FÁBIO LUIS SILVA NEVES FICÇÃO, HISTÓRIA E IDEOLOGIA NAS REEDIÇÕES CRÍTICAS DE VISCONDE DE TAUNAY TRÊS LAGOAS – MS 2010 FÁBIO LUIS SILVA NEVES FICÇÃO, HISTÓRIA E IDEOLOGIA NAS REEDIÇÕES CRÍTICAS DE VISCONDE DE TAUNAY Dissertação apresentada ao Programa de PósGraduação em Letras (Área de Concentração: Estudos Literários) do Câmpus de Três Lagoas da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul – UFMS, como requisito para obtenção do título de Mestre em Letras. Orientador: Prof. Dr. João Luis Pereira Ourique TRÊS LAGOAS – MS AGOSTO/2010 TERMO DE APROVAÇÃO NEVES, Fábio Luis Silva. Ficção, História e Ideologia nas reedições críticas de Visconde de Taunay. Três Lagoas, 2010. 127 f. Dissertação (Mestrado em Letras, Estudos Literários) – Universidade Federal de Mato Grosso do Sul UFMS. COMISSÃO JULGADORA ___________________________________________________________________________ Presidente e Orientador: Prof. Dr. João Luis Pereira Ourique (UFPel) ___________________________________________________________________________ Membro titular: Profª Drª Maria Lídia Lichtscheidl Maretti (Unesp, campus de Assis) ___________________________________________________________________________ Membro titular: Profª Drª Rosana Cristina Zanelatto Santos (UFMS, campus de Campo Grande) ___________________________________________________________________________ Suplente: Profª Drª Rosani Úrsula Ketzer Umbach (UFSM) ___________________________________________________________________________ Suplente: Prof. Dr. José Batista de Sales (UFMS, campus de Três Lagoas) Três Lagoas, 23 de agosto de 2010 Dedico esta dissertação de mestrado aos meus pais Luiz de Souza Neves e Cassilda da Silva Neves e aos meus irmãos Fernanda Gisele da Silva Neves e Luis Paulo Silva Neves por sempre acreditarem em mim, pela dedicação de amor e carinho e por todos os ensinamentos ao longo de toda a vida. Dedico também ao meu orientador João Luis Pereira Ourique, que, mesmo quando distante, me ensinou a lidar com os percalços da academia, da inquietante pesquisa e da vida e também por toda sua generosidade intelectual. AGRADECIMENTOS Agradeço a minha orientadora de graduação Sheila Dias Maciel, primeira pessoa a acreditar em mim, pelos ensinamentos de pesquisa, leitura e de vida. Por ter me iniciado nos estudos sobre o Visconde de Taunay, pois sem a qual, a realização deste trabalho não seria possível. Aos meus amigos de sempre: Mauro Dela Bandera Arco Júnior, Nicolau Dela Bandera Arco Neto, Renan Buchini e Diego Felipe Scalada, por estarem presente nas melhores discussões, pela troca de referências que me serviram (e muito!) para a elaboração deste trabalho. Ao Denílton José Mazoni (Zulu), Eduardo Pascoal (Dú), Igor Conterato, Adriano (Juca) Moura, Éder Nascimento, Patrícia Motokio Leite, Virna Vieira Leite, Sílvia Hirata, Renato Fortes, Renato Carrilho, Rosamaria Góes, Inajara Conterato, Élder Ribas, Jaque Ribas, Diego Aureliano, Andrey Martin, Tiago Bertolin, Taiana Patrícia Pereira, Ronie Cavalari, Tiago Breve (Axé), Humberto dos Santos (Nasi), Ricardo Hilário Abreu, João André Marques, Emerson (Curuja), Ana Carolina Marinho, Caio Balestra, Bruno Franzon, Erica Franzon, Maria Carolina Bernardo, Zizelle (Zi), Uiara Santos, o casal Luciano Grechia (Dente) e Karina Fátima de Souza, o casal Rodrigo Simão e Juliana Mota, Alexandre Falcão, Lilian Falcão, Renato Pompeo, André Pompeo, Natália Ruela, Luana Jundi, Maria Helena Milanez, Susan Keiti, Carol Guastaldi, Rafael Nadim, Sarah Nadim, Éric Marson, Renato Spinosa (Búfalo), Karla Porto Bitencourt, Thaís Paschoal, Nalija da Mata, Artur Rondina, o casal Dennis Damasceno e Vivianny de Assis, Narciso (Entalhador), Anderson (Bikinha) Schuman, Diego e André Verona, Silvio Dias, Vantie, Vinicius Vendramini (Perna), Diego Ucles (Tchuco) por me divertirem quando preciso, pela troca de diálogos, pelo companheirismo e pela amizade constante, quando muito pouco pude oferecer em recíproca. Aos meus familiares: avós, tios, primos. Em especial para Filomena Alves de Carvalho (avó), Moisés José da Silva (in memoriam), Áurea Rosa de Souza Neves (in memoriam) João Procópio Neves (in memoriam), José Neves (in memoriam), aos tios sempre presentes Laudelino Neves e Sueli Schadeck, Maria Aparecida da Silva e Jorge Tominaga, Eurípedes Neves e Cléria Oliani, os primos Gustavo e Juliano Neves e Geovana e Vanessa Tominaga, também ao meu cunhado Silvio Leite, parceiro de conversas, música e futebol. Aos professores inesquecíveis do Cefam de Tupi Paulista: Tsutomo Machino, Clóvis, Clécio, João Torres e Regina Mazzo. Aos colegas de mestrado e pesquisa. Aos professores inesquecíveis da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, campus de Três Lagoas: José Batista de Sales, pelo caráter, ensinamentos, amizade e preciosa leitura no exame de qualificação deste trabalho. Antonio Rodrigues Belon, pelo caráter, ensinamentos, amizade e postura diante das causas “perdidas”. Kelcilene Grácia-Rodrigues, pelas inesquecíveis aulas e leituras literárias. Rogério Vicente Ferreira, Vitor Wagner Oliveira Neto, Maria Celma Borges, José Carlos Ziliani, Wagner Corsino Enedino, Rauer Ribeiro Rodrigues e Edgar César Nolasco. Por fim, aos professores de outras universidades, que mesmo à distância, aprendi a admirar: Paulo Nolasco dos Santos (UFGD), pela solidariedade de pesquisa e ensinamentos, Rosana Cristina Zanelatto (UFMS/Campo Grande), pela atenção, ensinamentos gratuitos e pela leitura atenciosa feita nos exames de qualificação e de defesa desta dissertação. Norma Wimmer (Unesp/S.J. Rio Preto), pela atenção, simplicidade e troca de materiais. Maria Lídia Maretti (Unesp/Assis), pela atenção, troca de materiais e pelo aceite de participar da banca de defesa desta dissertação. Marcelo Bulhões (Unesp/Bauru), pelos ensinamentos, atenção e oportunidade dada a um leigo em sua disciplina de pós-graduação. Há um quadro de Klee que se chama Angelus Novus. Representa um anjo que parece querer afastar-se de algo que ele encara fixamente. Seus olhos estão escancarados, sua boca dilatada, suas asas abertas. O anjo da história deve ter esse aspecto. Seu rosto está dirigido para o passado. Onde nós vemos uma cadeia de acontecimentos, ele vê uma catástrofe única, que acumula incansavelmente ruína sobre ruína e as dispersa sobre nossos pés. Ele gostaria de deter-se para acordar os mortos e juntar os fragmentos. Mas uma tempestade sopra do paraíso e prende-se em suas asas com tanta força que ele não pode mais fechá-las. Essa tempestade o impele irresistivelmente para o futuro, ao qual ele vira as costas, enquanto o amontoado de ruínas cresce até o céu. Essa tempestade é o que chamamos progresso. (Walter Benjamin) A história se repete, mas a força deixa a história mal contada. (Humberto Gessinger) RESUMO Esta pesquisa tem por objetivo analisar algumas reedições de obras do Visconde de Taunay surgidas nos anos de transição entre os séculos XX e o XXI, de modo a tanto fornecer ao leitor e ao pesquisador uma leitura crítica destas reedições, quanto apresentar uma outra versão histórico-literária do período. Tendo como base de nosso corpus a reedição do conto “Ierecê a Guaná”, de 2000, organizada por Sérgio Medeiros, propomos também a análise de outras duas reedições: a das Memórias, de 2005, também organizada por Medeiros, e a de Inocência, de 2006, dirigida por Hildebrando Campestrini e editada pelo Instituto Histórico e Geográfico de Mato Grosso do Sul. Partindo da análise de parte da fortuna crítica do Visconde de Taunay, produzida no século passado, e estabelecendo comparações com as manifestações críticas presentes nas reedições mencionadas, constatamos um embate crítico. Para tanto, apresentamos como base do percurso o material histórico sobre o autor, produzido por renomados críticos brasileiros do século XX, e formulações teóricas condizentes com o período em que as reedições se inserem. Ou