque ele nunca foi utilizado enquanto fundamento de decreto desapropriatório motivado por interesse social, para fins de reforma agrária. Neste sentido alcançamos, finalmente, a constatação da própria inefetividade material da função social da propriedade no tangente à função judiciária, uma vez que não se verifica, na sua esfera de atuação, sobretudo na Suprema Corte, enquanto última instância daquela competência funcional, elemento que indique a concretização da norma constitucional de que se trata. Diante disso, resta questionar em que medida a atuação desta função poderia ter cumprido com o seu dever constitucional de dar efetiva concretização às dimensões do trabalho e bem-estar, na função social da propriedade. A análise da eficácia do instituto da função social da propriedade chega, neste ponto, ao seu termo conclusivo. Daquela perspectiva histórica do próprio direito enquanto processo social pôde-se verificar a evolução do direito de propriedade, no Brasil, conquistando, na luta social, a compreensão de sua função social estrutural. Ocorre, no entanto, que tal função social se viu, historicamente, reduzida ao elemento da produtividade estritamente econômica, verificando-se, ao final, que a dimensão econômica, isoladamente, é a única dimensão da função social que possui efetividade material e, consequentemente, eficácia – no sentido do alcance dos fins propostos pela norma, através de seus resultados – no âmbito constitucional brasileiro, a despeito da intrínseca relação de simultaneidade que emana de suas multidimensões. Verificando e identificando os elementos responsáveis por tal ineficácia, no que diz respeito às funções constitucionais dos Poderes da República, a presente dissertação aponta, no capítulo seguinte, para a relação de tal ineficácia com o programa constitucional do trabalho rural, que se comunica, por seu turno, ao próprio programa constitucional como um todo, dada a unidade principiológica da Constituição Dirigente de 1988, o que agrava a responsabilidade de toda a sociedade no tangente à concretização da Constituição Cidadã, sobretudo em relação aos princípios e objetivos fundamentais da República. 82 CAPÍTULO 3 DO PROGRAMA AO ÂMBITO CONSTITUCIONAL DO TRABALHO RURAL 3.1. O trabalho enquanto direito humano fundamental Beber, comer e abrigar-se. De tais atos não podia prescindir a vida humana quando da sua gênese, impulsionando o homem a produzir meios que possibilitassem a satisfação de tais necessidades vitais. Aquilo que Karl Marx considera o primeiro ato histórico do homem192 nos revela a intrigante constatação de que, milênios mais tarde, não pôde ainda a humanidade desvencilhar-se de condutas e relações sociais que remontam à origem da civilização. Para além de sua aparência eminentemente natural, talvez animal, o fato é que, pelas mãos humanas, aquelas necessidades vitais são transformadas em verdadeiros processos sociais, que se desenvolvem por tendências potencializadas pela técnica, e pela criação e emprego de ferramentas193, consolidando-se à medida do tempo, e diversificando-se através do espaço, o que caracteriza o seu desenvolvimento concreto em sentido alternativo194 àquele idealizado em sua concepção, seja por forças casuais, seja por determinações causais195. Tratando-se da existência humana, deparamos com a constatação da “[...] dupla determinação de uma insuperável base natural, e de uma ininterrupta transformação social desta base”196, rumo às estruturas sociais. Das bases e barreiras naturais o homem não se desligará jamais, apesar da tendência ao seu afastamento em relação a elas, à medida dos processos sociais. Mas qual seria o motivo que imprime e possibilita ao homem libertar-se destas barreiras naturais, substituindo-as, no entanto, por necessidades sociais? 192 MARX, Karl, ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã (Feuerbach). 10. ed. Tradução de José Carlos Bruni e Marco Aurélio Nogueira, São Paulo: Hucitec, 1996. p. 39. 193 “Toda ferramenta insere e amplia num objeto material uma faculdade do homem biológico. Da primeira pedra lascada, que lhe poupou as unhas e os dentes, até os moinhos de vento, depois ao vapor, que lhe pouparam os músculos, o Homem exteriorizou e aumentou, assim, suas capacidades físicas. A invenção da escrita, depois as do códice e da impressão pouparam-lhe a memória, permitindo-lhe fixar o pensamento em textos. A novidade do computador na história das técnicas está em operar uma exteriorização de suas faculdades mentais de processamento das informações.”: SUPIOT, Alain. Homo juridicus: ensaio sobre a função antropológica do Direito. Tradução de Maria Ermantina de Almeida P. Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 2007. p.151-152. 194 “Todo ato singular alternativo contém em si uma série de determinações sociais gerais que, depois da ação que delas decorre, tem efeitos ulteriores (independentes das intenções conscientes), ou seja, produzem outras alternativas de estrutura análoga e fazem surgir séries causais cuja legalidade termina por ir além das intenções contidas nas alternativas”: LUKÁCS, György. Ontologia do ser social: a falsa e a verdadeira ontologia de Hegel. Trad: Carlos Nelson Coutinho. São Paulo: Ed. Ciências Humanas, São Paulo, 1979 – A. p.84. 195 LUKÁCS, György. Ontologia do ser social: os princípios ontológicos fundamentais em Marx. Trad: Carlos Nelson Coutinho. São Paulo: Ed. Ciências Humanas, São Paulo, 1979 – B. p. 101. 196 Ibid., p. 16. 83 Perceba-se a relação de complementaridade entre as bases naturais e os processos sociais, no sentido da consolidação do ser social, entendido como a síntese e expressão da atividade humana, diferenciada e única na natureza, capaz de atuar no sentido da construção e manutenção de estruturas sociais, físicas e ideológicas, reconhecendo que tal expressão, “[...] tem uma existência independente da consciência individual do homem singular, possuindo em face dessa consciência um alto grau de dinamismo autonomamente determinado e determinante”197, o que caracteriza aquele sentido alternativo supra mencionado. Mas qual seria, então, o motivo pelo qual se pode atribuir à conduta humana este caráter essencialmente social? Em que consiste ele? Qual o elemento diferenciador e qualificador desta essência que caracteriza a atividade humana, imprimindo-lhe uma conotação social, e acaba por definir-lhe – como veremos – a própria condição de existência digna? A resposta parece não indicar outro sentido, senão a constatação que, dentre inúmeras hipóteses e diversos fundamentos instalados sobre bases desde teológicas a filosóficas, especulando-se em torno de abstrações racionais, divinas, e naturais, descobre, ontologicamente, sua resposta na categoria do trabalho. O trabalho, enquanto categoria filosófica, apresenta um elemento essencialmente humano, qual seja, a atividade teleológica, “fenômeno originário” através da qual o homem imprimiu à sua existência uma condição verdadeiramente social198 – a par da natural. Consiste, tal atividade teleológica, justamente na capacidade – socialmente desenvolvida, consolidada e potencializada à medida daquele processo histórico descrito acima – de apreender a realidade sensível imediata, qualificar e potencializar sua compreensão a partir de um conhecimento adquirido em experiências concretas anteriores, processar tais informações cognoscitivas, e apresentar uma resposta àquela realidade de onde partiu o problema199, talvez uma resposta prática e imediata (mecânica), ou abstrata e mediata (intelectual), não havendo, no entanto, que se dissociar tais dimensões, sob o risco de afirmar a própria divisão entre os que se proclamam pensadores, e aqueles que são proclamados “[...] membros ativos que têm pouco tempo para produzir idéias e ilusões acerca de si próprios”200. Como afirma o filósofo húngaro György Lukács, expoente da escola de Budapeste e ícone da chamada filosofia o trabalho: 197 LUKÁCS, op. cit., 1979 - A, p. 31. LUKÁCS, György. Ontologia do ser social: el trabajo. Tradução de Miguel Vedda. Buenos Aires: Herramienta, 2004. p. 19. 199 “Todo processo teleológico implica la posición de un fin y, con ello, una conciencia que pone fines. En consecuencia, [...] la conciencia inicia, a través del acto de posición, un proceso real, precisamente el processo teleológico”: LUKÁCS, op. cit., 2004. p. 63. 200 MARX, ENGELS, op. cit., p. 73. 198 84 Puesto que aquí se trata del complejo concreto de la socialización como forma del ser, puede presentarse legitimamente la pregunta de por qué, de todo este complejo, destacamos precisamente al trabajo, y le atribuimos una posición tan privilegiada en el processo y en lo que respecta al salto de la génesis. La respuesta, considerada ontológicamente, es más simple de lo parece ser a primera vista: porque todas las demás categorías de esta forma de ser ya poseen, de acuerdo su esencia, un carácter puramente social. [...] Solo el trabajo posee, de acuerdo con su esencia ontológica, un carácter expresamente transicional: es, según su esencia, una interrelación entre el hombre (sociedad) y la naturaleza y, por cierto, tanto con la inorgánica (herramenta, matéria prima, objeto de trabajo, etc) como con la orgánica [...], ante todo caracteriza el proprio hombre que trabaja la transición desde el ser meramente biológico al social. Con razón, dice Marx, pues: ‘Como creador de valores de uso, es decir como trabajo útil, el trabajo es, por tanto, condición de vida del hombre, y condición independiente de toas las formas de sociedad, una necessidad perenne y natural sin la que no se concebiría el intercambio orgánico entre el hombre y la naturaleza ni, por conseguinte, la vida humana’.201 No sentido daquela tendência socializante da atividade humana, ou seja, da tendência a constituir-se cada vez mais social, e distanciar-se das bases naturais de sua existência, o trabalho constitui-se, ainda, categoria sociológica, uma vez que determina, para além da intervenção e transformação da natureza, a própria interação do indivíduo junto à sua comunidade. É através do trabalho que o indivíduo constrói a si mesmo, consolida e potencializa suas relações sociais e, ainda, retira as bases do seu sustento e dos seus. De outro lado, é através do trabalho que se extrai toda forma de riqueza, sem olvidar as novas formas de acumulação financeira. No dizer de Friedrich Engels: O trabalho é a fonte de toda riqueza, afirmam os economistas. Assim é, com efeito, ao lado da natureza, encarregada de fornecer os materiais que ele converte em riqueza. O trabalho, porém, é muitíssimo mais do que isso. É a condição básica e fundamental de toda a vida humana. E em tal grau que, até certo ponto, podemos afirmar que o trabalho criou o próprio homem.202 Sendo categoria filosófica, compreendida a partir da ontologia lukasciana, sobre as bases do materialismo-histórico e dialético, é possível perceber tal assertiva, na vida social. Acerca desta concepção dialética materialista, que inspira filosoficamente a presente análise acerca do trabalho, do direito e da realidade, esclarece Karel Kosík: O marxismo não é um materialismo mecânico que pretenda reduzir a consciência social, a filosofia e a arte “a condições econômicas” e cuja atividade analítica se fundamente, por isso, no desmascaramento do núcleo terreno das formas espirituais. Ao contrário, a dialética materialista demonstra como o sujeito concretamente histórico cria, a partir do próprio fundamento materialmente econômico, idéias 201 LUKÁCS, op. cit., 2004. p. 58. ENGELS, Friedrich. Sobre o papel do trabalho na transformação do macaco em homem. In: ANTUNES, Ricardo (Org.). A dialética do trabalho: escritos de Marx e Engels. 2. ed. São Paulo: Expressão Popular, 2005. p. 13. 202 85 correspondentes e todo um conjunto de formas de consciência. Não reduz a consciência às condições dadas; concentra a atenção no processo ao longo do qual o sujeito concreto produz e reproduz a realidade social; e ele próprio, ao mesmo tempo, é nela produzido e reproduzido.203 Quando de uma análise histórica, é praxe referirmos aos indivíduos, ou até mesmo identificar os diversos momentos históricos, a partir de uma ocupação laboral. Então eram escravos, os egípcios; os servos medievais, os camponeses modernos, e os proletários contemporâneos, v.g. Encontra-se, aí, uma substância204 na atividade humana na história; um elemento essencial que conserva-se na transformação; um mesmo conteúdo presente nas diferentes formas históricas: o trabalho. Quer escravo, quer servil, quer assalariado; quer intelectual ou manual, o trabalho é meio de realização e alienação humana205; é instrumento existencial do indivíduo; propicia os meios à sua inserção na sociedade; determina a forma e os termos de sua interação e desenvolvimento, sem esquecer a própria formação de sua subjetividade206. De outro lado, sendo, imediatamente, instrumento de realização individual, o trabalho atinge, em um segundo momento, a característica e dimensão de mecanismo de promoção e desenvolvimento social. De fato, sendo o ser social expressão da síntese da vida individual – síntese que não se confunde com a mera somatória, ressalta-se – e, sendo esta síntese, a própria expressão da interação social dos indivíduos, interação esta que, por seu turno, realiza-se à medida do trabalho, revela-se aí sua dupla determinação na sociedade, qual seja, uma indissociável condição individual e social, sobre a qual se estrutura, em última instância, o ser social. Tratar do ser social, ao menos a partir da Antiguidade Oriental207, é tratar da interação dos indivíduos em relação ao Estado, ou a um Estado, dadas as diversas formas históricas assumidas pela figura do garante institucional208 do status quo sócio-econômico à medida do desenvolvimento da civilização. 203 KOSIK, Karel, Dialética do concreto. Tradução de Célia Neves e Alderico Tobírio, 7. ed. Rio de Janero: paz e Terra, 2002 , p. 124. No mesmo sentido, afirmam Marx e Engels: “Desde o início mostra-se, portanto, uma conexão materialista dos homens ente si, condicionada pelas necessidades e pelo modo de produção, conexão esta que é tão antiga quanto os próprios homens – e que toma, incessantemente, novas formas e apresenta, portanto, um ‘história’, sem que exista qualquer absurdo político ou religioso que também mantenha os homens unidos”: MARK, ENGELS, op. cit., p. 42. 204 LUKÁCS, op. cit., 1979 – A, p.72; Cf. KOSIK, Karel, Dialética do concreto. Tradução de Célia Neves e Alderico Tobírio, 7. ed. Rio de Janero: paz e Terra, 2002. p. 34. 205 ANTUNES, Ricardo. In: ______ (Org), op. cit., p. 08. 206 Reconhece-se aqui a contribuição que o existencialismo sartreano vem legar à questão da subjetividade. 207 ENGELS, Friedrich. A origem da família, da propriedade privada e do Estado. 16. ed. Tradução de Leandro Konder, Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002. p. 120; em sentido contrário, afirmando que o Estado “é uma invenção do Ocidente medieval”: SUPIOT, op. cit., p. 189. 208 SUPIOT, op. cit., p. 117. 86 Não cabe aqui a análise acerca do desenvolvimento histórico do Estado, ou dos elementos que o compõem, nos termos de sua Teoria Geral, sem olvidar, no entanto, sua importância. Cumpre ter em mente, a esta altura, que, com o advento da Modernidade, o Estado adquire – ou usurpa – o monopólio do direito e da força, garantindo, assim, a ordem sócio-econômica como ela vêm sendo, de modo que o trato dos direitos humanos reivindica, direta e necessariamente, a noção da interação que se trava entre o Estado, e os indivíduos. Portanto, se, para montarmos o problema à maneira propedêutica, procurarmos fundamento na questão acerca do que consiste o direito, buscando o ser-precisamenteassim209 de sua realização, à maneira ontológica, surge a questão: em qual momento da história? A teoria geral do direito, conforme a música ambiente, já flutuou nas cantigas da verdade abstrata e absoluta; já arrastou os pés ao som da valsa empírica; e, finalmente, mas não definitivamente, jogou a capoeira dialética da construção cotidiana. Adviria o direito de um mundo das idéias, abstrato, imanente à condição humana, como se pensava na Antiguidade Clássica? Ou decorreria ele da vontade divina, inscrito no coração dos homens, como difundido na Era Medieval? Teria o positivismo superado o dilema, afirmando a identidade entre direito e lei? Elevando a essência do direito à abstração, ou ocultando-a sob um sistema lógico-formal, torna-se mais confortável, e não menos distante, refletir acerca da realização da justiça. Mas, onde se situa o indivíduo em relação à injustiça? Como afirma Karel Kosík, Na história se realiza o homem e somente o homem. Portanto, não é a história que é trágica, mas o trágico está na história; não é absurda, mas o absurdo que nasce da história; não é cruel, mas as crueldades são cometidas na história; não é ridícula, mas as comédias se encenam na história.210 De fato, na história se realiza o homem, através do trabalho, instrumento ambivalente, pelo qual pode ser realizada a justiça, e a injustiça. A esta altura, cumpre perguntar: existia um direito já nas comunidades nômades da Pré-História? Ou talvez, existia alguma forma de organização social? Haveria algum acordo acerca da caça, segurança, plantio e distribuição da produção? À medida do tempo, teriam tais acordos se tornado costumes, ou talvez regras211? Esta concepção ontológica do direito, que descobre sua essência ocultada sob manto ideológico do sistema jurídico-estatal, já fora apontada por Gyorgy Lukács, quando afirma 209 LUKÁCS, op. cit., 1979 – A, p. 17. KOSÍK, op. cit., p. 238. 211 Friedrich Engels relata que, em sua origem, a humanidade viveu alguns séculos baseada no cultivo comunitário do solo, por meio do trabalho e consumo coletivo dos alimentos e outros bens, num regime tribal que ele chamou de “economia doméstica comunista”, que consistia num “agrupamento espontâneo, capaz de dirimir todos os conflitos que possam nascer no seio da sociedade a que corresponde”: op. cit., 2002. p. 178. 210 87 que “[...] a gênese do direito não tem caráter jurídico”212. De fato, segundo Alain Supiot, “[...] o Direito nasceu bem antes do Estado, e há razões para pensar que sobreviverá a ele”213. Observa-se que tais questões não são usualmente invocadas nas análises clássicas do direito, mas é certo que correspondem a uma ciência jurídica que credita sua essência na práxis humana – materialista, portanto – à medida das formas assumidas pela organização social na história – dialética, assim. Seguindo nos termos do método proposto, adota-se a perspectiva da construção histórica dos direitos humanos, não se lhes atribuindo qualquer fundamento que fuja à realização concreta e cotidiana dos indivíduos em determinado ser social. De fato, pouco adianta afirmar uma justiça imanente ao direito e à condição humana, se na realidade concreta o direito possa significar a prática da injustiça. Como já alertaram Marx e Engels, A estrutura social e o Estado nascem continuamente do processo vital de indivíduos determinados; mas desses indivíduos não tais como aparecem nas representações de si mesmos ou nas representações que os outros fazem deles, mas na sua existência real, isto é, tais como trabalham e produzem materialmente; [...]