Ritos REVISTA DA AMARN * ANO VIII * Nº 10 * JULHO 2013 A arte contemporânea de Miguel Ordoqui Os magistrados e as redes sociais. As manifestações populares no Brasil. Atenção magistrados do RN A AMARN quer ouvir vocês. Vem aí a 1ª pesquisa realizada pela AMARN para saber sobre comunicação, política e temas atuais. A sua participação é fundamental. A pesquisa será feita via e-mail encaminhado para todos os associados. // editorial CONSELHO EXECUTIVO Caros colegas, Lançamos com muito orgulho mais uma edição da revista Ritos, mantendo a vocação literária para a diversidade de enfoques. A publicação já dá água na boca com a linda capa do artista plástico Miguel Ordoque, cujo trabalho vocês podem conhecer mais amiúde na matéria do colega Paulo Sérgio, que aliás também nos brinda com as suas sempre bem cuidadas fotografias. Estendemos também nossos sinceros agradecimentos aos colegas Rosivaldo Toscano, Fábio Ataíde, Fábio Filgueira, Mádson Ottoni, Jessé Alexandria, Paulo Sérgio, Maria Zeneide Bezerra e Cícero Macêdo que nos brindaram com seus artigos, contos, causos e pontos de vista. A Revista fica muito rica com a participação de vocês. Buscando tornar obra bem atual, ousamos abordar assuntos bem “quentes” (para usar um jargão jornalístico): as recentes manifestações de rua que tomaram de assalto o país e que vocês podem conferir na acurada análise do colega Fábio Ataíde. Também a interação dos magistrados com a mídia é abordada na matéria “Ligados e desligados: Os magistrados e as redes sociais” e no surpreendente artigo sobre Mídia Training. No “Bate-papo entre magistrados” a revista convidou o Juiz Federal Walter Nunes, que juntamente com Marcelo Varella, Jessé de Andrade Alexandria e Assis Brasil ajudam a destrinchar a nova LOMAN ou o Estatuto da Magistratura. Confiram o que muda na nossa legislação. Graças ao trabalho incansável da nossa equipe, a revista permanece com características que sempre a qualificaram e que procuramos incrementar: a diversidade e atualidade dos assuntos abordados, aliado ao cuidado editorial. O obrigada da AMARN a essa equipe tão especial: Jessé Alexandria, Assis Brasil e Paulo Sérgio, bem como a nossa querida jornalista Adalgisa Emídia. Por fim, a AMARN aproveita o ensejo para divulgar a nossa PESQUISA AMARN. Em tempos tão difíceis a AMARN precisa saber o que o associado está pensando e que rumos ele deseja que a sua associação passe a trilhar. Conhecendo o que pensa cada associado seremos mais fortes. Não deixe de contribuir. Um abraço afetuoso. Juíza Hadja Rayanne Holanda de Alencar Presidente da AMARN Presidente Juíza Hadja Rayanne Holanda de Alencar Vice-Presidente Institucional Juiz Marcelo Pinto Varella Vice-Presidente Administrativo Juiz Cleofas Coelho de Araújo Junior Vice-Presidente Financeiro Juiz Odinei Wilson Draeger Vice-Presidente de Comunicação Juiz Paulo Giovani Militão de Alencar Vice-Presidente Cultural Juiz Jessé Andrade de Alexandria Vice-Presidente Social Juiz Jorge Carlos Meira e Silva Vice-Presidente dos Esportes Juiz Felipe Luiz Machado Barros Vice-Presidente dos Aposentados Juiz Francisco Dantas Pinto Coordenador da Região Oeste Juiz Breno Valério Fausto de Medeiros Coordenadoria da Região Seridó Juíza Marina Melo Martins CONSELHO FISCAL Juiz Azevêdo Hamilton Cartaxo Juiz Fábio Antônio Correia Filgueira Juiz Fábio Wellington Ataíde Alves Juíza Flávia Souza Dantas Pinto Juiz Gustavo Henrique Silveira Silva Juiz Luiz Alberto Dantas Filho Juiz Mádson Ottoni de Almeida Rodrigues Juíza Manuela de Alexandria Fernandes Juíza Rossana Alzir Diógenes Macêdo Editora executiva Adalgisa Emídia DRT/RN 784 Projeto Gráfico e Diagramação Firenzze - Making Apps (84) 2010.6303 | (84) 2010.6307 [email protected] Fotos Elpidio Júnior Gráfica Unigráfica Associação dos Magistrados do Rio Grande do Norte Condomínio Empresarial Torre Miguel Seabra Fagundes R. Paulo B. de Góes, 1840 Salas 1002, 1003 e 1004. Candelária - Natal-RN. CEP: 59064.460 Telefones: (84) 3206.0942 3206.9132 | 3234.7770 CNPJ: 08.533.481/0001-02 // Sumário 14 Entrevista Magistrados conversam sobre LOMAN e assuntos políticos 24 Artes Artista plástico cubano Miguel Ordoqui e a sensualidade nas telas 4 Ritos www.amarn.com.br 34 Artigo Juiz Cícero Macêdo Filho em homenagem ao Choro 28 Redes Sociais Os magistrados e os cuidados em usar essas ferramentas 6 Manifestações Juiz Fábio Ataíde faz uma análise das manifestações de rua www.amarn.com.br Ritos 5 // ARTIGO A Nova Balaiada Fábio Ataíde Juiz de Direito e professor de Direito Penal/UFRN. 6 Ritos Quanto Herbet de Souza escreveu que cinco milhões de brasileiros controlavam a casa grande estava dizendo que a imensa maioria se submete ao controle de um sistema que, apesar das transformações, nunca deixou as base levantadas desde a aristocracia escravocrata. Entender a história do Brasil é saber não apenas as razões pelas quais ocorreu a formação de um povo acomodado, ordenado ao domínio, mas ainda como a política de antecipação de direitos obstruiu conquistas por meio de processos de luta. O índio foi o primeiro a suportar o peso de uma alicerce de domínio e a eles foram se juntando milhões, no geral escravos, imigrantes e pobres. Do culto ao latifúndio saiu um sistema acostumado a moer todas as revoltas populares. Uma a uma. Desde a morte do infeliz alferes na Inconfidência até a dos miseráveis da Balaiada (1838), desorganizados, marginalizados e sem objetivos comuns. Não quero saber se em algum lugar da história registramos a expulsão dos holandeses; o fato é que em poucos momentos encontramos direitos construídos sem a boa política de antecipação. O poder tem sido hábil para agir ou fazer concessões antes da menor inquietação, punindo severamente os desobedientes e premiando os aliados. Não quero saber se projeto da Constituição de 1822 foi levado à sugestão popular, mas sim que o seu texto estabelecia o voto censitário para o eleitor com renda mínima. www.amarn.com.br Poderíamos dizer que até mesmo a vitória da guerra do Paraguai termina manchada com a participação dos escravos no conflito. O advento da República anos mais tarda trouxe decisivamente uma esperança de participação que pereceu diante do fortalecimento do poder regional. Razão teve Amaro Cavalcanti quando escreveu que o novo regime significou “apenas uma mudança de nome ou de formas externas, mas igualmente carecedor de benefícios reais para o país e para a nação” (CAVALCANTI, Amaro. Regime Federativo e a República brasileira. Brasília: Ed. Universidade de Brasília, 1983. p. 339). Na recém criada República, prevaleceu a corrente positivista, que fundou o país em torno de conquistas de direitos por meio da ordem, ou seja, ordem e progresso foram os lemas que serviram a um domínio certo, e sob parte desses resquícios estamos aprisionados até os dias de hoje. Na batuta da ordem e do progresso foram negadas conquistas de direitos por meio de iniciativas genuinamente participativas. A luta, logo convertida em luta armada, serviu para encontrar inimigos e não aliados. A luta contra o inimigo tem www.amarn.com.br impedido, durante toda a história, o surgimento de movimentos amplamente participativos e voltados à construção de direitos iguais para os marginalizados. O populismo que começa dar sinais com Floriano Peixoto foi uma caricatura da participação política, tanto que mais tarde não tivemos dúvidas ao esmagar Canudos, como quem não reconhece os brasileiros, respondendo seus movimentos sociais com atos de guerra. O político mineiro Antônio Carlos advertiu muito bem: “Façamos a revolução antes que o povo a faça” (VICENTINO, Cláudio, DORICO, Gianpaolo. História do Brasil. São Paulo: Scipione, 1997. p. 330). A velha política da antecipação esvaziou a participação política e não foi a figura paterna de Getúlio Vargas que acabou com tudo isso. A chegada da Ditadura trouxe a suspensão dos direitos políticos, seguida do fechamento do Congresso e do fim das garantias constitucionais. Sobre tantos escombros, renovamos esperanças, que foram em grande medida o combustível para as “diretas já”, como também para uma Constituição e o impeachment de um Presidente. Ritos 7 Futebol como indústria de triturar prioridades Ao longo da história foi sendo montado um sistema de desigualdade estrutural, muito mais além do que imaginamos como causas da crise estatal. O movimento social que ressurge agora, como uma nova Balaiada - desorganizada e sem objetivos comuns - levanta problemas estruturais, cuja solução não depende apenas de manifestações populares. Mudar um País é romper o modelo estrutural que lhe deu base e isso implica mudar leis para depois mudar o Direito; mudar o sistema eleitoral, inclusive acabando o voto obrigatório, para depois mudar os políticos; mudar prioridades para depois mudar a saúde, a educação e a segurança; mudar o sistema de impunidade para depois começar a fazer “justiça”; mudar as políticas públicas para depois mudar a nossa relação com a política; acabar com os políticos palhaços para depois mudar as palhaçadas dos políticos; mudar o sistema de patrulhamento moral por orientação sexual para depois mudar a intolerância; mudar as velhas caras para depois mudar as propostas... Mudar a estrutura leva tempo, dinheiro e esforço conjunto e ninguém muda estruturas apenas com votos, mas movimentos sociais são um bom começo. Sabemos das estruturas que dão base ao poder hegemônico, assim trazido com o primeiro colonizador e que até hoje continua fazendo de suas sustentações o que temos como leis. O voto obrigatório, o foro por prerrogativa, a impunidade lavada nos crimes de colarinho branco são placas, que, se bem seguidas, levam-nos direto ao covil do poder hegemônico. Sabemos de todos esses caminhos e talvez nem precisasse dizer; fomos ensinados a entendê-los como os únicos por onde percorrer. A nova Balaiada precisa vencer as dificuldades de canalizar tudo para outro novo caminho, sem o que - não exagero dizer serão preocupantes as incertezas sobre aonde chegaremos, digo preocupante não para a Política, mas acima de tudo para os 8 Ritos políticos reais, completamente despreparados para entender os novos Balaios que estão ai e aqui e em todos os lugares, graças a uma trama de uma rede de cipó que escode os líderes. Devemos mesmo esquecer os motivos estruturais que nos dão a razão para o movimento? Talvez já não seja mais uma questão de razão. Falo de um momento que nega a razão justamente por afirmar e ao mesmo tempo recusar a nossa cordialidade histórica. Acordar antes da morte ou morrer em sono de berço esplendido. Eis a questão. O fim da política de antecipação de direitos No final do século XX cresce a discussão em torno de uma tensão entre o aumento dos encargos sociais do Estado e a diminuição da capacidade de o Estado interferir na sociedade (NEVES, Marcelo. A Constitucionalização Simbólica, 2007, p. 29). São essas questões que servem de motor ao movimento. O aumento dos encargos sociais com eventos esportivos e a incapacidade do Estado interferir em assuntos prioritários para os que vivem o cotidiano de hospitais, escolas e tantos outros serviços públicos. É chegado o momento de ouvir Jean Cruet, especialmente quando escreveu uma monografia apenas para apontar as agruras de um sistema normativo incapaz de inventar a sociedade, mas que está sempre sendo reinventado por ela (A Vida do Direito e a Inutilidade das Leis. Sem tradutor mencionado. Lisboa: Antiga Casa Bertrand – José Bastos & Cª. - Livraria ed., 1908). Hoje isso é fato no Brasil. Um fato e tudo o que isso pode significar. Somos muitos e desiguais. E se o mérito do movimento nesse momento é justamente a falta de foco, devemos pensar que isso que nos une momentânea e indistintamente precisa de um canal que nos leve para um lugar comum, do contrário seremos manada de elefante caindo em precipício. www.amarn.com.br Os bilhões gastos no Brasil se somarão à dívida de bilhões deixada pela Copa do Mundo na África do Sul? De tudo, a competição encerra no País o uso do futebol como motor de resolver problemas sociais, restando muito mais evidente a arma partidária dessa indústria de triturar prioridades que está sendo a Copa do Mundo. Jogadores são soldados sim, muito bem pagos por seus patrocinadores. A primavera dos balaios sugere uma crise nos processos de manipulação midiática. Que escola temos no País dos melhores estádios do mundo? Na base de nossa pequena história dos conflitos está a inversão de valores e o sentimento de classe sem o devido reconhecimento. Já percebemos que o sistema deve funcionar igualmente. A igualdade é uma premissa básica fundante, flagrantemente negada por muitas propostas políticas, especialmente a que pretende impedir o poder de investigação do Ministério Público, assegurando que efetivamente o sistema continue a funcionar seletivamente apenas contra pobres, estes sim os midiaticamente apontados como os verdadeiros “culpados” por nossas mazelas. Isso tudo também está implícito na proposta de redução da menoridade penal, desviando a atenção pública ou colocando uma máscara de impunidade sobre quem aperta os botões de funcionamento das estruturas. www.amarn.com.br As manifestações sociais do momento são as de todo sempre, mas nunca houve uma igual ou dessa forma capaz de unir e, ao mesmo tempo, realçar desigualdades. A nova Balaiada destaca-se “justamente” por uma justaposição das formas de ver e viver o mundo das pessoas. Enquanto os políticos guardam a velha ritualística do consenso estruturada sob a bandeira da ordem e progresso patriarcal, o novo mundo ou o mundo de todo mundo confunde, exatamente porque é o mundo de outras pessoas, o mundo que para a Política sempre foi o mundo do Outro. Nessa nova visão, o mundo está significativamente marcado por um sentimento agudo e doloroso de distorção de mundos. É esse sentimento encontrado nas centenas de manifestações levadas às ruas. Como no filme Pequena Miss Sunshine, o estranho que chega atrapalha a competição de beleza; esse estranho, que nunca foi novo, rompe com o mundo romântico da Política até então praticada e - anarquicamente mesmo - decreta o fim da Política de antecipação de direitos e, não apenas isso, cobra uma pauta sobre quem são os verdadeiros criminosos e por quais razões o sistema nunca os encontrou ou, se os encontrou, assegurou proteção. Os Balaios pedem passagem para a chegada de uma nova Política, em um mundo de políticos que passaram. Ritos 9 // ARTIGO Melhorar os números de nossa produtividade? Como assim? Mádson Ottoni de Almeida Rodrigues Juiz Titular da 9ª Vara Cível e Diretor do Foro da Capital 10 Ritos O monopólio da jurisdição pelo Estado nos impede de agir materialmente. É o Estado que arbitra a solução dos conflitos diante de um direito ameaçado ou violado, daí tratar-se a justiça de um bem que afeta a todos e que assegura a estabilidade social. Falar em Estado Democrático de Direito, fundado na cidadania e na dignidade da pessoa humana (CF, art. 1º, II e III), é falar no acesso à justiça como sinônimo de acesso à tutela jurisdicional adequada: tempestiva e eficaz. Nesse quesito, reconheçamos, o Brasil está longe do ideal de um Estado Democrático de Direito. Como disse o Ministro Joaquim Barbosa em seu discurso de posse na presidência do STF: “Gastam bilhões de reais anualmente para que tenhamos um bom funcionamento da máquina judiciária. Porém é importante que se diga, o judiciário que aspiramos é um judiciário sem firulas, sem floreios, sem rapapés, pelo menos na minha concepção. O que buscamos é um judiciário célere, efetivo e justo. De nada valem as edificações suntuosas, os sofisticados www.amarn.com.br www.amarn.com.br Ritos 11 sistemas de comunicação e informação se naquilo que é essencial a justiça falha. Falha porque é prestada tardiamente, e não raro, porque presta um serviço que não é imediatamente fruível por aquele que o buscou.” De fato, nosso judiciário custa caro, mas não é eficiente. Tomando como base informações oficiais do CNJ, relativas ao ano de 2011, nosso pequenino Rio Grande do Norte apresentou