seja, tais reedições têm proposta distinta da crítica que consagrou por mais de um século o escritor romântico brasileiro: nelas, a ficção é relida como manifestação direta, sem mediação, da vivência cultural e política do escritor e é indevidamente apropriada como uma fundação simbólica e atemporal que traz como resultado o fato de a ficção ser transformada em ideologia. Palavras-chave: Visconde de Taunay – crítica – reedições do século XXI – ficção – história – ideologia. ABSTRACT This research aims to analyze some reprints of works of Visconde de Taunay arising during the transition years between the XX and XXI centuries, in order to provide the reader with both the researcher and a critical reading of these reissues, as presenting another version of the literary-historical period. Based on our corpus reprint of the story "Ierecê a Guaná", 2000, organized by Sergio Medeiros, we also propose the analysis of two other reissues: the Memórias, of 2005, also organized by Medeiros, and of Inocência, 2006, directed by Hildebrando Campestrini and edited by the Institute of History and Geography of Mato Grosso do Sul. Based on the analysis of part of the critical fortune of Visconde de Taunay produced in the last century, and making comparisons with the manifestations present in critical reissues mentioned, we found a critical confrontation. Therefore, we present the basis of the course the historical material about the author, produced by renowned Brazilian critics of the twentieth century, and theoretical formulations consistent with the period in which new editions are included. That is, these reissues have separate proposal by the critics who devoted more than a century, the romantic writer in Brazil: them, the fiction is reinterpreted as a manifestation of direct, unmediated experience of the cultural and political writer and is misappropriated as a symbolic and timeless foundation which brings as a result of the fact the fiction being transformed into an ideology. Keywords: Visconde de Taunay - critical - reissues of the XXI century - fiction - history ideology. SUMÁRIO: INTRODUÇÃO ............................................................................................................... 12 1. VISCONDE DE TAUNAY: UM ESCRITOR EM TRANSIÇÃO .......................... 15 1.1 Um escritor viajante ............................................................................................ 16 1.2 Uma tênue linha crítica a respeito de Taunay: romântico ou realista? ......... 23 1.3 A fortuna crítica de Taunay: inclusão ou exclusão? ........................................ 35 2. IERECÊ A GUANÁ: HISTÓRIA E FICÇÃO ........................................................ 40 2.1 A relação entre História e Literatura: contrastes e convergências ................. 44 2.2 O foco narrativo ................................................................................................... 49 2.3 Índia romântica. Branco realista ....................................................................... 58 2.3.1 O exótico na caracterização da fala das personagens ............................. 63 2.3.2 O desfecho da trama amorosa ................................................................. 67 3. A PERMANÊNCIA DO IDEALISMO ROMÂNTICO ........................................ 76 3.1 Entre a ficção: as Memórias ................................................................................ 79 3.2 Uma memória dissimulada ................................................................................. 85 3.3 Da polêmica com Alencar ................................................................................... 96 4. O CÂNONE REVISITADO ..................................................................................... 104 4.1 O mito fundador ................................................................................................ 104 4.2 Da ficção à ideologia: símbolo e alegoria nas reedições ................................. 109 4.3 Sobre o conceito da história nas reedições ...................................................... 117 CONSIDERAÇÕES FINAIS ....................................................................................... 122 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ........................................................................ 124 INTRODUÇÃO Esta dissertação de Mestrado, intitulada Ficção, história e ideologia nas reedições críticas de Visconde de Taunay, apresenta-se em quatro partes. Tais partes estão divididas em capítulos, e esses, por sua vez, divididos em subcapítulos, quando necessários. O trajeto de pesquisa se desenvolve a partir da republicação da obra Ierecê a Guaná (2000) por Sérgio Medeiros e editora Iluminuras. Propomos aqui a investigação de todo material crítico referente a esta reedição e não somente do material ficcional do conto, uma vez que a edição de Medeiros difere da original publicada por Taunay. O conto Ierecê a Guaná, inicialmente publicado por Taunay em 1874, fazia parte de uma coletânea de contos intitulada Histórias brasileiras e foi publicado sob o pseudônimo de Sílvio Dinarte. Na reedição de Medeiros, o conto está publicado isoladamente, num volume autônomo, intitulado Ierecê a Guaná. Nele foram incluídos, pelo editor, dois outros textos etnográficos de autoria de Taunay, além de quatro críticas sobre o conto assinadas por Antonio Candido, Haroldo de Campos, Lúcia Sá e o próprio Sérgio Medeiros. É a partir da publicação deste material que se debruçam as demais análises da dissertação. Da reedição do conto em 2000, Sérgio Medeiros dá seguimento a uma segunda reedição, a obra autobiográfica de Taunay, Memórias, em 2005. A partir da análise do conto e do material crítico presente na primeira reedição, chegaremos à relação com a última, o que fica evidente quando feita a leitura de ambas. Por fim, propomos a relação com uma terceira reedição, Inocência (2006), oriunda do crescente interesse do meio editorial brasileiro pelo nome de Taunay no início do século XXI, em um volume denominado “símbolo de Mato Grosso do Sul”, editado pelo Instituto Histórico e Geográfico de Mato Grosso do Sul e organizado por Hildebrando Campestrini. Para tanto, seguimos como itinerário de pesquisa quatro etapas: A primeira parte, intitulada Visconde de Taunay: um escritor em transição, propõese a relatar os aspectos biográficos acerca do Visconde de Taunay, assim como o percurso percorrido pelo escritor enquanto viajante expedicionário pelas terras da região de Mato Grosso. Num segundo momento, será analisada a época em que suas obras foram produzidas, ou seja, na transição do Romantismo para o Realismo. Taunay estaria 13 realmente situado em uma transição de estilos ou inserido em uma tendência? Dessa maneira, chegaremos à última questão da etapa inicial, que é estabelecer análises e comparações dos dados da fortuna crítica do autor, levantando a seguinte indagação: por que as críticas sobre as obras relatadas foram escassas no século passado e qual a razão das novas roupagens dadas a estas no século atual? Utilizamos como suporte teórico, para esta última parte, a própria autobiografia Memórias, do Visconde de Taunay, e diversas obras de história e crítica literária brasileira. A segunda parte da dissertação, intitulada Ierecê a Guaná: história e ficção, tem por objetivo definir primeiramente o conceito de história e, num segundo momento, analisar os aspectos literários do conto. A discussão entre história e literatura, ou realidade e ficção, são muito delicadas e possuem lacunas por onde se encaixa o trabalho crítico. Esta abordagem comparativa dará suporte às discussões sobre o período romântico e retornará após a análise estrutural do conto. Para a conceituação do diálogo entre história e literatura apresentamos como base teórica ensaios de José Saramago, Sandra Jatahy Pesavento, Antonio