Ritos
REVISTA DA AMARN * ANO VIII * Nº 10 * JULHO 2013
A arte
contemporânea
de Miguel
Ordoqui
Os magistrados e as redes sociais.
As manifestações populares no Brasil.
Atenção
magistrados
do RN
A AMARN quer
ouvir vocês.
Vem aí a 1ª pesquisa realizada pela AMARN para
saber sobre comunicação, política e temas atuais.
A sua participação é fundamental.
A pesquisa será feita via e-mail encaminhado
para todos os associados.
// editorial
CONSELHO EXECUTIVO
Caros colegas,
Lançamos com muito orgulho mais uma edição da revista Ritos, mantendo a vocação literária para a diversidade de enfoques. A publicação já
dá água na boca com a linda capa do artista plástico Miguel Ordoque, cujo
trabalho vocês podem conhecer mais amiúde na matéria do colega Paulo
Sérgio, que aliás também nos brinda com as suas sempre bem cuidadas fotografias. Estendemos também nossos sinceros agradecimentos aos colegas
Rosivaldo Toscano, Fábio Ataíde, Fábio Filgueira, Mádson Ottoni, Jessé
Alexandria, Paulo Sérgio, Maria Zeneide Bezerra e Cícero Macêdo que nos
brindaram com seus artigos, contos, causos e pontos de vista. A Revista fica
muito rica com a participação de vocês.
Buscando tornar obra bem atual, ousamos abordar assuntos bem
“quentes” (para usar um jargão jornalístico): as recentes manifestações de
rua que tomaram de assalto o país e que vocês podem conferir na acurada
análise do colega Fábio Ataíde. Também a interação dos magistrados com
a mídia é abordada na matéria “Ligados e desligados: Os magistrados e as
redes sociais” e no surpreendente artigo sobre Mídia Training.
No “Bate-papo entre magistrados” a revista convidou o Juiz Federal
Walter Nunes, que juntamente com Marcelo Varella, Jessé de Andrade Alexandria e Assis Brasil ajudam a destrinchar a nova LOMAN ou o Estatuto
da Magistratura. Confiram o que muda na nossa legislação.
Graças ao trabalho incansável da nossa equipe, a revista permanece
com características que sempre a qualificaram e que procuramos incrementar: a diversidade e atualidade dos assuntos abordados, aliado ao cuidado
editorial. O obrigada da AMARN a essa equipe tão especial: Jessé Alexandria, Assis Brasil e Paulo Sérgio, bem como a nossa querida jornalista
Adalgisa Emídia.
Por fim, a AMARN aproveita o ensejo para divulgar a nossa PESQUISA AMARN. Em tempos tão difíceis a AMARN precisa saber o que o associado está pensando e que rumos ele deseja que a sua associação passe a
trilhar. Conhecendo o que pensa cada associado seremos mais fortes. Não
deixe de contribuir.
Um abraço afetuoso.
Juíza Hadja Rayanne Holanda de Alencar
Presidente da AMARN
Presidente
Juíza Hadja Rayanne Holanda de Alencar
Vice-Presidente Institucional
Juiz Marcelo Pinto Varella
Vice-Presidente Administrativo
Juiz Cleofas Coelho de Araújo Junior
Vice-Presidente Financeiro
Juiz Odinei Wilson Draeger
Vice-Presidente de Comunicação
Juiz Paulo Giovani Militão de Alencar
Vice-Presidente Cultural
Juiz Jessé Andrade de Alexandria
Vice-Presidente Social
Juiz Jorge Carlos Meira e Silva
Vice-Presidente dos Esportes
Juiz Felipe Luiz Machado Barros
Vice-Presidente dos Aposentados
Juiz Francisco Dantas Pinto
Coordenador da Região Oeste
Juiz Breno Valério Fausto de Medeiros
Coordenadoria da Região Seridó
Juíza Marina Melo Martins
CONSELHO FISCAL
Juiz Azevêdo Hamilton Cartaxo
Juiz Fábio Antônio Correia Filgueira
Juiz Fábio Wellington Ataíde Alves
Juíza Flávia Souza Dantas Pinto
Juiz Gustavo Henrique Silveira Silva
Juiz Luiz Alberto Dantas Filho
Juiz Mádson Ottoni de Almeida Rodrigues
Juíza Manuela de Alexandria Fernandes
Juíza Rossana Alzir Diógenes Macêdo
Editora executiva
Adalgisa Emídia DRT/RN 784
Projeto Gráfico e Diagramação
Firenzze - Making Apps
(84) 2010.6303 | (84) 2010.6307
[email protected]
Fotos
Elpidio Júnior
Gráfica
Unigráfica
Associação dos Magistrados
do Rio Grande do Norte
Condomínio Empresarial Torre
Miguel Seabra Fagundes
R. Paulo B. de Góes, 1840
Salas 1002, 1003 e 1004.
Candelária - Natal-RN.
CEP: 59064.460
Telefones: (84) 3206.0942
3206.9132 | 3234.7770
CNPJ: 08.533.481/0001-02
// Sumário
14
Entrevista
Magistrados conversam sobre
LOMAN e assuntos políticos
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Artes
Artista plástico
cubano Miguel
Ordoqui e a
sensualidade
nas telas
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Ritos
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34
Artigo
Juiz Cícero
Macêdo Filho
em homenagem
ao Choro
28
Redes Sociais
Os magistrados
e os cuidados
em usar essas
ferramentas
6
Manifestações
Juiz Fábio Ataíde
faz uma análise das
manifestações de rua
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Ritos
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// ARTIGO
A Nova Balaiada
Fábio Ataíde
Juiz de Direito e professor
de Direito Penal/UFRN.
6
Ritos
Quanto Herbet de Souza escreveu que cinco milhões de brasileiros controlavam a casa grande estava dizendo que a imensa maioria se submete ao
controle de um sistema que, apesar das transformações, nunca deixou as base
levantadas desde a aristocracia escravocrata. Entender a história do Brasil é
saber não apenas as razões pelas quais ocorreu a formação de um povo acomodado, ordenado ao domínio, mas ainda como a política de antecipação de
direitos obstruiu conquistas por meio de processos de luta.
O índio foi o primeiro a suportar o peso de uma alicerce de domínio e a eles
foram se juntando milhões, no geral escravos, imigrantes e pobres. Do culto ao
latifúndio saiu um sistema acostumado a moer todas as revoltas populares. Uma
a uma. Desde a morte do infeliz alferes na Inconfidência até a dos miseráveis
da Balaiada (1838), desorganizados, marginalizados e sem objetivos comuns.
Não quero saber se em algum lugar da história registramos a expulsão dos
holandeses; o fato é que em poucos momentos encontramos direitos construídos
sem a boa política de antecipação. O poder tem sido hábil para agir ou fazer
concessões antes da menor inquietação, punindo severamente os desobedientes
e premiando os aliados. Não quero saber se projeto da Constituição de 1822 foi
levado à sugestão popular, mas sim que o seu texto estabelecia o voto censitário
para o eleitor com renda mínima.
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Poderíamos dizer que até mesmo a vitória da guerra do Paraguai termina manchada com a participação dos escravos no
conflito. O advento da República anos mais tarda trouxe decisivamente uma esperança de participação que pereceu diante do
fortalecimento do poder regional. Razão teve Amaro Cavalcanti quando escreveu que o novo regime significou “apenas uma
mudança de nome ou de formas externas, mas igualmente carecedor de benefícios reais para o país e para a nação” (CAVALCANTI, Amaro. Regime Federativo e a República brasileira.
Brasília: Ed. Universidade de Brasília, 1983. p. 339).
Na recém criada República, prevaleceu a corrente positivista, que fundou o país em torno de conquistas de direitos por
meio da ordem, ou seja, ordem e progresso foram os lemas que
serviram a um domínio certo, e sob parte desses resquícios estamos aprisionados até os dias de hoje.
Na batuta da ordem e do progresso foram negadas conquistas de direitos por meio de iniciativas genuinamente participativas. A luta, logo convertida em luta armada, serviu para
encontrar inimigos e não aliados. A luta contra o inimigo tem
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impedido, durante toda a história, o surgimento de movimentos
amplamente participativos e voltados à construção de direitos
iguais para os marginalizados.
O populismo que começa dar sinais com Floriano Peixoto
foi uma caricatura da participação política, tanto que mais tarde não tivemos dúvidas ao esmagar Canudos, como quem não
reconhece os brasileiros, respondendo seus movimentos sociais
com atos de guerra. O político mineiro Antônio Carlos advertiu
muito bem: “Façamos a revolução antes que o povo a faça” (VICENTINO, Cláudio, DORICO, Gianpaolo. História do Brasil.
São Paulo: Scipione, 1997. p. 330).
A velha política da antecipação esvaziou a participação política e não foi a figura paterna de Getúlio Vargas que acabou
com tudo isso. A chegada da Ditadura trouxe a suspensão dos
direitos políticos, seguida do fechamento do Congresso e do fim
das garantias constitucionais. Sobre tantos escombros, renovamos esperanças, que foram em grande medida o combustível
para as “diretas já”, como também para uma Constituição e o
impeachment de um Presidente.
Ritos
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Futebol como indústria
de triturar prioridades
Ao longo da história foi sendo montado um sistema de desigualdade estrutural, muito mais além do que imaginamos como
causas da crise estatal. O movimento social que ressurge agora,
como uma nova Balaiada - desorganizada e sem objetivos comuns - levanta problemas estruturais, cuja solução não depende
apenas de manifestações populares.
Mudar um País é romper o modelo estrutural que lhe deu
base e isso implica mudar leis para depois mudar o Direito; mudar o sistema eleitoral, inclusive acabando o voto obrigatório,
para depois mudar os políticos; mudar prioridades para depois
mudar a saúde, a educação e a segurança; mudar o sistema de
impunidade para depois começar a fazer “justiça”; mudar as
políticas públicas para depois mudar a nossa relação com a política; acabar com os políticos palhaços para depois mudar as
palhaçadas dos políticos; mudar o sistema de patrulhamento
moral por orientação sexual para depois mudar a intolerância;
mudar as velhas caras para depois mudar as propostas... Mudar
a estrutura leva tempo, dinheiro e esforço conjunto e ninguém
muda estruturas apenas com votos, mas movimentos sociais são
um bom começo.
Sabemos das estruturas que dão base ao poder hegemônico,
assim trazido com o primeiro colonizador e que até hoje continua fazendo de suas sustentações o que temos como leis. O voto
obrigatório, o foro por prerrogativa, a impunidade lavada nos
crimes de colarinho branco são placas, que, se bem seguidas,
levam-nos direto ao covil do poder hegemônico. Sabemos de
todos esses caminhos e talvez nem precisasse dizer; fomos ensinados a entendê-los como os únicos por onde percorrer.
A nova Balaiada precisa vencer as dificuldades de canalizar
tudo para outro novo caminho, sem o que - não exagero dizer serão preocupantes as incertezas sobre aonde chegaremos, digo
preocupante não para a Política, mas acima de tudo para os
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Ritos
políticos reais, completamente despreparados para entender os
novos Balaios que estão ai e aqui e em todos os lugares, graças a
uma trama de uma rede de cipó que escode os líderes.
Devemos mesmo esquecer os motivos estruturais que nos
dão a razão para o movimento? Talvez já não seja mais uma
questão de razão. Falo de um momento que nega a razão justamente por afirmar e ao mesmo tempo recusar a nossa cordialidade histórica. Acordar antes da morte ou morrer em sono de
berço esplendido. Eis a questão.
O fim da política de
antecipação de direitos
No final do século XX cresce a discussão em torno de uma
tensão entre o aumento dos encargos sociais do Estado e a diminuição da capacidade de o Estado interferir na sociedade
(NEVES, Marcelo. A Constitucionalização Simbólica, 2007, p.
29). São essas questões que servem de motor ao movimento. O
aumento dos encargos sociais com eventos esportivos e a incapacidade do Estado interferir em assuntos prioritários para os que
vivem o cotidiano de hospitais, escolas e tantos outros serviços
públicos.
É chegado o momento de ouvir Jean Cruet, especialmente quando escreveu uma monografia apenas para apontar
as agruras de um sistema normativo incapaz de inventar a sociedade, mas que está sempre sendo reinventado por ela (A Vida
do Direito e a Inutilidade das Leis. Sem tradutor mencionado.
Lisboa: Antiga Casa Bertrand – José Bastos & Cª. - Livraria ed.,
1908). Hoje isso é fato no Brasil. Um fato e tudo o que isso pode
significar.
Somos muitos e desiguais. E se o mérito do movimento nesse momento é justamente a falta de foco, devemos pensar que
isso que nos une momentânea e indistintamente precisa de um
canal que nos leve para um lugar comum, do contrário seremos
manada de elefante caindo em precipício.
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Os bilhões gastos no Brasil se somarão à dívida de bilhões
deixada pela Copa do Mundo na África do Sul? De tudo, a competição encerra no País o uso do futebol como motor de resolver
problemas sociais, restando muito mais evidente a arma partidária dessa indústria de triturar prioridades que está sendo a Copa
do Mundo. Jogadores são soldados sim, muito bem pagos por
seus patrocinadores.
A primavera dos balaios sugere uma crise nos processos
de manipulação midiática. Que escola temos no País dos melhores estádios do mundo? Na base de nossa pequena história
dos conflitos está a inversão de valores e o sentimento de classe sem o devido reconhecimento. Já percebemos que o sistema
deve funcionar igualmente. A igualdade é uma premissa básica
fundante, flagrantemente negada por muitas propostas políticas,
especialmente a que pretende impedir o poder de investigação
do Ministério Público, assegurando que efetivamente o sistema
continue a funcionar seletivamente apenas contra pobres, estes
sim os midiaticamente apontados como os verdadeiros “culpados” por nossas mazelas. Isso tudo também está implícito na
proposta de redução da menoridade penal, desviando a atenção
pública ou colocando uma máscara de impunidade sobre quem
aperta os botões de funcionamento das estruturas.
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As manifestações sociais do momento são as de todo sempre,
mas nunca houve uma igual ou dessa forma capaz de unir e, ao
mesmo tempo, realçar desigualdades. A nova Balaiada destaca-se “justamente” por uma justaposição das formas de ver e viver
o mundo das pessoas. Enquanto os políticos guardam a velha
ritualística do consenso estruturada sob a bandeira da ordem e
progresso patriarcal, o novo mundo ou o mundo de todo mundo confunde, exatamente porque é o mundo de outras pessoas, o
mundo que para a Política sempre foi o mundo do Outro. Nessa nova visão, o mundo está significativamente marcado
por um sentimento agudo e doloroso de distorção de mundos. É
esse sentimento encontrado nas centenas de manifestações levadas às ruas. Como no filme Pequena Miss Sunshine, o estranho
que chega atrapalha a competição de beleza; esse estranho, que
nunca foi novo, rompe com o mundo romântico da Política até
então praticada e - anarquicamente mesmo - decreta o fim da
Política de antecipação de direitos e, não apenas isso, cobra uma
pauta sobre quem são os verdadeiros criminosos e por quais razões o sistema nunca os encontrou ou, se os encontrou, assegurou
proteção.
Os Balaios pedem passagem para a chegada de uma nova
Política, em um mundo de políticos que passaram.
Ritos
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// ARTIGO
Melhorar os
números de nossa
produtividade?
Como assim?
Mádson Ottoni
de Almeida Rodrigues
Juiz Titular da 9ª Vara Cível e Diretor
do Foro da Capital
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Ritos
O monopólio da jurisdição pelo Estado nos impede de agir materialmente.
É o Estado que arbitra a solução dos conflitos diante de um direito ameaçado
ou violado, daí tratar-se a justiça de um bem que afeta a todos e que assegura a
estabilidade social. Falar em Estado Democrático de Direito, fundado na cidadania e na dignidade da pessoa humana (CF, art. 1º, II e III), é falar no acesso
à justiça como sinônimo de acesso à tutela jurisdicional adequada: tempestiva
e eficaz.
Nesse quesito, reconheçamos, o Brasil está longe do ideal de um Estado Democrático de Direito. Como disse o Ministro Joaquim Barbosa em seu discurso
de posse na presidência do STF: “Gastam bilhões de reais anualmente para que
tenhamos um bom funcionamento da máquina judiciária. Porém é importante
que se diga, o judiciário que aspiramos é um judiciário sem firulas, sem floreios,
sem rapapés, pelo menos na minha concepção. O que buscamos é um judiciário
célere, efetivo e justo. De nada valem as edificações suntuosas, os sofisticados
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Ritos
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sistemas de comunicação e informação se naquilo que é essencial a justiça falha.