o custo de R$ 3.352,64 por processo, ficando somente atrás de Pernambuco na região Nordeste, onde o custo por processo correspondeu a R$ 3.374,20. No mesmo ano, nossa despesa com pessoal importou em R$ 515.770.271,14, representando o percentual de 6,9% do gasto total do Estado, o que nos colocou em primeiro lugar no Nordeste neste quesito. Já no tocante ao total de sentenças ou decisões, também em 2011, contabilizamos o número de 165.383, que nos coloca na região Nordeste somente a frente do Estado de Alagoas, com 102.424 sentenças ou decisões (Fonte: CNJ – Justiça em Números, adaptado pela SJGE, maio de 2013). Em 2012, embora ainda não existam informações oficiais divulgadas pelo CNJ, o custo unitário de nosso processo está estimado em R$ 3.203,26, com a despesa com pessoal estimada em 6,7% do gasto total do Estado. Neste último quesito, mesmo com uma redução de 6,9% para 6,7%, continuamos ostentando com folga a primeira colocação no Nordeste. Nossa estatística é preocupante! Enquanto contabilizamos o segundo menor número de sentenças ou decisões na região Nordeste, somos, de longe, o primeiro lugar no item despesa com pessoal, considerando o percentual sobre o gasto total do Estado. Diante dessa realidade, o que fazer? Sabemos que as conquistas remuneratórias são irrenunciáveis e representam uma melhor qualidade de vida para nossas famílias, portanto necessitamos mantê-las. Todavia, para que isso ocorra, somos todos convocados a redobrar o esforço e a dedicação na melhoria dos números de nossa produtividade. Se nosso Estado conseguir elevar o número de sentenças e decisões, abreviando a duração dos processos, nossas conquistas remuneratórias estarão asseguradas, e daí por diante navegaremos em águas tranquilas, sem sobressaltos ou ameaças. Não existe uma fórmula pronta capaz de garantir eficiência na prestação dos serviços jurisdicionais. Se essa fórmula existisse certamente alguém já teria patenteado a ideia e estaria recebendo dividendos por isso. Não é assim que funciona! O primeiro passo para a mudança consiste em mudar a mentalidade. Devemos fazer uma autocrítica e analisar como poderemos melhorar a prestação de nossos serviços. O que nós magistrados podemos fazer para julgar com mais rapidez? Devemos aumentar as horas dedicadas ao trabalho? Devemos simplificar as decisões; padronizar modelos; decidir em audiência; fixar prazos e dar conhecimento às par- 12 Ritos Urge uma reforma na Lei Orgânica Judiciária, visando principalmente à criação, fusão e classificação de comarcas no interior do Estado” Juiz Mádson Ottoni www.amarn.com.br tes da data da prolação da sentença? Devemos alterar o método de trabalho de nossos gabinetes e secretarias? A propósito, os diretores de secretaria precisam gerenciar com eficiência a unidade jurisdicional, pois recebem uma ótima gratificação para isso e necessitam mostrar resultado. Doutro bordo, somos nós juízes que indicamos os diretores de secretaria e os assistentes de gabinete, portanto também temos responsabilidade por seu desempenho. Os servidores do Poder Judiciário igualmente necessitam mudar de atitude. A pontualidade, a dedicação e o foco no serviço devem ser uma constante. Não é mais possível tolerar a desídia e a falta de compromisso de alguns servidores. A minoria que assim se comporta precisa ser chamada à responsabilidade. As boas práticas que existem em algumas secretarias judiciárias precisam ser repassadas para as demais unidades. O fluxo adequado de trabalho das secretarias precisa ser padronizado pelo Tribunal, com a definição de prazos para o cumprimento das etapas de tramitação dos processos. Ainda como parte desse projeto, a Corregedoria de Justiça precisa fixar um calendário para realizar auditorias periódicas, a fim de analisar o cumprimento dos fluxos, prazos e resultados alcançados. Urge uma reforma na Lei de Organização Judiciária, visando principalmente à criação, fusão ou reclassificação de comarcas no interior do Estado, além da premente redefinição da competência de algumas varas da capital, cuja distribuição mensal de feitos é baixíssima. Núcleos de conciliação prévia; fóruns permanentes de uniformização de entendimento entre magistrados com a mesma competência; redistribuição de servidores; contratação de menores aprendizes para auxiliar os trabalhos mais simples das secretarias; disponibilização da certidão de agravo no portal do Tribunal de Justiça; disponibilização do sistema Hermes às repartições públicas que se relacionam com o Poder Judiciário; protocolo centralizado para o recebimento de petições e autos em tempo integral; central de informações processuais, inclusive por telefone 0800, para desafogar o balcão de atendimento das secretarias; incremento do Núcleo de Perícias, dentre outras iniciativas, certamente resultarão em maior produtividade. É fundamental, ainda, que nosso Tribunal defina com tirocínio as prioridades e os rumos que haveremos de seguir doravante, especialmente traçando um plano de metas e objetivos claros a serem perseguidos pelas próximas gestões. A missão é dura e exige um esforço coletivo, e nós não podemos perder mais tempo. Arregacemos, pois, as mangas, unamos as mãos e vamos à luta. www.amarn.com.br Ritos 13 // Entrevista 14 Ritos www.amarn.com.br Um bate-papo entre magistrados Numa tarde bastante produtiva, do mês de maio, a AMARN recebeu em sua sede administrativa o juiz federal Walter Nunes para uma entrevista sobre a LOMAN. A ideia era fazer com que juízes estaduais entrevistassem um juiz federal que já esteve a frente do CNJ e pudessem debater sobre as propostas da nova lei da magistratura. Os juízes Marcelo Varella, Jessé Alexandria e Assis Brasil conduziram a entrevista que se transformou em uma conversa sobre temais atuais e de interesse da magistratura brasileira. Da LOMAN, ao ministro Joaquim Barbosa, STF e política foram alguns dos assuntos abordados pelos magistrados. www.amarn.com.br Ritos 15 Walter Nunes – As entidades de magistrados já encaminharam as propostas e o texto da nova LOMAN deve ser enviado pelo SFT ao Legislativo, mas acredito que a votação não deva ocorrer neste ano e nem no próximo. Um dos pontos discutidos na nova lei é com relação à convocação dos juízes de primeiro grau para substituírem nos tribunais. Eu concordo com a regra que estabelece a vedação dessas convocações. Assis Brasil – Por que você é contra essas convocações? Walter Nunes – Porque desestrutura o primeiro grau. Na Justiça Federal, se você vai ser convocado para os tribunais já começa a receber processo três meses antes. Ou seja, pela demanda que a gente tem no primeiro grau, é impossível e isso ainda mascara a necessidade de ampliação dos tribunais. Jessé Alexandria – E nos grandes tribunais como São Paulo, como seria o 16 Ritos www.amarn.com.br quantitativo de vagas? Walter Nunes – Em São Paulo, já está comprovado que o tribunal não pode ser daquela forma. A emenda 45 trouxe a questão das turmas descentralizadas, mas isso não pegou nos tribunais de justiça. Assis Brasil – A Lei Orgânica da Magistratura data de março de 1973. Você não considera que essa lei já deveria ter sido substituída por um estatuto da magistratura que viesse abranger todos os anseios e deveres da magistratura nacional, considerando-se que a LOMAN é uma lei antiga e obsoleta? Walter Nunes – Todo mundo tem essa consciência. O que foi que aconteceu? O Judiciário é uma esfera de poder que, em tese, está mais aberta para as interferências externas. Então, um projeto de lei disciplinando essa esfera de poder; todos os agentes que podem interagir ou divergir ou até ocupar espaços no Judiciário, vão querer influenciar na elaboração dessa lei. O projeto de lei da magistratura foi encaminhado tão logo a promulgação da CF como foi o do Ministério Público. O que aconteceu? Como o MP ainda não tinha essa atuação como vimos nos últimos anos, ninguém se preocupou com esse projeto e ele foi aprovado em 1993. Se fosse hoje, imagine a dificuldade em relação à aprovação da lei. Mas, o Judiciário desde o início enfrentou essa resistência. O que a Constituição de 88 trouxe de novo para o Judiciário brasileiro? Basicamente, nada. Criou-se apenas os juizados especiais e o STJ. E, nesse tempo, o Supremo ficou questionando sobre como levar um projeto de nova LOMAN se tem a reforma do judiciário? A gente mudou o paradigma do direito brasileiro e temos um marco regulatório normativo que é a CF de 88 e como continuamos com uma LOMAN que foi pensada num Estado ditatorial ? Marcelo Varella – O Judiciário é uma instituição de âmbito nacional, cuja divisão se dá em razão da necessidade de distribuição de competências, é o que decidiu o Supremo que enfatizou o escalonamento dos subsídios. O novo Estatuto da Magistratura não www.amarn.com.br O que a Constituição de 88 trouxe de novo para o Judiciário brasileiro? Basicamente, nada. Criou-se apenas os juizados especiais e o STJ. E, nesse tempo, o Supremo ficou questionando sobre como levar um projeto de nova LOMAN se tem a reforma do judiciário?” Juiz Walter Nunes Ritos 17 se propõe a definir essa matéria, ainda que determinando a aplicação automática dos reajustes a toda a magistratura, deixando apenas o pagamento a depender de disponibilidade orçamentária de cada ente da federação? Walter Nunes – Na proposta que está, não. Mas, há sugestões de emendas aditivas. Mas o parlamento não tem interesse nenhum nisso. O sonho de consumo de todas as associações de magistrados seria as revisões anuais, mas sabemos que há resistências do próprio parlamento. As transmissões das sessões do STF colaboraram muito com a imagem perante a população. Eu era menino, não sabia o nome de um ministro, hoje toda a população sabe” Juiz Assis Brasil 18 Ritos Marcelo Varella – Há uma tendência em alguns estados de diminuição do número de entrâncias. Existe alguma proposta para que o Estatuto defina e unifique essa matéria? Walter Nunes – No projeto do ministro Ricardo Lewandowski, diz que só pode ter duas entrâncias. Dentro dessa ideia de ter um Judiciário mais harmônico, isso é muito importante. O nosso sistema é de carreira e por mais que se tenha parâmetro de remuneração, o tempo de serviço tem de ser valorado. O juiz só é conhecido com o tempo. Ele pode ter sido o juiz mais extraordinário no início da carreira, mas ele vai ser avaliado pelo conjunto da obra. Assis Brasil - Considerando que a expectativa de vida do brasileiro vem aumentando e que muitas pessoas acima dos 70 anos ainda têm vigor físico e mental, você concorda com a aposentadoria compulsória aos 70 anos de idade? Walter Nunes- Eu tenho uma posição muito clara com relação a isso. No serviço público a aposentadoria compulsória é fundamental e principalmente numa esfera de poder. A longevidade numa esfera de poder passa a ser perniciosa. A carga de trabalho no judiciário brasileiro é desumana e digo que a minha capacidade de trabalho, hoje eu tenho 22 anos como juiz federal, já foi bem maior. Eu cheguei a trabalhar de domingo a domingo, mas não é nem porque eu esteja cansado, é a questão mental. O juiz quer queira quer não, ele convive com as angústias alheias. Acho que os 70 anos é uma idade mais do que razoável para um magistrado se aposentar. Jessé Alexandria – Com relação às férias coletivas. Como pensam as associações do ponto vista remuneratório? Os dois terços seriam preservados? Walter Nunes – Sim e o que nos dá um certo conforto é a lei do Ministério Público, que nos ajuda a manter as nossas garantias como os 60 dias de férias para a magistratura. www.amarn.com.br Marcelo Varella – E o atual presidente do STF, quando assumiu já disse ser contrário às férias de 60 dias. Walter Nunes – Mas, o que nos dá tranquilidade é saber que a lei do Ministério Público é bastante abrangente e traz muitas garantias, e o presidente do STF vai ter dificuldade em se posicionar contrário a que a gente tenha as mesmas vantagens. Assis Brasil – O CNJ veio para moralizar e democratizar o Poder Judiciário? Walter Nunes – Eu não tenho dúvida disso. Não se conta a história do judiciário sem falar no CNJ e olhe que é um órgão novo e tem seus erros, mas tem muito mais acertos. Hoje há um planejamento no ambiente do judiciário por causa do CNJ. Antes, a gente não sabia quantas ações existiam no Brasil, nem a quantidade de juízes. Agora, há um planejamento estratégico do judiciário brasileiro com metas a serem cumpridas. A questão é que a imprensa dá realce à atuação censória do CNJ. Mas, isso é apenas um aspecto. O CNJ foi um divisor de águas no judiciário brasileiro, porque a gente não tinha absolutamente nada de planejamento. Além disso, se fala na atuação censória, mas quantos e quantos casos o CNJ não atuou exatamente para podar uma eventual arbitrariedade praticada por tribunal ? Teve um caso numa vara no interior de um estado brasileiro que era um pandemônio, processos contra traficantes sem julgamentos e houve uma mudança. Foi uma guerra para tirar esse juiz de lá e conseguiram tirar e uma juíza foi pra essa vara, mas foi punida, com apenas dois meses de atuação, pelo corregedor por atraso nos processos. Então, voltando a questão da LOMAN, eu defendo que a magistratura deve ter uma pauta comum. Eu acho que o projeto não vai ser encaminhado neste ano e não há espaço para votação. Mas, devemos estabelecer os consensos. O discurso deve estar afinado entre os juízes estaduais, federais e trabalhistas. www.amarn.com.br Jessé Alexandria – Na verdade, o Parlamento está buscando espaço político e é hora de se buscar uma negociação. Assis Brasil – Esse “Mensalão” é a maior prova da autonomia do Supremo. Vocês já tinham ouvido falar na história do Brasil que ex-ministros, deputados e senadores tivessem sido condenados? Eu nunca tinha ouvido falar. O que você acha da indicação política dos ministros do Supremo? Walter Nunes – Na proposta de reforma do Judiciário, a AJUFE tem uma proposição de reservar percentuais para a magistratura de carreira e para a academia. Eu acho que o Supremo deveria ter um representante do Parlamento lá. No momento em que estamos lutando pela democratização no Judiciário, devemos deixar claro que não estamos pleiteando o direito de ser votado, mas o de votar. Jessé Alexandria – Na verdade, as últimas escolhas para o STF foram mais democráticas em relação aos governos anteriores. Walter Nunes – Eu gosto de avaliar por esse lado, embora não concorde com algumas decisões técnicas do Supremo. O exemplo de independência do STF, para decidir no caso do “Mensalão”, foi extraordinário. Assis Brasil – As transmissões das sessões do STF colaboraram muito com a imagem perante a população. Eu era menino, não sabia o nome de um ministro, hoje toda a população sabe. Walter Nunes – Isso é outro exemplo de democracia brasileira. Quando a LOMAN foi criada, muita coisa não era divulgada e o CNJ, que foi um órgão criado para se ter transparência, toda sessão para se apreciar a conduta de um juiz era secreta. O projeto da TV Justiça é fantástico, extraordinário. Marcelo Varella – Inclusive, saiu uma pesquisa apontando que os votos passaram a ser mais longos depois das transmissões. Walter Nunes – É verdade. Foi um avanço não só para a magistratura como para a sociedade como um todo. Ritos 19 Tasso Pinheiro // cidadania Justiça, Maria Zeneide Bezerra, Desembargadora do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Norte cidadania e políticas públicas Falar-se em acesso à Justiça – tem de se evidenciar a secretaria de reforma do judiciário do Ministério da Justiça, criada em abril de 2003 (dec. Nº 4.685). Emenda constitucional n. 45, em 2004, que abriu espaço para a efetivação de alterações tais: súmula vinculante – sistema de repercussão geral – lei dos recursos repetitivos - transparência. Atribuição: articulação entre o executivo, judiciário, legislativo, Ministério Público, Defensoria Pública, Ordem dos Advogados do Brasil, Entidades da Sociedade Civil e Organismos Internacionais na elaboração e pactuação de propostas de reforma normativa, no plano constitucional e infraconstitucional, objetivando à modernização e administração do sistema de justiça. Tudo, pois, em função do aperfeiçoamento das instituições da justiça a fim de que se tornem mais céleres e acessíveis à população. Por exemplo, destaco temas debatidos na sociedade e com a chancela do judiciário, absolutamente expressivos e que alteram a vida política, social, cultural e econômica do país: liberação de pesquisas com células-tronco; proibição de fumar nos aviões estendendo-se a restaurantes, etc; nepotismo nos três poderes; gratuidade na distribuição. 