. A consciência nunca pode ser mais que o ser consciente.214 Importa reconhecer que o direito é realização humana, produto do trabalho em sua dimensão social, e, desse modo, corresponde às ações humanas, ações que, reiteradas no tempo, transitam do indivíduo à sociedade e, a partir de determinado momento na história, são positivadas, culminando em codificações que, pretensamente, representam o próprio direito, mas, no entanto, nada mais refletem que as condutas daquela específica organização social. Assim, a gênese ontológica do direito215, compreendida como o momento em que surge o direito na história da humanidade, seria representada pelo momento da história em que as condições materiais instigaram determinada comunidade a conceber, inicialmente por uma fórmula abstrata, uma forma simples de organizar a conduta dos seus comuns, forma esta que, à medida do tempo e do espaço, desenvolveu-se tendencial e alternativamente àquela fórmula abstrata, adquirindo complexidade através da práxis, até atingir a estrutura do ser social em questão, e a partir daí tender a transformar a consciência de toda a comunidade, que passará a agir conforme aquelas regras de conduta, construindo-as à medida da práxis nos diversos momentos e diferentes lugares, numa relação dialética que, historicamente, tomou as 212 LUKÁCS, op. cit., 1979 - B, p. 132. SUPIOT, op. cit., p. 183. 214 MARX, ENGELS, op. cit., p. 18-19. 215 A categoria lukasciana da gênese, que remonta a Hegel, busca analisar historicamente os processos sociais a partir das condições reais da sociedade que dão origem àquele processo social na realidade – no caso, o direito – entendendo que a análise do momento da gênese revela elementos substanciais da essência do processo social analisado, substância que se mantêm nas diversas formas históricas: LUKÁCS, op. cit., 1979 – A. p. 17. 213 88 proporções do que atualmente é chamado de Estado Democrático de Direito, e a partir do qual se realiza a presente análise acerca dos direitos humanos fundamentais. A questão acerca da melhor fundamentação terminológica mostra-se demasiada complexa e incidental na presente análise216, esclarecendo-se apenas que o direito humano fundamental refere-se, em meio àquela complexidade, aos direitos tidos como intrinsecamente necessários à existência individual, com dignidade, sem olvidar a necessidade de sua positivação, sobretudo nos ordenamentos nacionais, porém não se resumindo a sua realização aos textos normativos, concebendo-se-lhes, na realidade, nos termos da própria práxis social emancipatória. Neste sentido, é ilustrativa a afirmação de Perez Luño: “De este modo se los considera como la resultante de las exigencias de la filosofía de los derechos humanos con su plasmación normativa en el derecho positivo”217 – sem perder de vista aquela concepção filosófica que aqui informa, portanto, a concepção dos direitos humanos fundamentais: o materialismo dialético. Parece-nos, inclusive, que tais direitos devem expressar mais que um mínimo existencial, senão representar e revestir-se da própria condição de garantia e instrumento da realização plena da dignidade humana, em todas as suas dimensões. A presente análise, porque breve, parte, portanto, de sua positividade, vez se tratar, aqui, daquele Estado Democrático de Direito ocidental, sem olvidar, no entanto, que a sua fundamentação nas bases da cultura jurídica da sociedade da qual emana não significa, certamente, uma submissão absoluta à positividade normativa de determinado Estado, sobretudo quando garantidora de sistemas totalitários. Não se atribui, de outro lado, o fundamento ao espírito do povo, expressão do historicismo de Savigny218. A questão da cultura jurídica refere-se, antes, à constatação do conceito de dignidade correspondente à sociedade a que se refere o direito, entendido enquanto processo social e teleológico, síntese mediata da práxis social, afastando da fundamentação dos direitos humanos qualquer condição abstrata ou estritamente empírica, de direitos imanentes à condição humana por natureza, vontade divina, ou revelação científica. Como afirma Antonio Carlos Wolkmer, “[...] por constituir um mecanismo que integra e incorpora a dialética que move o processo 216 LUÑO, Antonio Enrique Perez. Derechos humanos, Estado de Derecho y Constitucion. 8.ed. Madrid: Tecnos/LAEL, 2003. Capítulo 1. 217 LUÑO, op. cit., p. 31. 218 MORRIS, Clarence (org.). Os grandes filósofos do direito: leituras escolhidas em direito. Tradução de Reinaldo Guarany. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 296. 89 histórico-social, o Direito freqüentemente divorcia-se da lei (da norma sacralizada nos códigos) para poder melhor acompanhar a justiça numa mesma direção”219. Neste sentido, compreende-se que os direitos humanos fundamentais, em suas complementares dimensões reconhecidas e positivadas historicamente à medida do desenvolvimento social, constituem-se num sistema de direitos indissociáveis e reversamente dependentes uns dos outros; uma relação em que a condição de possibilidade de um assenta sobre a própria realização de outro, de modo que a efetivação dos direitos humanos suponha, de saída, a garantia à efetividade conjunta de todos eles, sob pena do esvaziamento de sentido da própria expressão e força normativa dos chamados direitos humanos fundamentais. Vale, neste ponto, a ressalva de Friedrich Müller, quando alerta que os direitos humanos não podem ser concebidos como um sistema à parte do sistema normativo, em especial o constitucional, não podendo constituir um sistema de direitos autônomos no seio do ordenamento jurídico220, o que não significa, senão, que na concepção moderna, aquela complementaridade e indissocialidade inerente à efetivação dos direitos humanos fundamentais reivindica, ainda, a complementaridade e indissocialidade em relação ao próprio sistema constitucional como um todo, entendido este, a partir de sua perspectiva sociológica, como o próprio instrumento que representa a síntese das aspirações sociais, sem olvidar a força ontológica dos fatores reais de poder, tratados anteriormente. Tratando da complementaridade dos direitos humanos fundamentais, vem à tona a questão das suas dimensões históricas, dentre as quais nos interessam, aqui, a perspectiva dos chamados direitos individuais civis e políticos, de um lado, e dos direitos econômicos sociais, de outro, uma vez que, como supra mencionado, o trabalho constitui mecanismo de realização individual, ao passo que se revela elemento essencial ao desenvolvimento econômico e social, evidenciando já aí a importância de sua proteção, nos termos de verdadeiro direito humano fundamental. De fato, o trabalho enquanto direito já preconiza a intrínseca relação entre os direitos humanos fundamentais de primeira e segunda dimensão, ao passo que realiza a dignidade da pessoa à medida de sua interação com a sociedade, identificando nos direitos sociais e econômicos um instrumento para a própria garantia e realização dos direitos do indivíduo221, de modo que não faça sentido a positivação do direito fundamental ao trabalho, sem que se garantam os mecanismos sociais para que se efetivamente trabalhe dignamente na sociedade. 219 WOLKMER, Antonio Carlos. Introdução ao pensamento jurídico crítico. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2002. p. 101. 220 MÜLLER, op. cit., p. 36. 221 LUÑO, op. cit., p. 83. 90 Por vezes abstraída, por vezes subsumida nos direitos individuais dos trabalhadores, a noção do direito ao trabalho não pode, por sua vez, confundir e resumir-se à necessidade material de se trabalhar, porque representaria, e cotidianamente representa, o direito a qualquer forma e condição de direito trabalho, o que significa, em verdade, antes alienação, que realização daquelas bases ontológicas que emanam do trabalho, supra mencionadas. Neste ponto, uma breve consideração acerca do conceito de trabalho enquanto direito humano fundamental faz-se mister, no intuito de esclarecer esta dupla dimensionalidade que se lhe atribui. Trata-se, no presente estudo, do trabalho enquanto direito, o que congrega a noção do direito ao trabalho, de um lado, e dos direitos trabalhistas, de outro. A questão da categoria do trabalho enquanto direito diz respeito, em um primeiro momento, àquela dimensão filosófica imediata que encontra no trabalho o próprio instrumento de realização da existência individual. É a dimensão do direito ao trabalho; do direito a realizar uma atividade laborativa, a fim de realizar-se a si mesmo; o direito a desenvolver-se física e subjetivamente, e identificar-se, desde o processo de produção, com produto do seu trabalho; o direito a vivenciar o ato potência da condição humana, e demonstrar que também possui com o que contribuir para a construção da realidade, em uma atividade cotidiana, e firmar-se enquanto sujeito da história. De notar que são as bases ontológicas do trabalho que lhe dão conotação de direito humano fundamental; é da constatação de sua imanência à noção de dignidade – que não pode significar outra coisa que realização da dignidade – que se lhe atribui proteção jurídica, e garantia quanto às condições reais de sua realização. É justamente neste sentido que se identifica o direto ao trabalho enquanto direito humano fundamental de primeira dimensão, representando ele verdadeiro corolário da igualdade e da liberdade, que não se confundem, por seu turno, com oportunidade, mas somente se realizam, à medida das oportunidades concretamente apresentadas ao indivíduo. Situa-se aí o limite da exaltação a uma liberdade e igualdade meramente formais, quando bastantes em sua forma jurídico-abstrata de validade, configurando, assim, verdadeira “ilusão jurídica”222. No limite, de que adianta a liberdade, se o proibido é justamente prenderse à terra, que certamente pertence a outrem. A que presta a igualdade, em uma cultura social onde importa a distinção de classe e a linhagem familiar? Aonde ir, e com quem identificarse, se o que não há é o direito de se fixar, e os meios para exercer aquilo que especifica o ser humano, o seu trabalho? Como afirma Perez Luño, “[...] resulta evidente también que de poco 222 MÉSZÁROS, István. Marxismo e direitos humanos. In: Filosofia, ideologia e ciência social. São Paulo: Ensaio, 1993. p. 208. 91 sirve proclamar determinadas libertades para aquellos sectores de población que carecem de medios para disfrutarlas”223. Ressalte-se: não há que se olvidar a importância histórica da conquista de tais direitos, nem mesmo afastar a sua necessidade ontológica, porque imprescindíveis à realização da dignidade humana. O que se divisa, no entanto, aqui, é a insuficiência de sua positivação de forma autônoma e isolada. Assim, não bastam a liberdade e igualdade formal: faz-se mister a exploração e o exercício de seu conteúdo, nos termos, sobretudo, da chamada igualdade material. Ora, esta igualdade material parece, em muito, assemelhar-se àquela medida de oportunidades apresentadas concretamente ao indivíduo, o que, por seu turno, não aponta noutra direção, senão a que vai ao encontro dos direitos econômicos e sociais. Fruto da insatisfação das camadas populares com a falta de sentido daquelas liberdades e igualdades propaladas pelo liberalismo – sem mesmo conhecê-lo em suas bases conceituais, senão em suas conseqüências contratuais – os direitos econômicos e sociais, ditos de segunda dimensão, possuem um gênese intrínseca à questão do trabalho. De fato, é da precarização das condições de vida dos trabalhadores, sobretudo os proletários arregimentados à medida do avanço industrial, que surgem as bases para a crítica da sociedade capitalista insurgente, e a consciência necessária à organização da substância política capaz de transformar as instituições normativas existentes224, trazendo à lúmen juris os direitos dos trabalhadores, praticamente ignorados no sistema dos direitos humanos da primeira dimensão. Interessante é a constatação, ainda, da intrínseca relação dialética que se verifica no desenrolar histórico dos direitos humanos fundamentais, no tangente à questão da liberdade, do trabalho, e da terra. Notório é que a primeira geração dos direitos humanos prepararam as bases para a consolidação política de uma burguesia economicamente consolidada. De fato, tal burguesia necessitava, para expandir-se economicamente, de proclamar a liberdade individual, e assim realizar a libertação dos camponeses em relação às terras nas quais trabalhavam, muitos ainda em condição de vassalagem. Ressalte-se que o período de transição do sistema medieval ao moderno arrastou-se por séculos. Para além da retórica paixão a uma condição imanente à natureza humana, o que se comprovou, posteriormente, foi a intenção, duplamente pragmática, de transformar a estrutura 223 LUÑO, op. cit., p. 91. RUBIO, David Sánches. Direitos humanos, ética da vida humana e trabalho vivo. In: WOLKMER, Antonio Carlos (Org.). Direitos humanos e filosofia jurídica na América Latina. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004. p. 141. 224 92 agrária de modo a fornecer matéria prima para a indústria, que necessitava, por seu turno, daquela mão-de-obra germinal225, agora livre de raízes, porém carente de alimento, moradia e ocupação. É neste sentido que Roberto Lyra Filho chama o movimento histórico que deu origem à primeira geração dos direitos humanos de “[...] grito libertário que se transformou em arroto social, de pança cheia!”226. Note-se que o grito libertário, que realmente representou uma conquista histórica, bradava contra o Estado, carregado de evidente conotação política. O arroto social, por seu turno, fora ouvido pelos trabalhadores, quando tentaram eles gritar. E a pança cheia acumulou-se à frente da burguesia industrial, que descobriu, de saída, que o trabalho necessário à produção da mercadoria diminuía à medida da implementação do maquinário, o que não significava, absolutamente, que o tempo de trabalho individual na fábrica deveria ser diminuído. Não, a conclusão foi diametralmente oposta: quanto mais trabalho, mais valor; quanto mais trabalhava o proletário, mais valia, para o proprietário227. Mas o que valia, não era o proletário, o homem cidadão, o indivíduo, mas a sua forçade-trabalho, “[...] onde o trabalho figuraria como coisa desembaraçada da pessoa, livre para a compra e para a venda, e onde a pessoa só apareceria em caso de ‘necessidades’ bastante gritantes para não poderem ser ignoradas pela coletividade”228. Esta sim parece ser algo imanente à sua natureza. Porém, inserida em uma sociedade, ela reveste-se, potencializa-se, como uma força social. Como dito acima em relação ao homem, sua dimensão natural não se extingue, nem a necessidade de alimentar-se e abrigar-se. Tais necessidades, por seu turno, serão satisfeitas através do trabalho. Antes, no campo, o trabalho que socializava seu produto, através da troca, seja por outro produto, seja pela mercadoria universal, a moeda, também satisfazia aquelas necessidades vitais, mas e agora? Com a liberdade de procurar uma ocupação onde quisesse, mesmo que não tivesse mais a liberdade de voltar para o campo, o trabalhador vê-se, novamente na história, refém das suas próprias necessidades vitais básicas, e para libertar-se, deve trabalhar. Neste momento, tem a ilusão de que é livre para escolher a ocupação e o local de trabalho, conforme a sua vontade, e a ilusão de que se encontra em igualdade de condições para celebrar um contrato, agora o meio apto a permitir-lhe o direito de trabalhar. Mas neste contrato não havia 225 Cf. ZOLA, Émile. Germinal. LYRA FILHO, Roberto. O que é direito. Coleção Primeiros Passos, vol. 16, São Paulo: Brasiliense, sem data, p. 128. 227 “A mais-valia resulta somente de um excesso quantitativo de trabalho, da duração prolongada do mesmo processo de trabalho”. MARX, Karl. Processo de trabalho e processo de valorização. In: ANTUNES, op. cit., p. 68. 228 Alain Supiot reflete como tal concepção volta à tona, com bastante vigor, na atualidade, nas bases da desregulamentação do Direito do Trabalho, e da generalização dos mínimos sociais: op. cit., p.125-126. 226 93 cláusulas acerca dos direitos dos trabalhadores, e os deveres acumularam-se aos montes, até a situação limite de se revoltar, organizar-se e reivindicar melhores condições de vida, melhores condições sociais, melhores condições contratuais. Eis que surgem os direitos humanos fundamentais, em sua segunda dimensão: os direitos econômicos, sociais e culturais229: O maquinismo industrial punha em perigo a integridade física dos trabalhadores e, consequentemente, os recursos humanos da Nação. Por isso o Direito foi interposto entre a máquina e os corpos no trabalho: regras de higiene e de segurança foram impostas para protege-los, a começar por aqueles que encarnam o futuro de uma sociedade: as mulheres e as crianças.230 Como afirma o jus-sociólogo francês, Alain Supiot, os direitos sociais representam a compreensão e positivação das necessidades sociais231, e o reconhecimento de que o Estado deve intervir nas relações econômicas a fim de garantir a realização dos direitos pertinentes às relações de produção social da vida232, em especial, os direitos dos trabalhadores, para além de resumir-se à tutela do direito de propriedade. Neste ponto, vale ressaltar a impropriedade do argumento que profere a inviabilidade de se efetivarem os direitos sociais, desde uma perspectiva econômica e financeira, haja vista demandarem e onerarem sobremaneira os cofres públicos. Sem afastar a verdadeira carga ideológica de tal concepção, José Eduardo Faria não deixa escapar a inquietação, levantando o questionamento de que se, por acaso, a garantia e efetivação dos direitos individuais já não demandassem, per si, considerada monta do orçamento público, como se o ônus financeiro da garantia de direitos fosse apenas características dos direitos sociais. De notar que, se os direitos de primeira dimensão nascem para romper com a opressão política e tributária realizada pelo Estado, clamando pelo seu afastamento e abstenção em prol das liberdades individuais, os direitos humanos de segunda dimensão, por seu turno, surgem justamente desta liberdade conferida aos proprietários dos meios de produção, que, levada às últimas conseqüências, passou a significar outra forma de opressão, agora econômica. Diante disso, reivindica-se o retorno da atuação estatal, agora com mecanismos e concepções diferenciadas, projetando sua intervenção na esfera das relações econômicas, e também enquanto prestação social. Como explica José Eduardo Faria: 229 Trataremos aqui tão somente dos direitos econômicos e sociais, pela pertinência direta ao tema da dissertação. SUPIOT, op. cit., p. 170. 