THE NATIONAL TRUTH COMMISSIONS: RESULTS AND
RECOMMENDATIONS
Laís Forti Thomaz
PHD ongoing in International Relations - San Tiago Dantas Program – UNICAMP / UNESP /
PUC – SP
Anaís Medeiros Passos
Master´s Degree ongoing in Political Science – UFRGS
Fabio Antônio Burnat
Graduation in Social Communication – Journalism – Law Student – UEPG
Ricardo Alexandre Pereira de Oliveira
Anthropology Student – UFMG
Roque Ferreira da Silva Jr
Law Degree and International Relation´s Student – UFS
146
As comissões nacionais da verdade: resultados e
recomendações1
2
ABSTRACT
This work aims to point out good practices and recommendations to the
National Truth Commission (CNV in Portuguese) in Brazil. Having this goal, the
main results of national truth commission of global repercussion were analyzed,
namely, Argentina, Chile, Guatemala, Peru and South Africa. Besides that, in
order to come with a broad comparative panorama, we present
recommendations of international organizations concerning human rights
protection. In conclusions, a critical analysis and suggestions are done regarding
activities and products to be presented by the CNV in Brazil.
Keywords: Transitional Justice – National Truth Commission – Memory – Repair.
1
Este trabalho é resultado de Projeto realizando no âmbito da 8ª edição do Programa de
Intercâmbio promovido pela Secretaria de Assuntos Legislativos (SAL) do Ministério da Justiça
e pelo Centro de Estudos Jurídicos da Presidência, Subchefia para Assuntos Jurídicos (SAJ) da
Casa Civil da Presidência da República. Agradecemos especialmente as orientações de
Nathalie Albieri Laureano e a entrevista concedida por Kelen Meregali do Centro Internacional
para Justiça de Transição (ICTJ).
2
Anaís Medeiros Passos é mestranda em Ciência Política pela UFRGS; Fabio Antônio Burnat é
graduado em Comunicação Social habilitação em Jornalismo e graduando em Direito pela
UEPG; Laís Forti Thomaz é doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Relações
Internacionais San Tiago Dantas – UNESP, UNICAMP, PUC/SP; Ricardo Alexandre Pereira de
Oliveira é graduando em Antropologia pela UFMG; e Roque Ferreira da Silva Jr é bacharel em
Direito e graduando em Relações Internacionais pela Universidade Federal de Sergipe (UFS).
147
1. Introdução
O Tribunal de Nuremberg que julgou os crimes contra humanidade
cometidos pela Alemanha nazista durante a II Guerra Mundial é a gênese da
justiça de transição. Segundo Abrão e Torelly (2011, p. 215), a justiça de
transição compreende a reparação, o fornecimento da verdade e a construção
da memória, a regularização da justiça e o reestabelecimento da igualdade
perante a lei e a reforma das instituições perpetradoras de violações contra os
direitos humanos.
No Brasil, com o objetivo de apurar graves violações de Direitos
Humanos ocorridas entre 18 de setembro de 1946 e 5 de outubro de 1988, foi
instituída no dia 16 de maio de 2012 a Comissão Nacional da Verdade (CNV)
criada pela Lei 12528/2011. Segundo o Núcleo de Preservação da Memória
Política de São Paulo (s.d., p. 8):
As Comissões da Verdade são mecanismos oficiais de apuração de
abusos e violações dos Direitos Humanos e vêm sendo amplamente
utilizadas no mundo como uma forma de esclarecer o passado
histórico. Seu funcionamento prioriza escutar as vítimas de
arbitrariedades cometidas, ao mesmo tempo em que dá lugar a que
se conheça também o padrão dos abusos havidos, através da versão
dos perpetradores dessas violências ou da revelação de arquivos
ainda desconhecidos. São órgãos temporários de assessoramento a
governos e são oficialmente investidas de poderes para identificar e
reconhecer todos os fatos ocorridos e as pessoas que desse processo
participaram, tanto as que sofreram com as violências como as que
participaram de forma ativa na promoção dessas violências.
148
Mas como assegurar resultados efetivos na conclusão dos trabalhos da
CNV? É pertinente e desejável a elaboração de outros produtos além do
relatório? Como assegurar que sejam amplamente acessíveis à sociedade? Qual
deve ser o objetivo de suas recomendações e a quem devem ser direcionadas?
Para buscar essas respostas organizamos este trabalho em três partes.
Na primeira realizamos um levantamento comparativo dos produtos entregues
pelas comissões da verdade instituídas nos seguintes países: Argentina, Chile,
Guatemala, Peru e África do Sul, considerando os diferentes mandatos para os
quais foram instituídas.
A fim de completarmos o panorama comparativo, na segunda parte,
apresentamos recomendações de organismos internacionais de proteção aos
Direitos Humanos. Nas considerações finais, realizamos uma análise crítica e
apresentamos sugestões sobre as características das atividades e do produto a
ser apresentado pela CNV no Brasil.
2. Estudos de caso
Para verificar a efetividade das Comissões da Verdade selecionamos
casos emblemáticos e destacamos suas principais características e resultados
tendo em vista que:
149
[...] ainda que as comissões de verdade sigam tendo uma grande
elasticidade para adaptar-se a situações muito específicas em cada
país, há um processo de sistematização de boas práticas e
identificação de padrões legais aplicáveis a seu funcionamento. Esta
padronização tem a vantagem de colocar limites ao estabelecimento
de comissões não autênticas, criadas para dissimular a falta de
vontade política de levar a cabo ações judiciais. Por sua vez, no
entanto, a padronização leva ao risco de limitar a criatividade ou
impor fórmulas gerais que podem ser inadequadas a cada situação
específica. (CUEVA, 2011, p. 339)
Nesse sentido, subdividimos essa seção de acordo com os países e
apresentaremos as principais características das comissões da verdade tais
como histórico da criação e mandatos, período analisado, instrumentos e
metodologias aplicadas, resultados e possíveis falhas3.
2.1 Argentina
Na Argentina, no mesmo ano em que se encerrou o período do regime
militar, mantido entre 1976 e 1983, foi instaurada a Comisión Nacional para la
Investigación sobre la Desaparición de Personas (CONADEP) com mandato de 9
meses para investigar os crimes contra a humanidade cometidos durante a
denominada “guerra sucia”.
3
No final do artigo está anexo um quadro contemplando as principais características.