20 Ritos www.amarn.com.br Eventos realizados através dos projetos de Justiça e Cidadania nos municípios do RN Democratização do acesso à Justiça (definido pela secretaria judiciária) – a expressão é forte e, naturalmente, obriga o estado e a sociedade a promoverem ações, terem atitudes que possam concretizar este direito. Destaco: começando pelos tribunais, que hoje estão com outro perfil. Democratizam os espaços públicos. Idem as demais instituições estatais e não estatais, estendendo-se também à realidade privada, onde os trabalhadores lutam, reclamam por uma maior decisão/participação dentro das empresas. Significa, portanto, que tais instituições públicas devem liberar o acesso da população em qualquer assunto, seja nas informações, nas decisões, nos serviços, visando um atendimento de excelência. O judiciário, pois, deve atender aos anseios do povo e encontrar fórmulas que faça este povo ter absoluto acesso ao sistema de justiça de forma dinâmica, moderna, inovadora. Ao contrário de outros tempos em que tínhamos um judiciário fechado, introspec- www.amarn.com.br tivo, fechado. Então, os juízes, a OAB, a Defensoria, a Promotoria, os servidores, enfim, devem ter a preocupação quanto ao bom atendimento aos cidadãos que os procura. O acesso à Justiça é exatamente garantir e promover direitos e garantias fundamentais através destas políticas de todos que fazem parte do sistema de justiça, num prisma, portanto, amplo, integral, dinâmico, garantidor e promotor destes direitos e, por serem fundamentais, indispensáveis ao estado democrático de direito. A Secretaria de Reforma Judiciária, quanto às reformas normativas, criou o programa nacional de segurança pública com cidadania, buscando qualificar as instituições no atendimento ao cidadão em razão de seus direitos sociais. Ex: lei n. 11.340, 07.08.2006 - Maria da Penha pela qual, para a sua efetivação, devem ser implementados os instrumentos para a sua correta apli- Ritos 21 cação. Tudo, portanto, em razão da dignidade humana posta na Constituição Federal. Antes tais crimes contra a mulher estavam num patamar inferior: menor potencial ofensivo. O que consequenciou? Transparência à violência doméstica – debates nas universidades, no meio jurídico, na sociedade. Foram criadas varas especializadas da violência doméstica e familiar, juizados, câmaras, promotorias e núcleos da defensoria pública, delegacias de polícia para atenderem às mulheres, modalidade que permite uma visão sistêmica do assunto, com mais celeridade e segurança jurídica nas decisões dos magistrados. Também registro a atuação da equipe interdisciplinar permitindo um ambiente acolhedor/humano nestas causas. Judiciário: alta taxa de congestionamento (CNJ – Justiça em números) e morosidade. Tem que se buscar novas possibilidades de ajuizamento de novas demandas pelos cidadãos. Destaco: existência de atitudes contrárias ao acesso – pouco republicana. Diz Boaventura de Souza Santos (para uma revolução democrática da justiça, SP, Cortez, 2007, p.22) “(...) Os Tribunais não foram feitos para julgar para cima, isto é, para julgar os poderosos. Eles foram feitos para julgar os de baixo. As classes populares, durante muito tempo, só tiveram contato com o sistema judicial pela via repressiva”. Aí está: começou-se a julgar para baixo, feitos que estão na base da pirâmide, em maior número, deslanchando na alta taxa de congestionamento. Destaco: o povo vai em busca do judiciário para resolução dos conflitos: ponto positivo x sinal da cidadania. Mas, não basta fazer concursos e ampliar a estrutura das instituições para tornar rápido o judiciário. Projeto/ propostas: acesso priorizado pelas ações coletivas – regulação dos procedimentos de prevenção e recomposição dos direitos difusos e coletivos, objetivando uma maior segurança jurídica, a efetividade à tutela coletiva mas, principalmente ampliando o acesso à justiça: 1) Direitos coletivos tuteláveis – meio ambiente, saúde, educação, etc...; 2) Aumento do rol de legitimados para proposição das ações coletivas – OAB, Defensoria, Partidos Políticos; 3) Suspensão dos processos individuais em face da ação coletiva – evita o aumento das demandas e diferentes julgamentos; 4) Provas produzidas por quem está mais perto dos fatos; 5) Democratização na aplicação do resultado das ações – reparação de danos ambientais, aos consumidores. Neste contexto constitucional, em face das políticas públicas, destaco a Defensoria Pública - estados obrigados a terem a sua Defensoria. Precisa-se, todavia, fortalecê-las (2004). Precisa-se conhecer a realidade dessas instituições (2006). Vários investimentos feitos pelo Ministério da Justiça: articulação do ministério, Secretaria Especial de Políticas para Mulheres, Departamento Penitenciário Nacional e as Defensorias realizando mutirões. Foi criada a força nacional da Defensoria Pública em execução penal (assistência jurídica aos presos nos estabelecimentos prisionais em situação crítica). Sugestões: juizados de pequenas causas – mais demandas, mais acessos - cultura de paz. Profissionais com este perfil. No plano da desjudicialização – lei 11.441/2007: divórcio, separação, inventário e partilha, através de escritura, havendo acordo entre as partes e inexistindo interesse de incapazes. Incentivo a que as faculdades implementem a cultura da conciliação/mediação nos alunos. 22 Ritos A justiça brasileira e, especialmente a Norte-riograndense, tem apresentado transformações” Desembargadora Maria Zeneide Bezerra www.amarn.com.br 2008 - projeto pacificar – implantar, fortalecer, divulgar a mediação e outros meios alternativos de solução de conflitos nas faculdades como instrumentos de acessos à justiça. Ministério da Justiça articulou o fortalecimento da mediação e conciliação como uma política pública com a escola nacional de formação e aperfeiçoamento da magistratura (ENFAM) – no conteúdo dos concursos como na formação continuada dos Magistrados junto às Escolas da Magistratura, da OAB. Conciliar é legal – justiça comunitária – políticas envolvendo as diversas instituições que compõem o sistema de justiça verificando diversas formas de alternativas para solução dos conflitos, tendo, a sociedade, um papel primordial na pacificação social. Concluindo. Em termos do tema – Justiça, Cidadania e Políticas Públicas, o que faz o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Norte? A Justiça Brasileira e, especialmente, a Norteriograndense tem apresentado transformações. Uma nova feição, cujo impacto transforma, pouco a pouco a Instituição. Óbvio. Existem reações ao novo. Maria Tereza Sadeck diz que é muito difícil encontrar uma instituição que, em tão pouco tempo, tenha se transformado tanto. É a quebra de padrões. De paradigmas. Quem possibilitou? A constituição de 1988 e a Emenda Constitucional nº45 que determinou a Reforma do Judiciário. Com relação ao acesso à Justiça: estímulo a conciliação: Juizados da Violência Doméstica e Familiar. Nestes, as Câmaras, inclusive no 2º grau (TJ); projeto para criação de mais Câmaras e, também de núcleos temáticos; mutirões de cidadania quase que de dois em dois meses - gestão no judiciário (MBA); padronização de rotinas - ferramentas de informática – sistema Hermes -; Juizados Virtuais – diário com circulação eletrônica. Bloqueio de contas – penhora online; certificação digital – certidões online - internet no pleno online – votos/câmaras – a tecnologia tem sido vitaminada: tem de se intensificar celeridade x eficiência – capacitar os magistrados e servidores (este no programa desenvolver) – intensificação de programas/projetos que visam aproximar o judiciário à população, não só nas praças públicas (Justiça na Praça) mas, na rede educacional do Estado (Justiça e Escola), na COPEGAM (Comissão de Sustentabilidade), onde mais de um milhão de pessoas já viram Juízes, Desembargadores, Servidores, serviços do Tribunal nas praças públicas, juntamente com inúmeros parceiros, numa população do Estado de quase três milhões e duzentos habitantes. É um diálogo constante com a sociedade possibilitando a transparência tão desejada. Nestas políticas, pergunto: a informática permite a petição virtual. Inovação: por que não despachos e sentenças virtuais? Por que não acórdãos virtuais? Por que não reduzir o suporte do papel tanto com relação a economia de recursos naturais, quanto para poupar a justiça do armazenamento dos processos? Por que não motivar o corpo de servidores com práticas que permitam atingir altos índices de produtividade? Ele precisa ter consciência de não ser um burocrata. Precisa saber que a sua atividade é relevante: fazer Justiça. Enfim a Justiça está dando os primeiros passos; mas é preciso que as políticas avancem cada vez mais na busca da universalização e democratização do acesso à Justiça, através, indiscutivelmente, dos meios alternativos de resolução dos conflitos para se chegar a uma pacificação social desejada por todos. www.amarn.com.br Ritos 23 // artes Miguel Ordoqui Por Paulo Sérgio da Silva Lima Conheci o artista Miguel Ordoqui em Miami, através de amigos em comum. Tivemos em seu apartamento, em South Beach, para tomarmos um café e conversarmos sobre o seu trabalho e projetos. Impressionou-me bastante a riqueza e o colorido de seus trabalhos artísticos, nitidamente latinos, tropicais, com forte influência cubana e brasileira, realçando neles a raça negra. O seu apartamento está mais para ateliê do que para um lar, no sentido convencional do termo. Isso se deve ao fato de morar sozinho, dedicando-se exclusivamente ao seu trabalho, para o qual despende de 5 a 8 horas diariamente. Pinta o realismo-mágico e o expressionismo-realismo em acrílico e óleo sobre tela, geralmente abordando temas satíricos, irreverentes e 24 Ritos www.amarn.com.br www.amarn.com.br Ritos 25 eróticos. Sempre enfatiza os rostos humanos, porque, segundo ele, “o rosto, e mais especificamente os olhos, é a parte mais importante do ser humano”. Exerce a arte da pintura desde quando morava em Cuba, de onde escapou para se refugiar Nos Estados Unidos, nos idos de 1980, em razão de dissidência ao Governo de Fidel Castro. Sua exposição percorreu diversas cidades importantes do mundo, a exemplo de Nova Iorque, Washington, Miami, Roma, Paris, Madri, Montreal, etc. Aqui no Brasil, quando esteve na primeira vez, expôs na Casa Benin, em Salvador, Bahia, obtendo reconhecimento pela Fundação Gregório de Matos. Apaixonou-se pelo Brasil baiano, passando a pintar a mulher brasileira, notadamente as mulatas. Desde então, Miguel se autointitula baiano. No ano de 2005, ganhou o prêmio “Lorenzo, El Magnífico”, em Florença, na Bienal Internacional de Arte Contemporânea. Sumariando o perfil de Miguel Ordoqui, o jornalista mexicano, radicado em Porto Rico, Mario Alegre Barrios, sentencia: “O manejo da sátira, em ocasiões explicitamente ridículas e ostentosas, em outras latentes e sutis, constitui a pedra angular na estrutura da obra de Miguel Ordoqui”. Miguel Ordoqui planeja em breve uma nova exposição no Brasil, o que será uma oportunidade de revisitá-lo - os que já o conhecem - e de o conhecerem, os que ainda não tiveram o prazer de apreciar suas obras. 26 Ritos www.amarn.com.br www.amarn.com.br Ritos 27 // Redes Sociais 28 Ritos www.amarn.com.br Ligados e desligados Os magistrados e as redes sociais www.amarn.com.br Ritos 29 Juiz de Direito Raimundo Carlyle 30 Ritos Um jovem dependente químico, natural do Rio de Janeiro e morando nas ruas de Natal, está diante de um juiz, numa audiência para decidir sobre a progressão de regime de pena. A cena aconteceu em Natal na Vara de Execuções Penais após relatar ao magistrado não ter familiares no Brasil e que a mãe morava na Suíça, durante a audiência com o uso da rede social Orkut foi possível localizar a mulher, que coincidentemente estava conectada naquele momento. Mas, o desenrolar da comunicação terminou de forma triste para todos os envolvidos na audiência. Após muitas discussões e mensagens trocadas, a mãe resolveu abandonar o filho sozinho e distante na capital potiguar. Esse caso aconteceu com o juiz Fábio Ataíde e é um dos exemplos de como as redes sociais, desde o início com o Orkut e principalmente hoje com o Facebook, Twitter e Instagram, estão incorporadas na vida das pessoas. Dados não oficiais apontam para um universo em torno de 70 milhões de pessoas usuárias de algum tipo de rede social e as comunicações estão cada vez mais descentralizadas e diretas. Nas relações pessoais é possível articular, inclusive, uma aproximação com outras pessoas distantes em outras cidades, estados ou países. No campo profissional, as redes são vistas pelos especialistas em mídias sociais, como uma oportunidade de se fazer networking e publicidade com um custo de produção de conteúdo próximo de zero e potencial de visibilidade proporcional a atratividade do assunto. E as novidades tendem a acompanhar a velocidade do número de usuários que aumenta em todo o mundo. “No começo, as ferramentas de redes sociais eram prioritariamente baseadas em textos, de uns anos para cá temos visto o crescimento dos serviços de fotos e imagens como o Instagram e Pinterest e mais recentemente serviços de vídeo como Vine e o próprio Instagram. A tendência, além da democratização dos formatos de mídia, é a transição para plataformas móveis, cada vez mais o notebook ocupará o lugar do desktop e dispositivos como smartphones e tablets serão utilizados no acesso às redes sociais”, afirma o professor e consultor de mídias sociais pela FGV em São Paulo Edney Souza. Jornalistas, profissionais liberais, professores universitários, policiais, estudantes e profissionais do Direito estão cada vez mais conectados e as interações dependem do perfil de cada um e da rede social. Como o www.amarn.com.br universo de informações é muito grande e dinâmico, a maioria dos usuários de redes sociais tendem a seguir perfis mais relacionados às suas áreas de interesse. O filtro de pessoas, instituições e assuntos ajudam a organizar melhor a composição das redes para usá-las a seu favor. “Interajo com perfis diversos nas redes sociais. Isso amplia o leque de opiniões e aprendizados, porque é um espaço democrático de exercício da cidadania”, disse o juiz Raimundo Carlyle. A juíza Manuela Alexandria, usuária do Twitter, Facebook e Instagram, começou a usar as redes sociais mais como entretenimento. Depois, descobriu as várias possibilidades de se manter informada e conectada com os assuntos atuais. Ela segue perfis de jornais e revistas nacionais e locais e acha importante ainda a interação com pessoas de outras áreas. “É interessante perceber como as pessoas que não são da nossa área jurídica( e até mesmo aquelas que o são; mas não são magistrados) têm pensamentos por vezes equivocados sobre a nossa carreira. O Twitter proporciona a oportunidade de levarmos nossa realidade a essas pessoas”, afirma. Para o juiz Fábio Ataíde, a sua profissão se beneficiou e muito com as redes sociais. “Não dá para fazer Direito sem o caráter multidisciplinar e por isso as redes sociais servem para unir pessoas que se interessam pelo mesmo tema, mas que nunca poderiam se encontrar fisicamente”. Big Brother Um dos grandes questionamentos de usuários e estudiosos de comportamentos nas redes sociais é com relação à exposição pessoal e até profissional. Aqui vale a velha regra do bom senso. Nem tudo da sua vida pode ser compartilhado, revelado, informado, porque as consequências quase sempre são