231 Ibid., p.191. 232 De fato, a questão do modo de produção, em Marx, para além de interpretações reducionistas – também chamadas vulgares – possui significado muito além de sua dimensão econômica: “Não se deve considerar tal modo de produção de um único ponto de vista, a saber: a reprodução da existência física dos indivíduos. Tratase, muito mais, de uma determinada forma de atividade dos indivíduos, determinada forma de manifestar sua vida, determinado modo de vida dos mesmos” (grifo no original): MARX, ENGELS, op. cit., p. 27. 230 94 Se os direitos humanos foram originariamente constituídos como forma de proteção contra o risco de abusos e arbítrios praticados pelo Estado, concretizando-se somente por intermédio deste mesmo Estado, os direitos sociais surgiram juridicamente como prerrogativa dos segmentos mais desfavoráveis – sob a forma normativa de obrigações do Executivo, entre outros motivos porque, para que possam ser materialmente eficazes, tais direitos implicam uma intervenção ativa e continuada por parte dos poderes públicos. A característica básica dos direitos sociais está no fato de que, forjados numa linha oposta ao paradigma kantiano de uma justiça universal, foram formulados dirigindo-se menos aos indivíduos tomados isoladamente como cidadãos livres e anônimos e mais na perspectiva dos grupos, comunidades, corporações e classes a que pertencem. Ao contrário da maioria dos direitos individuais tradicionais, cuja proteção exige apenas que o Estado jamais permita sua violação, os direitos sociais não podem simplesmente ser “atribuídos” aos cidadãos; cada vez mais elevados à condição de direitos constitucionais, os direitos sociais requerem do Estado um amplo rol de políticas públicas dirigidas a segmentos específicos da sociedade – políticas essas que têm por objetivo fundamentar esses direitos e atender às expectativas por eles geradas com sua 233 positivação. Os direito sociais trazem, portanto, a noção de exercício, de realização, em contraposição à noção de proibição, que acompanhava os direitos de primeira dimensão. Como dito, são verdadeiros instrumentos para realização de outros direitos, os direitos humanos fundamentais individuais, daí a verificação da complementaridade daquelas dimensões, que tem na categoria do trabalho um expoente, uma vez que carrega consigo a noção do direito individual de trabalhar, o direito ao trabalho, e da garantia à proteção material deste direito ao trabalho. Garantia da proteção do direito de trabalhar com dignidade. Talvez seria essa uma definição, ou apenas informação, da dimensão econômica e social do direito humano fundamental ao trabalho, o que nos remete à afirmação de Alain Supiot, no sentido de que o direito cumpre a função singular de constituir uma ferramenta de humanização das técnicas234. De notar que a questão dos direitos sociais enquanto exercício se faz presente aqui, uma vez que não se trata mais de permitir o livre exercício de empregar, ou trabalhar, mas de garantir, através de ações, o exercício de um trabalho, de maneira digna. Não se trata de proibir o livre arbítrio do empresário, mas de garantir que própria atuação deste proporcione condições dignas de trabalho, ainda nos limites do que isto possa significar no interior do modo 233 Note-se que o autor separa, terminologicamente, os direitos humanos dos direitos sociais: FARIA, José Eduardo. O judiciário e os direitos humanos e sociais: notas para uma avaliação da justiça brasileira. In: _______ (Org.). Direitos Humanos, direitos sociais e justiça. São Paulo: Malheiros, 2002. p. 105. 234 SUPIOT, op. cit., p. 161. 95 capitalista de produção, adotado e reafirmado pela Constituição da República Federativa do Brasil, de 1988235. 3.2 O trabalho enquanto programa constitucional De saída, cumpre salientar, como anteriormente mencionado, que se cogita aqui não especificamente daqueles direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, como discorrem os arts. 7º a 11 da Constituição de 1988, frequentemente identificados com os direitos dos trabalhadores em sede de um contrato de trabalho. É certo que, nos termos do § 1º do art. 5º da Carta Magna, estes direitos do “campo social-trabalhista” têm aplicação imediata236, por constarem ainda no Título dos Direitos e Garantias Fundamentais, além de constituírem cláusulas pétreas237, não sendo passíveis, portanto, de abolição. Quando falamos em uma ordem constitucional do trabalho, no entanto, nos referimos antes àquelas normas principiológicas que, de um lado, indicam um programa que transcende a esfera individual da relação de trabalho, porque eminentemente público e coletivo, mesmo vinculante para o setor público e também o privado, para além do planejamento previsto no caput do art. 174 da Constituição pátria. Note-se que o programa que emana da ordem constitucionalmente prevista para o trabalho, no Brasil, determina a atuação também da sociedade, porque o seu âmbito é a própria garantia da dignidade humana, alçada a fundamento da República, para além do planejamento da economia, que diz mais respeito à política econômico-financeira do governo, a previsão orçamentária e destinação dos recursos públicos, a taxa básica de juros, etc. Este programa de que se cogita emana, portanto, não de uma norma em-si, ou de um artigo isolado. Está inscrito no texto constitucional enquanto sistema; na concepção dirigente que inspira a Constituição Cidadã como um todo; nos princípios fundamentais da República; nos princípios conformadores da ordem econômica constitucional; e, finalmente, na ideologia constitucional238. É programa que se posiciona perante o próprio sistema econômico, 235 SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 20. ed. rev. e atual., São Paulo: Malheiros, 2002. p. 771; GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na Constituição de 1988. 10. ed. rev. atual. São Paulo: Malheiros, 2005. p. 190. 236 SUSSEKIND, Arnaldo. Direito constitucional do trabalho. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2004. p. 84; SILVA, op. cit., 2002. p. 289. 237 SÜSSEKIND, op. cit., p. 90. 238 GRAU, op. cit., p. 169. 96 determinando, em última instância, qual o significado que o trabalho deve preencher na vida individual de cada brasileiro, e até mesmo o estrangeiro, porque assim determina também qual significado o trabalho possui para a sociedade brasileira em sua totalidade. Neste sentido, a ordem constitucional do trabalho, que assim como outras ordens constitucionais, como a ordem social e a própria ordem econômica, não estão rigidamente encaixadas em subsistemas que encontram disposição cardinal contínua no texto constitucional, mas emana de um sistema que se encontra distribuído pelo corpo constitucional como um todo239, apresentados em diferentes Títulos da Carta Política, mais precisamente no Título I: “Dos Princípios Constitucionais”, art. 1º, inciso III e IV, e art. 3º, incisos I, II e III. No Título II: “Dos Direitos e Garantias Fundamentais”, Capítulo I: “Dos Direitos e Deveres Individuais e Coletivos”, art. 5º, inciso XIII; Capítulo II: “Dos Direitos Sociais”, arts. 6º a 11. No Título VII: “Da Ordem Econômica e Financeira”, Capítulo I: Dos Princípios Gerais da Atividade Econômica”, art. 170, caput, e incisos III, VII e VIII; Capítulo III: “Da Política Agrícola e Fundiária e da Reforma Agrária”, art. 186, III e IV, e art. 187, caput, e incisos VI e VIII. E, finalmente, no Título VIII: “Da ordem Social”, em sua disposição geral única, apresentada no art. 193. Há que se reconhecer, desse modo, a interface desta ordem constitucional do trabalho com toda própria ordem social, em especial no tangente à saúde, à previdência social, e à cultura. No presente estudo, no entanto, pretendemos explorar apenas o programa e o âmbito material dos arts. 1º, 3º, 5º, 170, e 186 da Constituição Federal, de modo a extrair a unicidade que informa o significado do trabalho rural enquanto dimensão intrínseca ao cumprimento da função social da propriedade rural, em seu programa específico. De fato, os princípios reforçam a compreensão de que o ordenamento constitucional não constitui um agregado de normas, senão uma totalidade em-si, dotada de unidade e coerência, de modo que, como afirma Eros Grau, em célebre assertiva, “[...] não se interpreta a Constituição em tiras, aos pedaços”240. De início, cumpre perceber que se tratam, os artigos selecionados, de normasprincípios. De fato, a função dos princípios é auxiliar a hermenêutica constitucional a concretizar o direito, justamente porque, na textura aberta que lhes é característica, é possível inscrever um programa de âmbito estrutural, senão que os casos concretos de que tratam os princípios ora selecionados acabam por referir-se à própria realização do direito, da economia 239 240 GRAU, op. cit., p. 175. Ibid., p. 166. 97 e da política na sociedade brasileira, o que torna recorrente a dimensão social do trabalho, vez relacionar-se este aos princípios em questão. Eros Grau identifica a questão da estrutura normativa, e o próprio processo de concreção estruturante que deve percorrer o intérprete, destacando, no entanto, para além da pretensa neutralidade de Müller, que os múltiplos métodos de interpretação utilizados são conformados por uma linha de atuação determinada por um ponto de vista ideológico241, admitindo que não há hierarquia entre os métodos, senão um critério de utilidade. Neste sentido, o método coerente com a Constituição Federal é a interpretação principiológica, considerando os princípios enquanto normas conformadoras do texto constitucional em sua totalidade, que se configura, notadamente, enquanto “estatuto político do jurídico”242. A interpretação principiológica, por seu turno, deve orientar-se pelas normas-objetivo, quer dizer, deve contribuir para encontrar soluções adequadas, que apontem para o sentido destas normas-objetivo. Assim, o método de interpretação constitucional não abre mão de sua dimensão teleológica, na busca pela consolidação dos fundamentos, enfrentamento dos objetivos, e efetiva concretização dos fins da República, expostos no programa constitucional dirigente. Nos termos da concepção de J.J. Gomes Canotilho, Eros Grau relata que os princípios emanados da dignidade da pessoa humana e do valor social do trabalho (art. 1º, III e IV) e da valorização do trabalho humano (art. 170, caput) possuem natureza de princípios políticos constitucionalmente conformadores243, expressão das valorações políticas fundamentais do legislador constituinte. Já os princípios da garantia do desenvolvimento nacional e da erradicação da pobreza e da marginalização e da redução das desigualdades sociais e regionais (art. 3º, II e III), junto ao princípio da existência digna (art. 170, caput), por seu turno, possuem a natureza de princípios constitucionais impositivos, princípios diretivos fundamentais, característicos da constituição dirigente, e definidores das tarefas e dos fins do Estado244. Na classificação do professor José Afonso da Silva, poderíamos identificar nos artigos constitucionais selecionados aquela verdadeira condição de normas programáticas, desde já ressaltando a normatividade que lhe é imanente e imediata, desde o início de sua vigência. Seriam elas, neste sentido, normas-princípios, normas fundamentais, ou normas constitucionais de princípios gerais, constituindo, de um lado, “[...] as normas fundamentais 241 GRAU, op. cit., p. 165. CANOTILHO apud GRAU, idem, p. 163. 243 GRAU, op. cit., p. 196. 244 Op. cit., p. 159. 242 98 de que derivam logicamente (e em que, portanto, já se manifestam implicitamente) as normas particulares regulando imediatamente relações e situações específicas da vida social”, possuindo, assim, eficácia plena, e aplicação direta e imediata245. De fato, como veremos, adiante, este programa constitucional do trabalho de que se cogita nas normas-princípios selecionadas acima irão expressar-se, de maneira particular, no texto do art. 186, quando da caracterização das dimensões do trabalho e do bem-estar no instituto da função social da propriedade rural. Note-se que se tratam aqui de princípios constitucionais expressos no próprio texto constitucional, os quais são complementados, ainda, pelos princípios implícitos, como os princípios gerais do direito constitucional, induzidos pela ciência do direito constitucional da realidade histórico-social de cada sociedade246, dentre os quais se destaca aqui o princípio da proteção social do trabalhador247, proteção não meramente filantrópica, mas politicamente racional248. De fato, como anota Arnaldo Süssekind: A Constituição brasileira de 1988 não revelou, em disposição expressa os princípios informadores do Direito do Trabalho, tal como procedeu em relação à seguridade social (art.194) e a outros títulos. Mas, inquestionavelmente, há princípios explicitados ou induzidos que são aplicáveis às relações de trabalho.249 Neste sentido, cumpre admitir a pertinência da incorporação dos princípios próprios do direito do trabalho à metódica aqui empregada, no intuito de identificar uma hermenêutica digna da concretização do programa constitucional do trabalho. Desse modo, aliado ao princípio da proteção social do trabalhador, supra mencionado, devem ser reivindicados, no que couber, v.g., os princípios in dubio pro trabalhador, da norma mais favorável ao trabalhador, e da condição mais benéfica, princípios que, na concepção de Plá Rodrigues, constituem, em verdade, as três regras que compõem aquele princípio protetor primeiro250. Portanto, esta parece ser a metodologia mais pertinente à concretização da Constituição Federal, qual seja, a incorporação da concepção estrutural da norma e do direito, e do dinamismo que imprime à aplicação da norma constitucional, aplicação concebida 245 CRISAFULLI, apud SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das normas constitucionais. 7. ed. São Paulo: Malheiros, 2008. p. 119. 246 PINTO FERREIRA, apud SILVA, op. cit., 2008. p. 120; GRAU, op. cit., p. 195. 247 SILVA, op. cit., 2008. p. 121; SÜSSEKIND, op. cit., p. 69. 248 GRAU, op. cit., p.198. 249 SÜSSEKIND, op. cit.,, p. 66. 250 Apud MAIOR, Jorge Luiz Souto. O direito do trabalho como instrumento de justiça social. São Paulo: LTr, 2000. p. 295. 99 enquanto processo de adaptação das normas à realidade251; a identificação e utilização de variados métodos de interpretação, orientados, sobretudo, pela principiologia teleológicosistemática imanente à Constituição dirigente; e, finalmente, a compreensão – que não passa de uma verificação ontológica – do caráter axiomático do texto constitucional, o que pede o reconhecimento, por seu turno, das funções concretizantes das forças pluralistas da sociedade, em sua práxis histórico-constitucional, enquanto sujeitos, e para além de objetos, meros destinatários do programa constitucional. É esta a concepção que orienta a exploração do programa constitucional do trabalho que se propõe aqui. O que se espera ressaltar é a verdadeira dimensão social e institucional que a Constituição Federal reconhece ao trabalho, e impõe ao Estado e à iniciativa privada respeitar, nos termos deste que se denomina aqui de programa constitucional do trabalho. O tratamento constitucional dos valores sociais do trabalho estão em intrínseca relação com realização da dignidade humana, vez que já se encontram, ambos, nos incisos do art. 1º da República. Deste modo, foram elevados ao status de princípios constitucionais, enquanto elementos fundamentais daquela República. Destarte, reconhecendo aquela centralidade ontológica do trabalho na própria constituição da dignidade da pessoa humana, de um lado, e na própria base fundamental da sociedade brasileira, de outro, ressaltando, assim, sua dimensão eminentemente social e verdadeiramente institucional252 enquanto direito humano social fundamental, a Constituição Cidadã assenta sobre o trabalho as bases constitucionais da própria organização da sociedade brasileira, e do respectivo Estado, o que não quer dizer outra coisa senão que, na realidade concreta, o trabalho “sustenta” a sociedade brasileira. Em termos normativos, tal inscrição significa, de maneira complementar, que a dignidade da pessoa humana e os valores sociais do trabalho constituem princípios políticos constitucionais que conformam a organização da República Federativa do Brasil. No entanto, reconhecendo também, de outro lado, que a realização desta dignidade humana não constitui algo consolidado em nossa sociedade, decerto admitindo que não se trata de fatalidade histórica, mas de opressão pública e privada – lembre-se das dimensões históricas dos direitos humanos – realizada na história, o texto constitucional considera a existência digna como um fim a ser atingido através da ordem econômica, como veremos adiante. De fato, a dignidade da pessoa humana, como inscrito no texto constitucional, congrega o núcleo essencial dos direitos humanos, ao lado do próprio direito à vida, 251 252 GRAU, op. cit., p. 168. CANOTILHO apud SILVA, op. cit., 2008. p. 152. 