Falha porque é prestada tardiamente, e não raro, porque presta um serviço que não
é imediatamente fruível por aquele que o buscou.”
De fato, nosso judiciário custa caro, mas não é eficiente. Tomando como base
informações oficiais do CNJ, relativas ao ano de 2011, nosso pequenino Rio Grande do Norte apresentou o custo de R$ 3.352,64 por processo, ficando somente
atrás de Pernambuco na região Nordeste, onde o custo por processo correspondeu a R$ 3.374,20. No mesmo ano, nossa despesa com pessoal importou em R$
515.770.271,14, representando o percentual de 6,9% do gasto total do Estado, o
que nos colocou em primeiro lugar no Nordeste neste quesito. Já no tocante ao total
de sentenças ou decisões, também em 2011, contabilizamos o número de 165.383,
que nos coloca na região Nordeste somente a frente do Estado de Alagoas, com
102.424 sentenças ou decisões (Fonte: CNJ – Justiça em Números, adaptado pela
SJGE, maio de 2013).
Em 2012, embora ainda não existam informações oficiais divulgadas pelo CNJ,
o custo unitário de nosso processo está estimado em R$ 3.203,26, com a despesa
com pessoal estimada em 6,7% do gasto total do Estado. Neste último quesito,
mesmo com uma redução de 6,9% para 6,7%, continuamos ostentando com folga
a primeira colocação no Nordeste.
Nossa estatística é preocupante! Enquanto contabilizamos o segundo menor
número de sentenças ou decisões na região Nordeste, somos, de longe, o primeiro
lugar no item despesa com pessoal, considerando o percentual sobre o gasto total
do Estado.
Diante dessa realidade, o que fazer?
Sabemos que as conquistas remuneratórias são irrenunciáveis e representam
uma melhor qualidade de vida para nossas famílias, portanto necessitamos mantê-las. Todavia, para que isso ocorra, somos todos convocados a redobrar o esforço
e a dedicação na melhoria dos números de nossa produtividade. Se nosso Estado conseguir elevar o número de sentenças e decisões, abreviando a duração dos
processos, nossas conquistas remuneratórias estarão asseguradas, e daí por diante
navegaremos em águas tranquilas, sem sobressaltos ou ameaças.
Não existe uma fórmula pronta capaz de garantir eficiência na prestação dos
serviços jurisdicionais. Se essa fórmula existisse certamente alguém já teria patenteado a ideia e estaria recebendo dividendos por isso. Não é assim que funciona!
O primeiro passo para a mudança consiste em mudar a mentalidade. Devemos
fazer uma autocrítica e analisar como poderemos melhorar a prestação de nossos
serviços. O que nós magistrados podemos fazer para julgar com mais rapidez? Devemos aumentar as horas dedicadas ao trabalho? Devemos simplificar as decisões;
padronizar modelos; decidir em audiência; fixar prazos e dar conhecimento às par-
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Ritos
Urge uma reforma
na Lei Orgânica
Judiciária, visando
principalmente à
criação, fusão
e classificação
de comarcas no
interior do Estado”
Juiz Mádson Ottoni
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tes da data da prolação da sentença? Devemos alterar o método de trabalho de nossos gabinetes e secretarias? A propósito, os diretores de secretaria precisam gerenciar com eficiência
a unidade jurisdicional, pois recebem uma ótima gratificação para isso e necessitam mostrar
resultado. Doutro bordo, somos nós juízes que indicamos os diretores de secretaria e os assistentes de gabinete, portanto também temos responsabilidade por seu desempenho.
Os servidores do Poder Judiciário igualmente necessitam mudar de atitude. A pontualidade, a dedicação e o foco no serviço devem ser uma constante. Não é mais possível tolerar
a desídia e a falta de compromisso de alguns servidores. A minoria que assim se comporta
precisa ser chamada à responsabilidade.
As boas práticas que existem em algumas secretarias judiciárias precisam ser repassadas
para as demais unidades. O fluxo adequado de trabalho das secretarias precisa ser padronizado pelo Tribunal, com a definição de prazos para o cumprimento das etapas de tramitação
dos processos. Ainda como parte desse projeto, a Corregedoria de Justiça precisa fixar um
calendário para realizar auditorias periódicas, a fim de analisar o cumprimento dos fluxos,
prazos e resultados alcançados.
Urge uma reforma na Lei de Organização Judiciária, visando principalmente à criação,
fusão ou reclassificação de comarcas no interior do Estado, além da premente redefinição da
competência de algumas varas da capital, cuja distribuição mensal de feitos é baixíssima.
Núcleos de conciliação prévia; fóruns permanentes de uniformização de entendimento
entre magistrados com a mesma competência; redistribuição de servidores; contratação de
menores aprendizes para auxiliar os trabalhos mais simples das secretarias; disponibilização
da certidão de agravo no portal do Tribunal de Justiça; disponibilização do sistema Hermes às
repartições públicas que se relacionam com o Poder Judiciário; protocolo centralizado para o
recebimento de petições e autos em tempo integral; central de informações processuais, inclusive por telefone 0800, para desafogar o balcão de atendimento das secretarias; incremento do
Núcleo de Perícias, dentre outras iniciativas, certamente resultarão em maior produtividade.
É fundamental, ainda, que nosso Tribunal defina com tirocínio as prioridades e os rumos
que haveremos de seguir doravante, especialmente traçando um plano de metas e objetivos
claros a serem perseguidos pelas próximas gestões.
A missão é dura e exige um esforço coletivo, e nós não podemos perder mais tempo. Arregacemos, pois, as mangas, unamos as mãos e vamos à luta.
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Ritos
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// Entrevista
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Ritos
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Um
bate-papo
entre
magistrados
Numa tarde bastante produtiva, do mês de maio, a AMARN recebeu em sua sede
administrativa o juiz federal Walter Nunes para uma entrevista sobre a LOMAN. A ideia
era fazer com que juízes estaduais entrevistassem um juiz federal que já esteve a frente
do CNJ e pudessem debater sobre as propostas da nova lei da magistratura. Os juízes
Marcelo Varella, Jessé Alexandria e Assis Brasil conduziram a entrevista que se transformou em uma conversa sobre temais atuais e de interesse da magistratura brasileira.
Da LOMAN, ao ministro Joaquim Barbosa, STF e política foram alguns dos assuntos
abordados pelos magistrados.
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Ritos
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Walter Nunes – As entidades de magistrados já encaminharam as propostas e o texto da nova LOMAN deve ser enviado pelo SFT ao Legislativo, mas
acredito que a votação não deva ocorrer neste ano e nem no próximo. Um dos
pontos discutidos na nova lei é com relação à convocação dos juízes de primeiro
grau para substituírem nos tribunais. Eu concordo com a regra que estabelece a
vedação dessas convocações.
Assis Brasil – Por que você é contra essas convocações?
Walter Nunes – Porque desestrutura o primeiro grau. Na Justiça Federal, se
você vai ser convocado para os tribunais já começa a receber processo três meses
antes. Ou seja, pela demanda que a gente tem no primeiro grau, é impossível e
isso ainda mascara a necessidade de ampliação dos tribunais.
Jessé Alexandria – E nos grandes tribunais como São Paulo, como seria o
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Ritos
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quantitativo de vagas?
Walter Nunes – Em São Paulo, já está comprovado que o tribunal não pode ser daquela forma. A
emenda 45 trouxe a questão das turmas descentralizadas, mas isso não pegou nos tribunais de justiça.
Assis Brasil – A Lei Orgânica da Magistratura
data de março de 1973. Você não considera que essa
lei já deveria ter sido substituída por um estatuto da
magistratura que viesse abranger todos os anseios e
deveres da magistratura nacional, considerando-se
que a LOMAN é uma lei antiga e obsoleta?
Walter Nunes – Todo mundo tem essa consciência. O que foi que aconteceu? O Judiciário é uma
esfera de poder que, em tese, está mais aberta para as
interferências externas. Então, um projeto de lei disciplinando essa esfera de poder; todos os agentes que
podem interagir ou divergir ou até ocupar espaços
no Judiciário, vão querer influenciar na elaboração
dessa lei.
O projeto de lei da magistratura foi encaminhado
tão logo a promulgação da CF como foi o do Ministério Público. O que aconteceu? Como o MP ainda
não tinha essa atuação como vimos nos últimos anos,
ninguém se preocupou com esse projeto e ele foi
aprovado em 1993. Se fosse hoje, imagine a dificuldade em relação à aprovação da lei. Mas, o Judiciário
desde o início enfrentou essa resistência.
O que a Constituição de 88 trouxe de novo para
o Judiciário brasileiro? Basicamente, nada. Criou-se
apenas os juizados especiais e o STJ. E, nesse tempo,
o Supremo ficou questionando sobre como levar um
projeto de nova LOMAN se tem a reforma do judiciário? A gente mudou o paradigma do direito brasileiro e temos um marco regulatório normativo que é
a CF de 88 e como continuamos com uma LOMAN
que foi pensada num Estado ditatorial ?
Marcelo Varella – O Judiciário é uma instituição
de âmbito nacional, cuja divisão se dá em razão da
necessidade de distribuição de competências, é o que
decidiu o Supremo que enfatizou o escalonamento
dos subsídios. O novo Estatuto da Magistratura não
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O que a Constituição
de 88 trouxe
de novo para o
Judiciário brasileiro?
Basicamente, nada.
Criou-se apenas os
juizados especiais
e o STJ. E, nesse
tempo, o Supremo
ficou questionando
sobre como levar
um projeto de
nova LOMAN se
tem a reforma do
judiciário?”
Juiz Walter Nunes
Ritos
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se propõe a definir essa matéria, ainda que determinando a aplicação
automática dos reajustes a toda a magistratura, deixando apenas o pagamento a depender de disponibilidade orçamentária de cada ente da
federação?
Walter Nunes – Na proposta que está, não. Mas, há sugestões de
emendas aditivas. Mas o parlamento não tem interesse nenhum nisso.
O sonho de consumo de todas as associações de magistrados seria as revisões anuais, mas sabemos que há resistências do próprio parlamento.
As transmissões
das sessões do
STF colaboraram
muito com a
imagem perante
a população. Eu
era menino, não
sabia o nome de um
ministro, hoje toda
a população sabe”
Juiz Assis Brasil
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Ritos
Marcelo Varella – Há uma tendência em alguns estados de diminuição do número de entrâncias. Existe alguma proposta para que o
Estatuto defina e unifique essa matéria?
Walter Nunes – No projeto do ministro Ricardo Lewandowski, diz
que só pode ter duas entrâncias. Dentro dessa ideia de ter um Judiciário
mais harmônico, isso é muito importante. O nosso sistema é de carreira
e por mais que se tenha parâmetro de remuneração, o tempo de serviço
tem de ser valorado. O juiz só é conhecido com o tempo. Ele pode ter
sido o juiz mais extraordinário no início da carreira, mas ele vai ser
avaliado pelo conjunto da obra.
Assis Brasil - Considerando que a expectativa de vida do brasileiro
vem aumentando e que muitas pessoas acima dos 70 anos ainda têm
vigor físico e mental, você concorda com a aposentadoria compulsória
aos 70 anos de idade?
Walter Nunes- Eu tenho uma posição muito clara com relação a
isso. No serviço público a aposentadoria compulsória é fundamental e
principalmente numa esfera de poder. A longevidade numa esfera de
poder passa a ser perniciosa. A carga de trabalho no judiciário brasileiro é desumana e digo que a minha capacidade de trabalho, hoje eu
tenho 22 anos como juiz federal, já foi bem maior. Eu cheguei a trabalhar de domingo a domingo, mas não é nem porque eu esteja cansado,
é a questão mental.
O juiz quer queira quer não, ele convive com as angústias alheias.
Acho que os 70 anos é uma idade mais do que razoável para um magistrado se aposentar.
Jessé Alexandria – Com relação às férias coletivas. Como pensam
as associações do ponto vista remuneratório? Os dois terços seriam
preservados?
Walter Nunes – Sim e o que nos dá um certo conforto é a lei do
Ministério Público, que nos ajuda a manter as nossas garantias como os
60 dias de férias para a magistratura.
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Marcelo Varella – E o atual presidente do STF,
quando assumiu já disse ser contrário às férias de 60
dias.
Walter Nunes – Mas, o que nos dá tranquilidade é
saber que a lei do Ministério Público é bastante abrangente e traz muitas garantias, e o presidente do STF
vai ter dificuldade em se posicionar contrário a que a
gente tenha as mesmas vantagens.
Assis Brasil – O CNJ veio para moralizar e democratizar o Poder Judiciário?
Walter Nunes – Eu não tenho dúvida disso. Não se
conta a história do judiciário sem falar no CNJ e olhe
que é um órgão novo e tem seus erros, mas tem muito
mais acertos. Hoje há um planejamento no ambiente
do judiciário por causa do CNJ. Antes, a gente não sabia quantas ações existiam no Brasil, nem a quantidade de juízes. Agora, há um planejamento estratégico
do judiciário brasileiro com metas a serem cumpridas.
A questão é que a imprensa dá realce à atuação
censória do CNJ. Mas, isso é apenas um aspecto. O
CNJ foi um divisor de águas no judiciário brasileiro, porque a gente não tinha absolutamente nada de
planejamento.
Além disso, se fala na atuação censória, mas quantos e quantos casos o CNJ não atuou exatamente para
podar uma eventual arbitrariedade praticada por tribunal ? Teve um caso numa vara no interior de um
estado brasileiro que era um pandemônio, processos
contra traficantes sem julgamentos e houve uma mudança. Foi uma guerra para tirar esse juiz de lá e conseguiram tirar e uma juíza foi pra essa vara, mas foi
punida, com apenas dois meses de atuação, pelo corregedor por atraso nos processos.
Então, voltando a questão da LOMAN, eu defendo que a magistratura deve ter uma pauta comum. Eu
acho que o projeto não vai ser encaminhado neste ano
e não há espaço para votação. Mas, devemos estabelecer os consensos. O discurso deve estar afinado entre
os juízes estaduais, federais e trabalhistas.
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Jessé Alexandria – Na verdade, o Parlamento está
buscando espaço político e é hora de se buscar uma
negociação.
Assis Brasil – Esse “Mensalão” é a maior prova da
autonomia do Supremo. Vocês já tinham ouvido falar na história do Brasil que ex-ministros, deputados e
senadores tivessem sido condenados? Eu nunca tinha
ouvido falar. O que você acha da indicação política
dos ministros do Supremo?
Walter Nunes – Na proposta de reforma do Judiciário, a AJUFE tem uma proposição de reservar
percentuais para a magistratura de carreira e para a
academia. Eu acho que o Supremo deveria ter um representante do Parlamento lá. No momento em que
estamos lutando pela democratização no Judiciário,
devemos deixar claro que não estamos pleiteando o
direito de ser votado, mas o de votar.
Jessé Alexandria – Na verdade, as últimas escolhas
para o STF foram mais democráticas em relação aos
governos anteriores.
Walter Nunes – Eu gosto de avaliar por esse lado,
embora não concorde com algumas decisões técnicas
do Supremo. O exemplo de independência do STF,
para decidir no caso do “Mensalão”, foi extraordinário.
Assis Brasil – As transmissões das sessões do STF
colaboraram muito com a imagem perante a população. Eu era menino, não sabia o nome de um ministro,
hoje toda a população sabe.
Walter Nunes – Isso é outro exemplo de democracia brasileira. Quando a LOMAN foi criada, muita
coisa não era divulgada e o CNJ, que foi um órgão
criado para se ter transparência, toda sessão para se
apreciar a conduta de um juiz era secreta. O projeto
da TV Justiça é fantástico, extraordinário.
Marcelo Varella – Inclusive, saiu uma pesquisa
apontando que os votos passaram a ser mais longos
depois das transmissões.
Walter Nunes – É verdade. Foi um avanço não só
para a magistratura como para a sociedade como um
todo.
Ritos
19
Tasso Pinheiro
// cidadania
Justiça,
Maria Zeneide Bezerra,
Desembargadora do Tribunal de
Justiça do Rio Grande do Norte
cidadania
e políticas públicas
Falar-se em acesso à Justiça – tem de se evidenciar a secretaria de reforma
do judiciário do Ministério da Justiça, criada em abril de 2003 (dec. Nº 4.685).