Esteves e Ismael Ângelo Cintra, para a análise estrutural do conto textos de Norman Friedman, Massaud Moisés e Antonio Candido, para tratarmos da linguagem e do enredo do conto Mikhail Bakthin, Antonio Candido e Lúcia Sá. Já a terceira parte, por sua vez, intitula-se A permanência do idealismo romântico e é nela que propomos a análise propriamente dita do material das reedições elaboradas por Sérgio Medeiros. A tentativa, incessante, do editor de comparar o conto Ierecê a Guaná, sua primeira reedição, com os aspectos biográficos do autor, Memórias, segunda reedição, culminam em outra fundação histórica, se é que isso é possível, e em uma memória conflituosa acerca do Visconde de Taunay. Como suporte teórico desta etapa utilizamos Otto Maria Carpeaux, Alfredo Bosi, João Luis Lafetá, José Veríssimo, Nelson Werneck Sodré, Massaud Moisés, entre outros críticos literários, para exemplificar a permanência do idealismo romântico na obra do autor em questão, para a análise histórica e memorialística utilizamos ensaios de Beatriz Sarlo, Walter Benjamin e Sheila Maciel e para a análise do nacionalismo em contraste com a produção de José de Alencar, Tania Franco Carvalhal, além das críticas presentes na reedição do conto Ierecê a Guaná. As tentativas de transpor a ficção para uma possível memória factual e da história do período para uma concepção de modelo de literatura inovadora, feitas por Medeiros, acaba por construir uma ideologia. Esta é o campo de análise da quarta parte da pesquisa, intitulada O cânone revisitado. Das comparações de Medeiros entre os aspectos 14 ficcionais do conto e aspectos da vida política e cultural do Taunay das Memórias, chegaremos à construção do mito fundador, termo teórico de Marilena Chauí. Da possibilidade de leitura das reedições como fundações, adentramos na leitura da obra “símbolo de Mato Grosso do Sul”, onde ocorre a transformação da ficção em ideologia. Como base teórica desta parte utilizamos as definições de ideologia reunidas na obra de Marilena Chauí, a teoria de símbolo e alegoria de Walter Benjamin e a construção de símbolos e tipos literários de Umberto Eco. No último capítulo desta parte propomos uma leitura do passado (o sertanismo romântico de Taunay) sob um novo conceito de história, o do presente (século XXI), visando uma leitura cultural redimida no futuro, uma conceituação distinta de progresso daquela que lemos nas reedições. Para o suporte teórico desta última etapa, apresentamos o conceito de história de Walter Benjamin e a leitura filosófica do conceito de progresso de Theodor Adorno. O objetivo desta dissertação primeiramente é o de fornecer ao leitor e ao pesquisador do Visconde de Taunay um trajeto das novas reedições das obras do escritor que surgiram nos primeiros anos do século XXI. Num segundo momento, tentar apresentar outra versão histórica da literatura e da crítica de Taunay, ou uma leitura distinta daquelas produzidas nas reedições, tomando como base as críticas sobre o autor que permearam todo o século XX e, também, leituras teóricas condizentes com o período em que estamos inseridos. 15 1. VISCONDE DE TAUNAY: UM ESCRITOR EM TRANSIÇÃO O Visconde de Taunay é considerado, tanto pela crítica quanto pela historiografia, um escritor em transição. Há duas maneiras, frequentemente utilizadas, de relatar a transição acerca do autor. A primeira delas, geralmente, surge por meio dos estudos biográficos do escritor, ou quando toma-se como base a leitura de sua autobiografia Memórias. Esta corrente de análise é de caráter histórico e tem por base a vivência de Taunay enquanto um escritor viajante que percorreu o Centro-Oeste brasileiro, descrevendo os costumes e as paisagens do local. Portanto, a primeira maneira de perceber a transição em Taunay está relacionada à movimentação que este fez pelo espaço físico. Um escritor que observava, rememorava e escrevia em trânsito pelos locais descritos. Concepção esta que será abordada no primeiro capítulo desta parte: Um escritor viajante. A segunda maneira frequente de relatar a transição relaciona-se com a primeira. No entanto, a abordagem, desta vertente, possui maior foco no tocante ao caráter ficcional do que no que se refere ao caráter histórico. Se a partir da vivência do autor suas obras ficcionais passaram a ter uma descrição mais fiel das paisagens, do vocabulário e dos costumes do sertanejo e dos indígenas da região do então Mato Grosso, esta “fidelidade” descritiva chocou-se com a linguagem romântica produzida até então, o que levou grande parte da crítica literária a considerar o Visconde de Taunay um escritor em movimento entre o Romantismo e o Realismo. É no tocante à transição de escolas estéticas que aparecem as primeiras divergências críticas, dentre as várias que aqui serão evidenciadas. Observamos que alguns críticos consideram Taunay um escritor em movimento, porém outros o entendem como predominantemente romântico, considerando apenas algumas mudanças de caráter descritivo. A análise deste “embate” crítico está no segundo capítulo: Uma tênue linha crítica a respeito de Taunay: romântico ou realista? Entre a História e a Ficção: assim tem sido estudada a obra do Visconde de Taunay. É a partir da fortuna crítica do autor e de suas possíveis interpretações que se configuram os dois primeiros capítulos da dissertação, já mencionados, e, de maneira mais categórica, toda a segunda parte: Ierecê a Guaná: História e Ficção. Contudo, a transição na obra de Taunay chegará, nesta pesquisa, a um terceiro nível de análise: a discussão da inclusão e da exclusão de parte de suas obras no cânone literário brasileiro. Com a reedição de três obras, neste milênio de 2000, a fortuna crítica de Taunay 16 modificou-se, ou ampliou-se, o que acabou por gerar um novo conflito crítico. Para alguns críticos, o autor só merece ser estudado no tocante às obras Inocência e A retirada da Laguna; já para outros, várias obras esquecidas do autor merecem ser reconsideradas. Partindo desta última concepção, e considerando tal necessidade, surgiram novas edições de Ierecê a Guaná e das Memórias e para a crítica literária surgiu uma nova discussão: A fortuna crítica de Taunay: inclusão ou exclusão? – terceiro capítulo desta primeira parte. Discussão esta que retornará nas duas últimas partes (A permanência do idealismo romântico e O cânone revisitado) com o posicionamento da pesquisa efetuado. 1.1 Um escritor viajante Alfredo d`Escragnolle Taunay, doravante Visconde de Taunay, nasceu no Rio de Janeiro, então capital do Império do Brasil, em 22 de fevereiro de 1843. Filho de família rica e tradicional francesa, radicada na capital fluminense, o escritor pôde usufruir de bons estudos em colégios renomados, assim como ampliar seu conhecimento por meio do diferenciado convívio doméstico, do qual fazia parte. De seus familiares, Taunay recebeu, desde nascido, importante influência1, uma vez que estes ocupavam cargos de destaque na capital e levavam para casa diversas informações e uma vasta cultura política e social. O autor, em seu livro de memórias, relata este círculo: Foram meus pais Félix Emílio Taunay, naquela época diretor da Academia das Belas-Artes, filho do célebre pintor da Escola Francesa, e membro do Instituto de França, Nicolau Antônio Taunay, e de D. Gabriela d’Escragnolle Taunay, filha do Conde e da Condessa d’Escragnolle Taunay, esta da família de Beaurepaire, Adelaide de Beaurepaire (TAUNAY, 2005, p. 29). A presença desta intensa cultura na família do escritor – em especial no que concerne à arte – seria fundamental para o futuro escritor. Com os ensinamentos do pai, Taunay criou apreço pela observação do ambiente, retratando-o anos mais tarde em seus desenhos e pinturas. Mas foi, também, a partir dessa influência que o Visconde observou o sertão e o 1 Aqui o termo “influência” é tratado com o sentido de educação recebida por Taunay em sua formação, oriunda dos avós e pais, de geração a geração. 