100 conferindo unidade às múltiplas dimensões dos direitos fundamentais individuais, sociais e econômicos. Desse modo, a dignidade é fundamento, possui eficácia plena e aplicabilidade imediata, já deve ser observada em toda e qualquer norma e relação social que se realiza na sociedade brasileira, ainda que não exista texto normativo específico para determinar o que significa a dignidade em determinada situação, mesmo porque a práxis concreta, de forma recorrente na história, sempre identificou o significado dos direitos humanos no cotidiano social antes e para além do ato de sua positivação. Neste sentido, o princípio da dignidade humana, na forma como inscrito no texto constitucional, quer dizer, enquanto fundamento da República e fim da ordem econômica constitucional, expressa-se na também forma de programa: A dignidade da pessoa humana assume a mais pronunciada relevância, visto comprometer todo o exercício da atividade econômica, em sentido amplo – e em especial, o exercício da atividade econômica em sentido estrito – com o programa de promoção da existência digna, de que, repito, todos devem gozar. Daí porque se encontram constitucionalmente empenhados na realização desse programa – dessa política pública maior – tanto o setor público quanto o setor privado. Logo, o exercício de qualquer parcela da atividade econômica de modo não adequado àquela promoção expressará violação do princípio duplamente contemplado na Constituição. Observe-se ademais, neste passo, que a dignidade da pessoa humana apenas restará plenamente assegurada se e enquanto viabilizado o acesso de todos não apenas às chamadas liberdades formais, mas, sobretudo, às liberdades reais.253 (grifo nosso) Como observa-se no texto de Eros Grau, o programa de promoção da existência digna está, no texto constitucional, estritamente vinculado à realização do trabalho. Este, por sua vez, encontra na Constituição um programa próprio, que deve ser cumprido e concretizado, obrigatoriamente, tanto pelo Estado, como pela iniciativa privada que emprega a mão-deobra. Isso significa que o programa constitucional do trabalho, que é sempre o trabalho digno, para muito além de destinar-se única e exclusivamente ao legislador, como afirma aquela concepção tradicional e conservadora das normas diretórias, obriga, desde a sua promulgação, a atividade empresarial. De fato, estas cláusulas principiológicas referentes ao trabalho expressam, de certa forma, a prevalência dos valores sociais do trabalho na conformação da ordem econômica constitucional. Como ensina o professor José Afonso da Silva: Embora capitalista, a ordem econômica dá prioridade aos valores do trabalho humano sobre todos os demais valores da economia de mercado. Conquanto se trate de declaração de princípio, essa prioridade tem o sentido de orientar a intervenção do Estado, na economia, a fim de fazer valer os valores sociais do trabalho.254 253 254 GRAU, op. cit., p. 197; MAIOR, op. cit., p. 279. SILVA, op. cit., 2002. p. 764. 101 Quando analisada no primeiro capítulo a temática da ordem econômica na Constituição de 1988, percebeu-se que, notadamente, a Constituição expressa a opção pelo modo de produção capitalista. No entanto, esta opção orienta-se no sentido do que o legislador constituinte compreendia, à época, consistir no aprimoramento do sistema capitalista, “ideologia constitucionalmente adotada”, aprimoramento que estaria vinculado à rejeição da economia liberal, em favor da postulação de um modelo de bem-estar255. Formulação clássica do direito do trabalho é justamente aquela que, reivindicando a justiça social como seu princípio básico, busca fazer dele instrumento (dentre outros) de eliminação das desigualdades e injustiças, características – alguns diriam imanentes – das relações de trabalho no sistema capitalista, onde há a tensão constante entre capital e trabalho. Como afirma o professor Jorge Luiz Souto Maior, “[...] a valorização social do trabalho no mundo capitalista é forma decisiva de inibir a acumulação de riqueza, contribuindo, decisivamente, para a redistribuição da riqueza acumulada, injustamente, ao longo da história”256. No entanto, como lamenta José Afonso da Silva, a eqüitativa distribuição de riqueza, com vistas à justiça social, “não é tarefa fácil no capitalismo”257. Talvez seja mesmo impossível, mas não há que se conformar. O programa constitucional do trabalho parece ter-se mostrado, até aqui, enquanto valor social; de fato, é acerca dos valores sociais do trabalho que se cogita. Neste ponto, cumpre observar que valor intrínseco ao trabalho é a realização da dignidade humana, ao passo que, por seu turno, parece somente poder ser atingida à medida da dignidade do trabalho exercido, de modo que o trabalho signifique, ao final, elemento essencial à realização da dignidade humana. Esta dignidade, por sua vez, ocupa o núcleo dos direitos humanos fundamentais, ao lado do próprio direito à vida, conferindo unidade e complexidade àqueles direitos humanos. Estes direitos humanos fundamentais, por seu turno, acabam por representar o próprio núcleo do sistema constitucional do Estado de Direito258, o que nos leva a crer que a proteção do trabalho enquanto direito fundamental ocupa lugar central no ordenamento jurídico brasileiro. De fato, como se procurou argumentar por aqui, a positivação de uma direito acompanha um movimento – que se evidencia enquanto processo histórico – que parte da 255 GRAU, op. cit., p. 332. MAIOR, op. cit., p. 265. 257 SILVA, op. cit., 2002. p. 765. 258 CANOTILHO, Joaquim José Gomes. Estudos sobre direitos fundamentais. Coimbra: Coimbra Editora, 2004. p. 136. 256 102 realidade concreta, da práxis cotidiana, para a positividade, ou seja, para o ato de sua positivação, o que não significa, senão, apenas uma verificação ontológica legalizada juridicamente pelo legislador, e reconhecida espistemologicamente pela Ciência do Direito. No caso do trabalho, não poderia ser diferente. Em termos ontológicos, o trabalho ocupa lugar central na práxis social, sendo que a partir dele é que se realiza a dignidade humana – representando sua dimensão individual – ao passo que contribui, ainda, direta e determinantemente, para a produção da riqueza social. Assim, nos termos daquela verificação ontológica que deve orientar a ciência do direito e, consequentemente, a produção do texto normativo, ou seja, a atividade do legislador, a definição ou proteção jurídica do trabalho, expressa enquanto programa constitucionalmente conformador da atividade econômica, pública e privada, deve, necessariamente, elevar o trabalho, entenda-se, os valores sociais do trabalho e a própria valorização do trabalho, à posição nuclear no ordenamento jurídiconormativo brasileiro, poderíamos dizer, à posição de fundamento da república Federativa do Brasil, mas isto já está dito no texto constitucional. 3.3 A função social da propriedade enquanto instrumento do programa constitucional do trabalho rural E a pergunta que vem agora questiona: o que seria este programa constitucional do trabalho, para o meio rural? Ao que parece, a resposta encontra sua especificidade no texto dos incisos III e IV do art. 186 da Constituição Federal, que determinam: Art. 186. A função social é cumprida quando a propriedade rural atende, simultaneamente, segundo critérios e graus de exigência estabelecidos em lei, aos seguintes requisitos: [...] III – observância das disposições que regulam as relações de trabalho; IV – exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores. Intenta-se aqui analisar qual o significado do programa constitucional do trabalho enquanto dimensão do instituto da função social da propriedade rural. Cogita-se, portanto, do programa constitucional do trabalho rural, que emana, por seu turno, do texto do art. 186 da Constituição Cidadã, em consonância com as normas-princípios do art. 1º, 3º, 5º e 170. De 103 notar que este programa já expressa sua bidimensionalidade ontológica, ao passo em que trata, de uma lado, do cumprimento da legislação que regulamenta as relações de trabalho, o que acaba por direcionar-se a uma dimensão individual – quase contratual, dependendo da corrente a que se filia – do trabalho, remetendo-nos à concepção da valorização do trabalho enquanto fundamento da ordem econômica e, de outro, postula a promoção do bem-estar, que parece fazer menção, por seu turno, àqueles valores sociais do trabalho que fundamentam a própria República, e conformam toda a ordem constitucional. Se orientado ontologicamente, este programa constitucional do trabalho rural partiu, para a concepção do texto constitucional, já da história da estrutura agrária brasileira, encarado-a de frente, analisando-a em suas dimensões econômicas, políticas e sociais. Neste sentido, não parece ser ausente de motivos a opção do legislador constituinte em dedicar quase a totalidade de um capítulo da ordem econômica constitucional à reforma agrária259. Como o texto normativo não carrega palavras inúteis, a inserção deste capítulo possui razão de ser parte no contexto constitucional. Não há espaço aqui, nem mesmo necessidade, de apresentar uma análise desta história da estrutura fundiária brasileira, senão de apontar elementos essenciais que informam aquele programa constitucional do trabalho rural. A análise parte, assim, do que se convencionou chamar de questão agrária brasileira, conceito que envolve os fatores agrários produtivos em sua dupla dimensão, a saber: a terra e o homem trabalhador – sem olvidar a importância da empresa agrária. De fato, a análise da questão agrária não pode isolar a produção agrícola de sua dimensão social; não ignora a determinação econômica sobre as relações sociais; não abstrai que a estrutura agrária brasileira determinou, na história, a própria estrutura social do país. E como fora forjada esta estrutura fundiária que determinou as bases sobre as quais se erigiu a sociedade brasileira? Como era organizada a propriedade da terra, e o trabalho nela empreendido? Admite-se que se tratam de perguntas eminentemente retóricas, dado o caráter notório da afirmação que as responde: a história da questão agrária brasileira fora marcada, consolidada e constituída sobre as bases da concentração da propriedade da terra, de uma produção concebida e direcionada para o mercado externo, e utilização de trabalho escravo, originalmente indígena, e posteriormente negro. Considerando que a presente análise vem no intuito de identificar os elementos históricos que informam o programa constitucional do trabalho rural, cumpre levantar uma questão: teriam, escravos e senhores, deixado herdeiros 259 Título VII: “Da Ordem Econômica e Financeira”, Capítulo III: “Da Política Agrícola e Fundiária e da Reforma Agrária”. 104 que, na devida forma histórica, acabam por reproduzir as condições sociais historicamente construídas ao longo de “quatro séculos de latifúndio”, e escravidão? Ou teria a sociedade brasileira, ao longo do século XX – o primeiro em que o postulado da liberdade, nos termos daquele liberalismo francês, fora reconhecido enquanto direito positivo – superado esta desigualdade de posições sociais? A despeito de romantismos nostálgicos, e tomando o devido cuidado para não incorrer em anacronismos e idiossincrasias indissolúveis, Gyorgy Lukács lembra que a análise e reconstrução da história surge justamente da necessidade de compreensão do presente: A reinterpretação do passado nasce, em primeiro lugar, de um carecimento do presente: o motivo da escolha ou da recusa não pode ser a identidade ou convergência objetiva em sentido gnosiológico: o motivo consiste na possibilidade de utilização atual, em circunstâncias concretamente presentes, segundo a resultante da luta entre interesses sociais concretos.260 Neste sentido, vemos a pertinência destas considerações históricas sobretudo quando da análise do âmbito constitucional do trabalho rural, não sem antes render humilde homenagem à bravura deste povo brasileiro, que – à revelia do discurso ideológico que afirma a passividade e mansidão conformistas desta gente, discurso que, na verdade, tem o intuito de instalar este conformismo que antes se almeja do que se observa – buscou, à medida das formas históricas, realizar a sua libertação, para além do que o direito instituído lhes determinava. Foi assim com a negação ao trabalho, do indígena, nos idos do século XVI; com as revoltas negras e a organização dos quilombos261, ao longo dos quatro séculos de escravidão; com as revoltas populares do período colonial; e com as organizações camponesas ao longo do século XX262 e XXI, que, ao invés de extinguirem-se, pela perda de seu objeto, por assim dizer, ganham maior importância e diversidade, ao passo que aquela questão agrária assume novas formas históricas (de opressão), o que culminou em uma impressionante revisão, ou “re-realização”, de todas estas formas históricas de organização social para a libertação do povo brasileiro, novas formas que atendem agora pelo conceito de comunidades tradicionais263. 260 LUKÁCS, op. cit., 1979 - B, p. 133. Cf. MOURA, Clóvis. A rebelião negra e os quilombos. São Paulo: Brasiliense, 1987.. 262 Canudos, Contestado, Ligas Camponesas, Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra e demais movimentos de luta pela terra, Movimentos dos Atingidos por Barragens, Movimentos dos Pequenos Agricultores e da Agricultura Familiar. 263 Comissões Indígenas, Organizações de Quilombolas, Extrativistas e Pescadores, v.g. Cf. CANUTO, Antonio. O agronegócio avança sobre novos territórios e alimenta a violência. In: Direitos Humanos no Brasil 2007: Relatório da Rede Social de Justiça e Direitos Humanos. São Paulo: Rede Social de Justiça e Direitos Humanos, 2007. 261 105 Por ora, o importante é reconhecer que a Constituição Federal de 1988 não considera que esta questão agrária esteja solucionada, o que se observa no texto dos incisos II e III, do art. 3º, quando eleva a objetivos fundamentais da República a garantia do desenvolvimento nacional, bem como a erradicação da miséria, marginalização e desigualdade social e regional. Neste sentido, valem novamente as considerações do professor Gilberto Bercovici, quando indica a natureza de “cláusula transformadora” do referido art. 3º: A “cláusula transformadora” explicita o contraste entre a realidade social injusta e a necessidade de eliminá-la. Deste modo, ela impede que a Constituição considere realizado o ainda está por se realizar, implicando a obrigação do Estado em promover a transformação da estrutura econômico-social.264 E o que há de se transformar na estrutura agrária brasileira, senão o próprio modelo de desenvolvimento agrário que está em curso desde a gênese da sociedade brasileira? Há que se transformar, portanto, a estrutura fundiária, quer dizer, a organização da propriedade, de modo a desconcentrá-la, e, assim, distribuir a riqueza gerada no campo; transformar a política agrícola, quer dizer, a atuação estatal junto à agricultura, voltando-se, finalmente, para a agricultura familiar e a produção cooperativa e agroecológica, agregada de tecnologia e destinada ao mercado interno; há que se transformar, portanto, a forma como é realizado o trabalho neste modelo de desenvolvimento que serve a concentrada parcela da população, mas é realizado por uma imensa gama de trabalhadores que, diante desta estrutura, vivenciam a ineficácia do programa constitucional do trabalho rural, como pretendemos demonstrar. Como aponta o Ministro Eros Roberto Grau, “[...] o alcance do bem-estar é, historicamente, o mínimo que tem a almejar a sociedade brasileira”265. Esta é a ideologia constitucionalmente adotada: a instalação de um Estado Democrático de Direito, e de uma sociedade de bem-estar social266. No tangente à questão agrária, a postulação constitucional desta sociedade de bem-estar pode ser observada no Capítulo da “Política Agrícola e Fundiária, e da Reforma Agrária”. Como resta patente já do texto constitucional, o legislador constituinte deposita na reforma agrária aquela condição de cláusula transformadora, também atribuída aos objetivos fundamentais, não admitindo a hipótese de que a estrutura agrária existente corresponda ao programa constitucional; não admitindo que se considere realizada uma desconcentração fundiária que ainda – 20 anos após a promulgação da Constituição de 1998 – está por se realizar. Desse modo, a realização da reforma agrária reveste-se da condição de norma264 BERCOVICI, op. cit., p. 36. GRAU, op. cit., p. 314. 266 Ibid., p. 332. 265 106 objetivo da ordem econômica, enquanto instrumento de intervenção do Estado para a realização do programa constitucional do bem-estar. É na busca deste bem-estar que está inserido, enquanto instrumento, o programa do trabalho rural, extraído, sobretudo, do texto dos incisos III e IV do art. 186 da Constituição Federal, em consonância com os parágrafos do art. 174, a totalidade dos artigos do Capítulo da “Política Agrícola e Fundiária”, e os próprios artigos daquela programa constitucional do trabalho. Como supra apresentado, o art. 186 trata da função social da propriedade rural. Para o momento, cabe a análise, dos incisos III e IV, a saber, das dimensões do trabalho e bem-estar daquela função social da propriedade, também concebida como o próprio elemento social daquela função social, vez que dizem respeito imediato ao homem, enquanto as outras dimensões dizem-lhe um respeito mediato, mediatizado pelo uso racional e adequado, ou pela preservação ambiental. No entanto, não há que se olvidar que a natureza multidimensional da função social deve ser compreendida, sempre, a partir de sua totalidade; a partir da simultaneidade expressa já no texto da norma constitucional, impondo, já ali, aquela condição hermenêutica de limite negativo267, de onde o intérprete/aplicador não pode voltar atrás, o que significa que a função social da propriedade só é cumprida quando atendida a sua multifuncionalidade. O inciso III do art. 186 dispõe que a propriedade cumpre a sua função social inerente tão somente quando se observa, ali, as disposições que regulam as relações de trabalho. Como analisado acerca do programa constitucional do trabalho, a esfera das relações de trabalho, que vão além das relações de emprego, representam a dimensão individual daquele programa, e identificam-se com a norma-princípio da dignidade da pessoa humana, fundamento da República e finalidade da ordem econômica constitucional. Cumpre analisar, assim, qual o programa da existência digna pertinente ao trabalhador rural. De início, há que se delimitar a natureza jurídica do trabalho rural. É conhecida a celeuma que envolve o tema, qual seja, se o trabalho rural deva ser concebido e analisado sob a ótica do Direito do Trabalho, do Direito Agrário, ou de ambos268. É de se observar que o posicionamento perante esta questão, geralmente, orienta-se no sentido da área de pesquisa e atuação daquele que a enfrenta. Posto isto, cumpre observar os limites que a postura daqui, ou d’acolá, podem trazer à análise. Se, de um lado, um posicionamento absolutamente jus267 MÜLLER, op. cit., p. 101. Para uma abordagem completa da doutrina nacional e internacional sobre o tema, cf. MANIGLIA, Elisabete. O trabalho rural sob a ótica do direito agrário: uma opção ao desemprego no Brasil. Franca: FHDSS, 2002. p.41-50. 