Emenda constitucional n. 45, em 2004, que abriu espaço para a efetivação de
alterações tais: súmula vinculante – sistema de repercussão geral – lei dos recursos
repetitivos - transparência. Atribuição: articulação entre o executivo, judiciário,
legislativo, Ministério Público, Defensoria Pública, Ordem dos Advogados do
Brasil, Entidades da Sociedade Civil e Organismos Internacionais na elaboração
e pactuação de propostas de reforma normativa, no plano constitucional e infraconstitucional, objetivando à modernização e administração do sistema de justiça. Tudo, pois, em função do aperfeiçoamento das instituições da justiça a fim de
que se tornem mais céleres e acessíveis à população. Por exemplo, destaco temas
debatidos na sociedade e com a chancela do judiciário, absolutamente expressivos
e que alteram a vida política, social, cultural e econômica do país: liberação de
pesquisas com células-tronco; proibição de fumar nos aviões estendendo-se a restaurantes, etc; nepotismo nos três poderes; gratuidade na distribuição.
20
Ritos
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Eventos realizados através dos projetos de Justiça e
Cidadania nos municípios do RN
Democratização do acesso à Justiça (definido pela secretaria
judiciária) – a expressão é forte e, naturalmente, obriga o estado
e a sociedade a promoverem ações, terem atitudes que possam
concretizar este direito. Destaco: começando pelos tribunais, que
hoje estão com outro perfil. Democratizam os espaços públicos.
Idem as demais instituições estatais e não estatais, estendendo-se
também à realidade privada, onde os trabalhadores lutam, reclamam por uma maior decisão/participação dentro das empresas.
Significa, portanto, que tais instituições públicas devem liberar o
acesso da população em qualquer assunto, seja nas informações,
nas decisões, nos serviços, visando um atendimento de excelência.
O judiciário, pois, deve atender aos anseios do povo e encontrar
fórmulas que faça este povo ter absoluto acesso ao sistema de justiça de forma dinâmica, moderna, inovadora. Ao contrário de
outros tempos em que tínhamos um judiciário fechado, introspec-
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tivo, fechado.
Então, os juízes, a OAB, a Defensoria, a Promotoria, os servidores, enfim, devem ter a preocupação quanto ao bom atendimento aos cidadãos que os procura.
O acesso à Justiça é exatamente garantir e promover direitos e
garantias fundamentais através destas políticas de todos que fazem
parte do sistema de justiça, num prisma, portanto, amplo, integral, dinâmico, garantidor e promotor destes direitos e, por serem
fundamentais, indispensáveis ao estado democrático de direito.
A Secretaria de Reforma Judiciária, quanto às reformas normativas, criou o programa nacional de segurança pública com
cidadania, buscando qualificar as instituições no atendimento
ao cidadão em razão de seus direitos sociais. Ex: lei n. 11.340,
07.08.2006 - Maria da Penha pela qual, para a sua efetivação,
devem ser implementados os instrumentos para a sua correta apli-
Ritos
21
cação. Tudo, portanto, em razão da dignidade humana posta na Constituição Federal. Antes tais
crimes contra a mulher estavam num patamar inferior: menor potencial ofensivo. O que consequenciou? Transparência à violência doméstica – debates nas universidades, no meio jurídico,
na sociedade. Foram criadas varas especializadas da violência doméstica e familiar, juizados,
câmaras, promotorias e núcleos da defensoria pública, delegacias de polícia para atenderem
às mulheres, modalidade que permite uma visão sistêmica do assunto, com mais celeridade e
segurança jurídica nas decisões dos magistrados. Também registro a atuação da equipe interdisciplinar permitindo um ambiente acolhedor/humano nestas causas.
Judiciário: alta taxa de congestionamento (CNJ – Justiça em números) e morosidade. Tem
que se buscar novas possibilidades de ajuizamento de novas demandas pelos cidadãos. Destaco:
existência de atitudes contrárias ao acesso – pouco republicana. Diz Boaventura de Souza Santos (para uma revolução democrática da justiça, SP, Cortez, 2007, p.22) “(...) Os Tribunais não
foram feitos para julgar para cima, isto é, para julgar os poderosos. Eles foram feitos para julgar
os de baixo. As classes populares, durante muito tempo, só tiveram contato com o sistema judicial
pela via repressiva”.
Aí está: começou-se a julgar para baixo, feitos que estão na base da pirâmide, em maior
número, deslanchando na alta taxa de congestionamento. Destaco: o povo vai em busca do
judiciário para resolução dos conflitos: ponto positivo x sinal da cidadania. Mas, não basta fazer
concursos e ampliar a estrutura das instituições para tornar rápido o judiciário.
Projeto/ propostas: acesso priorizado pelas ações coletivas – regulação dos procedimentos
de prevenção e recomposição dos direitos difusos e coletivos, objetivando uma maior segurança jurídica, a efetividade à tutela coletiva mas, principalmente ampliando o acesso à justiça:
1) Direitos coletivos tuteláveis – meio ambiente, saúde, educação, etc...; 2) Aumento do rol
de legitimados para proposição das ações coletivas – OAB, Defensoria, Partidos Políticos; 3)
Suspensão dos processos individuais em face da ação coletiva – evita o aumento das demandas e diferentes julgamentos; 4) Provas produzidas por quem está mais perto dos fatos; 5)
Democratização na aplicação do resultado das ações – reparação de danos ambientais, aos
consumidores.
Neste contexto constitucional, em face das políticas públicas, destaco a Defensoria Pública
- estados obrigados a terem a sua Defensoria. Precisa-se, todavia, fortalecê-las (2004). Precisa-se
conhecer a realidade dessas instituições (2006).
Vários investimentos feitos pelo Ministério da Justiça: articulação do ministério, Secretaria
Especial de Políticas para Mulheres, Departamento Penitenciário Nacional e as Defensorias realizando mutirões. Foi criada a força nacional da Defensoria Pública em execução penal (assistência jurídica aos presos nos estabelecimentos prisionais em situação crítica).
Sugestões: juizados de pequenas causas – mais demandas, mais acessos - cultura de paz. Profissionais com este perfil. No plano da desjudicialização – lei 11.441/2007: divórcio, separação,
inventário e partilha, através de escritura, havendo acordo entre as partes e inexistindo interesse
de incapazes. Incentivo a que as faculdades implementem a cultura da conciliação/mediação
nos alunos.
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Ritos
A justiça brasileira
e, especialmente a
Norte-riograndense,
tem apresentado
transformações”
Desembargadora
Maria Zeneide Bezerra
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2008 - projeto pacificar – implantar, fortalecer, divulgar a mediação e outros meios alternativos de solução de conflitos nas faculdades como instrumentos de acessos à justiça.
Ministério da Justiça articulou o fortalecimento da mediação e conciliação como uma política pública com a escola nacional de formação e aperfeiçoamento da magistratura (ENFAM)
– no conteúdo dos concursos como na formação continuada dos Magistrados junto às Escolas
da Magistratura, da OAB.
Conciliar é legal – justiça comunitária – políticas envolvendo as diversas instituições que
compõem o sistema de justiça verificando diversas formas de alternativas para solução dos conflitos, tendo, a sociedade, um papel primordial na pacificação social.
Concluindo. Em termos do tema – Justiça, Cidadania e Políticas Públicas, o que faz o
Tribunal de Justiça do Rio Grande do Norte? A Justiça Brasileira e, especialmente, a Norteriograndense tem apresentado transformações. Uma nova feição, cujo impacto transforma, pouco
a pouco a Instituição. Óbvio. Existem reações ao novo. Maria Tereza Sadeck diz que é muito
difícil encontrar uma instituição que, em tão pouco tempo, tenha se transformado tanto. É a
quebra de padrões. De paradigmas. Quem possibilitou? A constituição de 1988 e a Emenda
Constitucional nº45 que determinou a Reforma do Judiciário. Com relação ao acesso à Justiça:
estímulo a conciliação: Juizados da Violência Doméstica e Familiar. Nestes, as Câmaras, inclusive no 2º grau (TJ); projeto para criação de mais Câmaras e, também de núcleos temáticos;
mutirões de cidadania quase que de dois em dois meses - gestão no judiciário (MBA); padronização de rotinas - ferramentas de informática – sistema Hermes -; Juizados Virtuais – diário
com circulação eletrônica. Bloqueio de contas – penhora online; certificação digital – certidões
online - internet no pleno online – votos/câmaras – a tecnologia tem sido vitaminada: tem de
se intensificar celeridade x eficiência – capacitar os magistrados e servidores (este no programa desenvolver) – intensificação de programas/projetos que visam aproximar o judiciário à
população, não só nas praças públicas (Justiça na Praça) mas, na rede educacional do Estado
(Justiça e Escola), na COPEGAM (Comissão de Sustentabilidade), onde mais de um milhão de
pessoas já viram Juízes, Desembargadores, Servidores, serviços do Tribunal nas praças públicas, juntamente com inúmeros parceiros, numa população do Estado de quase três milhões e
duzentos habitantes. É um diálogo constante com a sociedade possibilitando a transparência
tão desejada.
Nestas políticas, pergunto: a informática permite a petição virtual. Inovação: por que não
despachos e sentenças virtuais? Por que não acórdãos virtuais? Por que não reduzir o suporte
do papel tanto com relação a economia de recursos naturais, quanto para poupar a justiça do
armazenamento dos processos? Por que não motivar o corpo de servidores com práticas que
permitam atingir altos índices de produtividade? Ele precisa ter consciência de não ser um burocrata. Precisa saber que a sua atividade é relevante: fazer Justiça.
Enfim a Justiça está dando os primeiros passos; mas é preciso que as políticas avancem cada
vez mais na busca da universalização e democratização do acesso à Justiça, através, indiscutivelmente, dos meios alternativos de resolução dos conflitos para se chegar a uma pacificação social
desejada por todos.
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// artes
Miguel
Ordoqui
Por
Paulo Sérgio da Silva Lima
Conheci o artista Miguel Ordoqui em Miami, através de amigos em
comum. Tivemos em seu apartamento, em South Beach, para tomarmos
um café e conversarmos sobre o seu trabalho e projetos. Impressionou-me bastante a riqueza e o colorido de seus trabalhos artísticos, nitidamente latinos, tropicais, com forte influência cubana e brasileira, realçando neles a raça negra. O seu apartamento está mais para ateliê do
que para um lar, no sentido convencional do termo. Isso se deve ao fato
de morar sozinho, dedicando-se exclusivamente ao seu trabalho, para o
qual despende de 5 a 8 horas diariamente.
Pinta o realismo-mágico e o expressionismo-realismo em acrílico
e óleo sobre tela, geralmente abordando temas satíricos, irreverentes e
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eróticos. Sempre enfatiza os rostos humanos,
porque, segundo ele, “o rosto, e mais especificamente os olhos, é a parte mais importante
do ser humano”.
Exerce a arte da pintura desde quando
morava em Cuba, de onde escapou para se
refugiar Nos Estados Unidos, nos idos de
1980, em razão de dissidência ao Governo
de Fidel Castro.
Sua exposição percorreu diversas cidades importantes do mundo, a exemplo de
Nova Iorque, Washington, Miami, Roma,
Paris, Madri, Montreal, etc.
Aqui no Brasil, quando esteve na primeira vez, expôs na Casa Benin, em Salvador,
Bahia, obtendo reconhecimento pela Fundação Gregório de Matos. Apaixonou-se pelo
Brasil baiano, passando a pintar a mulher
brasileira, notadamente as mulatas. Desde
então, Miguel se autointitula baiano.
No ano de 2005, ganhou o prêmio “Lorenzo, El Magnífico”, em Florença, na Bienal Internacional de Arte Contemporânea.
Sumariando o perfil de Miguel Ordoqui,
o jornalista mexicano, radicado em Porto
Rico, Mario Alegre Barrios, sentencia: “O
manejo da sátira, em ocasiões explicitamente ridículas e ostentosas, em outras latentes e
sutis, constitui a pedra angular na estrutura
da obra de Miguel Ordoqui”.
Miguel Ordoqui planeja em breve uma
nova exposição no Brasil, o que será uma
oportunidade de revisitá-lo - os que já o conhecem - e de o conhecerem, os que ainda
não tiveram o prazer de apreciar suas obras.
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27
// Redes Sociais
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Ligados e
desligados
Os magistrados
e as redes sociais
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Juiz de Direito Raimundo Carlyle
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Um jovem dependente químico, natural do Rio de Janeiro e morando nas ruas de Natal, está diante de um juiz, numa audiência para
decidir sobre a progressão de regime de pena. A cena aconteceu em
Natal na Vara de Execuções Penais após relatar ao magistrado não ter
familiares no Brasil e que a mãe morava na Suíça, durante a audiência
com o uso da rede social Orkut foi possível localizar a mulher, que coincidentemente estava conectada naquele momento. Mas, o desenrolar
da comunicação terminou de forma triste para todos os envolvidos na
audiência. Após muitas discussões e mensagens trocadas, a mãe resolveu abandonar o filho sozinho e distante na capital potiguar. Esse caso
aconteceu com o juiz Fábio Ataíde e é um dos exemplos de como as
redes sociais, desde o início com o Orkut e principalmente hoje com o
Facebook, Twitter e Instagram, estão incorporadas na vida das pessoas.
Dados não oficiais apontam para um universo em torno de 70 milhões de pessoas usuárias de algum tipo de rede social e as comunicações
estão cada vez mais descentralizadas e diretas. Nas relações pessoais é
possível articular, inclusive, uma aproximação com outras pessoas distantes em outras cidades, estados ou países. No campo profissional, as
redes são vistas pelos especialistas em mídias sociais, como uma oportunidade de se fazer networking e publicidade com um custo de produção
de conteúdo próximo de zero e potencial de visibilidade proporcional
a atratividade do assunto. E as novidades tendem a acompanhar a velocidade do número de usuários que aumenta em todo o mundo. “No
começo, as ferramentas de redes sociais eram prioritariamente baseadas
em textos, de uns anos para cá temos visto o crescimento dos serviços de
fotos e imagens como o Instagram e Pinterest e mais recentemente serviços de vídeo como Vine e o próprio Instagram. A tendência, além da
democratização dos formatos de mídia, é a transição para plataformas
móveis, cada vez mais o notebook ocupará o lugar do desktop e dispositivos como smartphones e tablets serão utilizados no acesso às redes
sociais”, afirma o professor e consultor de mídias sociais pela FGV em
São Paulo Edney Souza.
Jornalistas, profissionais liberais, professores universitários, policiais,
estudantes e profissionais do Direito estão cada vez mais conectados e
as interações dependem do perfil de cada um e da rede social. Como o
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universo de informações é muito grande e dinâmico, a
maioria dos usuários de redes sociais tendem a seguir
perfis mais relacionados às suas áreas de interesse. O
filtro de pessoas, instituições e assuntos ajudam a organizar melhor a composição das redes para usá-las a seu
favor. “Interajo com perfis diversos nas redes sociais.
Isso amplia o leque de opiniões e aprendizados, porque
é um espaço democrático de exercício da cidadania”,
disse o juiz Raimundo Carlyle.
A juíza Manuela Alexandria, usuária do Twitter,
Facebook e Instagram, começou a usar as redes sociais
mais como entretenimento. Depois, descobriu as várias
possibilidades de se manter informada e conectada com
os assuntos atuais. Ela segue perfis de jornais e revistas
nacionais e locais e acha importante ainda a interação
com pessoas de outras áreas. “É interessante perceber
como as pessoas que não são da nossa área jurídica( e
até mesmo aquelas que o são; mas não são magistrados)
têm pensamentos por vezes equivocados sobre a nossa
carreira. O Twitter proporciona a oportunidade de levarmos nossa realidade a essas pessoas”, afirma.
Para o juiz Fábio Ataíde, a sua profissão se beneficiou e muito com as redes sociais. “Não dá para fazer
Direito sem o caráter multidisciplinar e por isso as redes sociais servem para unir pessoas que se interessam
pelo mesmo tema, mas que nunca poderiam se encontrar fisicamente”.
Big Brother
Um dos grandes questionamentos de usuários e estudiosos de comportamentos nas redes sociais é com
relação à exposição pessoal e até profissional. Aqui vale
a velha regra do bom senso. Nem tudo da sua vida
pode ser compartilhado, revelado, informado, porque
as consequências quase sempre são negativas. “Não
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As pessoas não estavam
acostumadas a
acompanhar autoridades
nas redes sociais, mas
agora, se sentem até
confortáveis ao perceber
que um juiz bebe, viaja
e passeia com os filhos.