17 sertanejo e compôs uma descrição até então rara na literatura brasileira. Discutindo sobre a formação de Taunay, o crítico Antonio Candido indaga: Raras para o tempo foram também condições como as que encontrou no lar franco-brasileiro, na tradição de uma parentela de artistas e escritores, que haviam contribuído para delimitar entre nós certas áreas de sensibilidade pré-romântica [...] Entre alguns desses homens – tios, primos, amigos – que se apaixonaram à Chateaubriand pela beleza úmida e rutilante da floresta carioca, nasceu e se formou Alfredo d’Escragnolle Taunay. Os pais e tios prepararam-no para senti-la com um amor avivado de exotismo, e ele se orgulhava de saber apreciar a paisagem com mais finura e enlevo do que seus patrícios [...] (CANDIDO, 2000, p. 95-96). Simultaneamente a tais influências, formou-se o Visconde de Taunay no curso colegial em 1858. Em 1859 matriculou-se na Escola Militar, onde se fez “soldado do 4º batalhão artilharia de pé”. Estudou ainda no Colégio Central, em 1863, “cursando o quarto ano de matemáticas”. Já em 1864, aos 21 anos de idade, apresentou-se à Escola Militar da Praia Vermelha e formou-se engenheiro militar. Em 1865, Taunay foi convocado pelo Exército para a “expedição de Mato Grosso” (cf. TAUNAY, Memórias, 2005; Segunda Parte, p. 97-131). Começaria neste momento o percurso do “escritor viajante”2. Na expedição de Mato Grosso, quando enfrentaria a Guerra do Paraguai, Taunay percorreu as então províncias de São Paulo, Minas Gerais, Goiás e Mato Grosso. Diferente de seus companheiros do Exército, devido à formação artística que recebera, o escritor admirava o ambiente que seguia ao seu redor: Com a educação artística que recebera de meu pai, acostumado desde pequeno a vê-lo extasiar-se diante dos esplendores da natureza brasileira, era eu o único dentre os companheiros, e portanto de toda a força expedicionária, que ia olhando para os encantos dos grandes quadros naturais e lhes dando o devido apreço. Como achei majestoso o Rio Grande, divisa de São Paulo e Minas, o copioso contingente do Paraná! (TAUNAY, 2005, p. 179). E desse modo seguiu seu itinerário o Visconde de Taunay. Encarregado na expedição de redigir os fatos ocorridos começa, a partir de então, sua carreira de escritor: Em Uberaba comecei a redigir o Relatório Geral da Comissão de Engenheiros, reunindo as notas que os colegas me entregavam e afinal deixaram de ministrar-me, o que se tornou mais cômodo para mim e para eles. Aos meus cuidados ficou tudo entregue (TAUNAY, 2005, p. 181). 2 Termo de Antonio Candido em Formação da literatura brasileira (1957). 18 Em 5 de outubro de 1865, chega o Exército brasileiro ao caminho de Cuiabá para Coxim. No mesmo período, os paraguaios “invadiam” o território da então Província de Mato Grosso, provocando sérios danos ao local. De encontro aos paraguaios iria o Exército brasileiro, seguindo o planejamento que vinha do Rio de Janeiro. Taunay, nas Memórias, questiona as ordens da capital: [...] Os paraguaios, em 1865, tinham chegado até ali e só parando junto ao Rio Piquiri, perto do qual ainda praticaram tropelias e incendiaram casas e paióis de víveres. Todos os planos que partiam do Rio de Janeiro eram errados e só patenteavam a incompetência dos que os formularam e o absoluto desconhecimento das vastíssimas regiões em que havia sido abandonada aos azares da sorte a nossa triste e resumida coluna (TAUNAY, 2005, p. 193). A partir deste período, começam as dificuldades para o Visconde e os demais militares do Exército. Distantes da capital, de onde vinham os planos para a expedição, os militares se veem diante dos primeiros percalços. Sobre tais dificuldades relatou Taunay: Começou então período de enorme sofrimento, ameaçados na conservação da vida pela falta absoluta de víveres. Gado, com efeito, havia e mostrava-se a miúdo, mas em extremo arisco e tão veloz na carreira como os mais ágeis cervos, podendo por isto facilmente escapar dos nossos atiradores, cujas espingardas, de pederneira e caçoleta, pessimamente correspondiam aos nossos famintos projetos. De mais a mais recomeçaram as chuvas, de maneira que aquelas imperfeitas armas andavam sempre molhadas e mais nenhum serviço podiam prestar-nos. Em tão apertada conjuntura, os soldados se viam reduzidos a chupar o miolo da palmeira mbocaiá, conhecida em outras províncias por macaiúba, macaiba, bocaiúva e também coco de catarro, miolo que os índios do Sul de Mato Grosso denominam especialmente namuculi e de que fazem grande consumo em épocas de apuros (TAUNAY, 2005, p. 239. Grifos do autor). Embora com todas as adversidades sofridas durante o percurso, foi na estadia na Província de Mato Grosso, em Coxim, na Serra de Maracaju e no distrito de Miranda, que Taunay pôde fazer suas melhores observações e descrições do local. Descrições que viriam a compor o enredo, o espaço e, até mesmo, as personagens de suas obras. A primeira composição artística de Taunay foram desenhos que o autor foi produzindo simultaneamente às suas observações: Os meus desenhos eram numerosos, mas a coleção deixada nos bauzinhos que constituíam a minha mais modesta bagagem, quando marchamos para a fronteira do Apa, em abril de 1867, foi em parte destruída no saque daquela infeliz provocação, duas ou três vezes queimada pelos paraguaios. Perto das minhas canastras estripadas, ajuntei quantas folhas pude apanhar, umas totalmente 19 estragadas pela chuva e pelo barro, outras mais preservadas, de envolta como se achavam com o manuscrito das Cenas de viagem, que dei à estampa no Rio de Janeiro em 1868. Esses desenhos, em geral a lápis, alguns à pena e uma ou outra aquarela, foram feitos nas horas de largo lazer com bastante cuidado (TAUNAY, 2005, p. 210). Mesmo com a perda de alguns desenhos, Taunay compilou material suficiente para publicar, em 1868, Cenas de viagem, seu primeiro livro. Outro incidente no período da Guerra danificaria manuscritos que o escritor juntava para compor um vocabulário da língua chané: Ao regressarmos a Nioaque, após os horrores da retirada da Laguna, foi das primeiras coisas que vi, junto ao barranco do córrego Urumbeva, aquela minha canastra estripada e ao lado, rotas, espalhadas, sujas de barro, maculadas pelas chuvas, muitas das páginas do meu manuscrito e os desenhos do álbum. Cuidadosamente recolhi o que não estava lá muito estragado e, com efeito, uma vez no Rio de Janeiro, pude recompor quase tudo quanto escrevera, perdendo, entretanto, não pouco do vocabulário da língua chané, por mim organizado com particular cautela e zelo (TAUNAY, 2005, p. 400). O que restou do vocabulário da língua chané o Visconde de Taunay acabou por publicar em seu retorno ao Rio de Janeiro. O vocabulário também está publicado no volume de reedição do conto Ierecê a Guaná, editado em 2000. A partir de tais anotações, Taunay observou e ali mesmo foi organizando material para suas futuras obras. Os relatos dos fatos vividos pela expedição se encontram publicados no Diário do Exército, publicado pelo autor em 1870. Já de cunho ficcional, mas ainda com a presença de algumas rememorações de fatos vividos nesta época, surgiram depois Narrativas militares (contos, 1878) e Céus e terras do Brasil (1882): Assim mesmo o que nos salvou a todos naquele desgraçado pouso foram os rebotalhos meio putrefatos de um garrote (touro novo, já acima do mamote ou novilho grande) morto por uma onça, sem dúvida para lhe chupar o sangue. Em todo o caso, abençoada onça! E desta laudatória e grata exclamação já fiz uso no meu livro Narrativas militares, narrando, mais por extenso, este trecho daquela desgraçada exploração [...] Todas essas peripécias trouxeram, contudo, uma vantagem, modificar radicalmente o nosso modo de pensar a respeito dos soldados de cavalaria [...] Poderiam, talvez, merecer todos os castigos, da terra e dos céus, por passados crimes; mas, força é confessar, para convosco foram verdadeiros modelos de obediência, dedicação, zelo e atividade, sempre prontos para todos os serviços e trabalhos, por mais árduos que fossem, sempre alegres e do rosto prazenteiro, sempre vigilantes, em nos pouparem as fadigas excessivas, tão comuns em travessias daquela zona. Serviu de tipo à fiel descrição que fiz do Camarada num dos meus livros (Céus e terras do Brasil) (TAUNAY, 2005, p. 240. Grifo do autor). 