150
A comissão utilizou instrumentos que compreendiam: a coleta de
testemunhos diretos; viagens externas para receber os testemunhos dos
argentinos exilados; criação de “escritórios de denúncia” na maioria das sedes
diplomáticas argentinas pelo mundo - com um trabalho simultâneo de
divulgação das investigações dentro e fora do país, o que estimulou a ampla
participação da sociedade argentina e dos argentinos exilados em outros países.
Além disso, com a colaboração social e midiática, o trabalho produziu resultados
rigorosos a partir do auxílio das equipes técnicas de investigação, formadas com
caráter multidisciplinar, em que contribuíram médicos, sociólogos, antropólogos
e arqueólogos forenses, etc.
Após o desenvolvimento dos trabalhos pela Comissão foram divulgadas
mais de 50.000 páginas de testemunhos e denúncias por meio de um Relatório
Geral denominado “Nunca más: Informe de la Comisión Nacional sobre la
Desaparición de Personas”. Como forma de estimular o direito à verdade e à
justiça, o Informe recomendou que as investigações continuassem por via
judicial, e para favorecer esse processo, a Comissão divulgou uma lista com os
nomes de 1351 repressores e a identificação de 340 centros clandestinos de
detenção. Outra recomendação importante foi pela reparação por meio de
indenizações e concessões de bolsas de estudo e de trabalho aos familiares de
pessoas desaparecidas. Para evitar a repetição desse tipo de repressão foi
recomendada a aprovação de normas legais que declarassem como "crimen de
tesa humanidad" a desaparição forçada de pessoas, a anulação de toda a
legislação repressiva existente no país e o apoio aos organismos de Direitos
Humanos. Para romper com a reprodução de discursos legitimadores daquele
151
tipo de repressão houve recomendação de reformas educacionais, como
formação dos professores para a atualização do período, revisão dos materiais
didáticos, alterações curriculares, etc., bem como propostas de reformas
institucionais no Executivo, Legislativo, Judiciário, Polícia e Forças Armadas
(DESAPARECIDOS, 2012).
O Informe “Nunca Más” contém inclusive um gráfico com a distribuição
dos desaparecidos por profissão ou ocupação, demonstrando que 30,2% eram
operários, 21% estudantes e 5,7% professores. Na distribuição de gênero, 70%
eram homens, e 30% de mulheres, sendo que dentre estas 3% estavam grávidas
(DESAPARECIDOS, 2012).
Ainda que os números oficiais sejam de 8960 desaparecidos confirmados
documentalmente, diversos organismos de Direitos Humanos estimam que o
número de torturados e desaparecidos seja de 30.000 pessoas. Destas, 80%
tinham idade entre os 16 e 35 anos (PADRÓS 2007).
A temática ainda mobiliza milhões de pessoas de todas as idades para
apoiar os julgamentos e condenações dos responsáveis pelos crimes contra a
humanidade no país, exemplificado pela recente condenação à prisão perpétua
do último ditador argentino (EFE, 2013), Reynaldo Benito Bignone, hoje com 85
anos, que presidiu o país entre 1982 e 1983. Junto a ele foi condenado à pena
máxima o ex-comandante militar Santiago Omar Riveros e os agentes
repressores Luis Sadi, Eduardo Corrado e Carlos Tomás Macedra. No mesmo
julgamento foram condenados outros 8 acusados, com penas 12 e 25 anos de
prisão.
152
O processo histórico que culminou na identificação e punição dos
responsáveis pelos crimes foi bastante complexo. Após o fim do regime foram
aprovadas leis de Anistia (Ponto Final e Obediência devida) que perdoavam os
militares com argumentos anti revanchistas. Porém, toda essa legislação e
indultos decretados pelos ex-presidentes Raúl Alfonsín e Carlos Menem foram
anulados durante o governo de Néstor Kirchner em 2003, reabrindo os arquivos
e chamando a população a recordar e repensar o passado nacional.
O interesse da população argentina para a apuração e a definição do
objetivo de que isso não mais ocorra se manifesta igualmente na produção
teórica e prática nas áreas de antropologia e arqueolgia. Em julho de 1984 já
havia estudos ocorrendo orientados à busca dos desaparecidos, dentre os quais
muitos enterrados em cemitérios do país sem identificação, ora com os escritos
“NN”, ora como “XX”. O estadunidense Clyde Snow, antropólogo forense
contratado pela CONADEP (FONDEBRIDER, 2008) foi o pioneiro. Os estudos
cobrem grande amplitude de temas, tais como reflexões sobre repressão,
memória e usos do passado para a legitimação de ações do presente,
estratégias repressivas e táticas de resistência (ZARANKIN; SALERNO 2008),
contextualização e problematização das transformações ocorridas na instituição
escolar (ZARANKIN, 2002), etc. No campo da arqueologia da arquitetura os
estudos da cultura material foram realizados nos próprios centros clandestinos
de detenção (ZARANKIN; NIRO, 2006), que demonstrou a institucionalização de
determinadas práticas de tortura -dentre as quais as elaboradas e partilhadas
pela conhecida Operação Condor- contribuindo para o acúmulo de acervo
153
documental e também para o desenvolvimento das teorias arqueológicas em
geral.
2.2 Chile
Assim que o general Augusto José Ramón Pinochet Ugarte (1915-2006)
tomou o governo civil no Chile, reprimiu brutalmente todos os oponentes. O
marco é 11 de setembro de 1973 de uma repressão que se estendeu por 17
anos. Em 1978, é instituída a Lei Chilena da Anistia (Ley de Amnistía), pelo
Decreto-Lei n. 2.191, de 18 de abril de 1978, pelo general Augusto Pinochet.
Nela, barra-se toda a persecução de quase todos os crimes de direitos humanos,
que ocorreram desde o golpe militar. Mesmo sob a brutalidade do período,
como enfatiza Hayner (2002, p. 35-38), o general Augusto Pinochet deu suporte
a grupos políticos de direita e quando concedeu plebiscito, em 1988, para
continuar com suas regras, ele perdeu por pouco. O general Augusto Pinochet
se tornou chefe das forças armadas e senador vitalício. Embora tenha havido
uma Comissão da Verdade já em 1990, a discussão sobre a violação de direitos
humanos apenas começou em 1998, após o general Pinochet deixar de
comandar as forças armadas e a cadeira vitalícia no Senado, bem como ser,
posteriormente, preso em Londres em extradição a pedido do governo
espanhol. Desde então, o número de mortos ou desaparecidos varia conforme o
reconhecimento do Estado ou a exposição de entidades envolvidas.