Esses compartilhamentos
de conteúdo pessoal
ajudam, inclusive, a
humanizar o profissional
e melhorar a imagem dele
para a sociedade
Edney Souza, consultor
Ritos
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falo nunca com assuntos aleatórios com pessoas desconhecidas. Não uso
Chats ou qualquer sistema de comunicação instantâneo e nem apresentou detalhes sobre minha atividade profissional claramente e tampouco
apresento minha imagem ou de meus familiares”, disse o juiz Fábio
Ataíde.
Segundo o professor de mídias sociais Edney Souza, quando um
usuário se identifica colocando a profissão não há como dissuadir do
lado pessoal. “No caso de um juiz de Direito, as pessoas esperam um
senso ético e de justiça ainda mais apurado. Não há problema em um
juiz postar uma foto tomando cerveja com os amigos, por exemplo, mas
se ele acrescentar algo do tipo “hoje deixei o carro em casa”, com certeza, evitará comentários maldosos e desnecessários”, conclui.
Por outro lado, a comunicação e interação nas redes sociais possibilitam construção ou desconstrução de mitos. A maneira de escrever;
não só na escrita correta, mas também na educação com as palavras;
os comentários sobre diversos assuntos; comportamentos e atitudes revelam muito do verdadeiro perfil da pessoa. “As pessoas não estavam
acostumadas a acompanhar autoridades nas redes sociais, mas agora,
se sentem até confortáveis ao perceber que um juiz bebe, viaja e passeia
com os filhos. Esses compartilhamentos de conteúdo pessoal ajudam,
inclusive, a humanizar o profissional e melhorar a imagem dele para a
sociedade”, afirma o consultor Edney Souza.
Bate-boca
Um outro problema, talvez tão sério quanto a exposição excessiva, é
com relação as discussões travadas em plena rede social. Pessoas de diferentes áreas muitas vezes discutem sobre política, futebol, saúde, justiça,
direitos humanos e, como não há nunca uma unanimidade, terminam
por protagonizarem cenas lastimáveis com palavras agressivas e chulas.
“Os juízes devem manter uma conduta irrepreensível na vida pública e privada. As redes sociais nos expõem muito e às vezes podemos
exagerar nos posts ou curtidas, especialmente sobre temas que podem
acabar sob nosso crivo de julgado. Exemplo: corrupção”, analisa o juiz
Raimundo Carlyle.
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Algumas pessoas
levam muito a sério
as discussões e, não
raro, agridem os
seus interlocutores.
Acredito que
são pessoas que
não admitem ser
questionadas em
suas verdades
absolutas
Juíza Manuela
Alexandria
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A prudência e bom senso são ainda os melhores aliados para quem pretende evitar se envolver em questões
delicadas seja no Twitter ou Facebook. Mas, caso seja
inevitável um envolvimento em uma discussão o consultor da FGV faz o alerta: “Recomendo responder com
fatos e caso isso não encerre a discussão, deixe o interlocutor falando sozinho. Não se deve nunca perder a calma, agredir, utilizar termos de baixo de calão, caluniar,
ameaçar ou se aproveitar de uma posição privilegiada
para intimidar, isso pode colocar a opinião pública contra o juiz. Já deixar uma conversa pendente não costuma causar tantos danos. Se a discussão gira em torno de
um erro ou deslize cometido por um dos interlocutores
em geral se desculpar publicamente não só encerra o assunto como traz a opinião pública para o lado de quem
pediu desculpas”, conclui.
Já a juíza Manuela Alexandria faz uma ressalva
sobre as discussões desnecessárias. “Algumas pessoas
levam muito a sério as discussões e, não raro, agridem
os seus interlocutores. Acredito que são pessoas que não
admitem ser questionadas em suas verdades absolutas.
Minhas postagens oscilam entre assuntos sérios e brincadeiras/diversão. Acho que isso torna a convivência
nas redes sociais mais leve e amena. Como diz o ditado:
‘cada um só pode dar o que tem’”.
Por outro lado, apesar dessa revolução nas relações
humanas a partir das mídias sociais, alguns chamados
internautas se tornam dependentes das redes e não
conseguem passar muito tempo desconectados; existem
também aquelas pessoas vivendo bem longe da chamada conectividade. O juiz Jessé Alexandria já teve um perfil no Facebook há 3 anos, onde usava para trocar ideias
sobre temas do seu interesse como Direito, cinema e artes. Mas, hoje, não faz parte de nenhuma rede e garante
viver muito bem assim. “Saí do Facebook, porque não
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havia nível nas discussões e eu usava a rede social para
debater ideias. Hoje, não sinto necessidade de me conectar e não tenho nenhum receio sobre isso. Acho, até, que
tenho mais privacidade não me conectando”, afirma.
Apesar das resistências, não tem como se manter
longe da internet e, portanto, de alguma forma existe
uma certa conectividade mesmo que restrita. A verdade é que as redes sociais pelo seu poder de alcance
mudaram as relações humanas e profissionais e saber
usufruir o melhor delas é o grande desafio de todos nós.
O famoso professor de Comunicação Social da
UFRJ, Muniz Sodré, mestre em sociologia da informação e comunicação pela Universidade de Paris, disse a
célebre frase, “antes da midiatização da sociedade só
Deus tinha o poder imediato, global e instantâneo” ao
se referir ao fenômeno da midiatização. A sociedade
contemporânea, com o natural avanço dos aparatos tecnológicos, nos leva a esse fenômeno e , segundo o professor, não há nada de assombroso nisso. “Os indivíduos
tendem a se relacionar à distância, compondo o que já
se chamou de ‘telerrealidade’ social. A interação passa
a depender dos dispositivos de mídia, portanto, é visceralmente atravessada pelo fenômeno da midiatização”,
conclui.
Pessoas antenadas, como o juiz Fábio Ataíde, que
criou o blog “U Inverso do Direito”, há 5 anos, com
conteúdos voltados à criminologia e cinema, acompanhar as novas tecnologias e fazer parte desse universo
globalizado são uma questão de escolha de vida. “Uso
as redes sociais como ferramentas para obter conhecimento e interagir com pessoas. Atualmente, espero surgir uma ideia de um outro projeto para encerrar o blog
e começar tudo novamente. As redes são um bom ponto
de partida para lugar nenhum. É a escrita sem destino
ou com todos eles....”
Ritos
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// ARTIGO
O choro:
algumas notas
Cícero Martins de Macedo Filho
Cícero Martins de Macedo Filho
Juiz de Direito da 4ª Vara da Fazenda
de Natal/RN. Mestre em Direito
Constitucional (UFRN). Mestre em
Direito Constitucional (Universidade do
País Basco-Espanha). Doutorando em
Direito Constitucional (Universidade do
País Basco-Espanha). Músico amador.
Estudante do Curso de História
(UFRN). Presidente da Academia
Macaibense de Letras
Certamente você já cantarolou os versos “Meu coração, não sei por que, bate feliz
quando te vê.” Já ouviu, com certeza, “Brasileirinho”, “Tico-tico no fubá” ou já viu
um grupo de músicos reunidos em um bar ou numa festa tocando violão, cavaquinho,
bandolim, flauta, saxofone, pandeiro. Se você já cantarolou ou ouviu esses sons, sabe
certamente o nome deles: choro. Mas de onde ele veio e o que ele significa para a nossa
música popular? Este artigo não tem a pretensão de escrever uma história do choro, o
mais melodicamente instigante dos nossos gêneros musicais. Até porque a história do
choro é secular (mais de 150 anos), sociologicamente rica e até mesmo controversa, e se
confunde com a própria história da música popular brasileira, o que exigiria um texto
bem mais aprofundado e longo. Pretendemos, por isso, deixar aqui apenas algumas
notas sobre esse gênero musical genuinamente brasileiro e que nunca deixou de atrair
as atenções de músicos e pesquisadores.
De todos os gêneros musicais brasileiros, não existe um mais fascinante do que o
choro. É um gênero musical que requer habilidade para o solo, harmonia e improvisação. Esses requisitos, sempre presentes no balanço do choro, torna o gênero uma
rica escola para o músico popular. Não sem razão o nosso grande maestro Heitor
Vila-Lobos afirmou que o choro é a “alma musical do povo brasileiro”.1 Em um livro
1 Apud DINIZ, André. Almanaque do choro: a história do chorinho, o que ouvir, o que ler,
onde curtir. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003.
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escrito em 1936, que se tornou referência para a história do choro, por relatar as atividades dos chorões entre as últimas décadas
do século XIX e as primeira décadas do século XX, o carioca
Alexandre Gonçalves Pinto, mais conhecido pelo apelido de
Animal, carteiro e chorão, frequentador das rodas de choro, já
dava idéia do que o gênero representava no cenário musical do
Rio de Janeiro de então, considerado o berço do choro: “Choro,
quem não conhece esse nome? Só mesmo quem nunca deu naqueles tempos uma festa em casa.” 2
Para Luís da Câmara Cascudo, nosso folclorista maior, o
choro vinha de xolo, um baile que os escravos faziam nas fazendas, e a palavra foi gradativamente mudando para xoro e, finalmente ganhado a grafia que tem hoje, choro.3 Já para José Ra-
mos Tinhorão, a designação choro teria vindo da impressão de
melancolia gerada pelo modo de tocar o violão, nas baixarias, e
que o termo chorão, muito comum entre os músicos adeptos do
gênero, seria uma decorrência dessa forma de tocar.4 Segundo
Ary Vasconcelos5, o choro nasceu por volta de 1870, a partir de
adaptações de gêneros dançantes europeus em moda na época,
como as valsas, polcas, schottisch, mazurcas, que eram executados num jeito brasileiro de tocar dos conjuntos de então, à base
de violões e cavaquinhos. Henrique Cazes, grande músico e pesquisador do gênero, afirma que o termo choro se fixou e passou
a ser amplamente usado em razão do fato de traduzir com precisão a maneira exacerbadamente sentimental com que os múdo choro carioca.
2 PINTO, Alexandre Gonçalves. O choro: reminiscência dos
chorões antigos. Rio de Janeiro: Funarte, 1978. Este livro é a mais
importante fonte do choro entre os anos de 1870-1936, e é uma obra
rara, pois todas as edições estão esgotadas. Em pesquisa em sebos
na internet, é possível encontrar algum exemplar, para quem estiver
disposto a gastar uma pequena fortuna.
4 TINHORÃO, José Ramos. Música popular: uma tema em debate. São Paulo: Editora 34, 1998, onde o autor trata especificamente
sobre o surgimento do choro carioca. Para um estudo sociológico mais
completo sobre o surgimento do choro e da música popular no Brasil,
é imprescindível a leitura de História da música popular brasileira. São
Paulo: Editora 34, 1998, do mesmo autor.
3 Apud CAZES, Henrique. Choro: do quintal ao Municipal. São
Paulo: Editora 34, 1998. Neste livro, o excepcional músico carioca, que
me concedeu a alegria da sua amizade e o prazer de desfrutar de rodas de choro, faz um relato da sua experiência no fascinante universo
5 VASCONCELOS, Ary. Brasil musical. Rio de Janeiro: Editora Art
Bureau, 1988. O mesmo autor oferece uma visão mais abrangente da
história do choro na obra Carinhoso e etc.: história e inventário do
choro. Rio de Janeiro, produção independente, 1984.
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sicos populares da época abrasileiravam as danças européias.6
E foi assim que o choro foi se impondo como gênero musical,
terminando por se constituir no mais genuíno e apaixonante dos
nossos ritmos, a ganhou destaque a partir das primeiras décadas do século XX com a colaboração de músicos virtuosos, das
quais a mais brilhante foi, sem dúvida, do magistral compositor
e instrumentista Alfredo da Rocha Viana Filho, um gênio conhecido como Pixinguinha (RJ, 1897-1973), maior compositor
de choros de todos os tempos e que inspirou sucessivas gerações
até os dias atuais.7
Nomes como do flautista Joaquim Antônio da Silva Callado Júnior, famoso pela autoria de Flor Amorosa8 e considerado
o “pai dos chorões”, Ernesto Nazareth, Chiquinha Gonzaga,
Anacleto de Medeiros, João Pernambuco, Zequinha de Abreu,
Luís Americano, Bonfiglio de Oliveira, Luperce Miranda, Garoto, Jacob do Bandolim, Waldyr Azevedo, Severino Araújo e o
potiguar K-Ximbinho, Abel Ferreira, Copinha, Déo Rian, Altamiro Carrilho, Zé da Velha, Paulo Moura, Radamés Gnattali,
Conjunto Época de Ouro, Joel Nascimento e, mais recentemente, Paulinho da Viola, Rafael Rabelo, Hamilton de Holanda,
Henrique Cazes, Yamandú Costa, dentre muitos outros, contribuíram decisivamente para a fixação das características desse
autêntico gênero musical brasileiro9, principalmente quanto ao
seu fraseado melódico.
Nosso mais famoso maestro e compositor erudito, Heitor
Villa-Lobos, teve o choro como a principal inspiração para a
sua obra. Já compositores mais modernos, como o genial Tom
Jobim, Hermeto Pascoal, Sivuca, Paulinho da Viola, Guinga, e
grupos como o Nó em Pingo D’água, Camerata Carioca, Galo
Preto, e cantoras como a potiguar Ademilde Fonseca (a rainha
do chorinho), e letristas como Hermínio Bello de Carvalho10
6 CAZES, Henrique. Op. cit., p. 19.
7 Especialmente sobre Pixinguinha, são obras de referências:
CABRAL, Sérgio. Pixinguinha: vida e obra. Rio de Janeiro: Lumiar
Editora,, 1997. BARBOSA DA SILVA, Marília T; OLIVEIRA FILHO, Arthur
L. de. Filho de Ogum Bexiguento. Rio de Janeiro: Griphus, 1988.
8 Informações colhidas em DINIZ, André. Joaquim Callado, o pai
dos chorões. Rio de Janeiro: Banco do Brasil/Arte-Fato, 2002.
9 Para mais informações sobre os grandes nomes do choro,
referências bibliográficas e discografias, é indispensável a consulta
à Enciclopédia da música brasileira – popular, erudita, folclórica. São
Paulo: Art Editora/Publifolha, 1998.
10 Ver Cartas cariocas. Rio de Janeiro: Edições Folhas Secas,
2000. Neste e em outros livros, o poeta e letrista Hermínio Bello de
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Ritos
e Vinicius de Moraes (autores de várias letras para choros famosos) contribuíram para criação de uma nova roupagem do
choro, misturando harmonias antigas com contemporâneas,
fazendo com que o gênero, que é música instrumental por excelência, fosse mais difundido e conhecido no País e no mundo,
notadamente a partir do Rio de Janeiro, sua principal fonte e
onde os nossos músicos bebem a inspiração.
Assim como outros gêneros musicais, o choro tem códigos
próprios, que geraram um vocabulário típico, melodicamente
rico. A partir do fraseado dos gêneros dançantes europeus que
deram origem ao choro, modificações melódicas foram surgindo
à medida que as danças eram difundidas nos salões e bares, se
adaptando aos novos gingados nascidos da criatividade de nossos músicos. Ou seja, o choro inicialmente foi uma maneira de
tocar. Depois, notadamente a partir da primeira década do século XX, passou a ser uma forma musical definida, com identidade própria. Ao se fixar definitivamente como gênero musical,
o choro tinha normalmente três partes. Mais modernamente,
passou a ter duas partes, embora aquela primeira opção não tenha desaparecido por completo. Mas a antiga forma rondó, em
que sempre se retorna à primeira parte, vem sendo flexibilizada
com o passar dos anos. Outro dado que se constata ao ouvir ou
tocar o choro é que ele é necessariamente modulante, sendo fácil
perceber, nos dias de hoje, que ele voltou a ser uma maneira de
frasear, perceptível em vários tipos de músicas brasileiras.
Por fim, é fascinante ouvir ou tocar choro. E o que mais
impressiona aos que a ele se dedicam é o fato de que uma forma
de música popular, nascida no seio das camadas mais pobres do
Rio de Janeiro, é ao mesmo tempo sofisticada, comunicativa e
resistente no tempo. Nos dias atuais, o choro continua mais vivo
do que nunca, e renova-se a cada dia, e mesmo que não esteja
presente na grande mídia, vem atraindo as novas gerações. Multiplicam-se, aqui mesmo em Natal/RN, escolas de músicas que
se dedicam ao ensino do choro, bares temáticos voltados para o
choro, e vários músicos locais estão gravando excelentes discos
de choro. Nos meios acadêmicos, proliferam trabalhos (dissertações e teses) que abordam a música popular brasileira, com en-
Carvalho, que colocou letras em inúmeros choros famosos, faz uma
deliciosa viagem pela história da música popular e, particularmente,
pela vida e obra de alguns chorões, em excelente narrativa, feita por
quem domina completamente o tema.