268 107 agrarista pode não corresponder à relação trabalhista desenvolvida nos termos da CLT, uma concepção eminentemente jus-trabalhista, de outro, parece não compreender a própria especificidade do trabalho rural enquanto trabalho realizado a partir de um meio de produção especial, a terra, meio este que, por seu turno, não é produto do trabalho humano, e por isto se diferencia dos meios de produção industrial269, ambiente mais recorrente no imaginário do jurista trabalhista. Como afirma a professora Elisabete Maniglia: O trabalho rural pertence como gênero ao mundo do Direito Agrário, pois trabalho é atividade agrária desenvolvida pelo homem. O que diferencia e determina a natureza jurídica é o vínculo que se estabelece entre o homem com a terra e homem com o homem. No caso de subordinação, horário, salário, relação personalíssima, temos sem sombra de dúvida a ingerência do Direito do Trabalho, pois há o vínculo de emprego e, consequentemente, o domínio dessa área no estudo e aplicação da legislação pertinente.270 Assim, comunga-se da opinião da professora, quando afirma que o trabalho rural deve ser encarado a partir da intersecção do direito agrário com o direito do trabalho. Neste sentido já o método de interpretação principiológica vem coroar tal concepção, vez que, como afirma unanimemente a doutrina, os princípios cumprem, justamente, uma função de conferir coerência e unidade ao ordenamento jurídico. Neste sentido, tanto os princípios do direito agrário quanto do direito do trabalho são pertinentes à concretização do programa constitucional do trabalho rural. De notar, de saída, a própria identidade entre estes ramos autônomos da Ciência do Direito. Ambos são considerados ramos modernos, de certa forma ainda novos, datando suas gêneses, no Brasil, do século XX271. No mesmo sentido, identificam-se, ainda, comumente, com a segunda dimensão dos direito humanos fundamentais, os chamados direitos sociais, considerados verdadeiros ramos jurídicos que instrumentalizam a busca pela igualdade material272, no sentido da justiça social, o que já se observa desde a relativização do princípio da igualdade das partes contratuais, e a imposição legal do princípio da hipossuficiência, cada um à sua forma, porém ambos protegendo o trabalhador destituído dos meios de produção a que se refere. Além disso, possuem, ainda, a justiça social enquanto norma-objetivo. De maneira complementar, identifica-se, ainda, intenso debate doutrinário acerca de suas 269 MARX, op. cit., p. 45. MANIGLIA, Elisabete. O trabalho rural sob a ótica do Direito Agrário: uma opção ao desemprego no Brasil. Série Dissertações e Teses 9. Franca: Ed. UNESP, 2002. p. 20. 271 SODERO, Fernando Pereira. Direito agrário e reforma agrária. São Paulo: Livraria Legislação Brasileira, 1968. p. 09; MAIOR, op. cit., p. 260. 272 LARANJEIRA, Raymundo. Propedêutica do direito agrário. São Paulo: LTr, 1975. p. 134; MAIOR, op. cit., p. 247. 270 108 naturezas jurídicas, se pública273 ou privada, ou mesmo se possuem natureza ambivalente274. Por fim, pode-se notar tal ambivalência, aliada à sua dimensão enquanto direito social, na manifestação específica que adquire ambos os contratos típicos de suas esferas, quais sejam, os contratos de arrendamento e parceria, de um lado, e o contrato de trabalho, de outro, uma vez que, em ambos os casos, existe uma sobreposição de mandamentos legais sobre as próprias cláusulas contratuais, determinando-as, e relativizando o princípio contratual da autonomia da vontade, mandamentos que emanam do Estatuto da Terra, e da CLT. E desta identidade é possível extrairmos, ainda, alguma especificidade da natureza jurídica do trabalho rural, na esfera do direito agrário, condicionadas por características sociológicas, históricas e costumeiras275, quer dizer, da verificação do exercício de atividade produtiva ligada à terra, com o agravante da relação de poder econômico, quando não tratar-se da agricultura familiar. Nas palavras de Elisabete Maniglia: Sabe-se, pois, que existem diferenças fundamentais entre empregado, arrendatário e parceiro. O primeiro está vinculado a um empregador, com subordinação, dependência, trabalho permanente e salário. Este é o empregado rural, protegido pela CLT, equiparado ao urbano, pela Constituição de 1988. Já, o parceiro e o arrendatário não são empregados, são trabalhadores da terra, assim como também o são o assentado, o pequeno proprietário familiar e, porque não, os eventuais (bóiasfria) e, até, os trabalhadores rurais sem terra que, de déu em déu, ocupando aqui, ocupando acolá, plantam para a sobrevivência. São, ao nosso ver, todos esses trabalhadores rurais que não são empregados rurais e que não recebem proteção do Direito do Trabalho, mas que nem, por isso, merecem estar excluídos do objetivo constitucional que visa o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores rurais.276 É desta gama de relações de trabalho de que tratam os incisos III e IV do art. 186 da Constituição Federal, caracterizando o programa constitucional do trabalho rural. Enquanto programa que emana de dirigismo constitucional, devemos buscar elementos de sua concretização também no restante do sistema jurídico-normativo, o que, no caso brasileiro, constitui-se de um emaranhado de normas jurídicas das mais variadas épocas e naturezas, desde lei complementares, até normas regulamentadoras expedidas pelo Ministério do Trabalho. É certo que o texto do art. 186 da Carta de 1988 fora inspirado no Estatuto da Terra, lei que, como visto277, veio conferir autonomia ao direito agrário brasileiro. Sabe-se que a Constituição de 1988 não foi a primeira a positivar no texto constitucional o princípio da função social da propriedade, constante já do inciso III, art. 157, da Constituição de 1967. Na 273 MAIOR, op. cit, p. 274. SODERO, op. cit., p. 32. 275 MANIGLIA, op. cit., p. 43. 276 Ibid., p. 64. 277 Vide item 2.1, supra. 274 109 realidade, algumas análises apontam mesmo para o fato da Constituição de 1988 apresentar uma constituição agrária com redação retrógrada em relação ao texto do Estatuto da Terra278, em especial devido: 1) à ausência em referência à improdutividade presumida do latifúndio de extensão; e, de outro lado, pelas inovações que 2) institui o pagamento em dinheiro da indenização das benfeitorias – considerado verdadeira premiação ao ex-proprietário que descumpre a função sócio-constitucional; 3) e, sobretudo, insere aquela pedra constitucional no caminho da reforma agrária, o art. 185, inciso II, cujo texto afirma que a propriedade produtiva é insuscetível de desapropriação, e cuja interpretação restrita e isolada é motivo de muita discussão doutrinária e jurisprudencial, dada a má compreensão, de um lado, e a má-fé, de outro, como referido no capítulo anterior. Apesar destes retrocessos, é fato que a Constituição de 1988 já representou, per-si, um avanço na questão social brasileira, sobretudo pelo princípio dirigente que inspira toda ela no sentido da superação das desigualdades sociais existentes. No mesmo sentido, há que se reconhecer também um avanço ainda na esfera da questão agrária, vez que pela primeira vez era constitucionalizada aquela multidimensão da função social da propriedade enquanto instituto constitucional agrário279, qual seja, a simultaneidade imanente dos elementos do uso racional e adequado do solo, da preservação ambiental, e das dimensões do trabalho rural e do bem-estar – aliada, por seu turno, à inédita equiparação do trabalhador rural ao urbano, no tangente à proteção celetista280. Daquela relação do texto constitucional com o do Estatuto da Terra, o que se pode observar em relação à dimensão do trabalho é apenas a supressão do termo “justas” relações de trabalho281, para relações de trabalho, o que não deixa de ser, de certa forma, um passo atrás. Mas cumpre, a partir do texto constitucional, analisar qual o significado do texto da norma dos incisos III e IV, do artigo 186 da Constituição Cidadã. Neste sentido, cumpre, anteriormente, explorar melhor qual o significado deste texto normativo, o que significa realizar sua analise enquanto programa constitucional do trabalho rural. De saída, aparece a necessidade em se questionar o significado dos princípios conformadores da dignidade da pessoa humana em consonância com o princípio dos valores sociais do trabalho, entendidos em seu âmbito rural. Neste sentido, faz-se mister, como 278 Cf. STOREL FILHO, Antonio Oswaldo et.all. A legislação e os impasses da Política Agrária. Reforma Agrária: Revista da Associação Brasileira de Reforma Agrária – ABRA, vol.32, nº 1, p. 67-85, ago/dez, 2005. 279 CF/88, art. 186. 280 CF/88, art. 7º. Esta equiparação também é motivo de crítica, na medida em que possa representar uma uniformização de situações fáticas distintas, ignorando a suas especificidades: MANIGLIA, Elisabete. As interfaces do direito agrário, dos direitos humanos e a segurança alimentar. Tese (Livre-Docência). 2007. 256p. Faculdade de História, Direito e Serviço Social. Franca: UNESP, 2007. p. 96. 281 Estatuto da Terra, art. 2º, §1º, “d”. 110 aludido acima, explorar a dimensão sociológica destes princípios, porque foram elas que informaram o texto constitucional quando do momento de sua gênese, haja visto que “[...] a gênese do direito não tem caráter jurídico”282. Para realizar a análise dos valores sociais do trabalho rural enquanto fundamento da própria República, é necessário remontar à questão agrária que motivou a inserção deste programa no texto constitucional. De fato, podemos afirmar que a Constituição Federal de 1988 possui em seu bojo a mais elaborada constituição agrária da história constitucional brasileira. A própria redação do art. 186, e conseqüentemente dos incisos III e IV, são inéditas em nossa esfera constitucional. É fato que o Brasil vivenciou verdadeiro dilema agrário a partir da década de sessenta, o que já se evidencia pela própria promulgação do Estatuto do Trabalhador Rural (1963) e do Estatuto da Terra (1964). Até esta época, a questão agrária fora reconhecidamente marcada pela miséria e opressão em relação ao trabalhador rural, em sua maioria trabalhadores autônomos, pequenos proprietários ou posseiros, o que era atribuído, sobretudo, ao tradicionalismo e coronelismo da sociedade rural brasileira. Desde o fim da Ditadura Vargas, e a conseqüente ampliação das liberdades democráticas no país, trabalhares rurais de todo o Brasil, em especial pequenos agricultores que estavam sendo subjugados pela expansão da cultura canavieira, iniciaram um movimento reivindicatório que acabou por culminar na própria reivindicação da reforma agrária283. Tal apelo das chamadas Ligas Camponesas acabou, anos mais tarde, consolidando-se na programa de Reformas de Base do Presidente João Goulart, deposto por um golpe militar, sendo, reconhecidamente, a sua adesão a uma proposta de reforma agrária estrutural, um dos elementos fundamentais da motivação golpista. Efetuado o golpe de Estado, a concepção que tomou lugar central na agenda do governo era a de que tal miséria e opressão poderiam ser superadas com a injeção de um modelo capitalista de produção agrícola que levaria ao desenvolvimento agrário, superando estruturas sócio-econômicas seculares. Neste sentido, fora implementado um programa de modernização agrícola que praticamente abstraía a condição daquele trabalhador rural, preocupando-se apenas com a colonização e expansão produtiva de terras longícuas, o que 282 LUKÁCS, op. cit., 1979 - B, p. 132. MORAES, Clodomir Santos de. História das Ligas Camponesas no Brasil – 1969. In: STÉDILE, João Pedro (Org.). A questão agrária no Brasil: história e natureza e das Ligas Camponesas – 1954-1964. São Paulo: Expressão Popular, 2006. p. 37; MARTINS, José de Souza. O poder do atraso: ensaios de sociologia da história lenta. São Paulo: Hucitec, 1994. p. 111. 283 111 fora realizado com vultuosos incentivos fiscais a grandes empresas nacionais e multinacionais. Ocorre que, com o tempo, consolidou-se a evidencia de que aquele modelo de modernização capitalista no campo não havia superado, mas antes intensificado aquela situação de miséria e opressão do trabalhador rural, agora com novas formas históricas. Segundo José de Souza Martins, os elementos característicos deste período histórico da questão agrária brasileira, e talvez de toda sua história, fora a expropriação e a exploração empreendidas, justamente, contra o trabalhador rural. Esse quadro nos mostra diferentes situações relacionadas com a terra em diferentes regiões do país, Ele no mostra que a questão agrária brasileira, tem duas faces combinadas: a expropriação e a exploração. Há uma clara concentração da propriedade fundiária, mediante a qual pequenos lavradores perdem ou deixam a terra, que é o seu principal instrumento de trabalho, em favor de grandes fazendas. Convém notar, que esse processo hoje não é conduzido fundamentalmente pelos velhos e rançosos “coronéis” do sertão, os famosos latifundiários a que se agravava o adjetivo de “feudais” até há pouquíssimos anos. Esse processo agora é conduzido diretamente por grandes empresas capitalistas, nacionais e internacionais, com 284 amplos incentivos financeiros do próprio Estado. Ressalte-se que, se em um primeiro momento, acreditava-se que um modelo capitalista de produção em escala, com emprego intensivo de insumos agrícolas e máquinas de grande porte, com produção baseada no monocultivo, sem qualquer preocupação ambiental e social, representava a superação das estruturas agrárias brasileiras. Mais tarde percebeu-se, no entanto – talvez poderíamos afirmar que os trabalhadores logo perceberam – que este modelo apenas havia transformado a forma daquela questão agrária, mas não o seu conteúdo. Esta é a questão agrária que informa a Constituição de Federal de 1988, sendo esta, portanto, que ela visa transformar, de modo a erradicar a pobreza, a marginalização, e as desigualdades sociais. De fato, segundo José de Souza Martins, “[...] a expropriação constitui uma característica essencial do processo de crescimento do capitalismo”285. Ao que parece, o programa constitucional que identifica a necessidade de transformação na estrutura agrária também identificou a relevância em se priorizar, no tangente ao trabalho, o modelo da agricultura familiar, o que acaba por significar, de saída, a priorização de determinado modelo de estrutura fundiária. Não sendo, a terra, meio de produção que se origina no trabalho, mas que, na verdade, foge ao seu alcance – quer dizer, o trabalho humano não produz o meio de produção “terra” – 284 MARTINS, José de Souza. Expropriação e violência: a questão política no campo. São Paulo: Hucitec, 1980. p. 53-54. 285 Ibid., p. 54. 112 a relação daquele que nela trabalha reveste-se de um significado diferente, especial, uma vez que a produção da riqueza, que se realiza à medida da interação entre estes meios de produção, quer dizer, entre terra e trabalho, não se realiza com o mesmo significado do trabalho urbano, em que o trabalhador já parte de um distanciamento e estranhamento em relação ao meio de produção, a máquina, que consiste em uma propriedade adquirida pelo empresário, mas que não carrega consigo nenhum significado para o trabalhador, nenhuma identidade além daquela que o obriga a manuseá-la durante a jornada de trabalho. A terra é completamente diferente dos outros meios de produção. A apropriação de uma máquina pelo capitalista e, através dela, do trabalho do operário, pode parecer legítima na medida em que, tendo os trabalhadores que a produziram trabalhado sob tutela do capital, mediante o salário, o resultado do seu trabalho aparece como produto do capital. O mesmo não acontece com a terra.286 Isto significa que o trabalhador rural já parte de uma identidade diferenciada com o meio de produção com o qual trabalha, e assim sua atividade reveste-se, sobremaneira, de condições históricas e sociológicas, que é a história de um trabalho que não se separa da posse da terra, e de uma posse da terra estreitamente vinculada ao trabalho. Esta é a verificação sociológica que identifica no trabalho rural um elemento indissociável da posse do meio de produção das relações sociais agrárias. A terra identifica-se com o trabalho, e o trabalho com a terra, de modo que, no tangente ao ambiente do trabalho rural, o instituto da propriedade reveste-se da concepção sociológica da terra de trabalho, representando, na verdade, a dimensão propriamente social da função social da propriedade. Se, no Brasil, como afirma Eros Roberto Grau, a propriedade já significa propriedade-função social, a propriedade da terra, por seu turno, poderia ser conceituada, de saída, como propriedade de trabalho-função social, de modo a efetivamente corresponder ao programa constitucional do trabalho rural. Este é um dos significados que informam o fundamento do valor social do trabalho rural, qual seja, a prioridade pela terra de trabalho em relação à terra de negócio. Há no país, isto sim, uma clara oposição entre dois regimes de propriedade: de um lado, o regime que leva o conflito aos lavradores e trabalhadores rurais, que é o regime de propriedade capitalista; de outro, os regimes de propriedades que tem sido atacado pelo capital, que é o da propriedade familiar. [...] Quando o capital se apropria da terra, esta se transforma em terra de negócio, em terra de exploração do trabalho alheio; quando o trabalhador se apossa da terra, ela se transforma em terra de trabalho. São regimes distintos de propriedade, em aberto conflito um com o outro.287 286 287 MARTINS, op. cit., 1980. p. 60-61. Ibid., p. 58 e 60. 113 A terra de trabalho representa os valores sociais do trabalho rural, e, deste modo, é a que, concretamente, corresponde ao programa constitucional do trabalho rural. De fato, a terra de trabalho proporciona a realização do trabalhador e de sua família, além de incorporar em-si as próprias dimensões dos direitos sociais à moradia, saúde, lazer, previdência social e cultura. Neste momento, vale o questionamento: até que ponto a terra de negócio é capaz de atender a estes elementos que compõem os valores sociais do trabalho? Em que medida garante a moradia, se caracterizada e consolidada, nas últimas duas décadas, pelo trabalho do migrante? E da família? Previdência? Lazer e, sobretudo, cultura? A terra de trabalho, de outro lado, já acaba por evitar, por-si, o mal da migração do trabalhador, uma vez que fixa o trabalhador à terra de sua própria origem, e, assim, acaba por proporcionar-lhe a vivência cultural pertinente. Como anota Antônio Cândido, a própria questão do lazer e da cultura identificam-se com a concepção, ou realização, da terra de trabalho. De fato, é característica do trabalhador rural aliar as épocas do plantio e da colheita às festividades culturais, e portanto ao lazer. Elemento cultural que acabou por se transmitir à sociedade urbana revestido de caráter folclórico, a verdade é que estas festas constituem elemento dos valores sociais do trabalho rural288. De fato, outro valor social do trabalho rural pode ser identificado no trabalho coletivo, ou trabalho associado289, também identificado por cooperação. elemento que não encontra qualquer possibilidade na terra de negócio. Como aponta Antônio Cândido: As várias atividades da lavoura e da indústria doméstica constituem oportunidades de mutirão, que soluciona o problema da mão-de-obra nos grupos de vizinhança (por vezes entre fazendeiros), suprimindo as limitações da atividade individual ou familiar. E o aspecto festivo, de que se reveste, constitui um dos pontos importantes da vida cultural do caipira.290 Já no sentido daquela oposição ente os regimes de propriedades que se conflitam, identifica-se um dilema dos proprietários: pagar custos trabalhistas ou distribuir a terra. Ora, se o argumento em prol da flexibilização, muitas vezes travestida de precarização, é o de que, justamente os encargos trabalhistas são excessivamente altos, na propriedade agrária, no tangente ao trabalho rural, o problema já possui solução apresentada: a distribuição da propriedade da terra; a priorização da agricultura familiar. 