20 Taunay publicou, ainda, referente àquele período, um novo álbum de desenhos, intitulado Viagem pitoresca a Mato Grosso, um livro de contos Histórias brasileiras (1874), onde foi publicado o conto “Ierecê a Guaná”, e suas duas principais obras: A Retirada da Laguna (1871) e Inocência (1872). As duas últimas obras citadas são distintas entre si. A primeira é um relato de um episódio da Guerra do Paraguai, narrando os conflitos de batalhas, posições políticas, estratégias adotadas e o território percorrido. A segunda é um texto ficcional, um romance, considerado a obra-prima do autor. Mas, ainda assim, ambas foram compostas com influência das observações e vivências de Taunay no período em que esteve com o Exército nas terras de Mato Grosso. D’A Retirada da Laguna relata: Uma semana depois de nossa chegada a Nioaque, apareceu-nos a coluna, que tomou posição no ângulo formado pelo encontro do Ribeirão Orumbeva com o Rio Nioaque, ambos de puríssimas águas correntes, ficando o acampamento com a frente voltada para o Sul, isto é, para o lado da fronteira paraguaia. Muito interessante e pitoresca é a localidade e dela dei ligeira descrição nas primeiras páginas da Retirada da Laguna (TAUNAY, 2005, p. 301). Da criação das personagens de Inocência: No dia 30 de junho estávamos no vasto rancho do Sr. José Pereira, bom mineiro que nos acolheu otimamente e era o primeiro morador que encontrávamos à saída do sertão bruto de Camapuã e à entrada do de Sant’Ana do Paranaíba, um pouco mais habitado [...] Aí vi o anãozinho, mudo, mas um tanto gracioso, sobretudo ágil nos movimentos, que me serviu de tipo ao Tico do meu romance Inocência (TAUNAY, 2005, p. 360. Grifos do autor). Mais adiante, ainda sobre Inocência: [...] não contava mais de dezoito anos, devia em breve casar-se com uma prima, naturalmente tão entanguida, caquética e desamorável como o noivo. Daí quem sabe? Não foi de um desencontro desses que tirei o assunto do meu romance Inocência, cuja heroína, pela beleza e elegância, devia encontrar alguns pousos além deste do Vau (TAUNAY, 2005, p. 363). Terminada a estadia do escritor na Guerra do Paraguai, em 1869, um período de extrema vivência, observação e produção, o Visconde de Taunay retornaria, pela segunda vez, ao Rio de Janeiro. De volta à capital, recomeçaria seu trabalho de rememoração, escrita e publicação de suas obras. A primeira obra ficcional a ser publicada foi o romance Mocidade de Trajano, em 1870. Nos primeiros anos do período de retorno, de 1870 a 1875, ou seja, dos vinte e sete aos trinta e dois anos, o escritor publicou seis obras, quatro dos seus seis 21 romances, um livro de contos e o relato da Guerra do Paraguai, A Retirada da Laguna. Temos, dessa maneira, configurada a trajetória do escritor viajante. Após um período de intensa vivência e produção bibliográfica, Taunay, já militar, engenheiro, desenhista e escritor consagrado, decide tentar uma outra carreira: a de político. De 1875 a 1889, deixou de lado a carreira de escritor, não publicando nenhuma obra ficcional. Foi durante a nova carreira que ocupou cargos políticos de importância, elegeu-se Senador pela província de Santa Catarina e estreitou a amizade com o Imperador Dom Pedro II. Segundo João Luis Lafetá, a decaída na produção literária do período não ocorreu somente com o Visconde de Taunay. O crítico acredita que poucas obras do Romantismo são de importância e apenas quatro escritores brasileiros se destacaram no período (cf. LAFETÁ, 2004, p. 274). Em 1889, com a queda do Império e a consolidação da República, Taunay, fiel aos preceitos monarquistas e à amizade com Dom Pedro II, entregaria todos os seus cargos políticos. Em seu livro Memórias, ele não economiza adjetivos ao falar sobre o período Imperial: Fiquei sendo o que era e sempre fui, profundo admirador da monarquia que o Sr. D. Pedro II fundara no Brasil e por cinqüenta anos sustentara, fazendo deste País um Império único no mundo – muita grandeza moral, esperanças imensas, emolduradas por natureza inexcedivelmente bela!... (TAUNAY, 2005, p. 578). Terminada a carreira de político, o Visconde de Taunay voltaria à prática de escritor, publicando dois romances: O encilhamento (1894), No declínio (1899) e ainda um outro livro de contos Ao entardecer (1902). A diferença em relação às obras anteriores é que estas tratam do ambiente urbano, à maneira francesa de narrar. A influência de seus familiares se faz presente mais uma vez, pois Taunay herdou os costumes franceses dos seus antecedentes. Alguns deles, oriundos da França, exerciam funções artísticas relacionadas com o país europeu, como foi o caso de seu avô. Acerca disso também é notável o fato de Taunay ter publicado a obra A retirada da Laguna no idioma francês3. Outra diferença considerável em relação aos romances ditos urbanos é que estes não foram bem aceitos, nem pela crítica, nem pelo público. No entanto, os últimos dez anos de vida de Taunay, pós carreira política, foram dedicados sobretudo à elaboração de seu livro Memórias. Nelas o escritor expõe as lembranças de sua vida, desde a infância até a fase de 3 Sobre a influência da literatura francesa na obra de Taunay, conferir a Tese de Doutorado As marcas francesas na obra do Visconde de Taunay, de Norma Wimmer. 22 político, relatando críticas ao Exército, ao escritor José de Alencar e narrando suas aventuras amorosas pelo sertão de Mato Grosso. Devido a tais confissões, Taunay deixou sua obra a cargo e sigilo do IHGB na Biblioteca Nacional, destinada a ser retirada pelos seus filhos. O escritor deixou, junto dos escritos, um pedido para que a obra só fosse publicada cem anos após o seu nascimento, ou seja, em 1943. O autor encadernou os manuscritos originais com um material lacrado e resistente para que suportasse o decorrer dos anos, sendo assim, preservaria por um tempo sua imagem de importante figura pública e a “imagem” das demais pessoas citadas na autobiografia. Os escritos originais foram resgatados por seus filhos em 1946, cento e três anos após o nascimento do Visconde de Taunay, e publicados com o título de Memórias, incluindo a organização do capítulo “Notas esparsas” e um prefácio dos organizadores Affonso de Taunay e Raul de Taunay, filhos do autor. Embora Taunay tenha dedicado de maneira intensa os anos derradeiros de sua vida na produção das Memórias, esta acabou por ser prejudicada por uma doença que o perseguiu durante seis anos: [...] Mas ir-me-ia alongando demasiado a encher volumes e volumes destas Memórias, quando tanto ainda tenho que relatar! Falta-me tempo, disposição de corpo e de espírito, a lutar com bem penosas nevralgias de fundo diabético. Assaltaram-me em meados de 1893 e, desde então não me deixaram mais, fazendo-se sentir com intensidade maior ou menor. São ferroadas, como que ferozes agulhadas de ferro em brasa, errantes, a correrem de um ponto do corpo para outro, espécies de pontas de fogo saltitantes a morder-me a carne, pungindo-a, felizmente de fundo diabético (TAUNAY, 2005, p. 482). E aquilo que foi narrado por Taunay acabou por acontecer. O escritor, atrapalhado pela forte diabete, não conseguiu concluir seu projeto. A obra foi ganhando “volumes e volumes”, como narra o próprio autor, descrevendo com minúcias sua infância, seu período de estudos no Colégio Militar, sua estadia na região de Mato Grosso, o período da Guerra do Paraguai e da produção e publicação de suas obras. No entanto, apesar de muito volumosa (mais de quinhentas páginas), a obra não foi concluída pelo autor. A fase de político e a de pós-político ficou apenas editada no final da obra em um capítulo intitulado “Notas esparsas” e organizado postumamente por seu filho Affonso de Taunay. Contudo, é possível traçarmos um perfil do Visconde de Taunay. Os relatos críticos feitos ao longo do século passado mostram um escritor que vivenciou uma realidade distinta dos demais escritores do período e que compôs uma obra significativa durante o período romântico. A obra Memórias retrata essa vivência e apresenta a transição pelo espaço físico, 23 contendo descrições dos locais, dos tipos e dos costumes do sertão brasileiro. As Memórias retratam passagens da fase mais produtiva do Visconde de Taunay para a literatura brasileira, a fase do sertanismo romântico, sua fase de escritor viajante. 