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foque no choro. Alguns programas de rádio se dedicam especialmente ao choro, como faz a Universitária FM (88,9 Mhz), da UFRN, no
programa Chorinhos e canções, a Rádio MEC, no programa Roda
de choro (na AM, dial 800, ou FM, 98,9 Mhz), Rádio Boa Nova, em
São Paulo (AM 1450). Também foram feitos filmes e documentários,
e existem vários sites na internet, com troca de informações, partituras, indicações de livros, Cds, locais de encontro de chorões, etc..
Não poderia terminar este artigo sem fazer uma confissão: sou
um apaixonado pelo choro. E fico feliz por constatar que hoje o choro
está sendo tocado ao redor do mundo, por músicos americanos, alemães, latinos-americanos, japoneses, coreanos, o que mostra o quanto
esse gênero, genuinamente brasileiro, nasceu para encantar a alma e
coração dos homens.
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// crônica
O juiz
errou de
doido
Jessé de Andrade Alexandria
O calor naquela comarca sertaneja não dispensava o ventilador na sala de audiências, mesmo com a companhia sonora de um velho ar-condicionado, que tocava um
baião a quatro tons.
Quatro da tarde não era hora pra audiência – pensou o juiz, mais incomodado
com o calor que com a quantidade de interrogatórios marcados para a jornada.
- Podemos começar a próxima, doutor? – indagou o velho escrivão, mais calejado
que os pés do doceiro, que levava, toda tardinha, umas brevidades sertanejas para o
magistrado.
- Vamos em frente! – disse o juiz.
Feito o pregão, entra na sala de audiência uma jovem morena, atarracada e robusta, puxando pela mão um homem magro, branco, de seus quarenta e tantos anos,
encurvado, boca murcha e olhos fundos.
A jovem, resoluta, põe o homem frente a frente com o juiz. Ao folhear rapidamente
o processo, com a pressa que caracteriza o repetido labor, o magistrado começa logo
a interrogá-lo:
- Nome completo? – João da Silva.
- Idade? – Trinta e sete.
- Tem profissão? – Sim, sinhô: agricultor e, na seca, predero.
- Casado? – Desde os vinte.
Juiz de Direito
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Ritos
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E eu
brinco?
- Tem filhos? – Só seis.
O magistrado, diante de tão equilibradas respostas,
desconfiado de que seria mais um espertalhão, querendo
aposentar-se mais cedo à custa da “viúva”, começou a
irritar-se e perguntou, com ar muito sisudo:
- O senhor tem algum problema de saúde, é nervoso, toma remédio controlado, já esteve internado no São
Camilo?
Daí, percebendo o equívoco do juiz, o sujeito, com a
cara de surpresa e espanto, responde, apontando para a
jovem que o trouxera à sala:
- Dotô, a doida é ela!
O promotor público, que até então malograva no
mesmo equívoco, quis safar-se e, com um risinho cínico,
troçou:
- Vossa Excelência errou de doido.
Mas a mulher, com a argúcia que só os idiotas têm, dispara, rindo nervosamente e apontando para o promotor:
- Dotô, o doido é ele! O doido é ele!
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Depois de dois anos naquela
comarca longínqua, sem ter
computador no gabinete, o
magistrado acaba de receber um
novinho em folha, tela reluzente,
corpo mais negro do que a asa da
graúna e do que o cabelo de um
certo senhor um pouco entrado nos
anos.
Entra na sala a copeira e diz,
surpresa:
- Doutor, computador novo,
hein?
O magistrado, então, se lembra
de um soldado das antigas, lá da
Salinésia. A notícia de que havia
subido de patente, o sujeito "foi a
cabo", encheu a cidade. Todos o
cumprimentavam pelo feito, apesar
de saberem - e com certa malícia
- que, durante mais de vinte anos,
permanecera soldado.
Um gaiato na rua, deparando
com o "velha guarda", atira-lhe o
chiste só para ver a reação:
- Aí, Gasosa, fosse a cabo, hein?
Mas o militar, garboso, se
vangloria:
- E eu brinco!?
Pois é, minha cara - pensa o
magistrado, após a indagação da
copeira -, e eu brinco?
Ritos
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// ARTIGO
Tasso Pinheiro
O mídia training e o
uso eficaz do direito à
informação jornalística1
Erika Zuza (Jornalista e Professora de Comunicação Social da UFRN)
Humberto Martins (Estudante de Direito da UnP)
José Albenes Jr (Professor de Direito UnP)
Erika Zuza
Jornalista e Professora
de Comunicação Social da UFRN
Considera-se informação jornalística todo fato que é noticiado pelos meios de comunicação de massa (jornal impresso, revista, rádio, TV e internet) e que se configura
como notícia. Através do artigo 220 da Constituição Federal (1988) são apresentados
os dispositivos referentes à comunicação social e a informação jornalística, que configuram, segundo Nunes Júnior, uma estrutura complexa, na qual se encontram, de um
lado, a notícia, e de outro, a crítica. Crítica jornalística aqui entendida não somente
no sentido negativo, mas sim enquanto “juízo de valor que, impregnado à notícia ou
recaindo separadamente sobre ela, formaliza um conceito, positivo ou negativo, acerca
de um fato ou opinião”. NUNES JÚNIOR (2011, p. 91)
A liberdade de informação jornalística não é um assunto recente. É tema discutido
desde o século XIX. Em 1880, Thomas Cooley já preconizava nos Estados Unidos,
a ideia de que a imprensa funcionava como um meio de comodidade pública que
registra os acontecimentos do dia, para apresentá-los aos leitores. Já no século XX, em
1948, o artigo 19 da Declaração Universal dos Direitos Humanos, prescreve: “Todo
1 Fragmento editado do artigo apresentado no 9º Encontro Nacional de História da Mídia,
Ouro Preto/MG – 2013.
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Ritos
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ser humano tem direito à liberdade de opinião e expressão; este direito inclui a liberdade de,
sem interferências, ter opiniões e de procurar, receber e transmitir informações e ideias por
quaisquer meios e independentemente de fronteiras”.
Na contemporaneidade, Nunes Júnior (2011, p. 51) afirma que o desenvolvimento tecnológico, com o surgimento e consolidação dos sistemas de radiodifusão (notadamente o rádio e
a TV), assim como a informática e o surgimento da internet, passaram a oferecer “meios de
difusão mais sofisticados, fazendo com que a antiga liberdade de imprensa assumisse também
uma nova e mais moderna forma: a liberdade de informação jornalística”.
Para uma reflexão eficaz sobre o conteúdo do direito à informação jornalística, é importante observar o que estabelece a Constituição Federal do Brasil (1988) sobre a comunicação
social, sobretudo o que afirma no artigo 220:
Art. 220. A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob
qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto
nesta Constituição.
§ 1.º Nenhuma lei conterá dispositivo que possa constituir embaraço à plena liberdade de
informação jornalística em qualquer veículo de comunicação social, observado o disposto no
art.5.º, IV, V, X, XIII e XIV. (Constituição Federal)
Neste contexto, também se faz relevante observarmos o artigo 5º e seus respectivos incisos
citados no parágrafo primeiro do artigo 220:
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se
aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (...)
IV - é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato;
V - é assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por
dano material, moral ou à imagem; (...)
X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação; (...)
XIII - é livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer;
XIV - é assegurado a todos o acesso à informação e resguardado o sigilo da fonte, quando
necessário ao exercício profissional;
Assim é possível enfatizar o fato de que juridicamente qualquer pessoa, seja profissional
do jornalismo ou não, tem a liberdade de expressão do pensamento, das opiniões e o direito
de informar conteúdos através dos meios de comunicação, sendo essa pessoa ligada direta ou
indiretamente a esses veículos. O direito à informação jornalística no Brasil, segundo interpretação da Constituição Federal, é um direito fundamental de todos os indivíduos. Neste sentido,
cabe aqui diferenciar os direitos de informação e o de comunicação:
a.Direito de informação: O direito de informação contempla três variáveis: o direito de informar, o direito de se informar e o direito de ser informado. O direito de informar consiste basicamente na faculdade de veicular informações, ou, assumindo outra face, no direito a meios
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Ritos
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para transmitir informações, como o direito a um horário no rádio ou na televisão. O direito
de se informar consiste na faculdade de o indivíduo buscar as informações desejadas sem
qualquer espécie de impedimento ou obstrução. Por fim, o direito de ser informado remete à
faculdade de ser mantido integral e corretamente informado. (NUNES JUNIOR, 2011, p. 44)
b.Direito de comunicação: “é o conjunto das normas gerais que regulam a existência e
a atuação dos meios de comunicação.” COSTELLA (apud NUNES JUNIOR, 2011, p. 43)
Neste sentido, o direito de comunicação respeita a preservação da opinião, da expressão e da
informação, através dos meios de comunicação. Por outro lado, “se refere à integração jurídica
da existência e do funcionamento desses meios de comunicação”.
Através da capacitação de fontes de notícias e porta-vozes, o mídia training, (serviço
jornalístico de assessoria de comunicação) gera bases sólidas para o entendimento acerca
das capacidades de cada pessoa em colocar em prática os direitos à informação jornalística,
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Ritos
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concedendo entrevistas e aproveitando da melhor maneira
as linguagens específicas e as potencialidades de cada veículo de comunicação, bem como conduzindo a conversa,
controlando a tensão e sendo coerente na transmissão das
mensagens chaves que são planejadas antes do momento da
entrevista com o apoio do assessor de imprensa.
O mídia training aborda o aperfeiçoamento da postura
e voz, reforça a importância do planejamento de conteúdos nos momentos que antecedem a entrevista jornalística e
capacita o profissional para lidar com desenvoltura com todos os obstáculos que podem surgir durante o contato com
os jornalistas. Falar com a imprensa requer planejamento,
pois o entrevistado tem a responsabilidade de divulgar informações para a sociedade, e deve ter firmeza e equilíbrio
para se posicionar e declarar as mensagens que sejam de
interesse público, mas que também estejam alinhadas com
sua função profissional ou com os interesses da empresa/
organização representada.
No jornalismo situações imprevistas são comuns em entrevistas, por isso quem vivencia o treinamento de mídia,
recebe orientações para ter a consciência e a capacidade de
encarar os obstáculos e transformá-los em oportunidades,
para reforçar opiniões, decisões ou defender posições da empresa/organização em situações de crises.
“A comunicação na crise deve ser ágil, direcionada a diminuir as incertezas, atenuar as expectativas, criar padrões
de entendimento e cordialidade, a fim de que a empresa
possa passar pela crise sem grandes impactos.” CHINEM
(2006, p. 47)
“Estima-se que 95 por cento de todo o noticiário jornalístico são relatos e comentários de fatos programados por
instituições interessadas, ou revelações e falas controladas
por fontes organizadas. Ou seja, é cada vez maior o número
de pessoas que rompem a barreira do mutismo e se tornam
fontes de notícias.” BARBEIRO (2011, p. 17)
A sociedade da era digital está passando por um processo de transição e crescimento exponencial de uma linguagem híbrida jornalística, o que vem ampliando os desafios
dos que são e dos que querem ser Fontes de notícias. Nesta
era digital, marcada pela compartilhamento instantâneo de
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dados, interatividade com os usuários e mídias sociais, uma
pessoa convidada para uma entrevista em uma emissora de
rádio, por exemplo, também deve estar preparada para o
vídeo, isso porque a tecnologia permite - e muitas emissoras
tem colocado isso em prática - que a entrevista transmitida
a princípio ao vivo via rádio, também estará ao vivo via web
tv ou será gravada em vídeo e transmitida posteriormente
pela internet.
O jornalismo é constituído por pessoas. As notícias só
são notícias se estiverem construídas baseadas em depoimentos dos entrevistados, caso contrário, estaremos tratando de outro tipo de texto. Para escreve as histórias do nosso
cotidiano, os profissionais da comunicação social utilizam
diversas fontes: jornais, internet, livros, documentos, são
fontes de informação, mas são as fontes humanas as ferramentas essenciais na construção das notícias numa sociedade democrática.
É intenção deste paper, ressaltar a importância de conhecermos brevemente a história jurídica que nos permite
ter acesso à informação jornalística, assim como sermos fontes de notícias. Neste contexto, o mídia training pode significar o instrumento mais eficaz para o melhor aproveitamento
de um direito fundamental, pertencente a todos os cidadãos.
Referências
BARBEIRO, Heródoto. Mídia Training – como usar a mídia a seu favor. São Paulo: Saraiva, 2012.
CHINEM, Rivaldo. Comunicação Empresarial – Teoria
e o dia a dia das Assessorias de Comunicação. São Paulo:
Horizonte, 2006.
Constituição Federal – Vade Mecum com a colaboração de
Luiz Roberto Curia, Livia Céspedes e Juliana Nicoletti. 15.
ed. atual. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2013.
NUNES JÚNIOR, Vidal Serrano. Direito e Jornalismo.
São Paulo: Editora Verbatim, 2011.
Ritos
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// ARTIGO
“Homem-Tartaruga”
ou Elenir?
Rosivaldo Toscano
Juiz da Vara Criminal do
Fórum Varela Barca.
Hora do almoço. Liga-se a televisão. Jornal do Almoço.1 Na tela, a reportagem
“Conheça o homem que carrega a própria casa nas ruas do Centro de Porto Alegre”.
Uma elegante apresentadora fala o seguinte: - Muita gente acha que viver bem depende de espaço e conforto. Mas, no centro
de Porto Alegre, chamou a atenção de nossa equipe um carrinho de papeleiro. Mas,
olhando bem de perto, o “fulano de tal” (o repórter) descobriu não somente o carrinho
de recolher resíduos para reciclagem. Mas uma casa. E dá pra dizer uma casa bem
equipada! Em uma tomada externa, sem rodeios, o repórter apresenta o que etiquetou de “o
homem-tartaruga”. Aparece, então, um sujeito maltrapilho e descamisado. Ao lado,
uma pequena carroça de tração humana que tem uma cobertura improvisada de restos
de madeira, alumínio e plástico. O entrevistado é catador de lixo reciclável. Sua voz é
suave, mas suas palavras gritam seu analfabetismo. Como fundo musical da matéria, uma música do Kid Abelha, cujo refrão é “dizem
que sou louco por eu ter um gosto assim: gostar de quem não gosta de mim... Jogue
suas mãos para o céu; agradeça, se acaso, tiver, alguém que você gostaria que estivesse
sempre com você; na rua; na chuva; na fazenda ou numa casinha de sapê...” A música
traz à tona duas falsas ideias: de loucura ou de escolha de um modo de vida de ser
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Ritos
Jornal do Almoço é o noticiário local da RBS, afiliada da Rede Globo no Rio Grande do Sul.
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rejeitado. De alguém que teve alternativas e, espontaneamente, resolveu viver o dia-a-dia nas
ruas, acompanhado somente do frio do inverno e do calor do verão, da fome e das infelicidades de toda sorte. Um rápida legenda diz o nome do entrevistado. Mas em nenhum momento Elenir é chamado pelo próprio nome. É sempre o “homem-tartaruga”.