negativas. “Não www.amarn.com.br As pessoas não estavam acostumadas a acompanhar autoridades nas redes sociais, mas agora, se sentem até confortáveis ao perceber que um juiz bebe, viaja e passeia com os filhos. Esses compartilhamentos de conteúdo pessoal ajudam, inclusive, a humanizar o profissional e melhorar a imagem dele para a sociedade Edney Souza, consultor Ritos 31 falo nunca com assuntos aleatórios com pessoas desconhecidas. Não uso Chats ou qualquer sistema de comunicação instantâneo e nem apresentou detalhes sobre minha atividade profissional claramente e tampouco apresento minha imagem ou de meus familiares”, disse o juiz Fábio Ataíde. Segundo o professor de mídias sociais Edney Souza, quando um usuário se identifica colocando a profissão não há como dissuadir do lado pessoal. “No caso de um juiz de Direito, as pessoas esperam um senso ético e de justiça ainda mais apurado. Não há problema em um juiz postar uma foto tomando cerveja com os amigos, por exemplo, mas se ele acrescentar algo do tipo “hoje deixei o carro em casa”, com certeza, evitará comentários maldosos e desnecessários”, conclui. Por outro lado, a comunicação e interação nas redes sociais possibilitam construção ou desconstrução de mitos. A maneira de escrever; não só na escrita correta, mas também na educação com as palavras; os comentários sobre diversos assuntos; comportamentos e atitudes revelam muito do verdadeiro perfil da pessoa. “As pessoas não estavam acostumadas a acompanhar autoridades nas redes sociais, mas agora, se sentem até confortáveis ao perceber que um juiz bebe, viaja e passeia com os filhos. Esses compartilhamentos de conteúdo pessoal ajudam, inclusive, a humanizar o profissional e melhorar a imagem dele para a sociedade”, afirma o consultor Edney Souza. Bate-boca Um outro problema, talvez tão sério quanto a exposição excessiva, é com relação as discussões travadas em plena rede social. Pessoas de diferentes áreas muitas vezes discutem sobre política, futebol, saúde, justiça, direitos humanos e, como não há nunca uma unanimidade, terminam por protagonizarem cenas lastimáveis com palavras agressivas e chulas. “Os juízes devem manter uma conduta irrepreensível na vida pública e privada. As redes sociais nos expõem muito e às vezes podemos exagerar nos posts ou curtidas, especialmente sobre temas que podem acabar sob nosso crivo de julgado. Exemplo: corrupção”, analisa o juiz Raimundo Carlyle. 32 Ritos Algumas pessoas levam muito a sério as discussões e, não raro, agridem os seus interlocutores. Acredito que são pessoas que não admitem ser questionadas em suas verdades absolutas Juíza Manuela Alexandria www.amarn.com.br A prudência e bom senso são ainda os melhores aliados para quem pretende evitar se envolver em questões delicadas seja no Twitter ou Facebook. Mas, caso seja inevitável um envolvimento em uma discussão o consultor da FGV faz o alerta: “Recomendo responder com fatos e caso isso não encerre a discussão, deixe o interlocutor falando sozinho. Não se deve nunca perder a calma, agredir, utilizar termos de baixo de calão, caluniar, ameaçar ou se aproveitar de uma posição privilegiada para intimidar, isso pode colocar a opinião pública contra o juiz. Já deixar uma conversa pendente não costuma causar tantos danos. Se a discussão gira em torno de um erro ou deslize cometido por um dos interlocutores em geral se desculpar publicamente não só encerra o assunto como traz a opinião pública para o lado de quem pediu desculpas”, conclui. Já a juíza Manuela Alexandria faz uma ressalva sobre as discussões desnecessárias. “Algumas pessoas levam muito a sério as discussões e, não raro, agridem os seus interlocutores. Acredito que são pessoas que não admitem ser questionadas em suas verdades absolutas. Minhas postagens oscilam entre assuntos sérios e brincadeiras/diversão. Acho que isso torna a convivência nas redes sociais mais leve e amena. Como diz o ditado: ‘cada um só pode dar o que tem’”. Por outro lado, apesar dessa revolução nas relações humanas a partir das mídias sociais, alguns chamados internautas se tornam dependentes das redes e não conseguem passar muito tempo desconectados; existem também aquelas pessoas vivendo bem longe da chamada conectividade. O juiz Jessé Alexandria já teve um perfil no Facebook há 3 anos, onde usava para trocar ideias sobre temas do seu interesse como Direito, cinema e artes. Mas, hoje, não faz parte de nenhuma rede e garante viver muito bem assim. “Saí do Facebook, porque não www.amarn.com.br havia nível nas discussões e eu usava a rede social para debater ideias. Hoje, não sinto necessidade de me conectar e não tenho nenhum receio sobre isso. Acho, até, que tenho mais privacidade não me conectando”, afirma. Apesar das resistências, não tem como se manter longe da internet e, portanto, de alguma forma existe uma certa conectividade mesmo que restrita. A verdade é que as redes sociais pelo seu poder de alcance mudaram as relações humanas e profissionais e saber usufruir o melhor delas é o grande desafio de todos nós. O famoso professor de Comunicação Social da UFRJ, Muniz Sodré, mestre em sociologia da informação e comunicação pela Universidade de Paris, disse a célebre frase, “antes da midiatização da sociedade só Deus tinha o poder imediato, global e instantâneo” ao se referir ao fenômeno da midiatização. A sociedade contemporânea, com o natural avanço dos aparatos tecnológicos, nos leva a esse fenômeno e , segundo o professor, não há nada de assombroso nisso. “Os indivíduos tendem a se relacionar à distância, compondo o que já se chamou de ‘telerrealidade’ social. A interação passa a depender dos dispositivos de mídia, portanto, é visceralmente atravessada pelo fenômeno da midiatização”, conclui. Pessoas antenadas, como o juiz Fábio Ataíde, que criou o blog “U Inverso do Direito”, há 5 anos, com conteúdos voltados à criminologia e cinema, acompanhar as novas tecnologias e fazer parte desse universo globalizado são uma questão de escolha de vida. “Uso as redes sociais como ferramentas para obter conhecimento e interagir com pessoas. Atualmente, espero surgir uma ideia de um outro projeto para encerrar o blog e começar tudo novamente. As redes são um bom ponto de partida para lugar nenhum. É a escrita sem destino ou com todos eles....” Ritos 33 // ARTIGO O choro: algumas notas Cícero Martins de Macedo Filho Cícero Martins de Macedo Filho Juiz de Direito da 4ª Vara da Fazenda de Natal/RN. Mestre em Direito Constitucional (UFRN). Mestre em Direito Constitucional (Universidade do País Basco-Espanha). Doutorando em Direito Constitucional (Universidade do País Basco-Espanha). Músico amador. Estudante do Curso de História (UFRN). Presidente da Academia Macaibense de Letras Certamente você já cantarolou os versos “Meu coração, não sei por que, bate feliz quando te vê.” Já ouviu, com certeza, “Brasileirinho”, “Tico-tico no fubá” ou já viu um grupo de músicos reunidos em um bar ou numa festa tocando violão, cavaquinho, bandolim, flauta, saxofone, pandeiro. Se você já cantarolou ou ouviu esses sons, sabe certamente o nome deles: choro. Mas de onde ele veio e o que ele significa para a nossa música popular? Este artigo não tem a pretensão de escrever uma história do choro, o mais melodicamente instigante dos nossos gêneros musicais. Até porque a história do choro é secular (mais de 150 anos), sociologicamente rica e até mesmo controversa, e se confunde com a própria história da música popular brasileira, o que exigiria um texto bem mais aprofundado e longo. Pretendemos, por isso, deixar aqui apenas algumas notas sobre esse gênero musical genuinamente brasileiro e que nunca deixou de atrair as atenções de músicos e pesquisadores. De todos os gêneros musicais brasileiros, não existe um mais fascinante do que o choro. É um gênero musical que requer habilidade para o solo, harmonia e improvisação. Esses requisitos, sempre presentes no balanço do choro, torna o gênero uma rica escola para o músico popular. Não sem razão o nosso grande maestro Heitor Vila-Lobos afirmou que o choro é a “alma musical do povo brasileiro”.1 Em um livro 1 Apud DINIZ, André. Almanaque do choro: a história do chorinho, o que ouvir, o que ler, onde curtir. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003. 34 Ritos www.amarn.com.br escrito em 1936, que se tornou referência para a história do choro, por relatar as atividades dos chorões entre as últimas décadas do século XIX e as primeira décadas do século XX, o carioca Alexandre Gonçalves Pinto, mais conhecido pelo apelido de Animal, carteiro e chorão, frequentador das rodas de choro, já dava idéia do que o gênero representava no cenário musical do Rio de Janeiro de então, considerado o berço do choro: “Choro, quem não conhece esse nome? Só mesmo quem nunca deu naqueles tempos uma festa em casa.” 2 Para Luís da Câmara Cascudo, nosso folclorista maior, o choro vinha de xolo, um baile que os escravos faziam nas fazendas, e a palavra foi gradativamente mudando para xoro e, finalmente ganhado a grafia que tem hoje, choro.3 Já para José Ra- mos Tinhorão, a designação choro teria vindo da impressão de melancolia gerada pelo modo de tocar o violão, nas baixarias, e que o termo chorão, muito comum entre os músicos adeptos do gênero, seria uma decorrência dessa forma de tocar.4 Segundo Ary Vasconcelos5, o choro nasceu por volta de 1870, a partir de adaptações de gêneros dançantes europeus em moda na época, como as valsas, polcas, schottisch, mazurcas, que eram executados num jeito brasileiro de tocar dos conjuntos de então, à base de violões e cavaquinhos. Henrique Cazes, grande músico e pesquisador do gênero, afirma que o termo choro se fixou e passou a ser amplamente usado em razão do fato de traduzir com precisão a maneira exacerbadamente sentimental com que os múdo choro carioca. 2 PINTO, Alexandre Gonçalves. O choro: reminiscência dos chorões antigos. Rio de Janeiro: Funarte, 1978. Este livro é a mais importante fonte do choro entre os anos de 1870-1936, e é uma obra rara, pois todas as edições estão esgotadas. Em pesquisa em sebos na internet, é possível encontrar algum exemplar, para quem estiver disposto a gastar uma pequena fortuna. 4 TINHORÃO, José Ramos. Música popular: uma tema em debate. São Paulo: Editora 34, 1998, onde o autor trata especificamente sobre o surgimento do choro carioca. Para um estudo sociológico mais completo sobre o surgimento do choro e da música popular no Brasil, é imprescindível a leitura de História da música popular brasileira. São Paulo: Editora 34, 1998, do mesmo autor. 3 Apud CAZES, Henrique. Choro: do quintal ao Municipal. São Paulo: Editora 34, 1998. Neste livro, o excepcional músico carioca, que me concedeu a alegria da sua amizade e o prazer de desfrutar de rodas de choro, faz um relato da sua experiência no fascinante universo 5 VASCONCELOS, Ary. Brasil musical. Rio de Janeiro: Editora Art Bureau, 1988. O mesmo autor oferece uma visão mais abrangente da história do choro na obra Carinhoso e etc.: história e inventário do choro. Rio de Janeiro, produção independente, 1984. www.amarn.com.br Ritos 35 sicos populares da época abrasileiravam as danças européias.6 E foi assim que o choro foi se impondo como gênero musical, terminando por se constituir no mais genuíno e apaixonante dos nossos ritmos, a ganhou destaque a partir das primeiras décadas do século XX com a colaboração de músicos virtuosos, das quais a mais brilhante foi, sem dúvida, do magistral compositor e instrumentista Alfredo da Rocha Viana Filho, um gênio conhecido como Pixinguinha (RJ, 1897-1973), maior compositor de choros de todos os tempos e que inspirou sucessivas gerações até os dias atuais.7 Nomes como do flautista Joaquim Antônio da Silva Callado Júnior, famoso pela autoria de Flor Amorosa8 e considerado o “pai dos chorões”, Ernesto Nazareth, Chiquinha Gonzaga, Anacleto de Medeiros, João Pernambuco, Zequinha de Abreu, Luís Americano, Bonfiglio de Oliveira, Luperce Miranda, Garoto, Jacob do Bandolim, Waldyr Azevedo, Severino Araújo e o potiguar K-Ximbinho, Abel Ferreira, Copinha, Déo Rian, Altamiro Carrilho, Zé da Velha, Paulo Moura, Radamés Gnattali, Conjunto Época de Ouro, Joel Nascimento e, mais recentemente, Paulinho da Viola, Rafael Rabelo, Hamilton de Holanda, Henrique Cazes, Yamandú Costa, dentre muitos outros, contribuíram decisivamente para a fixação das características desse autêntico gênero musical brasileiro9, principalmente quanto ao seu fraseado melódico. Nosso mais famoso maestro e compositor erudito, Heitor Villa-Lobos, teve o choro como a principal inspiração para a sua obra. Já compositores mais modernos, como o genial Tom Jobim, Hermeto Pascoal, Sivuca, Paulinho da Viola, Guinga, e grupos como o Nó em Pingo D’água, Camerata Carioca, Galo Preto, e cantoras como a potiguar Ademilde Fonseca (a rainha do chorinho), e letristas como Hermínio Bello de Carvalho10 6 CAZES, Henrique. Op. cit., p. 19. 7 Especialmente sobre Pixinguinha, são obras de referências: CABRAL, Sérgio. Pixinguinha: vida e obra. Rio de Janeiro: Lumiar Editora,, 1997. BARBOSA DA SILVA, Marília T; OLIVEIRA FILHO, Arthur L. de. Filho de Ogum Bexiguento. Rio de Janeiro: Griphus, 1988. 8 Informações colhidas em DINIZ, André. Joaquim Callado, o pai dos chorões. Rio de Janeiro: Banco do Brasil/Arte-Fato, 2002. 9 Para mais informações sobre os grandes nomes do choro, referências bibliográficas e discografias, é indispensável a consulta à Enciclopédia da música brasileira – popular, erudita, folclórica. São Paulo: Art Editora/Publifolha, 1998. 10 Ver Cartas cariocas. Rio de Janeiro: Edições Folhas Secas, 2000. Neste e em outros livros, o poeta e letrista Hermínio Bello de 36 Ritos e Vinicius de Moraes (autores de várias letras para choros famosos) contribuíram para criação de uma nova roupagem do choro, misturando harmonias antigas com contemporâneas, fazendo com que o gênero, que é música instrumental por excelência, fosse mais difundido e conhecido no País e no mundo, notadamente a partir do Rio de Janeiro, sua principal fonte e onde os nossos músicos bebem a inspiração. Assim como outros gêneros musicais, o choro tem códigos próprios, que geraram um vocabulário típico, melodicamente rico. A partir do fraseado dos gêneros dançantes europeus que deram origem ao choro, modificações melódicas foram surgindo à medida que as danças eram difundidas nos salões e bares, se adaptando aos novos gingados nascidos da criatividade de nossos músicos. Ou seja, o choro inicialmente foi uma maneira de tocar. Depois, notadamente a partir da primeira década do século XX, passou a ser uma forma musical definida, com identidade própria. Ao se fixar definitivamente como gênero musical, o choro tinha normalmente três partes. Mais modernamente, passou a ter duas partes, embora aquela primeira opção não tenha desaparecido por completo. Mas a antiga forma rondó, em que sempre se retorna à primeira parte, vem sendo flexibilizada com o passar dos anos. Outro dado que se constata ao ouvir ou tocar o choro é que ele é necessariamente modulante, sendo fácil perceber, nos dias de hoje, que ele voltou a ser uma maneira de frasear, perceptível em vários tipos de músicas brasileiras. Por fim, é fascinante ouvir ou tocar choro. E o que mais impressiona aos que a ele se dedicam é o fato de que uma forma de música popular, nascida no seio das camadas mais pobres do Rio de Janeiro, é ao mesmo tempo sofisticada, comunicativa e resistente no tempo. Nos dias atuais, o choro continua mais vivo do que nunca, e renova-se a cada dia, e mesmo que não esteja presente na grande mídia, vem atraindo as novas gerações. Multiplicam-se, aqui mesmo em Natal/RN, escolas de músicas que se dedicam ao ensino do choro, bares temáticos voltados para o choro, e vários músicos locais estão gravando excelentes discos de choro. Nos meios acadêmicos, proliferam trabalhos (dissertações e teses) que abordam a música popular brasileira, com en- Carvalho, que colocou letras em inúmeros choros famosos, faz uma deliciosa viagem pela