1.2 Uma tênue linha crítica a respeito de Taunay: romântico ou realista? Ao longo de todo o século XX, a crítica literária discutiu a produção bibliográfica do Visconde de Taunay. O autor foi sempre mencionado como um importante escritor entre os anos finais do Romantismo e os anos iniciais do Realismo ou Naturalismo. Alguns chegaram a levantar a hipótese de que a obra de Taunay seria de transição de um período para o outro. Isso devido ao senso estético que o autor possuía ao descrever o espaço, a paisagem, os personagens indígenas e sertanejos do Brasil Central. Por ter percorrido as localidades descritas e conhecido a cultura do sertanejo e do indígena, Taunay compôs uma obra mais próxima da realidade vivida na época, fundindo-a numa ficção verossímil, o que acarretou em uma literatura, no mínimo, distinta da até então existente na Literatura Brasileira. No entanto, outros críticos literários consideram que houve apenas um avanço por parte do autor, e de outros “Sertanistas” do período, nas descrições “fiéis” do local e dos costumes. Para tais críticos, o conteúdo e a consciência da obra de Taunay e dos Sertanistas é de caráter romântico, sendo a nova maneira de descrever apenas uma nova fase da escola. Chega-se então ao segundo embate crítico acerca do Visconde de Taunay: seria ele um escritor de transição de períodos estéticos? Para averiguarmos como se portou a crítica brasileira diante da questão, realizamos uma pesquisa em quatorze obras de história literária. As obras pesquisadas, clássicos da crítica brasileira, foram: A literatura no Brasil (1969), de Afrânio Coutinho; História concisa da literatura brasileira (1989), de Alfredo Bosi; Formação da literatura brasileira (1997), de Antonio Candido; Presença na literatura brasileira (1975), de Antonio Candido e José Aderaldo Castello; A literatura brasileira (1967), de Antônio Soares Amora; Literatura brasileira: síntese histórica (1972), de Dino F. Fontana; “Sobre o Visconde de Taunay” (2004), de João Luis Lafetá; Literatura brasileira (1999), de José Aderaldo Castello; Estudos de literatura brasileira (1977), de José Veríssimo; A literatura brasileira através dos textos (s.d.), de Massaud Moisés; História da literatura brasileira (1985), de Massaud Moisés; História da literatura brasileira (1976), de Nelson Werneck Sodré; Apresentação da 24 literatura brasileira (1978), de Oliveiros Litrento, e Dicionário literário brasileiro (1978), de Raimundo de Menezes4. José Veríssimo, em uma crítica feita no início do século XX, fala sobre o fato de, em 1899, a obra Inocência já estar na sua quarta edição. O crítico ainda enfatiza o fato de a obra ser publicada em várias línguas pelo mundo e considera esses fatores incomuns para o Brasil. Para Veríssimo, Inocência, ao lado de O Guarani e Iracema, ambos de José de Alencar, são os três melhores romances do período romântico. Considera, porém, dentre os romances citados, o de Taunay como superior, principalmente pelo aspecto realista do quadro vivido: Na Inocência o mérito, grande, é de diferente espécie, mas talvez não menos relevante. Ela é a representação, na sua máxima exação, do mundo e da vida real, qual ela existe e é vivida, em uma determinada região da terra brasileira. É um quadro realista, na mais pura acepção do realismo na arte; um quadro, uma pintura de mestre, - que todos foram de fato realistas – não uma fotografia. [...] É realista, repito, no melhor sentido do vocábulo. A reprodução exata, é certo, de um canto da natureza visto por um temperamento, mas por um temperamento capaz de idealização e sentimento (VERÍSSIMO, 1977, p. 148). Nota-se que José Veríssimo considera Taunay um escritor realista. É a partir da descrição do espaço vivido pelo autor, narrado com fidelidade (para o crítico) em Inocência, que este se posiciona. Baseado, apenas, na análise de um único romance de Taunay e de sua vivência de escritor viajante, considera-o um escritor em transição, superior ao idealismo alencariano: O romance ou antes o livro abre com uma descrição do “Sertão e do Sertanejo”, feita quiçá em um sentido mais topográfico que propriamente artístico, mas que nos deixa a impressão de uma fidelidade absoluta. Um engenheiro inteligente e de boa cultura literária, que viajou aqueles sertões, pouco depois de ler Inocência, afirmou-me que o surpreendem a exatidão, a verdade das representações de Taunay naquele livro. E esta mesma inspiração de realidade e sinceridade anima todo ele, dando às suas cenas e personagens, aos seus quadros e paisagens uma intensa vida. Nem são qualidades somente estas, antes são daquelas mais próprias a realçarem e a fazerem viver a obra de arte que é, pelo seu próprio fundamento, na vida real, fundamentalmente realista. [...] Realista e, se não tivesse o termo desviado da sua significação imediata, naturalista. Somente um realismo e naturalismo temperados, na Inocência ao menos, por uma tendência espiritualista. Nada, porém, da idealização, ou talvez melhor, do idealismo de Alencar, para pôr a minha idéia mais clara por um confronto (VERÍSSIMO, 1997, p. 149-150). A força da descrição contida em Inocência, sobretudo no capítulo inicial da obra, faz Veríssimo categorizar Taunay como realista. Considera que o sentido topográfico da obra 4 Devido ao fato de não encontrarmos as primeiras edições de todas as obras pesquisadas, optou-se por realizar a pesquisa por comunhão de posicionamentos críticos dos autores e não em uma sequência histórica/temporal. 25 supera o sentido artístico, o que daria uma sensação de “fidelidade” ao local descrito. A fidelidade ao compor o espaço, aliada à construção fiel das personagens, levaria Taunay, na visão do crítico, a superar o idealismo de José de Alencar. Portanto, para José Veríssimo, é o Visconde de Taunay um escritor de transição do Romantismo para o Realismo. O crítico João Luiz Lafetá, num relevante texto a respeito de Taunay, intitulado “Sobre o Visconde de Taunay”, aproxima-se das conclusões de José Veríssimo. O crítico acredita que a formação de pintor, engenheiro e militar e as vivências de Taunay pelo sertão fizeram-no transpor para o papel uma escrita diferenciada dos autores que o precederam. Sobre a transição de períodos em Taunay, Lafetá relata: Um escritor romântico-realista. Estranha conjunção de termos! No entanto, José Veríssimo tinha toda razão. O Realismo não é uma escola literária, mas um método de representação artística da realidade. Seu ponto de partida consiste na observação acurada dos elementos mais cotidianos, e na descoberta daquilo que neles é o mais significativo, o mais capaz de representar, em sua singularidade de evento único, o típico que existe em todas as situações. Esse é o método utilizado pelos grandes artistas, pertençam a que escola pertencerem. [...] Um romântico diferente da maioria dos nossos românticos, eis o que era Taunay (LAFETÁ, 2004, p. 280-281). Em tal concepção, a obra de Taunay estaria composta numa transição: “arquétipos românticos e observação realista”, são os fatores