Ainda que a Lei da Anistia não tenha sido revogada ou anulada, como
forma de resgate e preservação do direito à memória e à verdade, no Chile, o
governo de Patrício Aylwin Alzócar decide investigar sobre o passado recente e
estabelece a Comissão Nacional da Verdade e Reconciliação (Comisión Nacional
154
de Verdad y Reconciliación), chamada de Comissão Rettig, em 1990, através do
Decreto Supremo n. 355, de 25 de abril do mesmo ano, e se estendeu por nove
meses, até fevereiro de 1991 (HAYNER, 2002, p. 35-38). Ela era presidida por
Raúl Rettig Guissen (1909-2000), professor, advogado e político pelo Partido
Radical, de vertente liberal, originado em 1863 e atualmente denominado de
Partido Radical Social Democrata, com a fusão, em 1994, do Partido Social
Democrata do Chile. A Comissão Rettig teve como objetivo determinar como
ocorreram as violações de direitos humanos durante o governo do general
Augusto José Ramón Pinochet Ugarte (1915-2006), entre o período de 11 de
setembro de 1973 e 11 de março de 1990.
Do trabalho desta comissão, resultou o Relatório Rettig (Informe Rettig),
finalizado em 8 de fevereiro de 1991, que, embora tenham sido mapeados
3.400 casos de violações de direitos humanos, reconheceu-se oficialmente tão
somente 2.920 mortes praticadas por agentes do Estado, ao longo do regime de
governo do general Augusto Pinochet. Para este número, o relatório de 1.800
páginas contabilizou apenas os desaparecimentos e as execuções, sendo 95%
dos casos de responsabilidade de agentes ligados ao Estado e 4% restantes, de
responsabilidade de uma pequena força armada de esquerda, durante uma
guerra civil instaurada no país (HAYNER, 2002, p. 35-38; CORREA, 2012). Neste
relatório, relatam-se a brutalidade do regime e a responsabilidade de agentes
nacionais e internacionais.
A partir de anúncios em jornais em todo o mundo em que se
perguntava sobre informações dos exilados, foi elaborado o relatório, que se
instrumentalizou por meio do agendamento de audiências familiares, com
155
duração média de 45 a 70 minutos. Uma rede de televisão nacional transmitiu
as conclusões do relatório, assim como um jornal impresso o divulgou na
íntegra. Houve um pedido formal de desculpas às famílias das vítimas. Ainda
que o general Augusto Pinochet não tenha questionado qualquer aspecto das
conclusões do relatório, não se desculpou e insistiu que as forças armadas
salvaram a liberdade e a soberania do país por meio do golpe de 1973. A
Comissão Rettig propôs um programa a ser criado para a reparação danos às
vítimas e familiares de mortos e desaparecidos, que mesmo que tenha sido
implementado, não se efetivou por completo. Houve também a organização de
arquivos a serem disponibilizados publicamente.
Na seara do Direito Processual Penal, sugeriu-se a modificação do
Código de Procedimento Penal (Código de Procedimiento Penal), em vigor pela
Lei n. 1.853, de 19 de fevereiro de 1906, para que houvesse prisão somente
após indícios suficientes de autoria (HAYNER, 2002, p. 35-38); este código cedeu
lugar ao Código Processual Penal (Código Procesal Penal), promulgado pela Lei
n. 19.696, em 29 de setembro de 2000, e que entrou em vigor entre 16 de
dezembro de 2000 e 16 de junho de 2005, nas diversas regiões do país.
Mauricio Duce J. (2010, p. 7), membro da comissão que formulou o novo Código
Processual Penal Chileno, escreve sobre os dez anos de vigência do novo
diploma como a “reforma del siglo”, já que implementou novos institutos e se
avançou em relação a direitos individuais acerca dos acusados e das vítimas,
como foi o caso da existência de audiência em até 24 horas da detenção, na
presença de advogado ou defensor público.
156
Entre as falhas da Comissão da Verdade ocorrida durante o governo do
presidente Patrício Aylwin Alzócar, refere-se à própria composição, do total de
oito integrantes, quatro foram indicados pelo general Augusto Pinochet,
incluindo o primeiro oficial deste governo. A Comissão Rettig era composta por
uma variedade de intelectuais, Raúl Rettig Guissen, que exercia a presidência;
Jaime Castilho Velasco (1914-2003), jurista e político democrático cristão; José
Luiz Cea Egaña (1941-), jurista de ideias democráticas cristãs e ministro do
Tribunal Constitucional do Chile entre 2002 e 2010; Mónica Jiménez de la Jara
(1940-), cientista política independente, pedagoga, assistente social e ministra
de Estado durante o governo da presidenta Michelle Bachelet; Ricardo Martin
Díaz (1911-2005), ministro da Corte Suprema de Justiça do Chile entre 1953 e
1958 e ex-senador designado, por um período de oito anos; Laura Novoa
Vásquez, advogada e membro do Conselho Assessor de Alto Nível para o
Desenvolvimento Sustentável das Nações Unidas; Gonzalo Vial Correa (19302009), historiador, jornalista e advogado de ideais conservadores e ex-ministro
da educação nos anos de 1978 e 1979, no governo do general Augusto
Pinochet; e José Fernando Pepe Zalaquett Daher, advogado de esquerda, preso
em 1975 e exilado em 1976, e membro da Comissão Interamericana de Direitos
Humanos entre 2001 e 2004. A Comissão tinha como secretário Jorge Correa
Sutil (1954-), advogado e político membro do governo de Lagos.
Outra falha que teve atenção da imprensa nacional chilena foi que
quatro semanas após a divulgação, três ataques foram realizados, conforme foi
noticiado, por uma força armada de Esquerda contra membros da elite política
de direita, dentre os quais se incluía o senador Jaime Guzmán, confidente
157
próximo a Pinochet, e que foi assassinado. Estes incidentes tiraram o foco do
relatório, durante a cobertura da mídia, tornando ineficazes as discussões sobre
os planos sociais de reconciliação, conforme apurou a Human Rights Watch.
Atualmente, tem-se como 60 mil o número oficial de mortos durante o governo
do general Augusto Pinochet. No entanto, estima-se que existam entre 50 mil a
200 mil torturados não listados (HAYNER, 2002, p. 35-38). A pedido de
organizações de direitos humanos, em 2009, o Parlamento chileno reabriu a
Comissão da Verdade e recomendou a seus membros que tomassem, durante
seis meses, novos testemunhos de vítimas. Mesmo com a nova contagem,
organizações de direitos humanos estimam que há muitos casos de abusos sem
ser contabilizados.