288 A região de Ribeirão Preto/SP tem sediado, por exemplo, através da agricultura familiar representada por assentamento rurais da reforma agrária, organizados pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra-MST, encontros nacionais de violeiros, aliados a festas da “colheita do milho”, festa da “semente’, festa “em louvor a São Francisco”, e festa do “Saci”, desde o ano de 2003. 289 CÂNDIDO, Antônio. Os parceiros do Rio Bonito. 5. ed. São Paulo: Duas Cidades, 1979. p. 70. 290 Ibid., p. 67-68. 114 Isto diferencia-se da cidade, no tangente à auto-gestão291, porque, como dito, a terra é um bem especial, não apenas subjetiva, mas objetivamente. A terra é meio de produção especial porque não é fruto do trabalho, como a máquina, e, no limite, a indústria. O trabalhador conhece o trato com a terra,, e quando não conhece, aprende. A questão da gestão empresarial da atividade produtiva e comercial é, justamente, um ponto onde há que se agregar valor e tecnologia, no sentido do conhecimento técnico. Ora, soa demasiado simplista e preconceituoso afirmar a incapacidade do trabalhador rural de administrar sua produção, como se argumento fosse que justificasse a não realização da reforma agrária. Decerto alguém já nasce sabendo noções de gestão administrativa? Seria uma vocação em administrar empresas, em oposição à vocação ao trabalho no chão da fábrica? Decerto o administrador de empresas não vivenciou alguma experiência histórica que lhe permitiu realizar a atividade de gestão de que se trata? E porque dever-se-ia negar, já a priori, esta possibilidade ao trabalhador rural, aos seus filhos? De modo contrário, há que se utilizar a reforma agrária para, justamente, propiciar uma formação profissional ao trabalhador rural, no sentido da gestão administrativa financeira da produção e comercialização, o que também acaba por significar um implemento tecnológico na agricultura familiar, e vai exatamente ao encontro da cooperação, que também se constitui, por seu turno, instrumento da ordem econômica constitucional292, e da política agrícola293. Ao que parece, o programa constitucional se orienta pelo sentido principiológico; no sentido dos princípios políticos constitucionalmente conformadores da atuação do Estado e da sociedade; dos princípios-meios, instrumentos para a realização dos princípios impositivos, e das normas-objetivo que determinam os fins a serem atingidos. Neste sentido, mais que orientar-se pela textura aberta294 deste ou daquele princípio, o programa parece efetivar-se à medida da própria efetivação do conjunto dos princípios, reivindicando aquela sua dimensão de coerência unificadora295. Assim, o programa constitucional do trabalho e do trabalho rural realizam-se à medida da efetivação das normas-princípios que os informam; à medida de sua efetivação conjunta , poderíamos dizer 291 Ressalta-se aqui a diferença entre campo e cidade em suas especificidades em relação ao meio de produção característico, mas a questão da auto-gestão camponesa não exclui, antes coordena-se, com a auto-gestão do trabalhador urbano. 292 CF/88, art. 174, § 2º: A lei apoiará e estimulará o cooperativismo e outras formas de associativismo. 293 CF/88, art. 187, inciso VI: A política agrícola será planejada e executada na forma da lei, com participação efetiva do setor de produção, envolvendo produtores e trabalhadores rurais, bem como dos setores de comercialização, de armazenamento e de transportes, levando em conta, especialmente: [...]; VI – o cooperativismo. 294 FARIA, op. cit., p. 53. 295 MAIOR, op. cit., p. 245. 115 sistemática, de modo que a concretização do programa de que se cogita, a interpretação do texto constitucional em coordenação com a aplicação da norma informada concretamente, deve orientar-se, no sentido da “ótima concretização da constituição”296, pela concretização do maior número possível de normas pertinentes, o que parece óbvio, mas pode encontrar resistência na prática, em caso de possíveis contradições, ora do texto, ora do contexto, ora de ambos, como pôde ser observado na relação entre os arts. 184, 185, e 186, da Constituição de 1988297, por exemplo. Cumpre, portanto, buscar concretizar o maior número de normas possíveis, potencializando aquela perspectiva da interpretação sistemática, porque às vezes, no caso concreto, mostra-se possível a aplicação de diferentes normas que acabam por se mostrar excludentes sociologicamente, sem tratar-se, porém, de antinomia jurídica. Diante desta situação, esta perspectiva não visa apenas solucionar um impasse pela observação de um máximo número de normas condizentes, o que é de suma importância. De modo complementar, esta perspectiva busca uma concretização que proporcione a efetivação do maior número de normas possível: não é apenas interpretação sistemática, mas concretização sistemática. Assim, este parece ser o sentido que orienta a concretização do programa constitucional. É o caso, por exemplo, da questão do trabalho rural, talvez até mesmo um caso emblemático desta perspectiva sistemática de que se trata. O trabalho rural pode realizar-se enquanto trabalho assalariado, ou enquanto agricultura familiar. De forma “exemplar”, estas possibilidades excluem-se em determinadas situações, como na orientação, v.g., da realização da política agrícola e fundiária pelo Estado, a quem é possível estimular e incentivar o trabalho rural assalariado, ou a agricultura familiar298. É evidente que, em sede de uma política agrícola concreta, existe a possibilidade da lida com as duas formas de trabalho rural de que se trata, concomitantemente. Em verdade, é o que ocorre na prática. Mas o que se cogita, aqui, ainda que se considere esta dupla possibilidade, é sobre a orientação desta política agrícola, quer dizer, de sua prioridade, da estratégia que ela visa a alcançar em um futuro mediato. Cogita-se das conseqüências sociais, que vão além da questão direta e imediata da obtenção do produto agrícola, mas que considera o processo de produção enquanto processo social; enquanto processo de produção social da 296 HESSE, Konrad. A força normativa da Constituição. Tradução de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: 1991. p. 22. 297 Vide item 2.2, supra. 298 Compreende-se que a agricultura familiar também emprega, eventualmente, mão-de-obra assalariada, o que não chega, no entanto, a interferir na presente análise, dado justamente este caráter eventual, aliado, ainda, ao argumento da tendência à cooperação proporcionada no seio da agricultura familiar. 116 vida, onde concorrem meios de produção, verbas públicas e, sobretudo, seres humanos que possuem suas vidas determinadas pelo modo como estão inseridos neste processo de produção. Neste sentido, é notório, por exemplo, o descompasso entre a destinação de verbas públicas para o latifúndio monocultor, hoje chamado de agronegócio, em detrimento da agricultura familiar. Segundo o professor da USP, Ariovaldo Umbelino, do total de empregos gerados gerados no campo brasileiro, 87,3% estão nas pequenas unidades de produção, 10, 2% estão nas médias e somente 2,5% estão nas grandes. [...] Apesar desses dados, o governo tem priorizado uma política agrícola que favorece principalmente grandes empresas. Em 2004, dez empresas transnacionais receberam cerca de $4,5 bilhões de reais do Banco do Brasil. Este valor é maior do que todo o crédito concedido aos pequenos agricultores através do PRONAF (Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar).299 A política agrícola, portanto, para além de um discricionário instrumento de governo, constitui mandamento da ordem econômica constitucional, devendo, assim, ser realizada nos termos do seu programa, quer dizer, deve orientar-se e vincular-se a ele, nos termos de uma ordem econômica constitucional que determina a orientação da ação estatal, intervindo na economia, de forma a priorizar o programa constitucional. A política agrícola, no Brasil, deve realizar-se nas bases de uma política constitucional que parte da relação entre a norma concretizanda e outras normas indiretamente a ela referidas, orientada pelas conseqüências sociais da atuação estatal300, o que não significa, neste caso, outra coisa senão a própria função concretizadora do Poder Executivo, em relação à norma constitucional. Em termos concretos, uma política agrícola pode orientar-se pelo estimulo e incentivo à expansão do monocultivo de culturas de grande extensão, priorizando, portanto, no tangente ao programa constitucional do trabalho rural, o trabalho rural assalariado; ou pode, de outro lado, incentivar e estimular a atividade produtiva na pequena propriedade, priorizando, assim, a agricultura familiar. Analisando a realidade da questão agrária brasileira na história, até a atualidade, no intuito de verificar âmbito do programa constitucional do trabalho rural, a conclusão pela orientação que signifique uma efetiva concretização deste programa, na esteira do próprio programa constitucional em sua totalidade, parece difícil de desviar-se da agricultura familiar. Na verdade, difícil é identificar a concretização deste programa constitucional, e sobretudo da 299 MENDONÇA, Maria Luisa. A OMC e os efeitos destrutivos da indústria da cana no Brasil. In: Direitos humanos no Brasil 2005: relatório da Rede Social de Justiça e Direitos Humanos. São Paulo: Rede Social de Justiça e Direitos Humanos, 2005. p. 238. 300 MÜLLER, op. cit., p. 97. 117 eficácia das dimensões do trabalho e bem-estar da função social da propriedade, no modelo orientado pela prioridade do agronegócio. De fato, cotidianas são as denúncias e até os flagrantes – repita-se, sem qualquer eficácia nos termos da desapropriação para fins de reforma agrária – que desvelam a situação de precariedade a que são submetidos os cortadores de cana-de-açúcar, chegando ao óbito por exaustão laboral301; isto quando não submetidos à escravidão302; o que, dente outros fatores, acaba por ocasionar tensões sociais, culminando em conflitos onde se sabe qual o lado que resta com a corda arrebentada303. E a pergunta não se cala: não constituiriam, todas estas situações, descumprimento das dimensões do trabalho e bem-estar, da função social da propriedade? Não deveriam, pois, nos termos da política fundiária constitucional, abrigar o assentamento dos trabalhadores submetidos a tais situações, no intuito de, finalmente, instituir-se nos respectivos imóveis o cumprimento da função social da propriedade, e do programa constitucional em-si? Ocorre que a prioridade à agricultura familiar concretiza-se enquanto política agrícola que já significa a realização de uma política fundiária e de reforma agrária, a um só tempo304 – note-se a máxima concretização do programa constitucional – ao implementar um efetivo programa de reforma agrária que, por seu turno, seria potencializado, ainda, no tangente à ótima concretização daquele programa do trabalho rural, se motivada e fundamentada no descumprimento das dimensões do trabalho e bem-estar, da função social da propriedade rural, o que, de saída, ainda representaria a concretização da norma-princípio da função social da propriedade. É certo que tanto o trabalho assalariado quanto a agricultura familiar integram, de alguma forma, o programa constitucional do trabalho rural. No entanto, ao se cogitar da efetivação ou eficácia deste programa, e investigarmos no âmbito material para observar qual destas formas de trabalho representa concreta e potencialmente uma maior concretização sistemática, aproximando-se de uma “ótima concretização da constituição”, verificaremos, talvez inevitavelmente, a indicação que se orienta para a agricultura familiar. De fato, representa ela, por-si, a tendência à concretização unitária e indissociável dos seguintes mandamentos constitucionais: 1) da dignidade da pessoa humana no campo (art.1º, III); 2) dos valores sociais do trabalho rural (art.1º, IV); 3) do desenvolvimento nacional 301 Cf. SANT’ANA, Raquel. Trabalhar é preciso, viver não é preciso: a desumanização do trabalho no corte da cana-de-açúcar e o serviço social. Tese de Livre-Docência. Franca: FHDSS/UNESP, 2009. 302 Cf. Relatórios Rede Social de Justiça e Direitos Humanos 2004 a 2008. 303 Cf. Comissão Pastoral da Terra (CPT). Conflitos no campo Brasil 2003. Goiânia: CPT, 2004. 304 Admite-se que o âmbito da agricultura familiar vai além do horizonte da reforma agrária, mas compreende-se que a própria realização da reforma agrária representa uma orientação que volta a atenção das políticas públicas, em especial a agrícola, para as demandas estruturais da agricultura familiar, estimulando um processo que aponta no sentido da prioridade ao incentivo à agricultura familiar, enquanto modelo de desenvolvimento agrário. 118 (art.3º, III); 4) da erradicação da pobreza, marginalização e desigualdades sociais (art.3º, IV); 5) do acesso à propriedade, e da realização de sua função social (art. 5º, caput, e XXIII); 6) dos direitos sociais (arts. 6º); 7) da valorização do trabalho humano e da justiça social (art. 170); 8) do princípio da função social da propriedade (art. 170, III); 9) da cooperação e outras formas de associativismo (art. 174, §2º); 10) sobretudo das dimensões do trabalho e bem-estar da função social da propriedade rural (art. 186, III e IV). A dignidade da pessoa humana no campo é concretizada na medida em que a fixação na terra proporciona o acesso aos direitos sociais, elencados no art. 6º da Constituição Federal, como a moradia, saúde, educação, previdência, trabalho e lazer, estes dois últimos à medida da própria auto-gestão da atividade laboral, que significa controle do tempo produtivo, e a possibilidade de coordenação entre o trabalho e o lazer, relação tradicionalmente presente à atividade camponesa,o que nos remete, por seu turno, aos valores sociais do trabalho. Os valores sociais do trabalho rural são atingidos na medida em que a agricultura familiar proporciona aquela realização individual, e da interação junto à sociedade; da obtenção e apropriação do produto do seu trabalho, da identidade que mantém ainda ao final do processo produtivo, vez que não é, a priori, alienado do fruto de seu trabalho. Valores sociais expressos no sentido daquela relação de lazer, e identidade cultural. Da realização da própria sociedade è medida da realização individual. Do desenvolvimento social à medida do desenvolvimento individual que, neste caso, significa já um desenvolvimento de uma família ou comunidade, à medida da cooperação. Valor social, na medida em que proporciona a produção de alimentos e matéria-prima para a sociedade industrial. Valor social, portanto, à medida da realização da terra de trabalho, o valor social maior no âmbito do trabalho rural. A erradicação da pobreza, marginalização e das desigualdades sociais pede aqui uma breve análise. Sabe-se que a passagem do trabalho rural à sua forma assalariada não se consistiu na única causa da pobreza no campo, pois é certo que as formas tradicionais e coronelistas tiveram, anteriormente, grande responsabilidade histórica neste sentido. No entanto, a passagem ao trabalho assalariado, com a pretensão de modernização tecnológica, que acabou por configurar-se ainda conservadora, realizada mediante a “expropriação e exploração” que lhe fora característica, antes de solucionar, apenas agravaram a situação de pobreza do trabalhador rural, de certa forma “modernizando-a”. Na verdade, esta passagem da estrutura agrária ao trabalho rural assalariado – que trazia a promessa de desenvolvimento econômico e verificou-se catástrofe social – acabou justamente por caracterizar a forma histórica causadora daquela pobreza, marginalização e 119 desigualdade social que a Constituição Cidadã pretende, e programa, erradicar. Ora, tal programa parece não apresentar-se de outra maneira, senão através da implementação e concretização de um programa de agricultura familiar, através da realização da reforma agrária. De fato, ou de saída, a implementação deste programa reivindica o assentamento da família – o que já se difere do emprego da mão-de-obra de apenas um dos membros desta família – e deve ocorrer via reforma agrária constitucionalmente imposta ao Estado (art. 184). Esta reforma já significa, em-si, a distribuição da terra, e, portanto, a conseqüente distribuição de riqueza. Na esteira, reduz as desigualdades sociais no campo – o que acaba por refletir-se na cidade, dada a interação reflexiva que se trava entre eles – o que beira a obviedade, haja vista que equaliza as relações sociais, de modo que um maior número de pessoas passem a deter o controle do meio de produção “terra”; ou seja, a estrutura agrária conquista a desconcentração da propriedade da terra, o que, mesmo matematicamente, já significa redução de desigualdades, ainda que se admita que esta desigualdade não se realiza apenas de modo quantitativo. Mas ainda vale a reflexão: a concentração da propriedade da terra acaba por significar a conformação de uma estrutura fundiária caracterizada pela existência de grandes propriedades rurais em poder de determinado número de proprietários. Considerandose que se trata aqui de uma estrutura concreta, pode-se argumentar nos termos da lógica chamada de “soma zero”. Se a proporção territorial de hectares é determinada, de modo que não se altere; e o número de sujeitos que vivenciam esta estrutura agrária também é determinado, com uma tendência crescente, advém a necessária conclusão de que grandes propriedades pressupõem um número reduzido de proprietários, e um número reduzido de proprietários pressupõe um número elevado de não-proprietários, donde decorre a “observação e normatização constituinte” da desigualdade, que a Constituição de 1988 pretende erradicar. Tratando-se da concentração da propriedade da terra, por seu turno, um meio de produção de riqueza, decorre a própria concentração da riqueza socialmente produzida através do trabalho. Tratando-se do sistema capitalista de produção – do qual emana a forma do trabalho rural assalariado, porém a ela não se reduz – pressupõe-se a apropriação, a priori, pelo proprietário, da riqueza produzida pelo trabalhador, mediante o pagamento de um salário. Esta riqueza é produzida através do trabalho, mas o produto deste já pertence, anteriormente, ao proprietário. Este proprietário, por seu turno, pode sê-lo da terra ou não, arrendando-a, mas é certo que, sempre, em última instância, o proprietário da terra apropria-se de parte daquela riqueza produzida. 