O cameraman faz tomadas da pequena carroça puxada manualmente por Elenir. Mostram-se os sacos em que ele recolhe o lixo reciclável. Dentro da cobertura improvisada, um
pequeno fogão em que, supostamente, cozinhava o almoço. Logo depois, eis o homem tomando o que parece um café e comendo uma bolacha, prostrado na entrada frontal da minúscula
carroça. O repórter cai logo na histórica “falácia da criatividade” – que esconde a verdadeira causa
do improviso: a falta de recursos financeiros para questões básicas ou urgentes. E assim, o elogio ao pedaço de retrovisor amarrado com arames, providenciado pelo “homem-tartaruga”,
pois evitaria o risco de “batida” na “casa”. E após louvar outras improvisações oriundas da
miséria, o repórter faz uma inacreditável pergunta: - Você consegue ter o conforto de uma casa aqui dentro? Elenir, até então invisível para a sociedade, abandonado à sua própria sorte, sem um lar,
uma família, sem perspectivas, estava diante do instante de maior destaque de sua vida. Teria
seu momento de notoriedade, que sequer duraria os 15 minutos de Andy Warhol. Apenas três
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minutos de fama. Ou infâmia. Diante de tantos elogios, Elenir mordeu a isca de uma resposta
que já estava lançada na pergunta: - Sim. Elenir, que naquele instante era a celebridade, não poderia atrapalhar o roteiro, mesmo
que fosse para esquecer que não tinha um lar, que carregava manualmente uma carroça de
três metros quadrados, e um metro e meio de altura, que não tinha sequer um banheiro, uma
latrina, um chuveiro, uma pia, um colchão, uma lâmpada. Um chão. Um endereço. Em nenhum momento, há uma pergunta óbvia: se Elenir gostaria de ter uma casa. Um lar
com portas, janelas, uma cama, um banheiro, um vizinho. Um lugar em que ele não precisasse
viver curvado nem pela altura do teto e nem pela humilhante vida de indigente nas ruas. Resignado com a sua condição, Elenir ainda se justifica da seguinte maneira: “pra não
roubar, não assaltar, não fazer nada de mal, eu prefiro viver assim como estou vivendo.” Ainda dá tempo para um pequeno interrogatório do repórter. Afinal, estava-se diante do
estereótipo: - É usuário de alguma droga? E após agradecer “pela lição de vida”, como se alguém quisesse ter aquele estilo de viver
ou que este servisse de exemplo a ser seguido, o repórter termina em grand finale: - Dizer o quê, não é, gente? É o homem tartaruga... Criou-se uma insólita crônica multimídia da miséria. De como transformar a sonegação
de direitos fundamentais em algo banal, até pitoresco ou burlesco. Uma tragédia distorcida
em comédia. Um exemplo de que a fronteira entre informar e deformar, desvelar ou alienar, é
pequena. Mas há um imenso abismo no meio. A reportagem escondeu o Elenir por trás da tartaruga. Coisificou-o. Afinal, não era um
homem como igual. Era um homem animalizado. Meio homem, meio tartaruga: lenta, inferior, passiva, resignada, que carrega em si sua “casa” para se abrigar e se proteger de todos os
perigos a que está exposta na vida das ruas. E como só mostrou a tartaruga, não conseguiu se colocar no lugar do outro. Aí, perceberia
que não existe graça nenhuma. Não era a tartaruga. Era o homem na selva de pedra em que
o animal dominante e supostamente racional é capaz de maltratar por egoísmo ou prazer seu
próximo; que é capaz de consumir e comprar mais do que necessita, destruindo o planeta; e
abandonar seu igual à própria sorte ou morte. O telejornal reproduziu uma violência simbólica, uma violência que se esconde no discurso, nas palavras. Ela “normaliza” as desigualdades e o sofrimento dos oprimidos. Violência
que anestesia a realidade através de eufemismos. Os mesmos que transformam catador de
lixo em “recolhedor de resíduos para reciclagem”; carroça em “casa”; necessidade e falta de
recursos em criatividade; sem teto em “homem-tartaruga”. Trata-se de um exemplo de como
a violência simbólica muitas vezes não é percebida nem mesmo pelos que a exercem. E em
que as vítimas se transformam, não raras vezes, em cúmplices, reforçadores e naturalizadores
de uma violência artificial, culturalmente construída contra elas. 46
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Mas a reportagem não teve a intenção de humilhar Elenir, destaco. Ela é fruto de uma
cultura voltada para “o mercado” – na qual ter senso crítico, questionando suas contradições
e perplexidades, não convém. Quem sabe se um dia o referido noticiário pudesse despertar desse sono alienante e fazer
uma nova reportagem. Dessa vez, não sobre a história do “homem-tartaruga”, mas de Elenir,
vítima do déficit habitacional do país; um exemplo de nossas desigualdades sociais; do analfabetismo; ou do egoísmo e da falta de educação dessa sociedade de consumo que, ao invés
de recolher devidamente o seu lixo, descarta-o nas vias públicas. E nada de campanha para
Elenir comprar uma casa, como vemos em certos programas por aí. Seria morder a isca de
uma utopia: resolver pontualmente um problema conjuntural. E não utilizaria a comunicação
social da maneira correta: como meio de informar e desenvolver a igualdade e a humanidade
na vida social. Quando sofrimento vira entretenimento no Jornal do Almoço. Vou parar por
aqui porque essa reportagem me deu um embrulho no estômago.
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// fotografia
O Juiz Paulo
Sérgio num passeio
fotográfico pelo
mundo
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Ritos
Juiz Paulo Sérgio
da Silva Lima
Entrada de um Chateau
(Bordeaux - França)
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Outono no Central Park
(NY-EUA)
Estalagmite em forma de seio
(Gruta “Lapa Doce” - Chapada
Diamantina - BA)
Ilha de Lobos (Punta del
Este- Uruguai)
Menino sentado
na soleira da
porta (Óbidos
- Portugal)
Ninho de
Atobá-depé-vermelho
(Fernando de
Noronha - PE)
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// ARTIGO
A violência como gozo
escópico. Civilização ou
barbárie?
Entro no Facebook. Vejo um amigo criticar, estarrecido, uma postagem oriunda
de uma determinada comunidade e que foi compartilhada por um conhecido dele.
Na postagem, uma fotografia em cores de um homem dominado, ao chão, pisoteado,
algemado e com uma pistola em sua boca. Na mesma foto, os seguintes dizeres:
“Ficou com pena dele? Acha isso um tratamento desumano? Sabe quais foram
seus crimes? Leve pra casa e descubra.”
Rosivaldo Toscano
Juiz da Vara Criminal do
Fórum Varela Barca.
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Essa postagem teve muitos compartilhamentos. É a espetacularização do grotesco
e o mórbido. Isso vende e rende. Seja a sensação de alívio por não estar ali no lugar
da vítima, seja a sanha violenta de se estar ali no lugar do algoz. O primitivo se faz
presente. Como caçador ou caça. O sangue. A pulsão de morte grita! Civilização ou barbárie? Há barbárie na civilização. Ou seria o contrário? Nossos
ternos, vestidos, perfumes, joias, requintes, enfim, escondem esse predador perverso
que se alastra como praga pelo planeta, submetendo, dizimando e destruindo tudo e
todas as demais espécies (inclusive a própria) por onde passa, em nome de uma pretensiosa superioridade, justificando sua violência em um discurso contraditório de bem-querer e de luta pelo bem comum. Sendo mais claro: em nome de deus(es) e do amor.
E não nos enganemos. O ser humano de hoje – que também goza com o consumismo,
mata com armas, radiação e lixo tóxico. É o exterminador do futuro.
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Na imagem, o algoz diz: “sou o portador do falo (da arma), do poder. Sou mais homem que você”. Melhor dizer isso do que, na verdade, reconhecer ser, tão somente, mais animalesco. Não falta quem bata palmas. Mas quem aplaude a barbárie o que é, senão, um igual
bárbaro que goza ao ver seu desejo de sangue sendo gozado, nem que seja pelo gozo do outro?
Há um voyeurismo mórbido aí.
A foto é dramática, mas esse drama humano é ofuscado pela banalização da violência:
“ficou com pena dele? Acha isso um tratamento desumano?”. Ao mesmo tempo, a violência e a morte viram algo íntimo, que amedronta e alivia, pois
é a violência ou a morte do outro. No imaginário, a morte do outro fascina como fascina
a manada de zebras que olha, aliviada, para aquela que foi feita presa dos leões. “Não fui
eu, por enquanto, foi o outro”. Alívio fugaz e sensação de medo constante. A morte está à
espreita. Para alguns mais fragilizados, o pânico. Para outros, o desejo de ser algoz. O desejo
de linchar. De fazer (in)justiça pelas próprias mãos. Cerram-se os punhos, inconscientemente.
Exterioriza-se. Tinha que sair. Se não dá para usar as próprias mãos, simbolize-se nas palavras gritadas na voz ou, se
não der, no papel ou na tela do Facebook. “Curtir”. Toda pulsão tem, ao mesmo tempo, dizia
Freud, pulsão de vida e pulsão de morte. São os olhos, nesse caso, como fonte de libido. Há o
prazer em ver. É o gozo escópico. Mas como o gozo é fugaz (pois é a busca da coisa perdida),
busca-se o novo. Há sempre uma nova imagem a ser gozada. O novo para o velho olhar mórbido. Há sempre um programa policial na TV ou no rádio à disposição. E na busca do gozo
escópico, racionaliza-se: é notícia, é informação! Muitos desses programas são no horário do
almoço. São comidos pelos olhos.
A imagem acima mostra, claramente, uma cena de tortura praticada por agentes do Estado. Para quem pratica o ato, uma completa corrupção da função pública. A despeito de fazer
cumprir a lei, viola-a. A pretexto de perseguir pretensos criminosos, pratica crime tão grave,
em frontal violação à lei, em desrespeito ao sistema judicial e à Constituição (art. 5º: “III - ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante”). Enfim, é uma
cena de covardia. Mas para isso servem os mecanismos de defesa - projeção, racionalização,
negação, identificação... Freud explica.
Portanto, há quem, mesmo assim, goze em fotos como essa, reforçando esse comportamento criminoso do pretenso agente da Lei. “Sabe quais foram seus crimes?”. Só sei de um: é
tortura. “Leve pra casa e descubra”. A foto revela o flagrante de um crime. Mas o ódio cega.
Por isso, há quem não o veja... Onde está a barbárie? Está na foto. E o bárbaro? Na foto ou no
olhar? Em alguns casos, em ambos... E a civilização?
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51
// ARTIGO
Tasso Pinheiro
O princípio do juiz natural
nos julgamentos em regime
de mutirão
1- Introdução
Fábio Antônio Correia Filgueira
Juiz Auxiliar da Presidência
do Tribunal de Justiça
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Ritos
O recente lançamento, pelo Tribunal de Justiça deste Estado, do mutirão destinado ao julgamento das ações de improbidade administrativa e das penais referentes a
delitos contra a administração pública, tem gerado discussão no meio jurídico sobre a
possível violação do princípio do juiz natural.
É importante destacar que tal grito de descontentamento não surgiu com a realização anterior dos mutirões do Expresso Judiciário, ainda em andamento em várias
Comarcas do interior, e do Carcerário, o qual, frise-se, teve o apoio institucional do
CNJ, encerrado com o êxito de ter atualizado mais de seis mil processos de execução
penal. No entanto, nesse silêncio obsequioso dos que clamam por uma Justiça célere,
ouvem-se, agora, vozes contraditórias, algumas poucas, é verdade, quando se procura
acelerar o processamento das demandas que envolvem interesses de agentes públicos e
privados acusados de malversação.
A reação afigura-se paradoxal, até mesmo injustificável, porque almeja que o
Judiciário potiguar adote duas modalidades temporais às ações. Aquelas que tratam
do cidadão comum, não relacionadas a danos ao erário, podem submeter-se, já que
não haveria impedimento legal, à agilidade proporcionada pelo regime de mutirão,
ao passo que as referentes à punição dos que maculam a boa gestão pública teriam de
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aguardar “a tramitação normal pelo juiz natural”. É evidente, a proposta não é eticamente
razoável, pois discrimina situações idênticas, promovendo, p. ex., a exclusão das ações que
terão julgamento rápido, nem juridicamente aceitável, porquanto a medida formatada do
mutirão ajusta-se à compreensão atual do instituto do juiz natural. Este último ponto é o que
interessa à presente análise.
De antemão, vale apresentar as razões que levaram o Judiciário do Estado a executar o
regime de mutirão das ações de improbidade administrativa e das penais dos crimes contra a
Administração. A primeira justificativa está na denominada Meta 18 do Conselho Nacional
de Justiça – CNJ -, que ordena o julgamento destas demandas, ajuizadas até 31.12.2011, durante o ano de 2013. A segunda está no quadro deficitário de Juízes e servidores. Para se ter
uma noção aproximada das dificuldades, das trinta Comarcas de entrância inicial, vinte e seis
estão vagas. Das vinte e cinco Comarcas de segunda entrância, onze se encontram na mesma
circunstância. Como se não bastasse, há Varas de Comarcas de terceira entrância, a exemplo
de Pau dos Ferros, Macau e Ceará-mirim, sem juiz titular. Em relação aos servidores, são
mil as vagas existentes. A terceira é o significativo acúmulo das demandas em tramitação na
primeira instância, correspondente a 1.177 ações de improbidade administrativa e 173 penais
de crimes contra a Administração.
Ante essa problemática, geradora de acúmulo processual, tardando, indefinidamente, a
prestação jurisdicional, a solução definitiva salta aos olhos: a realização do concurso público
para juízes e servidores. O certame dos magistrados está em curso. Quanto ao dos servidores,
questões financeiras e orçamentárias dificultam a sua realização, por enquanto. Então, o que
fazer a curto prazo para cumprir a Meta do CNJ? Promover o regime de mutirão, que não
é novidade. Já foi aplicado neste Estado e em outras unidades federativas. Na formatação
dele, reúnem-se juízes voluntários, escolhidos segundo as exigências do acervo processual a ser
julgado, e, em seguida, designa-os, por ato formal do Tribunal, dando-lhes, assim, atribuições
para atuarem nas Comarcas ou Varas que necessitam do apoio deles. Funcionam como juízes
substitutos, onde inexiste titular, ou como juiz auxiliar, se houver magistrado titular.
Pois bem. A sistemática do mutirão, acima delineada, organizada pela Corte estadual
para atingir a Meta 18 do CNJ, é de se considerar violadora do princípio do juiz natural? A
resposta negativa se impõe.
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Ritos
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2- Origem histórica e o sentido da positivação
constitucional
Atribui-se a origem do juiz natural à modernidade. No ancien régime, os reis absolutistas
costumavam designar julgadores extraordinários, conhecidos como juízes comissários, para decidirem fatos ocorridos anteriormente a tal nomeação. Na cartilha iluminista da época, constava
a reação a essa medida da realeza, reputada afrontosa ao ideal de conter a arbitrariedade do poder. No século XVIII, a sociedade francesa é quem primeiro conhece a expressão “juiz natural”,
a qual adquiriu dignidade constitucional com o advento da Carta pós-revolucionária de 1791,
que reconheceu o direito dos cidadãos de não serem destituídos dos juízes que a lei lhes confere1.
Cuida-se de previsão normativa resultante de uma concepção de Estado governado pela lei,
expressão máxima da racionalidade, e não pela vontade arbitrária do governante. Com essa premissa, edifica-se o Estado de Direito, consagrador do sistema de separação dos poderes, em que
a independência e a imparcialidade do juiz são garantias sociais de julgamentos isentos e justos.
O Estado Liberal insculpe nos seus Códigos e Constituições o princípio do juiz natural,
sentinela do cidadão contra o abuso de poder, significando a recusa de órgãos de exceção para
resolver os litígios, o que deve ser feito por juízes integrantes do Poder Judiciário e por juízo cuja
competência é previamente definida, isto é, antes da ocorrência dos fatos imputados, de sorte a
respaldar o contraditório e a ampla defesa, enfim, o devido processo legal.
Está positivado na Constituição de 1988. O art.5º, XXXVII, dispõe que “Não haverá juízo
ou tribunal de exceção”, e, mais adiante, o inciso LIII proclama que “Ninguém será processado
ou sentenciado senão pela autoridade competente”. A simples leitura gramatical dos preceitos
constitucionais dá margem ao argumento de que a fórmula dos mutirões afronta o princípio da
juiz natural, pois se criam juízos de exceção (ex post facto) e retira-se a autoridade previamente
competente dos processos.
Nenhuma coisa, nem outra. Não cabe falar em juízo de exceção porque os julgamentos do
mutirão realizam-se por juízes togados, membros do Poder Judiciário. Além disso, as decisões
são individualizadas, prolatadas por cada juiz designado, que exerce, na plenitude das garantias
constitucionais da jurisdição, o livre convencimento. No Estado Democrático de Direito em que
se vive, no qual sobressai a transparência, o controle social e institucional dos atos judiciais, afigura-se um despropósito comparar a designação de juiz para o mutirão com a nomeação deste
pelos monarcas absolutistas. No tocante ao segundo aspecto da arguição, ressalte-se que inexiste
1 Há divergência a respeito. Uma parte dos doutrinadores atribui aos textos ingleses, a exemplo da
Carta Magna de 1215 e a Bill of Rights de 1689, e à Constituição americana (Gustavo Senna Miranda.