história da música popular e, particularmente, pela vida e obra de alguns chorões, em excelente narrativa, feita por quem domina completamente o tema. www.amarn.com.br foque no choro. Alguns programas de rádio se dedicam especialmente ao choro, como faz a Universitária FM (88,9 Mhz), da UFRN, no programa Chorinhos e canções, a Rádio MEC, no programa Roda de choro (na AM, dial 800, ou FM, 98,9 Mhz), Rádio Boa Nova, em São Paulo (AM 1450). Também foram feitos filmes e documentários, e existem vários sites na internet, com troca de informações, partituras, indicações de livros, Cds, locais de encontro de chorões, etc.. Não poderia terminar este artigo sem fazer uma confissão: sou um apaixonado pelo choro. E fico feliz por constatar que hoje o choro está sendo tocado ao redor do mundo, por músicos americanos, alemães, latinos-americanos, japoneses, coreanos, o que mostra o quanto esse gênero, genuinamente brasileiro, nasceu para encantar a alma e coração dos homens. www.amarn.com.br Ritos 37 // crônica O juiz errou de doido Jessé de Andrade Alexandria O calor naquela comarca sertaneja não dispensava o ventilador na sala de audiências, mesmo com a companhia sonora de um velho ar-condicionado, que tocava um baião a quatro tons. Quatro da tarde não era hora pra audiência – pensou o juiz, mais incomodado com o calor que com a quantidade de interrogatórios marcados para a jornada. - Podemos começar a próxima, doutor? – indagou o velho escrivão, mais calejado que os pés do doceiro, que levava, toda tardinha, umas brevidades sertanejas para o magistrado. - Vamos em frente! – disse o juiz. Feito o pregão, entra na sala de audiência uma jovem morena, atarracada e robusta, puxando pela mão um homem magro, branco, de seus quarenta e tantos anos, encurvado, boca murcha e olhos fundos. A jovem, resoluta, põe o homem frente a frente com o juiz. Ao folhear rapidamente o processo, com a pressa que caracteriza o repetido labor, o magistrado começa logo a interrogá-lo: - Nome completo? – João da Silva. - Idade? – Trinta e sete. - Tem profissão? – Sim, sinhô: agricultor e, na seca, predero. - Casado? – Desde os vinte. Juiz de Direito 38 Ritos www.amarn.com.br E eu brinco? - Tem filhos? – Só seis. O magistrado, diante de tão equilibradas respostas, desconfiado de que seria mais um espertalhão, querendo aposentar-se mais cedo à custa da “viúva”, começou a irritar-se e perguntou, com ar muito sisudo: - O senhor tem algum problema de saúde, é nervoso, toma remédio controlado, já esteve internado no São Camilo? Daí, percebendo o equívoco do juiz, o sujeito, com a cara de surpresa e espanto, responde, apontando para a jovem que o trouxera à sala: - Dotô, a doida é ela! O promotor público, que até então malograva no mesmo equívoco, quis safar-se e, com um risinho cínico, troçou: - Vossa Excelência errou de doido. Mas a mulher, com a argúcia que só os idiotas têm, dispara, rindo nervosamente e apontando para o promotor: - Dotô, o doido é ele! O doido é ele! www.amarn.com.br Depois de dois anos naquela comarca longínqua, sem ter computador no gabinete, o magistrado acaba de receber um novinho em folha, tela reluzente, corpo mais negro do que a asa da graúna e do que o cabelo de um certo senhor um pouco entrado nos anos. Entra na sala a copeira e diz, surpresa: - Doutor, computador novo, hein? O magistrado, então, se lembra de um soldado das antigas, lá da Salinésia. A notícia de que havia subido de patente, o sujeito "foi a cabo", encheu a cidade. Todos o cumprimentavam pelo feito, apesar de saberem - e com certa malícia - que, durante mais de vinte anos, permanecera soldado. Um gaiato na rua, deparando com o "velha guarda", atira-lhe o chiste só para ver a reação: - Aí, Gasosa, fosse a cabo, hein? Mas o militar, garboso, se vangloria: - E eu brinco!? Pois é, minha cara - pensa o magistrado, após a indagação da copeira -, e eu brinco? Ritos 39 // ARTIGO Tasso Pinheiro O mídia training e o uso eficaz do direito à informação jornalística1 Erika Zuza (Jornalista e Professora de Comunicação Social da UFRN) Humberto Martins (Estudante de Direito da UnP) José Albenes Jr (Professor de Direito UnP) Erika Zuza Jornalista e Professora de Comunicação Social da UFRN Considera-se informação jornalística todo fato que é noticiado pelos meios de comunicação de massa (jornal impresso, revista, rádio, TV e internet) e que se configura como notícia. Através do artigo 220 da Constituição Federal (1988) são apresentados os dispositivos referentes à comunicação social e a informação jornalística, que configuram, segundo Nunes Júnior, uma estrutura complexa, na qual se encontram, de um lado, a notícia, e de outro, a crítica. Crítica jornalística aqui entendida não somente no sentido negativo, mas sim enquanto “juízo de valor que, impregnado à notícia ou recaindo separadamente sobre ela, formaliza um conceito, positivo ou negativo, acerca de um fato ou opinião”. NUNES JÚNIOR (2011, p. 91) A liberdade de informação jornalística não é um assunto recente. É tema discutido desde o século XIX. Em 1880, Thomas Cooley já preconizava nos Estados Unidos, a ideia de que a imprensa funcionava como um meio de comodidade pública que registra os acontecimentos do dia, para apresentá-los aos leitores. Já no século XX, em 1948, o artigo 19 da Declaração Universal dos Direitos Humanos, prescreve: “Todo 1 Fragmento editado do artigo apresentado no 9º Encontro Nacional de História da Mídia, Ouro Preto/MG – 2013. 40 Ritos www.amarn.com.br ser humano tem direito à liberdade de opinião e expressão; este direito inclui a liberdade de, sem interferências, ter opiniões e de procurar, receber e transmitir informações e ideias por quaisquer meios e independentemente de fronteiras”. Na contemporaneidade, Nunes Júnior (2011, p. 51) afirma que o desenvolvimento tecnológico, com o surgimento e consolidação dos sistemas de radiodifusão (notadamente o rádio e a TV), assim como a informática e o surgimento da internet, passaram a oferecer “meios de difusão mais sofisticados, fazendo com que a antiga liberdade de imprensa assumisse também uma nova e mais moderna forma: a liberdade de informação jornalística”. Para uma reflexão eficaz sobre o conteúdo do direito à informação jornalística, é importante observar o que estabelece a Constituição Federal do Brasil (1988) sobre a comunicação social, sobretudo o que afirma no artigo 220: Art. 220. A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição. § 1.º Nenhuma lei conterá dispositivo que possa constituir embaraço à plena liberdade de informação jornalística em qualquer veículo de comunicação social, observado o disposto no art.5.º, IV, V, X, XIII e XIV. (Constituição Federal) Neste contexto, também se faz relevante observarmos o artigo 5º e seus respectivos incisos citados no parágrafo primeiro do artigo 220: Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (...) IV - é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato; V - é assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à imagem; (...) X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação; (...) XIII - é livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer; XIV - é assegurado a todos o acesso à informação e resguardado o sigilo da fonte, quando necessário ao exercício profissional; Assim é possível enfatizar o fato de que juridicamente qualquer pessoa, seja profissional do jornalismo ou não, tem a liberdade de expressão do pensamento, das opiniões e o direito de informar conteúdos através dos meios de comunicação, sendo essa pessoa ligada direta ou indiretamente a esses veículos. O direito à informação jornalística no Brasil, segundo interpretação da Constituição Federal, é um direito fundamental de todos os indivíduos. Neste sentido, cabe aqui diferenciar os direitos de informação e o de comunicação: a.Direito de informação: O direito de informação contempla três variáveis: o direito de informar, o direito de se informar e o direito de ser informado. O direito de informar consiste basicamente na faculdade de veicular informações, ou, assumindo outra face, no direito a meios www.amarn.com.br Ritos 41 para transmitir informações, como o direito a um horário no rádio ou na televisão. O direito de se informar consiste na faculdade de o indivíduo buscar as informações desejadas sem qualquer espécie de impedimento ou obstrução. Por fim, o direito de ser informado remete à faculdade de ser mantido integral e corretamente informado. (NUNES JUNIOR, 2011, p. 44) b.Direito de comunicação: “é o conjunto das normas gerais que regulam a existência e a atuação dos meios de comunicação.” COSTELLA (apud NUNES JUNIOR, 2011, p. 43) Neste sentido, o direito de comunicação respeita a preservação da opinião, da expressão e da informação, através dos meios de comunicação. Por outro lado, “se refere à integração jurídica da existência e do funcionamento desses meios de comunicação”. Através da capacitação de fontes de notícias e porta-vozes, o mídia training, (serviço jornalístico de assessoria de comunicação) gera bases sólidas para o entendimento acerca das capacidades de cada pessoa em colocar em prática os direitos à informação jornalística, 42 Ritos www.amarn.com.br concedendo entrevistas e aproveitando da melhor maneira as linguagens específicas e as potencialidades de cada veículo de comunicação, bem como conduzindo a conversa, controlando a tensão e sendo coerente na transmissão das mensagens chaves que são planejadas antes do momento da entrevista com o apoio do assessor de imprensa. O mídia training aborda o aperfeiçoamento da postura e voz, reforça a importância do planejamento de conteúdos nos momentos que antecedem a entrevista jornalística e capacita o profissional para lidar com desenvoltura com todos os obstáculos que podem surgir durante o contato com os jornalistas. Falar com a imprensa requer planejamento, pois o entrevistado tem a responsabilidade de divulgar informações para a sociedade, e deve ter firmeza e equilíbrio para se posicionar e declarar as mensagens que sejam de interesse público, mas que também estejam alinhadas com sua função profissional ou com os interesses da empresa/ organização representada. No jornalismo situações imprevistas são comuns em entrevistas, por isso quem vivencia o treinamento de mídia, recebe orientações para ter a consciência e a capacidade de encarar os obstáculos e transformá-los em oportunidades, para reforçar opiniões, decisões ou defender posições da empresa/organização em situações de crises. “A comunicação na crise deve ser ágil, direcionada a diminuir as incertezas, atenuar as expectativas, criar padrões de entendimento e cordialidade, a fim de que a empresa possa passar pela crise sem grandes impactos.” CHINEM (2006, p. 47) “Estima-se que 95 por cento de todo o noticiário jornalístico são relatos e comentários de fatos programados por instituições interessadas, ou revelações e falas controladas por fontes organizadas. Ou seja, é cada vez maior o número de pessoas que rompem a barreira do mutismo e se tornam fontes de notícias.” BARBEIRO (2011, p. 17) A sociedade da era digital está passando por um processo de transição e crescimento exponencial de uma linguagem híbrida jornalística, o que vem ampliando os desafios dos que são e dos que querem ser Fontes de notícias. Nesta era digital, marcada pela compartilhamento instantâneo de www.amarn.com.br dados, interatividade com os usuários e mídias sociais, uma pessoa convidada para uma entrevista em uma emissora de rádio, por exemplo, também deve estar preparada para o vídeo, isso porque a tecnologia permite - e muitas emissoras tem colocado isso em prática - que a entrevista transmitida a princípio ao vivo via rádio, também estará ao vivo via web tv ou será gravada em vídeo e transmitida posteriormente pela internet. O jornalismo é constituído por pessoas. As notícias só são notícias se estiverem construídas baseadas em depoimentos dos entrevistados, caso contrário, estaremos tratando de outro tipo de texto. Para escreve as histórias do nosso cotidiano, os profissionais da comunicação social utilizam diversas fontes: jornais, internet, livros, documentos, são fontes de informação, mas são as fontes humanas as ferramentas essenciais na construção das notícias numa sociedade democrática. É intenção deste paper, ressaltar a importância de conhecermos brevemente a história jurídica que nos permite ter acesso à informação jornalística, assim como sermos fontes de notícias. Neste contexto, o mídia training pode significar o instrumento mais eficaz para o melhor aproveitamento de um direito fundamental, pertencente a todos os cidadãos. Referências BARBEIRO, Heródoto. Mídia Training – como usar a mídia a seu favor. São Paulo: Saraiva, 2012. CHINEM, Rivaldo. Comunicação Empresarial – Teoria e o dia a dia das Assessorias de Comunicação. São Paulo: Horizonte, 2006. Constituição Federal – Vade Mecum com a colaboração de Luiz Roberto Curia, Livia Céspedes e Juliana Nicoletti. 15. ed. atual. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2013. NUNES JÚNIOR, Vidal Serrano. Direito e Jornalismo. São Paulo: Editora Verbatim, 2011. Ritos 43 // ARTIGO “Homem-Tartaruga” ou Elenir? Rosivaldo Toscano Juiz da Vara Criminal do Fórum Varela Barca. Hora do almoço. Liga-se a televisão. Jornal do Almoço.1 Na tela, a reportagem “Conheça o homem que carrega a própria casa nas ruas do Centro de Porto Alegre”. Uma elegante apresentadora fala o seguinte: - Muita gente acha que viver bem depende de espaço e conforto. Mas, no centro de Porto Alegre, chamou a atenção de nossa equipe um carrinho de papeleiro. Mas, olhando bem de perto, o “fulano de tal” (o repórter) descobriu não somente o carrinho de recolher resíduos para reciclagem. Mas uma casa. E dá pra dizer uma casa bem equipada! Em uma tomada externa, sem rodeios, o repórter apresenta o que etiquetou de “o homem-tartaruga”. Aparece, então, um sujeito maltrapilho e descamisado. Ao lado, uma pequena carroça de tração humana que tem uma cobertura improvisada de restos de madeira, alumínio e plástico. O entrevistado é catador de lixo reciclável. Sua voz é suave, mas suas palavras gritam seu analfabetismo. Como fundo musical da matéria, uma música do Kid Abelha, cujo refrão é “dizem que sou louco por eu ter um gosto assim: gostar de quem não gosta de mim... Jogue suas mãos para o céu; agradeça, se acaso, tiver, alguém que você gostaria que estivesse sempre com você; na rua; na chuva; na fazenda ou numa casinha de sapê...” A música traz à tona duas falsas ideias: de loucura ou de escolha de um modo de vida de ser 1 44 Ritos Jornal do Almoço é o noticiário local da RBS, afiliada da Rede Globo no Rio Grande do Sul. www.amarn.com.br rejeitado. De alguém que teve alternativas e, espontaneamente, resolveu viver o dia-a-dia nas ruas, acompanhado somente do frio do inverno e do calor do verão, da fome e das infelicidades de toda sorte. Um rápida legenda diz o nome do entrevistado. Mas em nenhum momento Elenir é chamado pelo próprio nome. É sempre o “homem-tartaruga”. O cameraman faz tomadas da pequena carroça puxada manualmente por Elenir. Mostram-se os sacos em que ele recolhe o lixo reciclável. Dentro da cobertura improvisada, um pequeno fogão em que, supostamente, cozinhava o almoço. Logo depois, eis o homem tomando o que parece um café e comendo uma bolacha, prostrado na entrada frontal da minúscula carroça. O repórter cai logo na histórica “falácia da criatividade” – que esconde a verdadeira causa do improviso: a falta de recursos financeiros para questões básicas ou urgentes. E assim, o elogio ao pedaço de retrovisor amarrado com arames, providenciado pelo “homem-tartaruga”, pois evitaria o risco de “batida” na “casa”. E após louvar outras improvisações oriundas da miséria, o repórter faz uma inacreditável pergunta: - Você consegue ter o conforto de uma casa aqui dentro? Elenir, até então invisível para a sociedade, abandonado à sua própria sorte, sem um lar, uma família, sem perspectivas, estava diante do instante de maior destaque de sua