120 Abrimos aqui um “parênteses” para observar que se verifica, hoje, a ocorrência de intensa tendência à concentração fundiária, se entendida a partir de sua dimensão social, e não apenas física, sob a forma do arrendamento. Forma contratual tipicamente agrária, o arrendamento fora concebido nos termos da condição de hiposuficiência do trabalhador que não dispõe da propriedade da terra, e contrata sua exploração produtiva, uso e gozo, através do seu trabalho, com um proprietário de imóvel rural. Nestes termos, tal contrato acabava por significar uma certa desconcentração da posse, e portanto, da exploração produtiva, do uso e gozo da terra. Fórmula contratual que se manteve juridicamente, observa-se, no entanto, que na atualidade o arrendamento teve sua natureza sociológica invertida com o avanço do agronegócio. O agronegócio é compreendido aqui enquanto modelo de produção agroindustrial baseado na fórmula produtiva que explora, através do monocultivo de extensão e emprego de mão-de-obra assalariada, matéria-prima para a grande indústria – geralmente multinacional – com a tendência à hegemonização das commodities. É certo que este modelo produtivo chamado agronegócio insere-se na lógica do capitalismo financeiro, e realiza-se mediante a tendência à utilização de insumos e implementos tecnológicos. Neste sentido, é certo que corresponde ao crescimento econômico, mas acaba por evidenciar, no entanto, a notória distinção entre crescimento econômico e desenvolvimento social (e nacional). Estruturando-se sobre as bases da utilização intensiva de insumos e implementos agrícolas, aliado à exploração do trabalho rural assalariado em grandes extensões de terra, o modelo do agronegócio aponta já para aquela necessária concentração da propriedade da terra, e suas conseqüências sociais descritas acima. Ressalte-se, neste ponto, a verdadeira ambivalência deste modelo que se utiliza de modernidade produtiva e tradicionalidade agrária. Dada sua forma histórica financeirizada, esta concentração necessária não depende mais do título de propriedade, porque basta ao empresário agrícola negociar e explorar a posse da terra, pagando uma renda ao proprietário. Desta forma, o empresário agrícola – que muitas vezes também é proprietário de terra, mas esta propriedade já não satisfaz a sua ânsia pela acumulação de capital, ânsia revestida pelo discurso da acumulação necessária para a inserção competitiva no mercado – este empresário negocia, a(r)renda, as terras necessárias à sua produção, até o limite do crédito concedido pela agência financiadora. Note-se que este limite de crédito financeiro passa a determinar a própria concentração fundiária, em sua forma contemporânea, através do arrendamento agrícola. Assim, em última instância, a produção agrícola, e a concentração fundiária, acabam sendo agravadas pela política agrícola do próprio governo, que destina 121 determinada verba para o financiamento deste modelo de produção, através, sobretudo, do Banco Nacional de Desenvolvimento Social-BNDES, e do Banco do Brasil. Este financiamento, por seu turno, ou destina-se ao modelo do agronegócio, ou àquele molde de agricultura familiar. Ocorre, como demonstrado acima, que o montante deste financiamento é, assim como a própria estrutura agrária de que se trata, extremamente concentrado nas contas bancárias do agronegócio, em detrimento de políticas crédito de efetivo incentivo e desenvolvimento da agricultura familiar, o que acaba por refletir-se em um desgastado círculo vicioso que remonta à própria economia colonial. De fato, como aponta a professora Maria Aparecida de Moraes, em uma análise acerca do trabalho assalariado dos cortadores de cana-de-açúcar, no moderno agronegócio paulista, a realização deste agronegócio vem significando, ontologicamente, uma “reinvenção da colônia portuguesa”305. Ressalte-se que o agronegócio consiste apenas em um modelo, mas não sinônimo, de produção agroindustrial, que pode ser verificada em modelos outros que vão além da forma de produção social do chamado agronegócio. A relação entre o modelo do agronegócio e da agricultura familiar nos remete, a esta altura, à questão constitucional do desenvolvimento nacional. De fato, esta relação evidencia a diferença entre crescimento econômico e desenvolvimento social, de modo que o crescimento quantitativo da riqueza socialmente produzida não se identifique com o desenvolvimento qualitativo da sociedade, de modo, portanto, que desenvolvimento não se reduza ao crescimento. Assim, desenvolvimento pressupõe igualdade material, porque desse modo não onera o poder público com políticas de controle social, ora contendo, ora remediando os efeitos de um crescimento concentrado da riqueza, quais sejam, a pobreza e a marginalidade, porém raramente enfrentando suas causas estruturais, como a própria concentração da posse e propriedade da terra. Crescimento representa, portanto, uma dimensão simplificada do desenvolvimento. Neste sentido, políticas de emprego rural, e medidas de melhoria das condições de trabalho são de suma importância, imediata. No entanto, há que se ter clareza de seus limites, e, para além disso, há que se projetar, concomitantemente, medidas que superem tais limites. É notória a dificuldade do poder público em implementar os programa constitucionais, em suas diversas dimensões sociais, mas resta, neste ponto, a dúvida acerca do cético questionamento de Eros Grau, no sentido de que este programa constitucional talvez já tenha atingido sua 305 MORAES, Maria Aparecida. A reinvenção da colônia. 2005 (texto xerocopiado). 122 eficácia, quer dizer, já atingiu os fins para os quais fora proposto, na medida em que não é aplicado. O direito de acesso à propriedade, configura verdadeiro direito social, nos termos da concepção de Alain Supiot, que identifica nos direitos sociais uma classe de “direitos a” determinada prestação estatal306. Neste sentido, relação direta guarda ele com a política de reforma agrária, que visa, justamente, o acesso à terra, inicialmente através da concessão de uso, com uma tendência à sua conversão em título de propriedade, no tempo. De modo complementar, o próprio Estatuto da Terra, já em seu art. 1º, afirma que a realização da reforma agrária, implementando um programa de agricultura familiar, afasta o descumprimento e institui uma tendência à realização da função social da propriedade, no campo, concepção que fora transportada ao texto constitucional, na medida em que a redação de seu art.186, que dispõe acerca da multifuncionalidade da função social da propriedade rural, praticamente repete o texto do Estatuto da Terra. Para além do direito social de acesso à propriedade da terra, é certo que a agricultura familiar, sobretudo quando implementada via programa de reforma agrária, já proporciona uma aproximação, e institui o acesso aos direitos sociais clássicos, à medida da implementação e consolidação do assentamento rural pela organização das famílias, em coordenação com a atuação estatal. Assim, o assentamento acaba por proporcionar, diretamente, para além do acesso à terra, os direitos à moradia, alimentação e trabalho. Na esteira, compreende-se que este acesso direto ao trabalho já institui a superação da condição de “trabalhador à procura de trabalho”. De modo indireto, o assentamento instala uma tendência, à medida daquela organização comunitária, em coordenação com a atuação estatal, na forma de participaçãopressão, da concretização dos direitos à saúde e educação, inclusive com a instalação de postos de saúde, programas de saúde comunitária e “escolas do campo”. Não há que se olvidar, ainda, a própria concretização dos chamados direitos trabalhistas, quer pela via direta, quer pela reversa. De modo direto, admite-se a possibilidade do emprego de trabalho assalariado no seio da agricultura familiar, à medida de uma produção que foge à capacidade quantitativa e qualitativa da organização familiar de que se trata. Neste sentido, os agricultores proprietários devem respeitar as normas que regulamentam as relações de trabalho, sob pena de descumprirem, eles, a dimensão do trabalho da função social daquela propriedade familiar. 306 SUPIOT, op. cit., p. 237. 123 Mas é, sobretudo, de maneira reversa, que a agricultura familiar alcança a concretização dos direitos humanos dos trabalhadores, na medida em que ela propicia o apoderamento do controle sobre o processo e o tempo de trabalho, aliado à apropriação do seu produto307. De fato, é a forma de inserção do homem no processo produtivo; é a posição que ocupa na produção social da riqueza, à medida da interação que esta inserção lhe proporciona junto à sociedade, que acaba por determinar o grau do seu acesso aos direitos humanos, e à justiça que lhe diz respeito. Neste sentido, a condição de pequeno proprietário representa uma superação da condição de trabalhador alienado do controle e produto do seu trabalho, alienação objetiva que carrega reflexos subjetivos, somados à constante tensão, agravada pela subordinação, em relação ao proprietário dos meios e bens de produção que lhe propicia (ao trabalhador) o exercício do direito ao trabalho. Esta condição de pequeno proprietário lhe proporciona os direitos que a lei impõe sejam reconhecidos pelo empregador ao trabalhador. Note-se, justamente, que a lei trabalhista visa amenizar o desequilíbrio na relação de produção social existente entre proprietário e trabalhador. E qual seria este desequilíbrio? Justamente o desequilíbrio gerado pela apropriação, pelo proprietário, do mais-trabalho realizado pelo trabalhador, e de todo o produto do seu trabalho, retribuindo-lhe tão somente o que a lei impõe: determinado salário e determinado rol de direitos trabalhistas e previdenciários. É neste sentido que a agricultura familiar, e a tendência à cooperação, já realiza, de maneira reversa, uma gama de direitos que foram inscritos na lei trabalhista para obrigar o proprietário a respeitar a condição humana do trabalhador. Lembre-se que estes direitos foram conquistados pela atividade e organização dos trabalhadores, em uma tentativa histórica, e, infelizmente, apenas incipiente, de valorizar o trabalho humano308. A valorização do trabalho humano, enquanto princípio político constitucionalmente conformador, parte justamente daquela verificação da necessidade em se adotar medidas políticas que realizem esta valorização de que se cogita. É, portanto, elemento do programa constitucional que identifica que as relações de trabalho que informaram a elaboração da 307 Todo esse apoderamento, no entanto, já vem sendo revertido pela lógica do agronegócio – nos termos da inversão da natureza sociológica do contrato de parceria agrícola, em processo similar ao do arrendamento, supra mencionado – como se observa na condição dos agricultores familiares do sul do país, subjugados por frigoríficos nacionais e transnacionais. 308 De fato, o caráter incipiente daquelas importantes conquistas históricas revela-se, justamente, no limite que encontra no trabalho assalariado, ainda que regulamentado e protegido pelo ordenamento jurídico, um instrumento antes de subordinação que de emancipação do homem trabalhador. 124 Carta Política de 1988, especialmente no campo, devem ser transformadas, no sentido da valorização do sujeito que realiza o trabalho. De fato, como aponta José de Souza Martins, a questão agrária que informa a Carta Política encontrava-se estruturada sobre as bases de uma contraditória desvalorização do trabalho309, desvalorização que se constituía em meio de tornar a agricultura brasileira mais competitiva no mercado globalizado, nos moldes do modelo produtivo daquela “modernização conservadora”310, coincidente justamente com o modelo de desenvolvimento fundado sobre o trabalho assalariado, atualmente chamado de agronegócio. A questão da valorização do trabalho humano não se dissocia, portanto, dos valores sociais do trabalho rural, antes, estes princípios constitucionais complementam-se. Isto porque significa valorização do homem trabalhador, e não da força-de-trabalho, que constitui, por sua vez, o elemento valorizado pelo trabalho rural assalariado, que conhece tão somente o valor da mercadoria, que advém do valor do mercado. Ao valorizar a força-de-trabalho, a mão-de-obra, e não o trabalhador em-si, em sua totalidade existencial, o trabalho assalariado reduz este trabalhador à condição de mercadoria, “coisificando-o”, desvalorizando, pois, o trabalho humano, negando os valores sociais do trabalho rural. Tratando-se do trabalho rural, inserido nos termos da ordem econômica constitucional, não há que dissociar a valorização do trabalho da função social da propriedade. De fato, chega a ser mesmo indivisível tal relação, dada sua complementaridade, o que emana já do texto constitucional. Inspirado na concepção dirigente que informa a Constituição Federal de 1988, no intuito de superar as desigualdades sociais; orientado por uma hermenêutica principiológica que propugna pela ótima concretização da Constituição, à medida da realização do programa constitucional, em sua unidade, indissociabilidade e complementaridade intrínseca; considerando os princípios elevados a fundamentos e objetivos da República, e a condição nuclear e teleológica dos direitos humanos fundamentais; integrando tal vontade de constituição ao instituto multifuncional da função social da propriedade rural, é que deve ser interpretado do texto do artigo 170 da Constituição Federal: A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: [...] 309 MARTINS, José de Souza. A sociedade vista do abismo: novos estudos sobre exclusão, pobreza e classes sociais. Petrópolis: Vozes, 2002. p.28. 310 Ibid., p. 34. 125 III – função social da propriedade; [...] VII – redução das desigualdades regionais e sociais; VIII – busca do pleno emprego [...]. Observa-se, neste artigo, o emprego do sentido principiológico da função social da propriedade, inspirando a conformação da ordem econômica constitucional. Em verdade, trata-se da reafirmação deste sentido principiológico, revigorando, no Título referente à Ordem Econômica e Financeira, título pertinente e diretamente relacionado às relações de produção social, um princípio que já constava do núcleo constitucional, ou seja, do rol dos direitos e garantias fundamentais. Para José Afonso da Silva, a função social da propriedade deveria figurar tão somente princípio da ordem econômica, sendo equivocada a sua inscrição naquele rol nuclear311. Com a devida vênia, no entanto, ousamos questionar a lição do mestre constitucionalista, para levantar a hipótese de que a dupla inscrição principiológica da função social da propriedade, para além de excesso, vem justamente representar, à maneira hermenêutica, a unidade indissolúvel da própria Constituição, e a conseqüente necessidade em se concretizar este mandamento principiológico que, coroado de eficácia jurídica, vai culminar em sua inscrição na forma de princípio agrário constitucional, nos termos dos artigos 184 e 186. Orientado pela dimensão principiológica da função social da propriedade, o artigo 184 vem determinar que compete à União desapropriar por interesse social, para fins de reforma agrária, o imóvel rural que não esteja cumprindo a sua função social. Trata-se, aqui, justamente, daquela dupla dimensão principiológica da função social propriedade, qual seja, a condição de norma-objetivo que instrumentaliza um princípio-fim. Isso significa que a função social é instrumento de desapropriação constitucional que visa, justamente, instituir o cumprimento da função social daquela propriedade, por outro sujeito constitucional. É neste sentido que, reivindicando uma metódica estruturante que não ignora a dimensão axiológica do próprio direito, aliado, sempre, à condição dirigente, a Constituição de 1988 institui aquele modelo constitucional de desapropriação por interesse social, para fins de reforma agrária, no intuito de distribuir a propriedade da terra – de modo tendencial e 311 SILVA, op. cit., 2002. p. 283. 