Houve ainda, no Chile, a Comissão da Verdade sobre Prisão Política e
Tortura (Comisión Nacional sobre Prisión Política y Tortura), também conhecida
como Comissão Valech, com duração oficial de seis meses, entre os anos de
2003 e 2004 (HAYNER, 2002, p. 35-38), apresentou resultados até 2011. Ela
também se debruçou sobre o período de dezessete anos do governo do general
Augusto Pinochet, e também teve como objetivo determinar como se deram as
violações de direitos humanos, suprindo lacunas da Comissão Rettig. O nome da
comissão é uma homenagem ao bispo emérito de Santiago, monsenhor Sérgio
Valech (1927-2010), que a presidiu até sua morte. Esta comissão foi constituída
pelo Decreto n. 1.040, de 26 de setembro de 2003, no governo de Ricardo Lagos
e se compunha de duas fases. Na primeira fase, o órgão ouviu mais de 35 mil
testemunhos de pessoas que sofreram abusos. E, na segunda fase, em 28 de
novembro de 2004, o governo de Lagos anunciou que 28.459 casos haviam sido
158
qualificados como vítimas oficiais. Desta comissão resultou a sugestão de
proposição de projeto de lei para a revogação da Lei de Anistia. Dela, também
se originou a Lei n. 19.992, de 24 de dezembro de 2004, para a reparação e
outorga outros benefícios às famílias das vítimas do governo de Augusto
Pinochet. Assim como a Comissão Rettig, a Comissão Valech era constituída por
oito pessoas, em sua maioria advogados e políticos, mas também constituído
por religioso e psicólogo. Foi instituída uma Segunda Comissão Valech, de 17 de
fevereiro de 2010 a 18 de agosto de 2011, com os mesmos membros da
primeira, pelo Decreto Supremo n. 43, de 5 de fevereiro de 2010 e pela Lei n.
20.405, de 10 de dezembro de 2009, no governo de Michelle Bachelet (1951-),
em que se reconheceu novos casos de prisões políticas e tortura.
2.3 África Do Sul
Na África do Sul, a transição do apartheid para o novo governo só foi
possível perante um entendimento do Partido que estava saindo, o Partido
nacional, com o novo governo do Congresso Nacional Africano (ANC). Porém,
havia a uma dificuldade em lidar com os grupos responsáveis pela
implementação do apartheid e os crimes contra os direitos humanos praticados
durante esse período. Haja vista que muitos desses responsáveis foram
necessários ao novo governo para garantia da ordem e segurança do país
(policiais e militares), ao mesmo tempo em que militantes que lutaram contra o
regime também haviam se envolvido em lutas e praticaram violações contra os
direitos humanos (CINTRA, 2001).
159
Nesse sentido, algumas iniciativas para indenizar ou anistiar previam que
os dados não fossem divulgados, isto é, não haveria necessidade de revelar a
natureza dos crimes perpetrados. Um exemplo foi o projeto The Further
Indemnity Bill de 1992, o qual previa que, além de todos os crimes serem
perdoados, as atas dos procedimentos de investigação deveriam ser destruídas,
restando apenas uma lista dos anistiados ao público.
Apesar dessas iniciativas, foi entendido que a recuperação da verdade
teria um efeito “proativo e curativo nos processos de implantação
democrática”, pois possibilitaria a reabilitação das vítimas e evitaria que o novo
governo fosse prejudicado diante da ocultação das informações. Assim, foi
incluída na Constituição provisória conexões entre reconciliação, reconstrução e
os futuros arranjos de anistia (CINTRA, p.7).
Para cumprir o mandado constitucional, por iniciativa do Parlamento foi
criada a Truth and Reconciliation Commission (TRC)4, a partir da lei Promotion of
National Unity and Reconciliation Act 34 de 1995. Esta comissão teve um
mandato de três anos. O período analisado compreende os anos de 1960 a
1994. Esta comissão foi constituída por cidadãos sul-africanos imparciais e sem
militância política. O responsável pela TRC foi o Arcebispo Tutu. Os membros da
comissão se dividiram nas seguintes subcomissões Violações dos Direitos
Humanos (HRV), o de Anistia (AC) e o de Reparação e Reabilitação (R&R).
A HRV tinha como tarefa a investigação das violações fossem elas
resultado da ação do Estado ou de qualquer outra organização, além de
4
O site oficial da TRC está disponível em: http://www.justice.gov.za/trc/trccom.html.
160
estabelecer a identidade e destino das vítimas. Para tanto, utilizaram-se de
investigação, depoimentos, documentos, proteção às vitimas e testemunhas,
aplicação de multa ou prisão para quem atentasse contra as investigações,
audiências públicas que foram televisionadas (USIP, 2012). Após a identificação,
a Comissão R&R deveria garantir o apoio, reabilitação e reparações financeiras
às vítimas, procurando assegurar que tais atos não se repitam. Apenas as
vítimas que testemunharam para o TRC eram elegíveis para participar do
programa de reparações, o que levou a um aumento significativo de
testemunhos.
Já a AC deveria analisar os pedidos de anistia para atos, omissões ou
ofensas associadas a um objetivo político. A TRC recebeu 7.112 pedidos de
anistia, dos quais 849 foram concedidos e 5.392 foram recusados. Aqueles que
não foram anistiados deveriam ser julgados e os relatórios da Comissão
deveriam ser preservados.
Apesar disso, as condenações se limitaram a
funcionários de baixo escalão e não incluíram comandantes policiais e militares,
nem líderes políticos. A comissão propôs que cada vítima ou a família deve
receber cerca de $ 3.500 dólares cada ano durante seis anos. Além disso, a TRC
produziu um relatório 3.500 páginas que foi amplamente divulgado (USIP,
2012).
Para Cueva (2011, p.345) “o fato é que a CVR sul-africana inaugurou uma
forma de investigar a verdade conduzida em público, que provavelmente deve
ter parecido inesperada ou extremamente audaz para as comissões anteriores”.
A TRC inspirou o surgimento de outras comissões da verdade com suas
inovações, assim como ressalta Hayner (2002, p. 18)
161
A Comissão da Verdade e Reconciliação da África do Sul [South
African Truth and Reconciliation Commission] conseguiu trazer este
tema para o centro da atenção internacional, especialmente através
de suas audiências públicas incluindo as vítimas e os perpetradores
descrevendo detalhes horríveis de crimes do passado. Apesar de um
bom número de comissões de verdade existentes antes da SulAfricana, a maioria não realizou audiências em público, e nenhum dos
outros incluíram essa proposta tão convincente (se também
eticamente problemática) de anistia individualizada, que conseguiu
atrair muitos malfeitores sul-africanos para confessar seus crimes na
frente das câmeras de televisão. (tradução nossa)
Porém, falhas também são apontadas: o Tribunal de Apelações afirmou
que não tinha competência para julgar empresas multinacionais acusadas de
"cumplicidade" do apartheid e a Agência Nacional de Inteligência continuou a
destruir documentos desafiando as duas moratórias do governo sobre a
destruição de registros.