vida. Teria seu momento de notoriedade, que sequer duraria os 15 minutos de Andy Warhol. Apenas três www.amarn.com.br Ritos 45 minutos de fama. Ou infâmia. Diante de tantos elogios, Elenir mordeu a isca de uma resposta que já estava lançada na pergunta: - Sim. Elenir, que naquele instante era a celebridade, não poderia atrapalhar o roteiro, mesmo que fosse para esquecer que não tinha um lar, que carregava manualmente uma carroça de três metros quadrados, e um metro e meio de altura, que não tinha sequer um banheiro, uma latrina, um chuveiro, uma pia, um colchão, uma lâmpada. Um chão. Um endereço. Em nenhum momento, há uma pergunta óbvia: se Elenir gostaria de ter uma casa. Um lar com portas, janelas, uma cama, um banheiro, um vizinho. Um lugar em que ele não precisasse viver curvado nem pela altura do teto e nem pela humilhante vida de indigente nas ruas. Resignado com a sua condição, Elenir ainda se justifica da seguinte maneira: “pra não roubar, não assaltar, não fazer nada de mal, eu prefiro viver assim como estou vivendo.” Ainda dá tempo para um pequeno interrogatório do repórter. Afinal, estava-se diante do estereótipo: - É usuário de alguma droga? E após agradecer “pela lição de vida”, como se alguém quisesse ter aquele estilo de viver ou que este servisse de exemplo a ser seguido, o repórter termina em grand finale: - Dizer o quê, não é, gente? É o homem tartaruga... Criou-se uma insólita crônica multimídia da miséria. De como transformar a sonegação de direitos fundamentais em algo banal, até pitoresco ou burlesco. Uma tragédia distorcida em comédia. Um exemplo de que a fronteira entre informar e deformar, desvelar ou alienar, é pequena. Mas há um imenso abismo no meio. A reportagem escondeu o Elenir por trás da tartaruga. Coisificou-o. Afinal, não era um homem como igual. Era um homem animalizado. Meio homem, meio tartaruga: lenta, inferior, passiva, resignada, que carrega em si sua “casa” para se abrigar e se proteger de todos os perigos a que está exposta na vida das ruas. E como só mostrou a tartaruga, não conseguiu se colocar no lugar do outro. Aí, perceberia que não existe graça nenhuma. Não era a tartaruga. Era o homem na selva de pedra em que o animal dominante e supostamente racional é capaz de maltratar por egoísmo ou prazer seu próximo; que é capaz de consumir e comprar mais do que necessita, destruindo o planeta; e abandonar seu igual à própria sorte ou morte. O telejornal reproduziu uma violência simbólica, uma violência que se esconde no discurso, nas palavras. Ela “normaliza” as desigualdades e o sofrimento dos oprimidos. Violência que anestesia a realidade através de eufemismos. Os mesmos que transformam catador de lixo em “recolhedor de resíduos para reciclagem”; carroça em “casa”; necessidade e falta de recursos em criatividade; sem teto em “homem-tartaruga”. Trata-se de um exemplo de como a violência simbólica muitas vezes não é percebida nem mesmo pelos que a exercem. E em que as vítimas se transformam, não raras vezes, em cúmplices, reforçadores e naturalizadores de uma violência artificial, culturalmente construída contra elas. 46 Ritos www.amarn.com.br Mas a reportagem não teve a intenção de humilhar Elenir, destaco. Ela é fruto de uma cultura voltada para “o mercado” – na qual ter senso crítico, questionando suas contradições e perplexidades, não convém. Quem sabe se um dia o referido noticiário pudesse despertar desse sono alienante e fazer uma nova reportagem. Dessa vez, não sobre a história do “homem-tartaruga”, mas de Elenir, vítima do déficit habitacional do país; um exemplo de nossas desigualdades sociais; do analfabetismo; ou do egoísmo e da falta de educação dessa sociedade de consumo que, ao invés de recolher devidamente o seu lixo, descarta-o nas vias públicas. E nada de campanha para Elenir comprar uma casa, como vemos em certos programas por aí. Seria morder a isca de uma utopia: resolver pontualmente um problema conjuntural. E não utilizaria a comunicação social da maneira correta: como meio de informar e desenvolver a igualdade e a humanidade na vida social. Quando sofrimento vira entretenimento no Jornal do Almoço. Vou parar por aqui porque essa reportagem me deu um embrulho no estômago. www.amarn.com.br Ritos 47 // fotografia O Juiz Paulo Sérgio num passeio fotográfico pelo mundo 48 Ritos Juiz Paulo Sérgio da Silva Lima Entrada de um Chateau (Bordeaux - França) www.amarn.com.br Outono no Central Park (NY-EUA) Estalagmite em forma de seio (Gruta “Lapa Doce” - Chapada Diamantina - BA) Ilha de Lobos (Punta del Este- Uruguai) Menino sentado na soleira da porta (Óbidos - Portugal) Ninho de Atobá-depé-vermelho (Fernando de Noronha - PE) www.amarn.com.br Ritos 49 // ARTIGO A violência como gozo escópico. Civilização ou barbárie? Entro no Facebook. Vejo um amigo criticar, estarrecido, uma postagem oriunda de uma determinada comunidade e que foi compartilhada por um conhecido dele. Na postagem, uma fotografia em cores de um homem dominado, ao chão, pisoteado, algemado e com uma pistola em sua boca. Na mesma foto, os seguintes dizeres: “Ficou com pena dele? Acha isso um tratamento desumano? Sabe quais foram seus crimes? Leve pra casa e descubra.” Rosivaldo Toscano Juiz da Vara Criminal do Fórum Varela Barca. 50 Ritos Essa postagem teve muitos compartilhamentos. É a espetacularização do grotesco e o mórbido. Isso vende e rende. Seja a sensação de alívio por não estar ali no lugar da vítima, seja a sanha violenta de se estar ali no lugar do algoz. O primitivo se faz presente. Como caçador ou caça. O sangue. A pulsão de morte grita! Civilização ou barbárie? Há barbárie na civilização. Ou seria o contrário? Nossos ternos, vestidos, perfumes, joias, requintes, enfim, escondem esse predador perverso que se alastra como praga pelo planeta, submetendo, dizimando e destruindo tudo e todas as demais espécies (inclusive a própria) por onde passa, em nome de uma pretensiosa superioridade, justificando sua violência em um discurso contraditório de bem-querer e de luta pelo bem comum. Sendo mais claro: em nome de deus(es) e do amor. E não nos enganemos. O ser humano de hoje – que também goza com o consumismo, mata com armas, radiação e lixo tóxico. É o exterminador do futuro. www.amarn.com.br Na imagem, o algoz diz: “sou o portador do falo (da arma), do poder. Sou mais homem que você”. Melhor dizer isso do que, na verdade, reconhecer ser, tão somente, mais animalesco. Não falta quem bata palmas. Mas quem aplaude a barbárie o que é, senão, um igual bárbaro que goza ao ver seu desejo de sangue sendo gozado, nem que seja pelo gozo do outro? Há um voyeurismo mórbido aí. A foto é dramática, mas esse drama humano é ofuscado pela banalização da violência: “ficou com pena dele? Acha isso um tratamento desumano?”. Ao mesmo tempo, a violência e a morte viram algo íntimo, que amedronta e alivia, pois é a violência ou a morte do outro. No imaginário, a morte do outro fascina como fascina a manada de zebras que olha, aliviada, para aquela que foi feita presa dos leões. “Não fui eu, por enquanto, foi o outro”. Alívio fugaz e sensação de medo constante. A morte está à espreita. Para alguns mais fragilizados, o pânico. Para outros, o desejo de ser algoz. O desejo de linchar. De fazer (in)justiça pelas próprias mãos. Cerram-se os punhos, inconscientemente. Exterioriza-se. Tinha que sair. Se não dá para usar as próprias mãos, simbolize-se nas palavras gritadas na voz ou, se não der, no papel ou na tela do Facebook. “Curtir”. Toda pulsão tem, ao mesmo tempo, dizia Freud, pulsão de vida e pulsão de morte. São os olhos, nesse caso, como fonte de libido. Há o prazer em ver. É o gozo escópico. Mas como o gozo é fugaz (pois é a busca da coisa perdida), busca-se o novo. Há sempre uma nova imagem a ser gozada. O novo para o velho olhar mórbido. Há sempre um programa policial na TV ou no rádio à disposição. E na busca do gozo escópico, racionaliza-se: é notícia, é informação! Muitos desses programas são no horário do almoço. São comidos pelos olhos. A imagem acima mostra, claramente, uma cena de tortura praticada por agentes do Estado. Para quem pratica o ato, uma completa corrupção da função pública. A despeito de fazer cumprir a lei, viola-a. A pretexto de perseguir pretensos criminosos, pratica crime tão grave, em frontal violação à lei, em desrespeito ao sistema judicial e à Constituição (art. 5º: “III - ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante”). Enfim, é uma cena de covardia. Mas para isso servem os mecanismos de defesa - projeção, racionalização, negação, identificação... Freud explica. Portanto, há quem, mesmo assim, goze em fotos como essa, reforçando esse comportamento criminoso do pretenso agente da Lei. “Sabe quais foram seus crimes?”. Só sei de um: é tortura. “Leve pra casa e descubra”. A foto revela o flagrante de um crime. Mas o ódio cega. Por isso, há quem não o veja... Onde está a barbárie? Está na foto. E o bárbaro? Na foto ou no olhar? Em alguns casos, em ambos... E a civilização? www.amarn.com.br Ritos 51 // ARTIGO Tasso Pinheiro O princípio do juiz natural nos julgamentos em regime de mutirão 1- Introdução Fábio Antônio Correia Filgueira Juiz Auxiliar da Presidência do Tribunal de Justiça 52 Ritos O recente lançamento, pelo Tribunal de Justiça deste Estado, do mutirão destinado ao julgamento das ações de improbidade administrativa e das penais referentes a delitos contra a administração pública, tem gerado discussão no meio jurídico sobre a possível violação do princípio do juiz natural. É importante destacar que tal grito de descontentamento não surgiu com a realização anterior dos mutirões do Expresso Judiciário, ainda em andamento em várias Comarcas do interior, e do Carcerário, o qual, frise-se, teve o apoio institucional do CNJ, encerrado com o êxito de ter atualizado mais de seis mil processos de execução penal. No entanto, nesse silêncio obsequioso dos que clamam por uma Justiça célere, ouvem-se, agora, vozes contraditórias, algumas poucas, é verdade, quando se procura acelerar o processamento das demandas que envolvem interesses de agentes públicos e privados acusados de malversação. A reação afigura-se paradoxal, até mesmo injustificável, porque almeja que o Judiciário potiguar adote duas modalidades temporais às ações. Aquelas que tratam do cidadão comum, não relacionadas a danos ao erário, podem submeter-se, já que não haveria impedimento legal, à agilidade proporcionada pelo regime de mutirão, ao passo que as referentes à punição dos que maculam a boa gestão pública teriam de www.amarn.com.br aguardar “a tramitação normal pelo juiz natural”. É evidente, a proposta não é eticamente razoável, pois discrimina situações idênticas, promovendo, p. ex., a exclusão das ações que terão julgamento rápido, nem juridicamente aceitável, porquanto a medida formatada do mutirão ajusta-se à compreensão atual do instituto do juiz natural. Este último ponto é o que interessa à presente análise. De antemão, vale apresentar as razões que levaram o Judiciário do Estado a executar o regime de mutirão das ações de improbidade administrativa e das penais dos crimes contra a Administração. A primeira justificativa está na denominada Meta 18 do Conselho Nacional de Justiça – CNJ -, que ordena o julgamento destas demandas, ajuizadas até 31.12.2011, durante o ano de 2013. A segunda está no quadro deficitário de Juízes e servidores. Para se ter uma noção aproximada das dificuldades, das trinta Comarcas de entrância inicial, vinte e seis estão vagas. Das vinte e cinco Comarcas de segunda entrância, onze se encontram na mesma circunstância. Como se não bastasse, há Varas de Comarcas de terceira entrância, a exemplo de Pau dos Ferros, Macau e Ceará-mirim, sem juiz titular. Em relação aos servidores, são mil as vagas existentes. A terceira é o significativo acúmulo das demandas em tramitação na primeira instância, correspondente a 1.177 ações de improbidade administrativa e 173 penais de crimes contra a Administração. Ante essa problemática, geradora de acúmulo processual, tardando, indefinidamente, a prestação jurisdicional, a solução definitiva salta aos olhos: a realização do concurso público para juízes e servidores. O certame dos magistrados está em curso. Quanto ao dos servidores, questões financeiras e orçamentárias dificultam a sua realização, por enquanto. Então, o que fazer a curto prazo para cumprir a Meta do CNJ? Promover o regime de mutirão, que não é novidade. Já foi aplicado neste Estado e em outras unidades federativas. Na formatação dele, reúnem-se juízes voluntários, escolhidos segundo as exigências do acervo processual a ser julgado, e, em seguida, designa-os, por ato formal do Tribunal, dando-lhes, assim, atribuições para atuarem nas Comarcas ou Varas que necessitam do apoio deles. Funcionam como juízes substitutos, onde inexiste titular, ou como juiz auxiliar, se houver magistrado titular. Pois bem. A sistemática do mutirão, acima delineada, organizada pela Corte estadual para atingir a Meta 18 do CNJ, é de se considerar violadora do princípio do juiz natural? A resposta negativa se impõe. www.amarn.com.br Ritos 53 2- Origem histórica e o sentido da positivação constitucional Atribui-se a origem do juiz natural à modernidade. No ancien régime, os reis absolutistas costumavam designar julgadores extraordinários, conhecidos como juízes comissários, para decidirem fatos ocorridos anteriormente a tal nomeação. Na cartilha iluminista da época, constava a reação a essa medida da realeza, reputada afrontosa ao ideal de conter a arbitrariedade do poder. No século XVIII, a sociedade francesa é quem primeiro conhece a expressão “juiz natural”, a qual adquiriu dignidade constitucional com o advento da Carta pós-revolucionária de 1791, que reconheceu o direito dos cidadãos de não serem destituídos dos juízes que a lei lhes confere1. Cuida-se de previsão normativa resultante de uma concepção de Estado governado pela lei, expressão máxima da racionalidade, e não pela vontade arbitrária do governante. Com essa premissa, edifica-se o Estado de Direito, consagrador do sistema de separação dos poderes, em que a independência e a imparcialidade do juiz são garantias sociais de julgamentos isentos e justos. O Estado Liberal insculpe nos seus Códigos e Constituições o princípio do juiz natural, sentinela do cidadão contra o abuso de poder, significando a recusa de órgãos de exceção para resolver os litígios, o que deve ser feito por juízes integrantes do Poder Judiciário e por juízo cuja competência é previamente definida, isto é, antes da ocorrência dos fatos imputados, de sorte a respaldar o contraditório e a ampla defesa, enfim, o devido processo legal. Está positivado na Constituição de 1988. O art.5º, XXXVII, dispõe que “Não haverá juízo ou tribunal de exceção”, e, mais adiante, o inciso LIII proclama que “Ninguém será processado ou sentenciado senão pela autoridade competente”. A simples leitura gramatical dos preceitos constitucionais dá margem ao argumento de que a fórmula dos mutirões afronta o princípio da juiz natural, pois se criam juízos de exceção (ex post facto) e retira-se a autoridade previamente competente dos processos. Nenhuma coisa, nem outra. Não cabe falar em juízo de exceção porque os julgamentos do mutirão realizam-se por juízes togados, membros do Poder Judiciário. Além disso, as decisões são individualizadas, prolatadas por cada juiz designado, que exerce, na plenitude das garantias constitucionais da jurisdição, o livre convencimento. No Estado Democrático de Direito em que se vive, no qual sobressai a transparência, o controle social e institucional dos atos judiciais, afigura-se um despropósito comparar a designação de juiz para o mutirão com a nomeação deste pelos monarcas absolutistas. No tocante ao segundo aspecto da arguição, ressalte-se que inexiste 1 Há divergência a respeito. Uma parte dos doutrinadores atribui aos textos ingleses, a exemplo da Carta Magna de 1215 e a Bill of Rights de 1689, e à Constituição americana (Gustavo Senna Miranda. Princípio do Juiz Natural e sua Aplicação na Lei de Improbidade Administrativa. São Paulo: RT, 2006, pp.82/83); outra, e esta é a maioria, atribui às Constituições francesas pós-revolucionárias (Adelino Marcon. O princípio do juiz natural no processo penal. Curitiba: Juruá, p.60). 