126 mediato, já foi dito – e, desse modo, distribuir riqueza, e erradicar a desigualdade social no campo e na cidade, dada aquela interação reflexiva entre ambos. Coroando a unidade indissolúvel entre os valores sociais e a valorização do trabalho rural, os incisos III e IV do artigo 186 da Constituição Federal de 1988 vêm determinar a natureza daqueles valores enquanto dimensão intrínseca ao instituto da função social da propriedade rural. De fato, com o advento da Constituição de 1988, e da constituição agrária consagrada em seu bojo, em coordenação com a constituição econômica que a orienta, inspirada, por seu turno, pela condição dirigente, não há que se dissociar, no Brasil, o direito de propriedade da terra do trabalho rural nela desenvolvido. Isso não significa – infelizmente, diriam os trabalhadores rurais – a erradicação do próprio trabalho assalariado, mas, certamente, significa que todo e qualquer trabalho realizado em toda e qualquer propriedade rural deve, necessariamente, atender ao programa constitucional do trabalho rural, em sua múltipla dimensão principiológica, nos termos da constituição dirigente que conforma o ordenamento jurídico brasileiro. De fato, os incisos III e IV do artigo 186 instituem que o imóvel rural somente revestese da condição jurídica de propriedade quando atende – juntamente da utilização racional e adequada, e da preservação e renovação dos recursos naturais – as normas que regulamentam as relações de trabalho, e proporcione, ainda, o bem-estar dos trabalhadores e dos proprietários. Tratando-se de uma constituição dirigente, como é a Constituição de 1988, a interpretação destas normas deve ser orientada pela ótima concretização do programa constitucional. Em sede de propriedade rural, por seu turno, a concretização deste programa constitucional significa, de saída, a concretização do programa constitucional do trabalho rural. Neste sentido, verifica-se que este programa específico, quando ligado à propriedade da terra, acaba de revestir-se também daquela dupla condição principiológica imanente à função social da propriedade, qual seja, a dimensão de norma-objetivo e princípio-fim, concomitantemente. De fato, o programa constitucional do trabalho rural, indissociável da propriedade, atua enquanto instrumento de erradicação da pobreza e desigualdades sociais, ao passo que visa instituir, ou restituir, aos trabalhadores rurais, a dignidade da pessoa humana, ou seja, uma existência digna, fundada sobre a valorização do trabalho humano, respeitando, resgatando e exaltando os valores sociais do trabalho rural. De notar que já não há que se dissociar a propriedade da terra do trabalho nela desenvolvido, uma vez que só há que se cogitar, no Brasil, da propriedade-função social. Neste sentido, na lógica proposta por Eros Grau, novamente ressaltamos, talvez a concepção 127 agrária constitucional seja melhor representada pelo termo propriedade de trabalho- função social. Isto porque, se a propriedade agrária, enquanto direito, deve ser concretizada sobre as bases de sua multifuncionalidade, não há que se duvidar, de saída, desta multifuncionalidade enquanto instrumento do programa constitucional. De fato, a propriedade-função social é princípio impositivo e político conformador da ordem econômica constitucional; a saber, é instrumento do processo que almeja atingir o objetivo identificado em-si mesmo, de modo que, em última instância, a ordem econômica brasileira é direcionada, pela Constituição de 1988, para o programa que se concretiza à medida da tendência à realização da propriedade de trabalho-função social. Enquanto princípio constitucional político conformador, a propriedade-função social consolida-se à medida da concretização do programa constitucional da ordem econômica. Sendo fundamento de desapropriação constitucional, a função social reveste-se, de outro lado, da condição de instrumento de transformação da ordem econômica então existente (mundo do ser). Da análise hermenêutica da Constituição de 1988 é possível observar uma tendência a esta transformação social, nos limites do modo de produção capitalista, apontando para um Estado de Bem-Estar Social. Para realizar esta tendência, a Constituição delegou à sociedade, como um todo, incluídos aí os órgãos e agentes do Estado, nos termos das respectivas competências constitucionais de concretização, quer dizer, de interpretação e aplicação da Constituição, o poder-dever de realizar a função social da propriedade rural. A função social da propriedade rural, portanto, é princípio constitucional que instrumentaliza a intervenção do Estado na economia, para concretizar o programa constitucional. Sob a ótica do trabalho rural, este programa deve ser interpretado/aplicado nos termos da ótima concretização do programa constitucional do trabalho, buscando fundamento integrado nas normas-princípios que vão desde o fundamento da dignidade da pessoa humana, e dos valores sociais do trabalho, até o alcance dos objetivos da erradicação da pobreza e das desigualdades sociais, culminando, assim, no desenvolvimento nacional. Neste sentido, o programa constitucional do trabalho rural reveste-se da condição de instrumento do Estado de intervenção na economia, nos termos da desapropriação sanção por interesse social, para fins de reforma agrária. De outro lado, este programa de que se cogita é o próprio objetivo a que pretende alcançar com esta intervenção estatal, de modo que a conclusão beira o inevitável: a Constituição Federal de 1988 eleva a objetivo fundamental da República a realização da reforma agrária, nos termos da concretização da função social da propriedade. 128 De fato, aquela intervenção estatal busca a erradicação das desigualdades sociais, e o conseqüente desenvolvimento nacional, nos termos da distribuição da riqueza socialmente produzida sob as bases do trabalho, em coordenação com modernas técnicas de produção. Como supra analisado, a distribuição da riqueza, no campo, significa distribuição da propriedade da terra, e a consolidação, por conseqüência, de uma estrutura agrária fundada sobre as bases da propriedade de trabalho-função social. Ora, se os elementos daquela produção social da riqueza são identificados na propriedade e no trabalho, acaba por identificar-se, portanto, a maneira mais sensata de sua produção, nos termos da erradicação da pobreza, e da desigualdade social, na própria aliança destes fatores produtivos, ou seja, na unidade entre propriedade e trabalho, o que já fora identificado pelo conceito de terra de trabalho. Neste sentido, parece ser a agricultura familiar, conjugada com a propriedade da terra, a fórmula produtiva que mais se aproxima da ótima concretização do programa constitucional do trabalho rural. Da análise integrada dos capítulos da presente dissertação pôde-se constatar, a despeito do programa constitucional, a ineficácia da norma que prevê os mecanismos que visam a conferir efetividade material ao programa constitucional do trabalho rural, nos termos expostos acima, qual seja, os incisos III e IV do artigo 186 da Constituição Federal de 1988, em sua interação hermenêutica com as normas-princípios. De modo reverso, no entanto, paira a indagação apreensiva nos termos da cética hipótese elaborada por Eros Grau, acerca da própria eficácia do programa constitucional, a julgar pela concretização de suas normas, “[...] normas que, dotadas apenas de efetividade formal, tornam-se plenamente eficazes – isto é, são adequadas aos fins que visam – porque não são dotadas de efetividade material”312. A questão da efetividade material, isto é certo, só pode ser concretizada à medida da práxis da sociedade organizada, em sua competente função concretizante, de modo a pressionar o Estado na concretização do programa constitucional. A efetividade material diz respeito, portanto, à práxis dos sujeitos históricos. Neste sentido, vale a paráfrase da ressalva já elaborada nos idos do século XIX: “Muitos se limitaram a interpretar a Constituição de diferentes maneiras; o que importa, agora, é concretizá-la”313. 312 313 GRAU, op. cit., 2005. p. 333 (destaque no original). MARX, ENGELS, op. cit., p. 14. 129 CONSIDERAÇÕES FINAIS - A Constituição de 1988 possui um princípio dirigente orientado para a transformação da sociedade brasileira, através de um programa constitucional que vincula a toda a atividade dos agentes públicos e dos particulares – quer individualmente, quer coletivamente organizados – sobretudo na esfera da ordem econômica, onde dispõe, inclusive, como mecanismo de eficácia deste programa constitucional, do instituto da desapropriação por interesse social, para fins de reforma agrária. - A interpretação/aplicação da Constituição dirigente deve ser orientada, para uma “ótima concretização da constituição”, por uma concepção hermenêutica que identifica uma estrutura normativa composta, coordenadamente, pelo programa e pelo âmbito material da norma, de modo que a norma constitucional não se resuma à literalidade do seu texto, e admita, ainda, a sua própria determinação normativa à medida da realidade social a que se refere. - Há que se admitir, ainda, uma concepção hermenêutica que identifica diversas e complementares funções constitucionais em suas específicas competências concretizantes, quer distribuídas entre as funções públicas, quer organizadas nos termos da pluralidade das forças sociais, sem olvidar, no sentido desta pluralidade de posições sociais, a própria condição axiológica do direito. - Desse modo, compreende-se que a Constituição de 1988, nos termos do princípio dirigente que a conforma, propõe um programa de ação que orienta os agentes do Estado e das organizações sociais, impondo-se-lhes funções constitucionais concretizantes, e, na medida de suas competências específicas, mecanismos destinados a conferir eficácia a este programa constitucional, que deve ser buscado e concretizado em sua completude, e não apenas parcialmente. - Compreende-se que as funções constitucionais constituem verdadeiro poder-dever, de modo que a concretização do programa constitucional como um todo, a partir de seus programas específicos, como o programa do trabalho rural, v.g., apresenta-se aos agentes constitucionais – desde os ocupantes de cargo público aos membros das organizações sociais 130 – enquanto imperativo a ser realizado no âmbito de suas competências, na medida dos mecanismos específicos. - A evolução constitucional do direito de propriedade, no Brasil, acompanhou o próprio movimento histórico que deu fundamento à estrutura agrária que a Constituição de 1988 programaria transformar. Neste sentido histórico é que fora conquistada, à custa da organização e luta popular, a noção de função social da propriedade, até a sua inscrição na Constituição Cidadã, já em sua concepção multifuncional. - A despeito desta multifuncionalidade, fora inscrito na Constituição de 1988 o artigo 185, inciso II, cujo texto expressa que propriedade produtiva é insuscetível de desapropriação. Constata-se que, na prática, tal inciso constitucional vem configurando verdadeira pedra no caminho da concretização, e portanto da eficácia, da função social da propriedade e, consequentemente, do próprio programa constitucional, na medida em que se reduz a sua interpretação/aplicação às estritas bases da literalidade de seu texto isolado do restante do ordenamento jurídico brasileiro. - Verifica-se, ainda, que tal pedra constitucional fora colocada intencionalmente no caminho, pelos mesmos agentes constitucionais que, atualmente, pleiteiam a própria diferenciação e exclusão entre função social da propriedade e produtividade, perniciosamente interpretada nos termos da sua estrita dimensão econômica, de modo a desafetar da propriedade produtiva (nesta concepção) a sua função social, e eximi-la, assim, da modalidade de desapropriação por interesse social, para fins de reforma agrária. - Atribui-se-lhe a condição de pedra no caminho nos termos da constatação da absoluta influência que tal concepção efetivamente exerce sobre a prática dos agentes públicos em suas competentes funções constitucionais, de modo que, ao final, da práxis junto à advocacia popular, no sentido do acompanhamento prático das questões que envolvem a desapropriação para reforma agrária, aliada à análise das obras editadas pela própria Procuradoria Federal Especializada na matéria, somada à análise da jurisprudência compilada e selecionada do Supremo Tribunal Federal, constata-se que, até a atualidade, nunca houvera a desapropriação de imóvel rural economicamente produtivo, porém descumpridor das demais dimensões da função social de propriedade. 131 - Na esteira de tal constatação, atribui-se-lhe, ainda, a condição de pedra no caminho justamente porque, tal qual a resignação do poeta, parece-nos que, para além de lamentações, cumpre solucionar este problema que se nos impede de caminhar. Neste sentido, dentre as alternativas de superação, identifica-se a possibilidade de se lapidar, à maneira hermenêutica, tal pedra constitucional, identificando: a) desde a concepção estruturante da norma, a inadequação da dissociação entre propriedade economicamente produtiva e função social, tanto no programa da norma em-si, à medida do programa constitucional, quanto na própria realidade agrária e nos casos concretos em que a produtividade econômica alia-se à degradação ambiental e à precarização das condições de trabalho, até o cúmulo da prática de trabalho escravo, o que, por-si, evidencia o afastamento do bem-estar e já consiste, em-si, na causa de tensões sociais que dão ensejo aos indesejáveis conflitos fundiários; b) na interpretação sistemática, a solução propriamente jurídica, vez que a prioridade da leitura restritiva e isolada deste inciso em tela significaria o afastamento e a própria inutilidade de todo o ordenamento constitucional e jurídico referente à ordem econômica e social, à propriedade, ao meio ambiente, e aos direitos dos trabalhadores. - Apesar da necessidade desta lapidação, constata-se, no entanto, a absoluta ineficácia – no sentido do efetivo alcance dos resultados almejados pela norma constitucional – das dimensões do trabalho e bem-estar da função social da propriedade, a despeito da cotidiana constatação de seu descumprimento, desde a precarização das condições dos cortadores de cana-de-açúcar, até a prática do trabalho escravo, sem olvidar a própria a tensão e os conflitos sociais gerados, em sua grade maioria, do próprio descumprimento da função social da propriedade. - Constatou-se que tal ineficácia emana, sobretudo, da inefetividade material da atuação do Poder Executivo da União, no âmbito do Ministério do Desenvolvimento Agrário, em especial na esfera de competência da fiscalização e proposição de desapropriação por interesse social, para fins de reforma agrária, da autarquia federal agrária, a saber, o INCRA. A inefetividade material diz respeito, neste sentido, à omissão que não atua de modo a concretizar a norma constitucional, nos termos de sua competência funcional específica. - Apesar na inefetividade material argüida, verifica-se a perfeita eficácia jurídica – no sentido da capacidade normativa de se produzir os efeitos almejados – da norma 132 constitucional que dispõe acerca das dimensões do trabalho e bem-estar da função social da propriedade. - A omissão dos agentes constitucionais no tangente à concretização do programa constitucional, em especial no âmbito de sua esfera de atuação, já não se justifica, passadas duas décadas de vigência da Constituição Cidadã. A omissão que se mantém a partir de uma inércia paralizante, sob o argumento da ausência de mecanismos normativos que confiram eficácia à sua atuação, constitui omissão inconstitucional decorrente da inefetividade formal da competente função constitucional. A omissão que, a despeito da aptidão conferida por mecanismos normativos, não realiza ação que represente a efetiva concretização da norma que lhe é pertinente, incorre em omissão por inefetividade material. Esta, só pode ser afastada à medida do próprio compromisso dos agentes constitucionais, com a concretização da Constituição. - A característica que distingue a constituição dirigente das antigas constituições vanguardistas do constitucionalismo social, do início do século XX, é a própria previsão, em seu bojo, de princípios impositivos de atitudes transformadoras das desigualdades sociais; de princípios conformadores das funções constitucionais; e a previsão de mecanismos jurisdicionais aptos a reivindicar juridicamente demandas de cunho social e coletivo, conferindo, assim, eficácia jurídica ao programa constitucional, no sentido da aptidão do programa constitucional em produzir efeitos. - Da realização da eficácia jurídica, aliado à efetividade formal e material no tangente às funções constitucionais, é atingida a eficácia das normas constitucionais, no sentido do efetivo alcance dos resultados almejados pela constituição, expresso em seu programa. Esta eficácia, no entanto, está estrita e correspondentemente vinculada ao compromisso e a conseqüente atuação dos agentes constitucionais. - No sentido desta eficácia jurídica, quer dizer, da capacidade em produzir efeitos, apresentou-se uma argumentação que explora uma compreensão acerca do programa constitucional do trabalho rural inscrito no bojo da Constituição dirigente de 1988. Tal programa, neste sentido, é compreendido a partir de uma análise hermenêutica principiológica, e identificado na interação entre as normas que instituem a realização da dignidade da pessoa humana em consonância com os valores sociais do trabalho enquanto 133 fundamento da República; em coordenação com os objetos fundamentais do desenvolvimento nacional e erradicação da pobreza, da marginalização e das desigualdades sociais; aliado aos princípios expressos em direitos e garantias fundamentais de acesso à terra e da função social da propriedade, que também se verifica, por seu turno, enquanto instrumento da ordem econômica constitucional, apoiada, ainda, na valorização do trabalho humano, de modo a realizar a justiça social. - O programa constitucional do trabalho rural encontra, assim, fundamento na dignidade da pessoa humana e nos valores sociais do trabalho rural; tem por objetivo erradicar a pobreza, a marginalização e as desigualdades sociais no campo; admite enquanto garantia fundamental o direito de acesso à terra; almeja alcançar a justiça social; e tem na função social da propriedade, em especial nas dimensões do trabalho e bem-estar, um instrumento de sua eficácia jurídica na medida em que do seu descumprimento decorre, necessariamente, a desapropriação que, pelo interesse social descrito já nos fundamentos e objetivos daquele programa constitucional do trabalho rural, realiza a reforma agrária, de modo a transformar as relações de trabalho no campo, restituindo a dignidade do trabalhador rural, valorizando-o enquanto pessoa trabalhadora, e não mera mão-de-obra reificada; distribui a posse, permitindo o acesso à propriedade da terra, meio especial de produção social de riqueza, distribuindo, pois, riqueza, e assim busca erradicar as desigualdades sociais no campo, a marginalização do trabalhador em relação à apropriação daquela riqueza por ele produzida, marginalização decorrente da posição que ele ocupa no processo produtivo, marginalização que relega o trabalhador rural assalariado à periferia dos centro urbanos e às relações sociais dela decorrentes, como o precário acesso às políticas públicas; busca erradicar, portanto, a pobreza do trabalhador. - A função social da propriedade, enquanto instrumento do programa constitucional do trabalho rural, evidencia a concepção de que a dignidade do trabalhador rural e os valores sociais do trabalho rural, enquanto fundamentos da própria República, aliado ao objetivo da erradicação das desigualdades sociais, da marginalização e pobreza, somente alcançam a sua eficácia sobre as bases da chamada terra-de-trabalho, o que se concretiza nos termos da pequena propriedade familiar. - O programa constitucional do trabalho rural, tendo por objetivo fundamental a erradicação das desigualdades sociais, da marginalização e da pobreza no campo, não 134 ignora a concentração fundiária característica da história brasileira. De fato, tal concentração antes informou a própria elaboração deste programa constitucional, e a sua superação conforma as suas diretrizes. - Dada a estrutura fundiária historicamente conservada à medida das variadas formas históricas, no Brasil, resta evidente que o programa constitucional do trabalho rural deve ser concretizado sobre as bases de uma reforma agrária estrutural, necessidade que já fora identificada nos idos de 1821, na ocasião da Independência do Brasil. - A reforma agrária, nos termos do programa constitucional, fora revestida na Carta Constitucional da condição objetivo fundamental da República Federativa do Brasil, uma vez representar mecanismo de eficácia da erradicação da pobreza, marginalização e desigualdades sociais no campo. 135 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BARROSO, Lucas de Abreu et. al. O direito agrário na constituição. Rio de Janeiro: Forense, 2005. BERCOVICI, Gilberto. Constituição econômica e desenvolvimento. São Paulo: Malheiros, 2005. ________. 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