Princípio do Juiz Natural e sua Aplicação na Lei de Improbidade Administrativa. São Paulo: RT, 2006,
pp.82/83); outra, e esta é a maioria, atribui às Constituições francesas pós-revolucionárias (Adelino
Marcon. O princípio do juiz natural no processo penal. Curitiba: Juruá, p.60).
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princípio absoluto, mesmo o de natureza constitucional. Com efeito, reclama-se a ponderação
de princípios para, diante da contextualização, harmonizá-los.
3- O princípio do juiz natural e o da duração razoável do
processo: critérios de superação da tensão entre ambos
Os princípios são normas abertas, de intensa generalidade e conteúdo finalístico. Promovem
um estado de coisas e definem, embora implicitamente, as condutas aptas a atingi-lo. Precisam,
sempre, de preenchimento valorativo. Na receita de Alexy, os princípios são normas que estabelecem deveres realizáveis no máximo grau, consoante as possibilidades normativas e fáticas. Ou
seja, o mestre germânico sustenta que a definição da conduta postulada pelo princípio depende
de confrontá-lo com outras normas e com as circunstâncias fáticas envolvidas, surgindo, daí, a
solução do litígio. Nos momentos de tensão principiológica, a norma dominante não esvazia, ao
menos não deve fazê-lo, o conteúdo da suplantada2.
No regime de mutirão, dois princípios constitucionais aparentemente se opõem: o do juiz
natural, já mencionado, e o da razoável duração do processo, encartado no art. 5º, LXXVIII,
da CF, este inovado pela Emenda Constitucional n.º 45/2004. Como apontar dentre eles o protagonista sem que isso implique desprezo ou anulação do outro? É tarefa difícil. Porém, critérios
doutrinários contribuem sobremaneira para harmonizá-los. Três elementos alexyanos conduzem o raciocínio interpretativo3. Um é a adequação, cuja presença se constata com a resposta
à indagação: o regime de mutirão é meio eficaz para obter o estado de coisa almejado, a saber,
a celeridade processual, dando cumprimento ao preceito constitucional da duração razoável do
processo?
Abstratamente falando, é de todo lógico o entendimento de que a formação de um grupo de
juízes, acompanhado de estrutura física e funcional, destinado a ajudar nos julgamentos, resulta
em celeridade processual. Na prática, as estatísticas confirmam essa afirmativa, em especial,
como ocorre na Justiça potiguar, quando a maioria das Comarcas do interior está vaga, sem
juiz titular, agravando-se o quadro pelo grande acervo de processos e pelo fato de o substituto,
às vezes, estar no exercício de mais de uma substituição, a exemplo da Comarca Extremoz, que
supera os quatro mil processos em andamento, estando o juiz substituto dela com outras duas
designações. Numa palavra, o mutirão é um meio adequado à promoção do fim “duração razoável do processo”.
2 ALEXY, Robert. Conceito e validade do direito. São Paulo: Martins Fontes, 2009, p. 85.
3 ALEXY, Robert. Epílogo a la teoria de los derechos fundamentales. In: Revista espãnola de derecho
constitucional, Madrid, Centro de Estúdios Políticos y Constitucionales, ano 22, n.º 66, pp. 13-64,
setembro/dezembro, 2002.
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O segundo é a necessidade,que traduz a ausência de alternativas eficientes ao regime de
mutirão, capazes de alcançar o objetivo da celeridade processual sem causar a mínima restrição
ao direito fundamental do juiz natural. A curto prazo não se vislumbra outro caminho. Enquanto os cargos vagos dos juízes não forem ocupados pelo certame, bem como os dos servidores, o
remédio do mutirão é a única forma de cumprir as Metas estabelecidas pelo CNJ e remediar o
atraso na prestação jurisdicional, motivo de insatisfação legítima das partes, que sofrem afronta
ao direito subjetivo constitucional à duração razoável do processo.
O terceiro é a proporcionalidade em sentido estrito, a significar que as vantagens da concretização do fim da “duração razoável do processo” ou “celeridade processual” superam a
desvantagem de provocar, mesmo que potencialmente, arranhão na premissa do juiz natural. O
mutirão traz rapidez à tutela jurisdicional, satisfaz a sede por justiça dos jurisdicionados e reduz
o sentimento de impunidade, contribuindo à pacificação social e à credibilidade do Judiciário.
Noutra vertente, a definição de juiz natural deve levar em conta as características das sociedades
contemporâneas, globalizadas, em que predominam relações sociais impessoais e massificadas,
dotadas de hipercomplexidade, com as instituições democráticas em pleno funcionamento, muito distantes daquelas dos séculos XVIII e XIX, nas quais os juízes subordinavam-se ao governante de plantão.
Por conseguinte, a designação genérica, nunca ad hoc, pela autoridade competente de
magistrados togados para atuarem em regime de mutirão nas Comarcas sem juiz titular ou
para assistirem o titular sobrecarregado, visando, exclusivamente, a dar celeridade processual, e,
ademais, respeitando-se o contraditório e a ampla defesa, nenhum prejuízo causa ao princípio
do juiz natural, conceitualmente atualizado para comportar a ideia do julgador que recebe de
maneira aleatória os autos e os decide com imparcialidade, até porque descabe, hoje, acentuar a
importância de quem prolata a decisão, mas destacar de como o faz.
Acresça-se, também, que a competência é do órgão ou Juízo, que tem definição legal ou
constitucional prévia. Aliás, aqui reside o real alcance da norma constitucional sobre o juiz
natural ou autoridade competente, considerando-se, para tanto, o órgão judiciário que tem
base constitucional4. Quanto ao juiz, agente público investido da jurisdição, nada obsta que
receba por ato administrativo do Tribunal a incumbência de substituir em Vara ou Comarca,
cujas competências, reitere-se, são predefinidas, ou participar de mutirões. Então, desmerece
4 GRINOVER, Ada Pelegrine; FERNANDES, Antonio Scarance; MAGALHÃES FILHO, Antonio. As nulidades no processo penal. São Paulo: Malheiros, 1995, pp.44/45.
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confundir regra de competência com a de natureza administrativa de simples designação para
substituir.
Nessa perspectiva, firmou-se a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, inclusive de
sua Corte Especial. Pode-se sintetizar o reiterado entendimento do Tribunal da Cidadania no
enunciado bastante esclarecedor: “O Superior Tribunal de Justiça, ao decidir caso referente à
legitimidade da instituição de mutirão com vistas a agilizar a prestação jurisdicional, firmou
entendimento, plenamente aplicável à presente hipótese, no sentido de que a designação de juiz
para prolatar sentença não ofende ao princípio do juízo natural (art.5º, XXXVII e LIII, da CF),
eis que não se traduz em exercício de jurisdição por órgão sem assento constitucional, instituído
após o fato motivador de sua atuação, ou ao qual falece competência para decidir o feito (art.87
do CPC)”5.
O Conselho Nacional de Justiça, por sua vez, no PCA 043/2005, relatado pelo Conselheiro
Paulo Schmidt, j. em 31.01.2006, acostou-se à jurisprudência do STJ, ao decretar: “Os mutirões,
portanto, não ofendem a garantia do juiz natural e muito menos cria tribunal de exceção. No
caso dos mutirões, o juiz natural é aquele que, de modo aleatório, conforme a sistemática de
trabalho adotada, recebe o feito para apreciação e o julga com a devida imparcialidade”.
É importante encerrar esse apanhado jurisprudencial com o Supremo Tribunal Federal,
intérprete derradeiro, na hierarquia jurisdicional, da norma constitucional. Repetidamente, a
Suprema Corte encampa o ponto de vista esboçado, dizendo: “A designação de juiz para atuar
em determinado período, feita pelo Tribunal de Justiça local, em fase de mutirão forense, não
ofende o princípio do juiz natural”.6
4- Conclusão
Portanto, o regime de mutirão, particularmente o concernente às ações de improbidade
administrativa e às dos crimes contra a Administração, oficialmente instalado pelo Tribunal de
Justiça, busca a materialização do direito fundamental à duração razoável do processo, razão
por que sufraga os postulados da adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito,
que demonstram estar (o mutirão) alinhado com o princípio do juiz natural.
5 STJ, Corte Especial, AgRg no Ag 624.779/RS, Rel. Min. Castro Filho, j.15.08.2007, DJ 17.11.2008.
6 STF, AI 846166/MS, Rel. Min. Luiz Fux, j. 03/06/2011; AI 554.533-AgR, 2ª T., Rel. Min. Eros Grau,
DJ 20.04.2006; RE 255.639-AgR, 1ª T., Rel. Min. Ilmar Galvão, DJ 18.05.2001; RHC 89.890, 1ª T., Rel.
Min. Ricardo Lewandowski, DJ 02.03.2007.
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// ARTIGO
A entrevista do Ministro
Joaquim Barbosa: dos
quadrinhos para a vida real
Rosivaldo Toscano
Juiz da Vara Criminal do
Fórum Varela Barca.
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Ritos
Li uma recente entrevista do ministro Joaquim Barbosa. Segundo ele, a mentalidade do juiz “é mais conservadora, pró status quo, pró impunidade.” Já os membros
do Ministério Público teriam uma mentalidade mais rebelde, contra o status quo, com
pouquíssimas exceções. Segundo ele, ainda, as carreiras de juízes e de procuradores ou
promotores de justiça seriam muito próximas. Disse também que ainda que o nosso
sistema penal é um sistema “muito frouxo”. E cobrou uma reforma na mentalidade
dos juristas.
Creio que a entrevista foi paradoxal em algumas passagens e que, por isso, merece
algumas colocações.
As funções de promotor e de juiz são bem diversas e não dependem da mentalidade de cada um. Derivam da Constituição e das leis. Promotor investiga, acusa. Juiz
julga. Promotor é parte. Juiz é imparcial. Promotor denuncia, com base em indícios,
após um procedimento de natureza inquisitiva e sigilosa. Juiz julga com base em provas, somente após ouvir a antítese, e em um processo que é, via de regra, público. E ai
do Estado em que há confusão entre elas. O que ambos têm em comum é a necessidade
de respeitar a Constituição. Dela deriva, dentro de um Estado Democrático de Direito,
o sistema acusatório, marcado pela separação das funções de acusar, de defender e de
julgar.
O sistema penal não pertence ao Judiciário. O papel do juiz, aliás, é muito mais
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modesto do que se imagina dentro desse sistema. Primeiramente, devido ao princípio da inércia. O juiz não investiga. Ou se investiga, não está agindo como juiz. Só atua nos limites do
que lhe chega às mãos e com o que lhe chega. Ademais, o sistema penal é apenas parte do sistema de controle social, que compreende não só instituições públicas, mas privadas também.
Desde o Poder Legislativo – que tem a função de criar as normas penais e processuais penais
que serão interpretadas pelo Judiciário nos casos concretos; passando pelo Executivo, que cria
e mantém os órgãos da Segurança Pública, que previnem e investigam crimes, e o sistema
carcerário; pelo Ministério Público, que tem mais de uma centena de atribuições e, entre elas,
acusar e fiscalizar o cumprimento das normas por toda a sociedade. Instituições como a igreja,
a família e os meios de comunicação também interferem nesse processo.
É reducionista o discurso que acusa a magistratura de modo generalizado e sem levar
em consideração essas implicações. Não nos enganemos: toda solução simples para questões
complexas é um engodo. E toda postura de se contentar com respostas prontas, argumentos de autoridade e reducionismos revela deficiente senso crítico. Um existência autêntica
requer esforço, e a pior prisão é a da mente que se contenta com o que está-aí-dado. Viver
com autenticidade requer reflexão. E uma reflexão dessa ordem engloba – antes de tudo – a
compreensão sobre o que se está refletindo numa perspectiva multidisciplinar: social, política,
jurídica, econômica e histórica.
Também vejo com preocupação a criação, pela mídia, de uma figura super-heroica, ainda
que sua capa seja uma toga. Isso porque como toda criação mítica (e mística), o super-herói
precisa de uma antítese. Afinal, que seriam deles sem os vilões. E, claro, o super-herói, com
base em sua visão individual, no seu “ideário de justiça” é quem elege quem são os vilões e
quem é contrário à sua “justiça”. Mas a vida em sociedade é muito mais complexa do que as
histórias em quadrinhos. Mais grave quando estamos a tratar do Brasil, marcado historicamente pelo autoritarismo. O discurso do herói abre as portas para posturas autoritárias, ainda
que bem intencionadas e paternalistas. Isso é fruto do nosso próprio processo de colonização,
estabelecido por meio de uma invasão violenta que “descobriu” o Brasil, “encobrindo” os nativos e, posteriormente, os escravos. Tudo feito à força pelos “bons”, pelos “homens de bem”.
Se todo agente público tem o poder potestas (o que manda, diretamente), é sempre fundamentado no potentia, o poder difuso e reconhecido logo no primeiro artigo da Constituição.
Este deve ser o seu norte de atuação. Portanto, fora da Constituição não há salvador ou herói.
Ademais, a aceitação do utilitarismo e de discursos moralistas-reducionistas, por mais honestos
e íntegros que sejam seus emissores, abre as portas à permissividade para a criação de caudilhos – porque o fundamento é sempre o mesmo: o discurso de autoridade lastreado apenas na
pretensa boa vontade dessa mesma autoridade. Temos que lembrar que os homens passam,
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mas as instituições permanecem. Nunca devemos deixar um legado que possa ser mal utilizado no futuro, ainda mais quando a
história mostra um mal uso dele.
Se formos olhar para trás, esse mesmo discurso utilitarista,
desvinculado da normatividade, estava aqui sendo utilizado há
menos de quarenta anos... Vivenciamos as trevas de uma ditadura militar faz pouco tempo, também com base em discursos
morais. A democracia, por outro lado, exige o respeito às regeras
do jogo democrático. E a democracia é algo muito importante
para ser posta de lado em nome de utilitarismos. Precisamos ter
muita cautela. Uma democracia nunca se consolida. Ela se renova (ou não) a cada manhã. O core, o seu núcleo, reside na obediência às regras do jogo democrático – no respeito aos direito
fundamentais. Na entrevista, aliás, não houve acusação de que
os juízes desrespeitavam a Constituição. Aliás, só consta uma vez
a transcrição da palavra “Constituição” na entrevista, ao tratar da competência do STF. Isso não me passou despercebido e
acredito que a muitos também.
Soa paradoxal a afirmação de que o sistema penal brasileiro
é “frouxo”. Temos a 5ª população do planeta, mas 4ª população
carcerária do mundo: mais de quinhentas mil pessoas presas. E
temos, ainda, duzentos mil mandados de prisão não cumpridos.
Prendemos muito e prendemos mal. Isso não restou esclarecido
na entrevista. O que temos, sim, é uma seletividade penal muito
acentuada. Dados estatísticos do INFOPEN, do Ministério da
Justiça, apontam que temos duzentas e cinquenta mil pessoas
presas por crimes contra o patrimônio, apenas mil por crimes
contra a administração pública e, pasmem, só cento e oitenta
por tortura. No Brasil, é mais fácil alguém morrer atingido por
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Ritos
um raio do que ser condenado por tortura.
Essa seletividade começa já na feitura da lei. Não por menos, um furto qualificado tem pena igual à tortura. A pena de
uma sonegação fiscal milionária é praticamente a metade da
prevista para o mesmo furto. Nosso sistema penal termina protegendo quem tem contra quem não tem.
Ademais, a investigação policial no Brasil é toda direcionada
contra as camadas mais pobres. Não existe, sequer, infraestrutura adequada para apuração de crimes econômicos, financeiros ou contra a Administração Pública. Ao invés do trabalho
de inteligência voltado à proteção de valores metaindividuais, a
brutalidade da criminalidade patrimonial individual e ordinária,
das ruas, o que serve para isolar os que já são oprimidos. Protege quem tem contra quem não tem. O discurso reducionista
termina por reafirmar essa violência sistêmica, que está diluída
secularmente no seio de nossas relações sociais. Apenas bradar
que os juízes são pró-impunidade – quando as leis que punem os
poderosos é que são brandas – serve apenas para desviar o foco
desse problema. Já se tem o herói e agora os vilões: os juízes. Essa
ficção vira discurso ideológico da razão instrumental em favor
do status quo. Por que não, então, questionar tratamento tão
desigual nas leis penais?