2.4 Guatemala
A Comissão para o Esclarecimento Histórico da Guatemala (CEH) foi
fundada em 1994, pelo Acordo de Oslo, na Noruega, no entanto, o início de seus
trabalhos ocorreu apenas em 31 de julho de 1997 e funcionou até fevereiro de
1999 (HAYNER, 2002). Ou seja, teve duração de dezenove meses.
162
A CEH foi composta por três membros: um coordenador nomeado pelo
Secretário Geral da Organização das Nações Unidas (ONU), Kofi Annan, e dois
guatemaltecos nomeados por este coordenador. O coordenador nomeado foi o
professor alemão de Direito Internacional Dr. Christian Tomuschat. Assim, esta
comissão foi uma das poucas onde a maioria dos membros foi composta por
nacionais. Ao longo de seu trabalho, chegou a ter 269 profissionais, entre
pessoal de apoio e seguranças (SIMON, 2002).
Os membros da comissão gozavam de imunidades de prisão, detenção e
contra qualquer ação legal sobre seu trabalho. Além disso, todos os papéis e
documentos da CEH eram invioláveis. Outra característica importante da
comissão foi que se tratou de um instrumento híbrido, de natureza de Direito
Nacional e Internacional, resultado de um acordo de paz entre os grupos
armados insurgentes e o Estado da Guatemala, e de um decreto aprovado pelo
Congresso da República, intitulado Lei de Reconciliação Nacional (SIMON, 2002).
Observando que o mandato declarou apenas o ponto final do período de
inquérito, que foi a assinatura do acordo de paz entre as partes, a CEH teve que
interpretar o termo ''conflito armado'' na dimensão temporal, a fim de
determinar o ponto inicial de investigação. Desta forma, o período de
investigação se estendeu do início de 1962 ao final de 1996, ou seja, 35 anos
(SIMON, 2002).
As violações que cabiam à comissão esclarecer deveriam estar vinculadas
com o enfrentamento armado, tanto por parte dos grupos insurgentes quanto
do Estado (SIMON, 2002). Contudo, o mandato da CEH foi criticado por suas
limitações, principalmente porque, conforme o Acordo de Oslo, ao final não se
163
individualizariam responsabilidades e não teriam propósitos ou efeitos judiciais
(SIMON, 2002).
Os instrumentos utilizados pela comissão foram entrevistas e análise de
documentos. E, como resultado, foi apresentado o relatório "Guatemala:
Memoria del Silencio", aos representantes do governo da Guatemala, Unidade
Revolucionária Nacional Guatemalteca (URNG) e Secretário Geral da ONU.
Nesse relatório final, escrito em 12 tomos, a CEH examinou o papel das
instituições estatais e das estruturas da insurgência, assim como, a estrutura
social que produziu a violência. Estimou-se que o saldo de mortos ou
desaparecidos no conflito armado atingiu mais de 200.000 pessoas, sendo 83%
de origem maia (SIMON, 2002).
Foram documentados ainda 626 massacres (HAYNER, 2002), e que, entre
os anos 1981 e 1983, de 500 mil a 1,5 milhão de pessoas tiveram que migrar
internarmente ou refugiar-se em acampamentos ou no extrangeiro (SIMON,
2002). Neste período, houve uma exarcebação do conflito, com graves violações
de direitos humanos contra pessoas de origem maia, caracterizando atos de
genocídio. (HAYNER, 2002).
Concluiu-se também que o aparato do Estado de Guatemala,
durante décadas, não só havia combatido ações terroristas, como também
havia reprimido as liberdades políticas de seus cidadãos com métodos
terroristas (SIMON, 2002). Forças estatais e grupos paramilitares foram
responsáveis por 93% das violações documentadas, enquanto ações insurgentes
produziram 3% das violações de direitos humanos e atos de violência (HAYNER,
164
2002). O restante, 4%, foi atribuído a outros grupos armados ou pessoas sem
identificação (SIMON, 2002).
Entretanto, no relatório, não foi autorizada a identificação dos nomes dos
responsáveis por violações dos direitos humanos e atos de violência
investigados, salvo quando estes, por seu papel essencial na história no
contexto do confronto, tinham exercido funções importantes, dentro do
aparelho de Estado e da sociedade (SIMON, 2002).
A comissão investigou também os fatores externos durante o
enfrentamento armado e concluiu que a política anticomunista estadunidense
na Guatemala se concretizou em um plano militar de assistência destinada a
reforçar os aparatos nacionais de inteligência e treinamento de guerra contra
insurgente (SIMON, 2002).
O relatório final apresentou 14 recomendações centrais, como preservar
à memória das vítimas, fomentar uma cultura de respeito mútuo e observância
dos direitos, construções de monumentos, dedicação de parques públicos e
edifícios, recuperação de sítios maias e assistência financeira para exumações.
Recomendou ainda que o Estado promovesse: a responsabilização penal
referente aos delitos cuja responsabilidade não tivesse extinguido, em virtude
da Lei de Reconciliação Nacional; reformas estruturais, principalmente no
serviço militar e judiciário; e a criação de uma entidade capaz de monitorar o
cumprimento das demais recomendações.
Embora esse relatório tenha sido reconhecido pelos ex-insurgentes, o
governo
da
Guatemala
o
rebaixou
a
uma
investigação
discutível,
165
desconhecendo o informe como a história oficial do conflito armado, e não
aceitou suas recomendações, afirmando que muitas delas já tinham sido
incluídas nos acordos de paz e que os meios para verificação de sua
implementação seriam através da Missão de Verificação das Nações Unidas em
Guatemala -MINUGUA (SIMON, 2002).
2.5 Peru
A Comissão da Verdade e Reconciliação 5 (Comisión de la Verdad y
Reconciliación) foi criada em junho de 2001 pelo presidente de transição
Valentín Paniagua, sucedendo Alberto Fujimori após a queda do regime. O
mandato original de 18 meses da Comissão foi estendido por mais 5 meses,
encerrando-se os trabalhados da Comissão em agosto de 2003 6. O período
analisado por este órgão refere-se a maio de 1980 a novembro de 2000,
quando, segundo o termo utilizado pela CVR, houve um conflito armado entre o
grupo PCP- Sendero Luminoso e o Estado peruano. Como objetivos, estão
esclarecer as violações de direitos humanos e a violência terrorista; promover a
consolidação democrática; propor reformas e reparar as vítimas. Dessa maneira,
investigaram-se tanto os agentes de Estado quanto os grupos guerrilheiros.