54 Ritos www.amarn.com.br princípio absoluto, mesmo o de natureza constitucional. Com efeito, reclama-se a ponderação de princípios para, diante da contextualização, harmonizá-los. 3- O princípio do juiz natural e o da duração razoável do processo: critérios de superação da tensão entre ambos Os princípios são normas abertas, de intensa generalidade e conteúdo finalístico. Promovem um estado de coisas e definem, embora implicitamente, as condutas aptas a atingi-lo. Precisam, sempre, de preenchimento valorativo. Na receita de Alexy, os princípios são normas que estabelecem deveres realizáveis no máximo grau, consoante as possibilidades normativas e fáticas. Ou seja, o mestre germânico sustenta que a definição da conduta postulada pelo princípio depende de confrontá-lo com outras normas e com as circunstâncias fáticas envolvidas, surgindo, daí, a solução do litígio. Nos momentos de tensão principiológica, a norma dominante não esvazia, ao menos não deve fazê-lo, o conteúdo da suplantada2. No regime de mutirão, dois princípios constitucionais aparentemente se opõem: o do juiz natural, já mencionado, e o da razoável duração do processo, encartado no art. 5º, LXXVIII, da CF, este inovado pela Emenda Constitucional n.º 45/2004. Como apontar dentre eles o protagonista sem que isso implique desprezo ou anulação do outro? É tarefa difícil. Porém, critérios doutrinários contribuem sobremaneira para harmonizá-los. Três elementos alexyanos conduzem o raciocínio interpretativo3. Um é a adequação, cuja presença se constata com a resposta à indagação: o regime de mutirão é meio eficaz para obter o estado de coisa almejado, a saber, a celeridade processual, dando cumprimento ao preceito constitucional da duração razoável do processo? Abstratamente falando, é de todo lógico o entendimento de que a formação de um grupo de juízes, acompanhado de estrutura física e funcional, destinado a ajudar nos julgamentos, resulta em celeridade processual. Na prática, as estatísticas confirmam essa afirmativa, em especial, como ocorre na Justiça potiguar, quando a maioria das Comarcas do interior está vaga, sem juiz titular, agravando-se o quadro pelo grande acervo de processos e pelo fato de o substituto, às vezes, estar no exercício de mais de uma substituição, a exemplo da Comarca Extremoz, que supera os quatro mil processos em andamento, estando o juiz substituto dela com outras duas designações. Numa palavra, o mutirão é um meio adequado à promoção do fim “duração razoável do processo”. 2 ALEXY, Robert. Conceito e validade do direito. São Paulo: Martins Fontes, 2009, p. 85. 3 ALEXY, Robert. Epílogo a la teoria de los derechos fundamentales. In: Revista espãnola de derecho constitucional, Madrid, Centro de Estúdios Políticos y Constitucionales, ano 22, n.º 66, pp. 13-64, setembro/dezembro, 2002. www.amarn.com.br Ritos 55 O segundo é a necessidade,que traduz a ausência de alternativas eficientes ao regime de mutirão, capazes de alcançar o objetivo da celeridade processual sem causar a mínima restrição ao direito fundamental do juiz natural. A curto prazo não se vislumbra outro caminho. Enquanto os cargos vagos dos juízes não forem ocupados pelo certame, bem como os dos servidores, o remédio do mutirão é a única forma de cumprir as Metas estabelecidas pelo CNJ e remediar o atraso na prestação jurisdicional, motivo de insatisfação legítima das partes, que sofrem afronta ao direito subjetivo constitucional à duração razoável do processo. O terceiro é a proporcionalidade em sentido estrito, a significar que as vantagens da concretização do fim da “duração razoável do processo” ou “celeridade processual” superam a desvantagem de provocar, mesmo que potencialmente, arranhão na premissa do juiz natural. O mutirão traz rapidez à tutela jurisdicional, satisfaz a sede por justiça dos jurisdicionados e reduz o sentimento de impunidade, contribuindo à pacificação social e à credibilidade do Judiciário. Noutra vertente, a definição de juiz natural deve levar em conta as características das sociedades contemporâneas, globalizadas, em que predominam relações sociais impessoais e massificadas, dotadas de hipercomplexidade, com as instituições democráticas em pleno funcionamento, muito distantes daquelas dos séculos XVIII e XIX, nas quais os juízes subordinavam-se ao governante de plantão. Por conseguinte, a designação genérica, nunca ad hoc, pela autoridade competente de magistrados togados para atuarem em regime de mutirão nas Comarcas sem juiz titular ou para assistirem o titular sobrecarregado, visando, exclusivamente, a dar celeridade processual, e, ademais, respeitando-se o contraditório e a ampla defesa, nenhum prejuízo causa ao princípio do juiz natural, conceitualmente atualizado para comportar a ideia do julgador que recebe de maneira aleatória os autos e os decide com imparcialidade, até porque descabe, hoje, acentuar a importância de quem prolata a decisão, mas destacar de como o faz. Acresça-se, também, que a competência é do órgão ou Juízo, que tem definição legal ou constitucional prévia. Aliás, aqui reside o real alcance da norma constitucional sobre o juiz natural ou autoridade competente, considerando-se, para tanto, o órgão judiciário que tem base constitucional4. Quanto ao juiz, agente público investido da jurisdição, nada obsta que receba por ato administrativo do Tribunal a incumbência de substituir em Vara ou Comarca, cujas competências, reitere-se, são predefinidas, ou participar de mutirões. Então, desmerece 4 GRINOVER, Ada Pelegrine; FERNANDES, Antonio Scarance; MAGALHÃES FILHO, Antonio. As nulidades no processo penal. São Paulo: Malheiros, 1995, pp.44/45. 56 Ritos www.amarn.com.br confundir regra de competência com a de natureza administrativa de simples designação para substituir. Nessa perspectiva, firmou-se a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, inclusive de sua Corte Especial. Pode-se sintetizar o reiterado entendimento do Tribunal da Cidadania no enunciado bastante esclarecedor: “O Superior Tribunal de Justiça, ao decidir caso referente à legitimidade da instituição de mutirão com vistas a agilizar a prestação jurisdicional, firmou entendimento, plenamente aplicável à presente hipótese, no sentido de que a designação de juiz para prolatar sentença não ofende ao princípio do juízo natural (art.5º, XXXVII e LIII, da CF), eis que não se traduz em exercício de jurisdição por órgão sem assento constitucional, instituído após o fato motivador de sua atuação, ou ao qual falece competência para decidir o feito (art.87 do CPC)”5. O Conselho Nacional de Justiça, por sua vez, no PCA 043/2005, relatado pelo Conselheiro Paulo Schmidt, j. em 31.01.2006, acostou-se à jurisprudência do STJ, ao decretar: “Os mutirões, portanto, não ofendem a garantia do juiz natural e muito menos cria tribunal de exceção. No caso dos mutirões, o juiz natural é aquele que, de modo aleatório, conforme a sistemática de trabalho adotada, recebe o feito para apreciação e o julga com a devida imparcialidade”. É importante encerrar esse apanhado jurisprudencial com o Supremo Tribunal Federal, intérprete derradeiro, na hierarquia jurisdicional, da norma constitucional. Repetidamente, a Suprema Corte encampa o ponto de vista esboçado, dizendo: “A designação de juiz para atuar em determinado período, feita pelo Tribunal de Justiça local, em fase de mutirão forense, não ofende o princípio do juiz natural”.6 4- Conclusão Portanto, o regime de mutirão, particularmente o concernente às ações de improbidade administrativa e às dos crimes contra a Administração, oficialmente instalado pelo Tribunal de Justiça, busca a materialização do direito fundamental à duração razoável do processo, razão por que sufraga os postulados da adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito, que demonstram estar (o mutirão) alinhado com o princípio do juiz natural. 5 STJ, Corte Especial, AgRg no Ag 624.779/RS, Rel. Min. Castro Filho, j.15.08.2007, DJ 17.11.2008. 6 STF, AI 846166/MS, Rel. Min. Luiz Fux, j. 03/06/2011; AI 554.533-AgR, 2ª T., Rel. Min. Eros Grau, DJ 20.04.2006; RE 255.639-AgR, 1ª T., Rel. Min. Ilmar Galvão, DJ 18.05.2001; RHC 89.890, 1ª T., Rel. Min. Ricardo Lewandowski, DJ 02.03.2007. www.amarn.com.br Ritos 57 // ARTIGO A entrevista do Ministro Joaquim Barbosa: dos quadrinhos para a vida real Rosivaldo Toscano Juiz da Vara Criminal do Fórum Varela Barca. 58 Ritos Li uma recente entrevista do ministro Joaquim Barbosa. Segundo ele, a mentalidade do juiz “é mais conservadora, pró status quo, pró impunidade.” Já os membros do Ministério Público teriam uma mentalidade mais rebelde, contra o status quo, com pouquíssimas exceções. Segundo ele, ainda, as carreiras de juízes e de procuradores ou promotores de justiça seriam muito próximas. Disse também que ainda que o nosso sistema penal é um sistema “muito frouxo”. E cobrou uma reforma na mentalidade dos juristas. Creio que a entrevista foi paradoxal em algumas passagens e que, por isso, merece algumas colocações. As funções de promotor e de juiz são bem diversas e não dependem da mentalidade de cada um. Derivam da Constituição e das leis. Promotor investiga, acusa. Juiz julga. Promotor é parte. Juiz é imparcial. Promotor denuncia, com base em indícios, após um procedimento de natureza inquisitiva e sigilosa. Juiz julga com base em provas, somente após ouvir a antítese, e em um processo que é, via de regra, público. E ai do Estado em que há confusão entre elas. O que ambos têm em comum é a necessidade de respeitar a Constituição. Dela deriva, dentro de um Estado Democrático de Direito, o sistema acusatório, marcado pela separação das funções de acusar, de defender e de julgar. O sistema penal não pertence ao Judiciário. O papel do juiz, aliás, é muito mais www.amarn.com.br modesto do que se imagina dentro desse sistema. Primeiramente, devido ao princípio da inércia. O juiz não investiga. Ou se investiga, não está agindo como juiz. Só atua nos limites do que lhe chega às mãos e com o que lhe chega. Ademais, o sistema penal é apenas parte do sistema de controle social, que compreende não só instituições públicas, mas privadas também. Desde o Poder Legislativo – que tem a função de criar as normas penais e processuais penais que serão interpretadas pelo Judiciário nos casos concretos; passando pelo Executivo, que cria e mantém os órgãos da Segurança Pública, que previnem e investigam crimes, e o sistema carcerário; pelo Ministério Público, que tem mais de uma centena de atribuições e, entre elas, acusar e fiscalizar o cumprimento das normas por toda a sociedade. Instituições como a igreja, a família e os meios de comunicação também interferem nesse processo. É reducionista o discurso que acusa a magistratura de modo generalizado e sem levar em consideração essas implicações. Não nos enganemos: toda solução simples para questões complexas é um engodo. E toda postura de se contentar com respostas prontas, argumentos de autoridade e reducionismos revela deficiente senso crítico. Um existência autêntica requer esforço, e a pior prisão é a da mente que se contenta com o que está-aí-dado. Viver com autenticidade requer reflexão. E uma reflexão dessa ordem engloba – antes de tudo – a compreensão sobre o que se está refletindo numa perspectiva multidisciplinar: social, política, jurídica, econômica e histórica. Também vejo com preocupação a criação, pela mídia, de uma figura super-heroica, ainda que sua capa seja uma toga. Isso porque como toda criação mítica (e mística), o super-herói precisa de uma antítese. Afinal, que seriam deles sem os vilões. E, claro, o super-herói, com base em sua visão individual, no seu “ideário de justiça” é quem elege quem são os vilões e quem é contrário à sua “justiça”. Mas a vida em sociedade é muito mais complexa do que as histórias em quadrinhos. Mais grave quando estamos a tratar do Brasil, marcado historicamente pelo autoritarismo. O discurso do herói abre as portas para posturas autoritárias, ainda que bem intencionadas e paternalistas. Isso é fruto do nosso próprio processo de colonização, estabelecido por meio de uma invasão violenta que “descobriu” o Brasil, “encobrindo” os nativos e, posteriormente, os escravos. Tudo feito à força pelos “bons”, pelos “homens de bem”. Se todo agente público tem o poder potestas (o que manda, diretamente), é sempre fundamentado no potentia, o poder difuso e reconhecido logo no primeiro artigo da Constituição. Este deve ser o seu norte de atuação. Portanto, fora da Constituição não há salvador ou herói. Ademais, a aceitação do utilitarismo e de discursos moralistas-reducionistas, por mais honestos e íntegros que sejam seus emissores, abre as portas à permissividade para a criação de caudilhos – porque o fundamento é sempre o mesmo: o discurso de autoridade lastreado apenas na pretensa boa vontade dessa mesma autoridade. Temos que lembrar que os homens passam, www.amarn.com.br Ritos 59 mas as instituições permanecem. Nunca devemos deixar um legado que possa ser mal utilizado no futuro, ainda mais quando a história mostra um mal uso dele. Se formos olhar para trás, esse mesmo discurso utilitarista, desvinculado da normatividade, estava aqui sendo utilizado há menos de quarenta anos... Vivenciamos as trevas de uma ditadura militar faz pouco tempo, também com base em discursos morais. A democracia, por outro lado, exige o respeito às regeras do jogo democrático. E a democracia é algo muito importante para ser posta de lado em nome de utilitarismos. Precisamos ter muita cautela. Uma democracia nunca se consolida. Ela se renova (ou não) a cada manhã. O core, o seu núcleo, reside na obediência às regras do jogo democrático – no respeito aos direito fundamentais. Na entrevista, aliás, não houve acusação de que os juízes desrespeitavam a Constituição. Aliás, só consta uma vez a transcrição da palavra “Constituição” na entrevista, ao tratar da competência do STF. Isso não me passou despercebido e acredito que a muitos também. Soa paradoxal a afirmação de que o sistema penal brasileiro é “frouxo”. Temos a 5ª população do planeta, mas 4ª população carcerária do mundo: mais de quinhentas mil pessoas presas. E temos, ainda, duzentos mil mandados de prisão não cumpridos. Prendemos muito e prendemos mal. Isso não restou esclarecido na entrevista. O que temos, sim, é uma seletividade penal muito acentuada. Dados estatísticos do INFOPEN, do Ministério da Justiça, apontam que temos duzentas e cinquenta mil pessoas presas por crimes contra o patrimônio, apenas mil por crimes contra a administração pública e, pasmem, só cento e oitenta por tortura. No Brasil, é mais fácil alguém morrer atingido por 60 Ritos um raio do que ser condenado por tortura. Essa seletividade começa já na feitura da lei. Não por menos, um furto qualificado tem pena igual à tortura. A pena de uma sonegação fiscal milionária é praticamente a metade da prevista para o mesmo furto. Nosso sistema penal termina protegendo quem tem contra quem não tem. Ademais, a investigação policial no Brasil é toda direcionada contra as camadas mais pobres. Não existe, sequer, infraestrutura adequada para apuração de crimes econômicos, financeiros ou contra a Administração Pública. Ao invés do trabalho de inteligência voltado à proteção de valores metaindividuais, a brutalidade da criminalidade patrimonial individual e ordinária, das ruas, o que serve para isolar os que já são oprimidos. Protege quem tem contra quem não tem. O discurso reducionista termina por reafirmar essa violência sistêmica, que está diluída secularmente no seio de nossas relações sociais. Apenas bradar que os juízes são pró-impunidade – quando as leis que punem os poderosos é que são brandas – serve apenas para desviar o foco desse