da fusão de estilos para Lafetá. A observação do sertão enquanto viajante expedicionário e o método de descrição do espaço em suas obras são suas qualidades fundamentais. No entanto, para o crítico, não é somente a fidelidade que dá valor a uma obra literária. Diferente, nesse aspecto, de José Veríssimo, que creditava mais força à descrição topográfica do que à artística, Lafetá prefere enfatizar a força ficcional de Inocência. O crítico termina o artigo sintetizando que Taunay é realista em seu poder descritivo topográfico, mas que a beleza do seu romance reside na leitura de suas imagens ficcionais. A comunhão de termos acerca da transição na obra de Taunay também está presente na obra de Antônio Soares Amora. O crítico parte da confusão crítica a respeito dessa transição para chegar, posteriormente, à sua conclusão. Sobre Inocência, Amora relata: Mas Inocência não é apenas um bom romance romântico de observação da paisagem, dos tipos humanos e dos usos e costumes do sertão bruto do sul de Mato Grosso. É também um romance que, pelas suas características, tem intrigado alguns críticos e se tem prestado a confusões no que respeita à sua posição na história de nosso romance oitocentista. Quando os críticos menos advertidos da realidade dos fatos dão com o “realismo” descritivo, dominante em Inocência a ponto de lhe dar o caráter de romance documental, não têm dúvida em concluir que Taunay se definiu, nesta obra, como um precursor do Realismo [...] doutro lado, atenuando do 26 enredo sentimental do romance, não podem deixar de reconhecer que, no fim de contas, Inocência é também uma obra caracteristicamente romântica. Nessa altura, estabelecida, como vemos, a confusão, dela têm procurado sair, os referidos críticos, por uma de duas tangentes, ambas igualmente cômodas e simplistas: Inocência é, històricamente, um romance ambivalente, de vez que participa do Romantismo e do Realismo; ou: Inocência (tanto quanto as Memórias de um Sargento de Milícias) é um romance inclassificável, dado seu caráter de obra de transição do gosto romântico para o realista (AMORA, 1967, p. 289-290). Para o crítico, alguns deixaram se levar pela característica descritiva e, ingenuamente, concluíram que Taunay era realista. Devido à formação que recebera de “pintor documentalista seria difícil o escritor não compreender a natureza que não fosse uma ‘verdade’ à luz do espírito das Ciências da Natureza” (AMORA, 1967, p. 291). Com essa justificativa o crítico refuta o realismo em Taunay. Embora entenda que os aspectos do romance Inocência retratem valores românticos e que é comodista e simplista enquadrá-lo como “romântico-realista”, Amora acredita numa evolução literária a partir disso: [...] Pondo agora em evidência o “realismo” de Taunay, no romance de nossa vida rústica, “realismo” esse que exerceu, até certo ponto, sua influência em Bernardo Guimarães [...] posso concluir que chegávamos ao fim do Romantismo já muito afastados, não apenas de nossas primeiras experiências no romance [...] Chegados aos fins de 60, tudo isso acabou por perder seu sentido. E se Machado de Assis foi, no romance da vida urbana, o primeiro a perceber a necessidade de fazer descer nossa ficção do plano idealista em que se perdia, para um plano realista, imposto pela evolução do espírito, na Europa e já no Brasil, foi, incontestàvelmente, a Taunay e ao seu romance da Nocência [sic], que ficamos a dever essa reação no que respeitava ao romance da vida rústica. Inocência não foi, portanto, apenas uma obra bem realizada, pela escolha e tratamento dos materiais; foi também uma obra muito significativa na evolução de nossa ficção romântica (AMORA, 1967, p. 291-292). Se Antônio Soares Amora critica as confusões dos demais críticos quanto à categorização “romântico-realista” da obra de Taunay, acaba por fazer o mesmo em seu texto. O crítico considera que o “realismo” no romance da vida rústica de Taunay influenciou Bernardo Guimarães e se afastou das primeiras experiências românticas. No entanto, o crítico acaba por concluir que o romance pertence ao Romantismo e que Taunay, ao lado do romance urbano de Machado de Assis, foi um dos responsáveis pela evolução da literatura do período. O que não difere muito das críticas literárias anteriores, o romance de Taunay acaba, novamente, categorizado como “romântico-realista”. Em contraste com os textos críticos de Veríssimo, Lafetá e Amora, surge a obra Formação da literatura brasileira (1997), de Antonio Candido. Para este, o Romantismo teve três etapas. A inicial, que se estabelece, grosso modo, de 1843 a 1857, é a do “surgimento da 27 urdidura, a descrição dos costumes, forma elementar de estudo do homem na ficção” (1997, p.265). A segunda iniciou-se em 1857, a revelação de José de Alencar e do indianismo, e foi até 1872. A partir desse ano até, aproximadamente, 1890, surgiu o período do romance romântico sertanista, que Candido denominará como “romance de passagem” (1997, p. 265). Segundo Candido, a terceira fase, onde se inserem as obras do Visconde de Taunay, não rompe com os temas e o espírito do Romantismo: Em face dessas duas etapas, a terceira nada traz de novo como tema, mas a sua contribuição não é menor: consiste em dar refinamento à análise, sentido ao regionalismo, fidelidade à observação, naturalidade à expressão. [...] Certos livros, como Inocência, fundem harmoniosamente a intensidade emocional, o pitoresco regionalista, a fidelidade da observação e a felicidade do estilo, obtendo um equilíbrio até então desconhecido. Não se pense, todavia, que este acréscimo de experiência signifique necessariamente melhoria de nível. O grande homem da ficção romântica permanece José de Alencar, que é o cume da montanha (CANDIDO, 1997, p. 266). Candido considera que os dois escritores que mais contribuíram para esse acréscimo da fidelidade à observação e à naturalidade da expressão são: Franklin Távora e o Visconde de Taunay: Considerando os dois escritores a que nos vamos ater, convém assinalar que a sua obra encerra harmoniosamente o período romântico, ao se inscrever em pleno nacionalismo literário. Poucos terão efetuado levantamento tão cabal do país quanto Alfredo de Taunay que, na ficção e no documentário, só fez descrever as suas cidades e campos, a natureza e o homem, preocupado em registrar, depor, interpretar. Este pendor se acentua com a idade, levando-o a escrever recordações da sua experiência de guerra, política e administração [...] Todavia, embora Franklin Távora haja escrito O Sacrifício, um dos precursores da ficção naturalista; e Taunay o referido estudo social, e mais No Declínio, estudo psicológico à Bourget, ambos depois de 1890; apesar disso prefiro enquadrá-los no Romantismo, onde os prende a retomada das preocupações centrais do nacionalismo literário (CANDIDO, 1997, p. 266). Pode-se notar que a avaliação final de Antonio Candido, do período e da obra de Taunay, não mistura romantismo e realismo, como apresentam as críticas anteriores. Para o crítico, a obra do Visconde de Taunay, ao lado da de Távora, encerra harmoniosamente o período romântico. O que o escritor fez em suas obras foi descrever os locais percorridos, a natureza e o homem, “preocupado em registrar, depor e interpretar” (Candido, 1997, p. 266). É isso que se registra em seus primeiros romances e nos relatos de guerra do final de sua vida. Candido conclui que Taunay insere-se no Romantismo, pois o que produziu foram temas preocupados com o nacionalismo literário romântico. 