Foram estabelecidos quatro escritórios localizados nas regiões com maiores
índices de violência, sendo que internamente os representantes destes
escritórios realizaram viagens para envolver a população, organizando feiras
rurais e encontros na língua quechua. (ICTJ, 2011). Diversas audiências
5
6
Doravante CVR.
Esta comissão teve duas precedentes nas seguintes datas: jan/fev 1983 e ago/1986.
166
garantiram a coordenação nacional, mediante encontros locais e regionais. O
caráter da CVR teve grande mobilidade, garantindo eficiência dada a dispersão
geográfica da violência durante o período ditatorial.
Os instrumentos utilizados foram a promoção de audiências públicas e
temáticas, bem como oficinas com grupos indígenas. A Comissão contou com o
auxílio de organizações internacionais como o Centro Internacional de Justiça
para Transição (International Center for Transitional Justice - ICTJ) e a
Associação de Direitos Humanos do Peru (Asociación Pro Drechos Humanos APRODEH). Além disso, recebeu ajuda financeira de alguns países. Suécia,
Canadá, União Europeia e o Instituto para a Promoção da Paz dos Estados
Unidos (United States Institute for Peace) colaboraram para os trabalhos da
Comissão. Como resultado, foi elaborado um relatório único de amplo acesso,
que analisou os atores envolvidos, buscou esclarecer as razões do golpe, bem
como trazer à tona as violações cometidas durante o período e relativas
sequelas ocasionadas. Tal documento encontra-se inclusive disponível no meio
eletrônico7. Identifica-se uma série de boas práticas da Comissão, pois em razão
dos instrumentos utilizados houve ampla participação da sociedade civil,
incluindo grupos minoritários, como indígenas e mulheres.
O Plano Integrado de Reparações (Plan Integral de Reparaciones)
proposto pela CVR
abrangeu aspectos materiais, simbólicos, individuais e
coletivos da reparação, entendida tanto no seu sentido jurídico quanto ético.
Este plano foi o resultado das atividades do Grupo de Trabalho de Reparações
(Grupo de Trabajo de Reparaciones – GTR), o qual iniciou suas atividades em
7
Disponível em: http://www.cverdad.org.pe
167
2001. No total, 19 oficinas de capacitação desenvolvidas a nível regional e local
foram organizadas por ONGs nas regiões mais afetadas pelo conflito. Como
objetivos, as oficinas buscavam recolher informações sobre os danos ocorridos
durante a ditadura, organizar uma proposta de reparações coletivas e promover
a participação das vítimas e organizações que apresentassem suas demandas.
Tais encontros propiciaram a identificação das necessidades das vítimas,
criando a responsividade e sensibilidade do Estado às reparações necessárias
(ICTJ, 2011). Um encontro reuniu cerca de 100 pessoas em 2002, na cidade de
Ayacucho, reunindo ONGs, vítimas e membros da Comissão. Dito encontro
propiciou o diálogo entre os trabalhos conduzidos. Posteriormente, a CVR
organizou um processo de consultas com as organizações das vítimas. Iniciado
em Lima, diversas ONGs replicaram um modelo piramidal para auferir as
demandas das vítimas. O documento final, sintetizando todas as demandas, foi
apresentado em 2003 na cidade de Chaclacayo, gerando a inclusão de uma série
de reparações e reformas que não estavam inicialmente contempladas pela
proposta inicial da Comissão (como as reformas educacionais).
O Plano Integral de Reparações, em sua proposta final, aborda o impacto
diferenciado da violência através do recorte étnico-racial e de gênero durante o
período. Tem como objetivos o reconhecimento das vítimas durante o período,
de maneira a “reestabelecer a confiança cívica e a solidariedade social” 8 (PERU,
2003c, p.9), prescrevendo reparações materiais, morais e sociais às vítimas e
aos seus respectivos familiares.
8
Tradução nossa. No original “restablecer la confianza cívica y la solidaridad social”.
168
A CVR propôs uma série de reformas institucionais, segundo os marcos
do Decreto Supremo nº 065-2001-PCM, as quais são entendidas como garantias
de prevenção de que as violações descritas não ocorram novamente (PERU,
2003b, p.1). Em relação à educação, foram propostas alterações no ensino
básico e superior relativas à formação de professores, aos materiais didáticos
utilizados e ao currículo. Além disso, foi incluída a prova de educação cívica na
grade escolar. Todas essas ações tem por objetivo a promoção de valores
democráticos através da educação de qualidade, qual seja (PERU, 2003b, p.112):
“o respeito aos direitos humanos, o respeito às diferenças, a valorização do
pluralismo e da diversidade cultural, visões atuais e complexas da realidade
peruana, notadamente nas zonas rurais”9.
O documento elaborado pela CVR relativo às reformas institucionais
contempla também o Executivo, o Legislativo, o Judiciário, a Polícia e as Forças
Armadas. No geral, ditas recomendações visam assegurar a consolidação
democrática em todo o território nacional via as instituições previamente
existentes, garantindo que estas atuem para a promoção dos direitos humanos
e da constituição e assegurem o controle civil democrático sobre as instituições
militares (PERU, 2003b, p.4). Destaca-se a proposta do reconhecimento dos
direitos dos povos indígenas pelo marco constitucional nacional – os quais
foram reconhecidos como um dos grupos mais afetados pela repressão durante
a ditadura peruana10. Por último, pode-se citar as propostas de reformas da
9
Tradução nossa. No original: “el respeto a los derechos humanos, el respeto a las diferencias,
la valoración del pluralismo y la diversidad cultural, y visiones actualizadas y complejas de la
realidad peruana, especialmente en las zonas rurales”.
10
Do total de 75.000 vítimas decorrente da ditadura, cerca de 75% foram povos indígenas
(ICTJ, 2011, p. 3)
169
política penitenciária, as quais visam assegurar um tratamento humanizado aos
presos, entre outros elementos.
Materiais visuais são um importante meio de comunicação, transmitindo
o realismo das histórias contadas e a identificação da plateia com os retratados.
Por isso, destaca-se a realização da exposição fotográfica “Yuyanapaq: para
lembrar”. A exposição, que percorreu diversas cidades do país, continha
imagens do conflito recolhidas pela Comissão. Além disso, foi disponibilizado
um banco de imagens reunindo memórias da ditadura peruana e da repressão,
e posteriormente um livro foi publicado. O uso do teatro para a promoção dos
direitos humanos durante períodos de justiça transicional também são uma
ferramenta relevante, destacando-se a atuação do grupo peruano Yuyachkani
no país.