problema. Já se tem o herói e agora os vilões: os juízes. Essa ficção vira discurso ideológico da razão instrumental em favor do status quo. Por que não, então, questionar tratamento tão desigual nas leis penais? Emblemático quando nos deparamos com uma realidade inescapável. O Supremo Tribunal Federal tem uma história de mais de duzentos anos. E quantos foram os mandados de prisão decretados com base em condenações em ações penais originárias? Não seria o discurso mais adequado alertar para a seletividade do sistema penal, reconhecer a responsabilidade do Poder que faz as leis que os juízes aplicam e cada um assumir www.amarn.com.br sua parcela de responsabilidade, proporcional à amplitude do exercício do seu poder? A começar pelo STF? Por que não uma audiência pública para se discutir o foro por prerrogativa de função? Fora tudo isso, não creio que os problemas do Brasil se resolvam com cadeia. Antes de políticas de segurança pública, precisamos de políticas públicas de segurança (saúde, educação, transportes, moradia, salubridade, etc.). E atribuo um papel mais modesto ao Judiciário nesse âmbito. O governo não é dos juízes. O Supremo Tribunal Federal pode participar, estimulando o debate, desde que respeite a separação de Poderes. Precisamos aprofundar nossa democracia, no sentido de fortalecer o poder potentia (diluído no povo) e não o potestas (o poder delegado), a começar por uma reforma política que melhor combata a captação ilícita de votos, que dê fim aos investimentos privados em campanhas eleitorais (recuso-me a chamar de doação) e que limite a reeleição até mesmo no Legislativo, para evitar a criação de caudilhismos políticos. Precisamos de um marco regulatório do “quarto poder”, um poder de fato e que muitas vezes apenas tem em vista seus próprios interesses. Precisamos democratizar os meios de comunicação de massa, possibilitando a dialética para além do discurso www.amarn.com.br único dos grandes conglomerados midiáticos, de modo a não mais permitir o atual modelo oligopólico que se esconde sob o discurso da liberdade de imprensa, como se essa liberdade só pertencessem a eles. Precisamos refletir sobre nosso modelo econômico e como se implementar uma melhor distribuição de renda. Isso somente para começar. A entrevista do Presidente do STF, bem como sua vociferação verbal, dias depois, contra um repórter, mostrou o homem por trás da figura midiática do “Ministro super-herói” – mi(s)tificação que, aliás, sequer vi o próprio Joaquim Barbosa aprovar. Lembro que, quando criança, nunca fui adepto nem da DC Comics e nem da Marvel. Gostava mesmo era do Pato Donald. Meu único herói era meu pai. Mas eu tinha cinco anos. Após isso, cresci sem me afeiçoar a qualquer super-herói e continuo achando que “Liga da Justiça” é coisa de história em quadrinhos. Na vida real, em se tratando de Justiça, o que existe é a necessidade do juiz nunca se afastar do referencial normativo que é a Constituição – com seu catálogo de direitos e garantias fundamentais – materiais ou processuais. Ela é a verdadeira “liga”. Entre o texto e a norma, na interpretação do direito, é o elo que nunca pode ser perdido. Ritos 61 // crônica ARTIGO Ansiedade e desilusões Jessé de Andrade Alexandria Casar é fácil; separar, nem tanto. Mas um certo juiz de província não concordava com esse dogma popular. Pensava sempre, quando lidava com processos de separação e divórcio, que o magistrado deve simplificar as coisas: conciliar, mediar, pacificar. Eis o seu lema. Mas foi mudando de opinião com o passar do tempo, diante de litígios quase insolúveis, que somente se resolviam com a dureza fria e calculista da lei. Não obstante, era, sem ser religioso, no fundo, um desses românticos incuráveis, que buscam, a todo custo, uma reconciliação do casal, o que às vezes se torna impossível: –Cabo Rilto, por que o senhor não quer se reconciliar com sua mulher. E - perdoem o cacófato – o cabo, cabisbaixo: –Não, doutor, não posso. –Mas o senhor ama a sua mulher? - insistia. –Amo, doutor. Mas não posso – e o cabo, com a cabeça cada vez mais enterrada no peito e com os dedos indicadores apontados, paralelamente, para o chão, soltava um ruído semelhante a um soluço. O juiz, não conseguindo ver o gesto inusitado, levantou-se um pouco da cadeira e, olhando por sobre a mesa, insistiu: –Por que mesmo, cabo Rilto? E Rilto continuava com esse gesto tão representativo dos traídos, a cabeça cada vez mais baixa, coroada por dois dedos indicadores, que matematicamente se encontrariam em algum lugar das profundezas cósmicas da alma, pois duas retas paralelas certamente se encontrarão no infinito. Juiz de Direito 62 Ritos www.amarn.com.br De fato, não havia como reconciliá-los – pensou o juiz, olhando o soluçante cabo - das tormentas. Mas o destino urdia, em seu pródigo repertório dramático, um duro golpe no magistrado. Não era propriamente um desses casais tradicionais que buscam separar-se. Péricles Mototáxi e Bastiana da Saúde entraram na sala de audiências como dois generais rivais na Bastilha: ele, com uma pochete na cintura e uma insinuante gravata laranja de gerente de loja; ela, com suas vestes brancas de enfermeira do serviço público e um coque que lembrava uma sargentona da Marinha. O magistrado, temendo que o efêmero armistício pudesse ser quebrado ante a primeira palavra ou gesto, começou a pregação: –Um casal experiente querendo se separar... –Sim, Senhor Meretríssimo, é impossível viver com esta mulher! - disse Péricles, interrompendo o juiz. – Doutor, esse homem me ama! Ontem mesmo fizemos amor... Mas a questão é que ele é um cabeça-dura e não quer botar dinheiro dentro de casa! - contrapôs Bastiana -. E separação, eu não dou! - foi logo dizendo a mulher, estrepitosamente, como se um obus kosovar atingisse a sala, antecipando sua posição na bastilha judicial. O magistrado pediu calma aos contendores e propôs que cada um falasse por vez. Péricles continuou, tirando um amontoado de papéis de seu bornal guerrilheiro: –Eis a prova, Doutor Meretríssimo, eis a prova da traição! - e brandia um papel branco como se fosse um florete –. Tá aqui a fatura da Losange, que essa mulher não pagou, porque usou com o amante o dinheiro que lhe dei! Esta mulher é uma judas iscarioca! Fez até um curso de feicibuque, que eu paguei sem saber! –Epa, epa, desengonço, você está mentindo! - contra-atacou a mulher. O juiz apaziguava os ânimos, mas não lograva nenhuma trégua. O marido saca da bolsa o que seria uma arma letal, um www.amarn.com.br gravador, no qual mete uma fita cassete, como se fosse um pente de balas: –Excelentíssimo Meretríssimo, ouça aqui a outra prova da traição - e apertou o gatilho: ouvia-se um montão de vozes desconexas, gritos, ruídos, como se fossem sons vudus de um filme B de horror. O juiz pediu ao marido que guardasse aqueles petrechos mortais e quis saber por que a mulher não concordava com a separação. Mas foi o marido que denunciou: –Doutor, esta mulher não me dá a separação porque sabe que vou ficar rico! - e o juiz abriu a boca em sinal de espanto. Continuou o profético mototaxista: –Escrevi um livro sobre minha vida, que vou publicar em breve, e sei que vai ser um bestisséler: “Ansiedade e Desilusões”. E emendou o general biógrafo, modulando a voz, como se fosse um locutor de rádio, dobrando o erre e sibilando nos esses, para derramar seus versos: –Andei por caminhos espinhosos, com ansiedade e desilusões... O juiz já não acreditava no que ouvia, quando a mulher deu um piripaque de telenovela: - Pelo amor de Deus, socorram a mulher, chamem o SAMU urgentemente! - gritava o magistrado, com a cara vermelha de pimentão de feira paulista. –Não precisa, não precisa, Meretríssimo, eu sei como agir, pois sou mototáxi e fiz um curso de primeiros-socorros. Esta mulher já fez dessas noutras oportunidades. É apenas para impressionar Sua Meretriz. Mas meu divórcio sai! E pegou o homem um chumaço de algodão, embebeu-o de álcool, que trazia na sua bagagem de guerra, socorrendo a vítima do conflito bélico com uma abordagem nas narinas. A mulher foi recuperando os sentidos devagarinho, olhou ao redor e, como se tivesse despertado em Marte, perguntou: - Tão me chamando, é? Hospital público é uma merda! A gente não pode nem dormir um pouquinho no plantão... Ritos 63 // crônica ARTIGO Seu Jorge Paulo Sérgio da Silva Lima Juiz de Direito da 2ª Vara Cível não Especializada da Comarca de Natal 64 Ritos No nosso perpassar pela vida deparamo-nos com os mais diversos tipos de pessoas. Todas elas, consciente ou inconscientemente, sempre têm algo a nos ensinar. Algumas, porém, possuem algo especial a nos transmitir, seja narrando fatos objetivamente, seja relatando suas experiências subjetivas. Particularmente, aprecio as pessoas que poetizam a vida, que veem nela uma obra de arte, repleta de seres viventes; um quadro desenhado por Deus, com seus mistérios e evidências. Uma dessas pessoas especiais é o Seu Jorge. Um homem altivo, culto, de elevada estatura, medindo 1m,88cm, de postura ereta, tez pardacenta, fronte larga, firme em seus pensamentos e palavras. Conta já com 82 anos de idade, porém exterioriza uma idade psicológica e biológica de 50 anos. Seus relatos costumam ser muito precisos, detalhados, desenhando a cena em nossa mente, reportamo-nos a um passado descrito à moda do romantismo. De vez em quando, no final da tarde, costumo tomar um café em sua casa, cuidadosamente preparado por Dona Josefa, sua dedicada esposa, a qual, por ser portuguesa, fá-lo sempre acompanhar de um bolo caseiro e, às vezes, de deliciosos bolinhos de bacalhau, regados a azeite de oliva da região do Alentejo, o que dá um tempero todo especial ao paladar dessas viagens mentais. Numa dessas tardes, Seu Jorge narrou-me um episódio de sua vida de caminhoneiro, profissão que abraçou e se apaixonou graças – se é que pode chamar de graças – a um grande abalo financeiro de sua família. Na ocasião, ele estava cursando o primeiro ano da Faculdade de Medicina no Rio de Janeiro, quando foi forçado a abandoná-la e buscar um meio de vida que pudesse assegurar a sua subsistência. Confidenciou-me que sempre nutriu www.amarn.com.br um anelo por dirigir mundo afora, posto que seu espírito é adepto da liberdade, no entanto estava preso às tradições sociais impostas pela família, e viu no episódio uma conspiração cósmica para lhe colocar no devido lugar. Contou-me, então, num misto de entusiasmo e nostalgia, a aquisição de seu primeiro caminhão e sua viagem inaugural por esse imenso chão brasileiro. Essa primeira viagem se direcionou justamente ao lugar do sonho brasileiro sonhado por Juscelino Kubitschek, ainda no seu limiar, e foi esse o seu primeiro sonho de muitos que se sucederam nessas andanças por este imenso país, nos quais não houve nenhum sobressalto de pesadelo porque se estava sonhando o sonho bonito da vida. Ainda ressoam vivas as suas palavras em minha mente: “O caminhão verde-esperança, apesar de seus visíveis sinais de maus tratos, se mostrava altivo e imponente. Foi como amor à primeira vista. Com a ajuda de vários amigos consegui o valor da entrada pedida pelo proprietário. Quando, enfim, pude conduzi-lo, tive noção exata do seu verdadeiro estado, precisando de reparos www.amarn.com.br em todos os setores, a começar pelos pneus de marcas e tamanhos diferentes, desgastes nas mangas de eixo e nas ponteiras, molas em excesso endurecendo a suspensão, balança central inadequada, transmissão empenada, vazamentos de óleo no flange do diferencial, no retentor do cubo de rodas, semi-eixo com parafusos de fixação frouxos ou quebrados. Foi preciso vários meses para, enfim, colocá-lo em condições de viajar. Mas quem espera e se esforça sempre alcança, e após esse trabalho paciente o dia tão esperado chegou. Embreagem, engate de marcha, acelerador; pé na estrada! Que alegria. O início da noite fazendo silêncio parecia parar para ouvir o ronco do motor clamando por liberdade, invadindo o infinito, abrindo passagem para o sonho finalmente alcançado. Os pneus ritmavam a trajetória como uma orquestra fantástica sonorizando o espaço. Na cabine, homem e máquina interagiam numa sintonia perfeita como um aríete obcecado devorando a distância. Após cada subida uma banguela se seguia como um mergulho alucinante na escuridão do infinito, a marcha fluindo num acorde encantado, uma nota mágica, um êxtase, homem e máquina em transe. Sem perceber foi ficando para trás anos, frustrações e perdas; nada mais importando. Aqui e ali, bandos de macacos cruzavam a pista, buscando talvez apenas liberdade, o sentimento Ritos 65 predominante. Uma população muito grande de papagaios quebrava o silêncio da paisagem, com sua algazarra frenética e feliz. De quando em quando, via-se já de longe pontinhos pretos móveis cruzando de lado a lado a pista. Eram as enormes caranguejeiras. Miríades de borboletas volateando diante do caminhão, como num bailar aéreo. Espetáculo da vida! Quando o véu da noite caía, encostava o caminhão em postos de descanso convencionado pelos caminhoneiros, onde se fazia o necessário asseio, jantava-se e caía em profundo e reparador sono numa cama de beliche adaptada na cabine do veículo, ou mesmo numa rede armada embaixo do caminhão. A vida, seguindo o seu curso, dava lugar à manhã, trazendo o sol com suas cores radiantes, os pássaros com seus cantos, saudando a vida ofertada pelo Criador. Um rio soberbo, verde-safira, surge esplêndido dos confins do sertão. Era o Velho Chico, misterioso e imponente, fiel escudeiro das populações ribeirinhas, emitindo, sob os raios do sol, lampejos prateados numa demonstração de beleza e pujança. Senti-me fortalecido. Após dirigir quilômetros, finalmente vislumbrei o meu destino, em pleno serrado brasileiro. De cara vi um curioso marco na divisa entre Goiás e Brasília. Vi-o como um monumento místico e misterioso, uma mensagem figurada que não consegui entender, embora tenha sentido o seu impactante efeito sobre mim. Trata-se – conforme fiquei sabendo posteriormente - do “Monumento Solarius”, obra do escultor francês Ange Falchi, representando o movimento de migração de todos os brasileiros em busca da construção da nova Capital Federal. Aproximando-me da cidade debutante, primeiro sinal de civilização depois de muitas andanças, deparei-me com um cenário que lembrava o velho oeste americano, onde se centralizava tudo. Vista do seu entorno, Brasília parecia irracional. Nem mesmo um rio razoável corria por aquelas paragens. Apenas o serrado como um deserto diferente. Mas este era apenas um desafio perto de tantos. Mais adiante, o eixo rodoviário parecia um imenso formigueiro repleto de trabalhadores nordestinos, esses desbravadores destemidos, imunes a tudo, manipulando o barro vermelho com determinação e bravura. Recordo-me que, então, nos arredores de Brasília surgiu uma comunidade religiosa conhecida como Cidade Eclética cujo mentor, conhecido como Mestre Yokaanam, uniu em torno de si um grande número de seguidores de todas as classes. Propunha-se a viver isolada do mundo e em perfeita harmonia, e a não reconhecer o dinheiro como necessidade de vida. A filosofia milenar do Mestre Yokaanam era muito admirada e respeitada por todos que reconheciam nele um profundo saber espiritual. Atualmente não sei em que quadra se encontra essa prática filosófica-religiosa, mas, à época, causou-me uma forte impressão, até porque me encontrava num estado lúdico-transcendental. Hoje, passados tanto tempo, ainda sinto em mim todas as emoções daqueles dias, as quais, de quando em quando, voltam a povoar minhas memórias.” Após esse envolvente relato de Seu Jorge, sorvi o último gole de café, vindo imediatamente ao espírito uma frase de Robert Louis Stevenson: “Eu viajo não para ir a lugar algum, mas para ir. Eu viajo pelo propósito de viajar. A grande sedução é se mover.” 66 Ritos www.amarn.com.br A AMARN completará 60 anos de fundação em 2014 Todos os magistrados do RN estão de parabéns pelo fortalecimento da associação e da justiça potiguar. Venha fazer parte dessas conquistas.