Emblemático quando nos deparamos com uma realidade
inescapável. O Supremo Tribunal Federal tem uma história
de mais de duzentos anos. E quantos foram os mandados de
prisão decretados com base em condenações em ações penais
originárias? Não seria o discurso mais adequado alertar para a
seletividade do sistema penal, reconhecer a responsabilidade do
Poder que faz as leis que os juízes aplicam e cada um assumir
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sua parcela de responsabilidade, proporcional
à amplitude do exercício do seu poder? A começar pelo STF? Por que não uma audiência
pública para se discutir o foro por prerrogativa
de função?
Fora tudo isso, não creio que os problemas do Brasil se resolvam com cadeia. Antes
de políticas de segurança pública, precisamos
de políticas públicas de segurança (saúde, educação, transportes, moradia, salubridade, etc.).
E atribuo um papel mais modesto ao Judiciário nesse âmbito. O governo não é dos juízes.
O Supremo Tribunal Federal pode participar,
estimulando o debate, desde que respeite a
separação de Poderes. Precisamos aprofundar
nossa democracia, no sentido de fortalecer o
poder potentia (diluído no povo) e não o potestas (o poder delegado), a começar por uma reforma política que melhor combata a captação
ilícita de votos, que dê fim aos investimentos
privados em campanhas eleitorais (recuso-me
a chamar de doação) e que limite a reeleição
até mesmo no Legislativo, para evitar a criação
de caudilhismos políticos. Precisamos de um
marco regulatório do “quarto poder”, um poder de fato e que muitas vezes apenas tem em
vista seus próprios interesses. Precisamos democratizar os meios de comunicação de massa,
possibilitando a dialética para além do discurso
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único dos grandes conglomerados midiáticos,
de modo a não mais permitir o atual modelo
oligopólico que se esconde sob o discurso da
liberdade de imprensa, como se essa liberdade
só pertencessem a eles. Precisamos refletir sobre nosso modelo econômico e como se implementar uma melhor distribuição de renda. Isso
somente para começar.
A entrevista do Presidente do STF, bem
como sua vociferação verbal, dias depois, contra um repórter, mostrou o homem por trás
da figura midiática do “Ministro super-herói”
– mi(s)tificação que, aliás, sequer vi o próprio
Joaquim Barbosa aprovar.
Lembro que, quando criança, nunca fui
adepto nem da DC Comics e nem da Marvel.
Gostava mesmo era do Pato Donald. Meu único herói era meu pai. Mas eu tinha cinco anos.
Após isso, cresci sem me afeiçoar a qualquer
super-herói e continuo achando que “Liga
da Justiça” é coisa de história em quadrinhos.
Na vida real, em se tratando de Justiça, o que
existe é a necessidade do juiz nunca se afastar
do referencial normativo que é a Constituição – com seu catálogo de direitos e garantias
fundamentais – materiais ou processuais. Ela é
a verdadeira “liga”. Entre o texto e a norma,
na interpretação do direito, é o elo que nunca
pode ser perdido.
Ritos
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// crônica
ARTIGO
Ansiedade
e desilusões
Jessé de Andrade Alexandria
Casar é fácil; separar, nem tanto. Mas um certo juiz de província não concordava
com esse dogma popular. Pensava sempre, quando lidava com processos de separação e
divórcio, que o magistrado deve simplificar as coisas: conciliar, mediar, pacificar. Eis o
seu lema. Mas foi mudando de opinião com o passar do tempo, diante de litígios quase
insolúveis, que somente se resolviam com a dureza fria e calculista da lei. Não obstante,
era, sem ser religioso, no fundo, um desses românticos incuráveis, que buscam, a todo
custo, uma reconciliação do casal, o que às vezes se torna impossível:
–Cabo Rilto, por que o senhor não quer se reconciliar com sua mulher.
E - perdoem o cacófato – o cabo, cabisbaixo:
–Não, doutor, não posso.
–Mas o senhor ama a sua mulher? - insistia.
–Amo, doutor. Mas não posso – e o cabo, com a cabeça cada vez mais enterrada no peito e com os dedos indicadores apontados, paralelamente, para o chão, soltava
um ruído semelhante a um soluço.
O juiz, não conseguindo ver o gesto inusitado, levantou-se um pouco da cadeira e,
olhando por sobre a mesa, insistiu:
–Por que mesmo, cabo Rilto?
E Rilto continuava com esse gesto tão representativo dos traídos, a cabeça cada vez
mais baixa, coroada por dois dedos indicadores, que matematicamente se encontrariam
em algum lugar das profundezas cósmicas da alma, pois duas retas paralelas certamente
se encontrarão no infinito.
Juiz de Direito
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Ritos
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De fato, não havia como reconciliá-los – pensou o juiz, olhando o soluçante cabo - das tormentas.
Mas o destino urdia, em seu pródigo repertório dramático,
um duro golpe no magistrado.
Não era propriamente um desses casais tradicionais que buscam separar-se. Péricles Mototáxi e Bastiana da Saúde entraram
na sala de audiências como dois generais rivais na Bastilha: ele,
com uma pochete na cintura e uma insinuante gravata laranja
de gerente de loja; ela, com suas vestes brancas de enfermeira
do serviço público e um coque que lembrava uma sargentona da
Marinha.
O magistrado, temendo que o efêmero armistício pudesse ser
quebrado ante a primeira palavra ou gesto, começou a pregação:
–Um casal experiente querendo se separar...
–Sim, Senhor Meretríssimo, é impossível viver com esta
mulher! - disse Péricles, interrompendo o juiz.
–
Doutor, esse homem me ama! Ontem mesmo fizemos
amor... Mas a questão é que ele é um cabeça-dura e não quer botar dinheiro dentro de casa! - contrapôs Bastiana -. E separação,
eu não dou! - foi logo dizendo a mulher, estrepitosamente, como
se um obus kosovar atingisse a sala, antecipando sua posição na
bastilha judicial.
O magistrado pediu calma aos contendores e propôs que
cada um falasse por vez. Péricles continuou, tirando um amontoado de papéis de seu bornal guerrilheiro:
–Eis a prova, Doutor Meretríssimo, eis a prova da traição! - e brandia um papel branco como se fosse um florete –. Tá
aqui a fatura da Losange, que essa mulher não pagou, porque
usou com o amante o dinheiro que lhe dei! Esta mulher é uma
judas iscarioca! Fez até um curso de feicibuque, que eu paguei sem
saber!
–Epa, epa, desengonço, você está mentindo! - contra-atacou a mulher.
O juiz apaziguava os ânimos, mas não lograva nenhuma
trégua. O marido saca da bolsa o que seria uma arma letal, um
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gravador, no qual mete uma fita cassete, como se fosse um pente
de balas:
–Excelentíssimo Meretríssimo, ouça aqui a outra prova
da traição - e apertou o gatilho: ouvia-se um montão de vozes
desconexas, gritos, ruídos, como se fossem sons vudus de um filme
B de horror.
O juiz pediu ao marido que guardasse aqueles petrechos mortais e quis saber por que a mulher não concordava com a separação. Mas foi o marido que denunciou:
–Doutor, esta mulher não me dá a separação porque
sabe que vou ficar rico! - e o juiz abriu a boca em sinal de espanto.
Continuou o profético mototaxista:
–Escrevi um livro sobre minha vida, que vou publicar em
breve, e sei que vai ser um bestisséler: “Ansiedade e Desilusões”.
E emendou o general biógrafo, modulando a voz, como se
fosse um locutor de rádio, dobrando o erre e sibilando nos esses,
para derramar seus versos:
–Andei por caminhos espinhosos, com ansiedade e
desilusões...
O juiz já não acreditava no que ouvia, quando a mulher deu
um piripaque de telenovela:
- Pelo amor de Deus, socorram a mulher, chamem o SAMU
urgentemente! - gritava o magistrado, com a cara vermelha de
pimentão de feira paulista.
–Não precisa, não precisa, Meretríssimo, eu sei como
agir, pois sou mototáxi e fiz um curso de primeiros-socorros. Esta
mulher já fez dessas noutras oportunidades. É apenas para impressionar Sua Meretriz. Mas meu divórcio sai!
E pegou o homem um chumaço de algodão, embebeu-o de
álcool, que trazia na sua bagagem de guerra, socorrendo a vítima
do conflito bélico com uma abordagem nas narinas.
A mulher foi recuperando os sentidos devagarinho, olhou ao
redor e, como se tivesse despertado em Marte, perguntou:
- Tão me chamando, é? Hospital público é uma merda! A
gente não pode nem dormir um pouquinho no plantão...
Ritos
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// crônica
ARTIGO
Seu
Jorge
Paulo Sérgio da Silva Lima
Juiz de Direito da 2ª Vara Cível
não Especializada da Comarca de Natal
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No nosso perpassar pela vida deparamo-nos com os mais diversos tipos de pessoas. Todas elas, consciente ou inconscientemente, sempre têm algo a nos ensinar. Algumas, porém,
possuem algo especial a nos transmitir, seja narrando fatos objetivamente, seja relatando
suas experiências subjetivas. Particularmente, aprecio as pessoas que poetizam a vida, que
veem nela uma obra de arte, repleta de seres viventes; um quadro desenhado por Deus,
com seus mistérios e evidências. Uma dessas pessoas especiais é o Seu Jorge. Um homem
altivo, culto, de elevada estatura, medindo 1m,88cm, de postura ereta, tez pardacenta,
fronte larga, firme em seus pensamentos e palavras. Conta já com 82 anos de idade, porém
exterioriza uma idade psicológica e biológica de 50 anos. Seus relatos costumam ser muito
precisos, detalhados, desenhando a cena em nossa mente, reportamo-nos a um passado
descrito à moda do romantismo.
De vez em quando, no final da tarde, costumo tomar um café em sua casa, cuidadosamente preparado por Dona Josefa, sua dedicada esposa, a qual, por ser portuguesa, fá-lo
sempre acompanhar de um bolo caseiro e, às vezes, de deliciosos bolinhos de bacalhau,
regados a azeite de oliva da região do Alentejo, o que dá um tempero todo especial ao
paladar dessas viagens mentais.
Numa dessas tardes, Seu Jorge narrou-me um episódio de sua vida de caminhoneiro,
profissão que abraçou e se apaixonou graças – se é que pode chamar de graças – a um
grande abalo financeiro de sua família. Na ocasião, ele estava cursando o primeiro ano da
Faculdade de Medicina no Rio de Janeiro, quando foi forçado a abandoná-la e buscar um
meio de vida que pudesse assegurar a sua subsistência. Confidenciou-me que sempre nutriu
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um anelo por dirigir mundo afora, posto que seu espírito é adepto
da liberdade, no entanto estava preso às tradições sociais impostas
pela família, e viu no episódio uma conspiração cósmica para lhe
colocar no devido lugar.
Contou-me, então, num misto de entusiasmo e nostalgia, a
aquisição de seu primeiro caminhão e sua viagem inaugural por
esse imenso chão brasileiro. Essa primeira viagem se direcionou
justamente ao lugar do sonho brasileiro sonhado por Juscelino Kubitschek, ainda no seu limiar, e foi esse o seu primeiro sonho de
muitos que se sucederam nessas andanças por este imenso país, nos
quais não houve nenhum sobressalto de pesadelo porque se estava
sonhando o sonho bonito da vida.
Ainda ressoam vivas as suas palavras
em minha mente:
“O caminhão verde-esperança, apesar de seus visíveis sinais de
maus tratos, se mostrava altivo e imponente. Foi como amor à primeira vista. Com a ajuda de vários amigos consegui o valor da entrada pedida pelo proprietário. Quando, enfim, pude conduzi-lo,
tive noção exata do seu verdadeiro estado, precisando de reparos
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em todos os setores, a começar pelos pneus de marcas e tamanhos
diferentes, desgastes nas mangas de eixo e nas ponteiras, molas em
excesso endurecendo a suspensão, balança central inadequada,
transmissão empenada, vazamentos de óleo no flange do diferencial, no retentor do cubo de rodas, semi-eixo com parafusos de fixação frouxos ou quebrados. Foi preciso vários meses para, enfim,
colocá-lo em condições de viajar. Mas quem espera e se esforça
sempre alcança, e após esse trabalho paciente o dia tão esperado
chegou. Embreagem, engate de marcha, acelerador; pé na estrada! Que alegria. O início da noite fazendo silêncio parecia parar
para ouvir o ronco do motor clamando por liberdade, invadindo o
infinito, abrindo passagem para o sonho finalmente alcançado. Os
pneus ritmavam a trajetória como uma orquestra fantástica sonorizando o espaço. Na cabine, homem e máquina interagiam numa
sintonia perfeita como um aríete obcecado devorando a distância.
Após cada subida uma banguela se seguia como um mergulho
alucinante na escuridão do infinito, a marcha fluindo num acorde encantado, uma nota mágica, um êxtase, homem e máquina
em transe. Sem perceber foi ficando para trás anos, frustrações e
perdas; nada mais importando. Aqui e ali, bandos de macacos
cruzavam a pista, buscando talvez apenas liberdade, o sentimento
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predominante. Uma população muito grande de papagaios quebrava o silêncio da paisagem, com
sua algazarra frenética e feliz. De quando em quando, via-se já de longe pontinhos pretos móveis
cruzando de lado a lado a pista. Eram as enormes caranguejeiras. Miríades de borboletas volateando diante do caminhão, como num bailar aéreo. Espetáculo da vida! Quando o véu da noite
caía, encostava o caminhão em postos de descanso convencionado pelos caminhoneiros, onde se
fazia o necessário asseio, jantava-se e caía em profundo e reparador sono numa cama de beliche
adaptada na cabine do veículo, ou mesmo numa rede armada embaixo do caminhão. A vida, seguindo o seu curso, dava lugar à manhã, trazendo o sol com suas cores radiantes, os pássaros com
seus cantos, saudando a vida ofertada pelo Criador. Um rio soberbo, verde-safira, surge esplêndido dos confins do sertão. Era o Velho Chico, misterioso e imponente, fiel escudeiro das populações
ribeirinhas, emitindo, sob os raios do sol, lampejos prateados numa demonstração de beleza e
pujança. Senti-me fortalecido. Após dirigir quilômetros, finalmente vislumbrei o meu destino,
em pleno serrado brasileiro. De cara vi um curioso marco na divisa entre Goiás e Brasília. Vi-o
como um monumento místico e misterioso, uma mensagem figurada que não consegui entender,
embora tenha sentido o seu impactante efeito sobre mim. Trata-se – conforme fiquei sabendo
posteriormente - do “Monumento Solarius”, obra do escultor francês Ange Falchi, representando
o movimento de migração de todos os brasileiros em busca da construção da nova Capital Federal.
Aproximando-me da cidade debutante, primeiro sinal de civilização depois de muitas andanças,
deparei-me com um cenário que lembrava o velho oeste americano, onde se centralizava tudo.
Vista do seu entorno, Brasília parecia irracional. Nem mesmo um rio razoável corria por aquelas
paragens. Apenas o serrado como um deserto diferente. Mas este era apenas um desafio perto de
tantos. Mais adiante, o eixo rodoviário parecia um imenso formigueiro repleto de trabalhadores
nordestinos, esses desbravadores destemidos, imunes a tudo, manipulando o barro vermelho com
determinação e bravura. Recordo-me que, então, nos arredores de Brasília surgiu uma comunidade religiosa conhecida como Cidade Eclética cujo mentor, conhecido como Mestre Yokaanam,
uniu em torno de si um grande número de seguidores de todas as classes. Propunha-se a viver isolada do mundo e em perfeita harmonia, e a não reconhecer o dinheiro como necessidade de vida. A
filosofia milenar do Mestre Yokaanam era muito admirada e respeitada por todos que reconheciam
nele um profundo saber espiritual. Atualmente não sei em que quadra se encontra essa prática
filosófica-religiosa, mas, à época, causou-me uma forte impressão, até porque me encontrava num
estado lúdico-transcendental. Hoje, passados tanto tempo, ainda sinto em mim todas as emoções
daqueles dias, as quais, de quando em quando, voltam a povoar minhas memórias.”
Após esse envolvente relato de Seu Jorge, sorvi o último gole de café, vindo imediatamente ao
espírito uma frase de Robert Louis Stevenson: “Eu viajo não para ir a lugar algum, mas para ir. Eu
viajo pelo propósito de viajar. A grande sedução é se mover.”
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completará
60 anos
de fundação
em 2014
Todos os magistrados do RN estão de parabéns pelo
fortalecimento da associação e da justiça potiguar.
Venha fazer parte dessas conquistas.
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a arte cOntempOrânea de miguel OrdOqui