Como outros produtos da atuação da CV, destaca-se a elaboração de
uma lista única de desaparecidos durante a ditadura disponível no meio
eletrônico, a investigação de fossas comuns com o objetivo de identificar
possíveis vítimas da violência no período investigado e a execução do registro
nacional de locais de enterro para que parentes das vítimas possam melhor
localizar onde estão enterrados os seus entes. Já o Plano Nacional de Exumação
possibilitou a exumação de fossas comuns durante o mandato da CV, nas
localidades de Chuschi, Totos e Lucanamarca na cidade de Ayacucho. Este plano
previu o acompanhamento psicológico e social dos familiares antes, durante e
após a identificação das ossadas.
Como falhas que dificultaram o andamento da CVR, como analisa a ICTJ
(2011, p.13), a manutenção do controle dos meios de comunicação por grupos
170
conservadores, os quais tiveram participação ativa durante a ditadura, debilitou
a divulgação dos trabalhos durante o seu andamento. A imprensa apenas
cobriu as atividades da CV em períodos de baixa audiência os quais, mesmo
assim, foram esparsos. A falta de recursos e de apoio institucional, bem como a
dificuldade no acesso de certas informações, também constituem elementos
que dificultaram o trabalho da Comissão.
Segundo estudo conjunto da APRODEH e da ICTJ (2011), desde 2007
foram investidos cerca de US$ 53 milhões de dólares no Plano de Reparações
Coletiva, o que representa uma cifra significativa. Os projetos são avaliados pela
grande maioria da população beneficiária como positivos (ibidem, p. 56), apesar
de considerarem o montante de US$ 35 mil destinado a cada comunidade como
insuficientes. O fato de grande parte de a população beneficiária ser
historicamente excluída dos sistemas básicos oferecidos pelo Estado tem
contribuído, segundo o informe, para restaurar a confiança e a solidariedade
social.
3. Recomendações dos Organismos Internacionais à Comissão da Verdade no
Brasil
A Organização dos Estados Americanos (OEA) elogiou a criação da CNV
no Brasil, que já destacou que participará de buscas no Araguaia. Isso porque
em 2010, a Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) condenou o
Estado brasileiro e pediu explicações ao Brasil sobre a demora na localização e
identificação de restos mortais dos participantes da Guerrilha do Araguaia
(BRASIL, 2011).
171
A respectiva sentença exigia que: fosse conduzida a investigação e que
fossem determinadas as responsabilidades penais; se realizasse esforços para
determinar o paradeiro dos desaparecidos; se oferecesse tratamento médico e
psicológico às vítimas que o requeiram; se realizasse a publicação da sentença
em veículo de grande circulação e em página oficial do Estado na internet bem
como um ato público de reconhecimento da responsabilidade internacional do
país; fosse implementado um programa obrigatório de treinamento em direitos
humanos nas Forças Armadas; tipificassem o desaparecimento forçado de
pessoas em conformidade com parâmetros da OEA; continuassem as iniciativas
de busca, sistematização e publicação de informações sobre a Guerrilha do
Araguaia, especificamente, e da ditadura como um todo; pagasse indenização
material nos termos definidos pela Corte e realizassem a convocação dos
parentes para que, dentro de seis meses, apresentem prova suficiente que lhes
permita a identificação como tais para poderem apresentar pedido de
indenização (BRASIL, 2011).
Além disso, por meio de um relatório de admissibilidade, aprovado em
novembro de 2012 e divulgado em janeiro de 2013, a CIDH (2012) admitiu
oficialmente mais um caso relacionado ao período da ditadura brasileira. A
petição busca a responsabilização internacional do Estado brasileiro pela morte
do jornalista Vladimir Herzog, em dependência do Exército, e foi apresentado à
Comissão em 2009 pelo Centro pela Justiça e o Direito Internacional (CEJIL), pela
Fundação Interamericana de Defesa dos Direitos Humanos (FIDDH), pelo Grupo
Tortura Nunca Mais de São Paulo e pelo Centro Santo Dias de Direitos Humanos
da Arquidiocese de São Paulo.
172
Para Amerigo Incalcaterra, representante regional para América do Sul
do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos das Nações
Unidas (ACNUDH):
“A Comissão da Verdade é uma ferramenta fundamental no
cumprimento da obrigação que tem o Estado de esclarecer todas as
violações contra os direitos humanos, sem importar o tempo
transcorrido desde os acontecimentos [...]As Comissões da Verdade
são um mecanismo para ajudar os Estados na reconstrução de uma
parte importante da história do país e para orientar os seus esforços
na procura de verdade, de uma efetiva reconciliação nacional e para
evitar que fatos dessa gravidade se repitam no futuro”. (ACNUDH,
2012)
No relatório promovido pela Revisão Periódica Universal (RPU, 2012)
ligada ao Conselho de Direitos Humanos da ONU também existem
recomendações no sentido de reformas institucionais, perante a extinção da
Polícia Militar e a implementação de Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs)
bem como a reforma sistema penitenciário.
Já o ICTJ sugere que se façam um relatório resumido das informações
além do relatório final, e uma versão educativa, resumindo os fatos para
crianças e jovens, de forma a levar essas informações ao currículo escolar. Além
disso, observam que a CNV do Brasil é a primeira iniciativa no mundo a incluir
comitês estaduais e locais. Por outro lado, destacam que o mandato é muito
amplo e a investigação de quatro tipos de crimes: tortura, mortes,
173
desaparecimentos forçados e ocultação de cadáveres. O Presidente do ICTJ
David Tolbert afirmou que “[...] auxiliar a todos os brasileiros e abrasileiras a
lidar com seu passado e buscar um futuro duradouro de tolerância e liberdade”.
A Anistia Internacional declarou que espera que as conclusões desta
comissão impulsionem os notáveis esforços do Ministério Público Federal, que
tem ajuizado processos criminais contra suspeitos de violações de direitos
humanos do passado. Também enfatizam que a comissão deve buscar a
verdade, a reparação e também a justiça. Tim Cahill, responsável da Anistia
Internacional no Brasil, ressaltou que a CNV é uma “[...] plataforma para trazer a
justiça que essas famílias precisam” (PENTEADO, 2012). Nesse sentido, em
comunicado à imprensa no dia 11 de maio de 2012, o diretor executivo da
Anistia Internacional no Brasil Atila Roque diz que “a revelação da verdade e a
realização da justiça servem tanto para garantir os direitos das vítimas e seus
familiares, como para garantir que esses crimes não se repitam”.
Em carta a Presidente Dilma Roussef, José Miguel Vivanco (2012) da
Human Rights Watch declarou seu apoio a propiciar os recursos e o apoio
necessários para que a CNV tenha sucesso em sua missão histórica. Anseiam
que sejam esclarecidos os 500 casos de mortes e desaparecimentos forçados
ocorridos durante o regime militar (1964-1985) ao mesmo tempo em que
ressaltam a obrigação perante o direito internacional de investigar, processar e
punir os responsáveis por sérias violações aos direitos humanos: “Esperamos
que a comissão da verdade brasileira seja seguida por esforços direcionados à
responsabilização criminal dos envolvidos em violências passadas”.
174
4. Conclusão
Diante da análise de tais comissões, pudemos identificar algumas práticas
que merecem destaque e que podem ser norteadoras dos trabalhos que estão
sendo realizados no Brasil. Verificamos que na África do Sul, Argentina, Peru,
Chile houve uma ampla divulgação nos meios de comunicação. Algumas se
utilizaram de transmissão durante o processo (audiências públicas, temáticas) e,
na Argentina, destaca-se o estímulo à participação dos exilados. A realização de
exposições fotográficas no Peru, e de caravanas em regiões distantes na África
do Sul são também dois instrumentos que cumprem o mesmo objetivo de
divulgar as atividades das CNVs.
A composição da Comissão com membros imparciais, isentos da
influência do Estado foi um feito presente na Guatemala e África do Sul. Esta
característica, naturalmente, tornou os trabalhos das CNVs mais eficientes e
efetivos. Ainda relativo à natureza das CNVs, a existência de um instrumento
híbrido na Guatemala, de direito nacional e internacional, composto por
membros das Nações Unidas, possibilitou o funcionamento das comissões num
contexto de debilidade estatal.
Por outro lado, notamos como positiva a proposta de uma série de
reformas que visam à reestruturação do Estado e da formulação de políticas
públicas. Entende-se que não basta recordar, tornar público, reparar, mas
também reformas as instituições que colaboraram para a repressão durante os
respectivos períodos analisados. É o caso das propostas de reformas
institucionais do Executivo, Legislativo, Judiciário, Polícia, Forças Armadas na
Argentina, Peru, Guatemala e Chile, da proposta de reformas da política
175
penitenciária e da proposta de políticas sociais para os setores excluídos da
sociedade no Peru. Além disso, uma série de recomendações de reformas
educacionais relativas à formação dos professores, ao material didático e aos
currículos escolares foi realizada na Argentina e no Peru.
Relativo às reparações previstas, a existência de um plano integrado de
reparações, que abranja questões materiais, simbólicas, individuais e coletivas,
é uma boa prática presente em todas as comissões analisadas. Destaca-se a
criação de um fórum para o monitoramento da implementação das medidas
recomendadas na África do Sul, e Guatemala, como também a criação de um
grupo de trabalho para continuar as investigações de desaparecimentos na
África do Sul, Chile e Argentina, visto que dificilmente os mandatos das CNVs
são capazes de analisar todos os casos existentes.
Baseado nesta análise comparativa das boas práticas das comissões
estudadas, bem como nas recomendações dos organismos internacionais,
entendemos que, para assegurar efetivos resultados na conclusão de seus
trabalhos, nossa Comissão deve continuar buscando mecanismos ágeis para o
recebimento de denúncias e violações de direitos humanos. Além disso, deve
cooperar com outras Comissões da Verdade em âmbito internacional e
subnacional, promovendo parcerias com movimentos sociais, sindicatos,
universidades e outras entidades da sociedade civil e aproveitando o
mapeamento prévio dessas entidades para a sua investigação. Dessa maneira, a
CNV vislumbrará cada vez mais clareza, transparência e divulgação nos seus
procedimentos de investigação – elementos que como determinantes para o
trabalho exitoso durante a justiça transicional. Por último, a inclusão no escopo
176
de investigação da CNV dos atores privados (empresas) que financiaram as
atividades da ditadura militar também é um elemento a ser destacado.
Sugerimos, assim como o ICTJ, que, além do relatório final completo e
bem detalhado, seja elaborado um relatório simplificado, mais acessível à
população, com uma linguagem mais objetiva. Adicionalmente, seria
interessante que o relatório destacasse as minorias (indígenas, camponeses,
garimpeiros, comunidades tradicionais, mulheres, crianças, negros) em seu
conteúdo, prevendo políticas transversais.
Outros resultados que poderiam ser alcançados perpassam pelo
desenvolvimento de projetos culturais, seja por meio de festivais de cinema,
teatro, programas de TV, pela construção de um memorial, uma fundação e
vários centros de memória pelo país (mesmo que um Memorial já esteja
previsto pela Anistia). Além disso, é primordial a inserção das questões relativas
à Comissão Nacional da Verdade, aos Direitos Humanos e às lutas sociais nos
currículos escolares e nos cursos de capacitação de órgãos do Estado. Também
defendemos a proposição de um anteprojeto de lei de revogação da Lei da
Anistia do Brasil em conformidade com os acordos internacionais.
Além disso, poderia ser prevista uma Reforma Institucional, focando na
formulação de um código penal e de processo penal garantista, bem como nos
procedimentos da atuação da polícia e do sistema carcerário. A substituição dos
nomes de rua, praças, parques e demais edifícios públicos relacionados a
torturadores, bem como a identificação dos corpos e locais onde ocorreram as
torturas, é igualmente uma medida necessária. Por último, sabemos que é
possível já acompanhar a agenda da Comissão pelo seu site e redes sociais,
177
porém para que seus resultados sejam amplamente acessíveis à sociedade
deveria haver uma maior divulgação das suas atividades – inclusive a realização
de caravanas regionais. Para que todas essas propostas sejam efetivas,
sugerimos a criação de um órgão que possa monitorar a implementação das
recomendações da Comissão.
Apesar do objeto de suas recomendações ser a garantia do direito à
verdade, à memória e à justiça, buscando reparar aqueles que sofreram
violações durante o período estudado e punir aqueles que colaboraram com as
torturas, o direcionamento dessas recomendações se refere a toda sociedade
civil e, primordialmente, o Estado. Nesse sentido, acreditamos que o cenário
atual deve ser alvo de uma frequente vigília, buscando evitar que os erros
cometidos no passado não sejam repetidos pelo Estado.
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