28 Compatível com essa terceira etapa do Romantismo, criada por Candido, é a análise que Nelson Werneck Sodré fez do período e que denominou de Sertanismo. Confrontando o romance do período romântico em duas etapas, a indianista com a sertanista, o crítico expõe: [...] Existe a preocupação fundamental do sertanismo, que vem, assim, substituir o indianismo, como aspecto formal e insistente na intenção de transfundir um sentido nacional à ficção romântica. Tal preocupação importa em condenar o quadro litorâneo e urbano como aquele em que a influência externa transparece, como um falso Brasil. Brasil verdadeiro, Brasil original, Brasil puro seria o do interior, o do sertão, imune às influências externas, conservando em estado natural os traços nacionais. Nesse esforço, o sertanismo, surgindo quando o indianismo está ainda em desenvolvimento, e subsistindo ao seu declínio, recebe ainda os efeitos deste. Não é senão por isso que os romancistas que se seguem a Alencar, ou que trabalham ao mesmo tempo que ele, obedecem às influências do momento, e trazem o índio para as páginas dos seus romances. Mas serão, principalmente, sertanistas e tentarão afirmar, através da apresentação dos cenários e das personagens do interior, o sentido nacional dos seus trabalhos (SODRÉ, 1976, p. 323). Segundo Sodré, o surgimento do sertanismo se dá em função da tentativa dos escritores do período de substituir o indianismo. Para ele, embora o sertanismo tenha surgido como contraponto ao indianismo, devido ao fato de o último ainda estar em desenvolvimento, as duas tendências acabaram por se misturar. O índio ainda era tema frequente nos romances sertanistas. Mas o crítico adverte que só são sertanistas aqueles que afirmam o sentido nacional em seus romances. Isso por meio da apresentação verossímil dos cenários e das personagens típicas do país. Muito antes das análises acerca da nacionalidade no período sertanista e na obra do Visconde de Taunay elaboradas por Antonio Candido e Nelson Werneck Sodré, o maior ficcionista brasileiro do século XIX, Machado de Assis, já havia produzido tal reflexão. Num texto crítico escrito em 1873, em pleno recente desenvolvimento do sertanismo, intitulado “Notícia da atual literatura brasileira – instinto de nacionalidade”, o escritor profere: Quem logo examina a atual literatura brasileira reconhece-lhe logo, como primeiro traço, certo instinto de nacionalidade. Poesia, romance, todas as formas literárias do pensamento buscam vestir-se com as cores do país, e não há negar que semelhante preocupação é sintoma de vitalidade e abono do futuro (ASSIS, 1997, p. 17). Segundo a análise de Machado de Assis, a atual literatura brasileira buscava, na época, se vestir das cores do País ou de um futuro mais independente para a ficção. Mediando sua análise dos novos escritores, o Machado aborda os limites do indianismo, fase anterior ao movimento sertanista que surgia, e as novas concepções dos romancistas: 29 Compreendendo que não está na vida indiana todo o patrimônio da literatura brasileira, mas apenas um legado, tão brasileiro como universal, não se limitam os nossos escritores a essa só fonte de inspiração. Os costumes civilizados, ou já do tempo colonial, ou já do tempo de hoje, igualmente oferecem à imaginação boa e larga matéria de estudo. Não menos que eles, os convida a natureza americana, cuja magnificência e esplendor naturalmente desafiam os poetas e prosadores. O romance, sobretudo, apoderou-se de todos esses elementos de invenção, a que devemos, entre outros, os livros dos Srs. Bernardo Guimarães, que brilhante e ingenuamente nos pinta os costumes da região em que nasceu, J. de Alencar, Macedo, Sílvio Dinarte (Escragnolle Taunay), Franklin Távora e alguns mais (ASSIS, 1997, p. 20). Machado aponta limites no movimento indianista como fonte de representação da literatura brasileira e entende que os sertanistas não se fixaram em um único elemento de inspiração. Para ele, os escritores do período buscavam representar o nacional, já em 1873, ano da publicação do artigo, por meio da natureza americana, ou melhor, do sertão brasileiro. O escritor já cita em seu texto os escritores que seriam reconhecidos, pela crítica do século posterior como os principais sertanistas: Bernardo Guimarães, Franklin Távora e Sílvio Dinarte, pseudônimo usado pelo Visconde de Taunay na publicação de sua obra ficcional da década de 1870. Ao concluir seu artigo sobre o instinto de nacionalidade do período, Machado já reconhecia as limitações que essa fase traria para a literatura brasileira: Devo acrescentar que neste ponto manifesta-se às vezes uma opinião, que tenho por errônea: é a que só reconhece espírito nacional nas obras que tratam de assunto local, doutrina que, a ser exata, limitaria muito os cabedais de nossa literatura [...] Não há dúvida que uma literatura, sobretudo uma literatura nascente, deve principalmente alimentar-se dos assuntos que lhe oferece a sua região; mas não estabeleçamos doutrinas tão absolutas que a empobreçam. O que se deve exigir do escritor, antes de tudo, é certo sentimento íntimo, que o torne homem do seu tempo e de seu país, ainda quando tratem de assuntos remotos no tempo e no espaço (ASSIS, 1997, p. 20-21). De volta ao texto de Nelson Werneck Sodré, nota-se que a busca pelo nacional, já procurado pelos indianistas, ganha mais elementos na composição sertanista. Segundo o crítico, na mesma linha de análise de Machado, os sertanistas continuaram a retratar o índio em seus romances, mesmo reconhecendo as limitações de uma única temática para compor o enorme quadro nacional. Logo, os sertanistas buscaram no homem do sertão o que acreditavam preencher os limites do indianismo para a consolidação de uma literatura verdadeiramente brasileira. Tais fatores, para Sodré, culminaram, mais uma vez, em um idealismo: 30 No sertanismo verifica-se o formidável esforço da literatura para superar as condições que a subordinavam aos modelos externos. Existe, nos iniciadores da ficção romântica, sinais evidentes desse esforço. Verificaram logo que o índio não tem todas as credenciais necessárias à expressão do que é nacional. Transferem ao sertanejo, ao homem do interior, àquele que trabalha na terra, o dom de exprimir o Brasil. Submetem-se ao jugo da paisagem, e pretendem diferenciar o ambiente pelo que existe de exótico no quadro físico – pela exuberância da natureza, pelo grandioso dos cenários, pela pompa dos quadros rurais. Isto é o Brasil, pretendem dizer. E não aquilo que se passa no ambiente urbano, que copia o exemplo exterior, que se submete às influências distantes. E levam tão longe essa afirmação de brasilidade que são tentados a reconstituir o quadro dos costumes. Caem naquela vulgaridade dos detalhes, naquele pequeno realismo da minúcia, naquela reconstituição secundária em cuja fidelidade colocam um esforço cândido e inútil. Não são menos românticos, evidentemente, quando assim procedem. E não têm melhores condições que os indianistas para definir o que existe de nacional na literatura. Seria ingrato, entretanto, desconhecer o sentido ingênuo desse novo aspecto de um esforço que não poderia encontrar o êxito porque o êxito não dependia apenas dele (SODRÉ, 1976, p. 323-324). Mesmo pretendendo fugir do idealismo dos indianistas, ao compor uma literatura “fiel” ao quadro observado do sertão, os sertanistas caem nos limites do idealizado. Nas descrições da paisagem acabam relatando o ambiente pelo que ele possui de mais exótico, o que ocorre também na caracterização das personagens. Os sertanistas procuraram tanto fugir dos aspectos da literatura estrangeira e da idealização dos indianistas que sucumbiram ao esforço da representação verossímil. Esses aspectos levaram os sertanistas, na visão de Sodré, a não conseguir superar os indianistas na definição do que existe de nacional na literatura. No entanto, o crítico reconhece que, mesmo sendo inúteis tais esforços, é devido ressaltar alguns avanços que os sertanistas trouxeram ao período. Mais adiante, ainda em seu estudo sobre o sertanismo, Nelson Werneck Sodré cita três escritores como os de maior destaque no período. São eles: Bernardo Guimarães, Franklin Távora e o Visconde de Taunay. A respeito dos dois primeiros, o crítico ressalta o valor de algumas obras e o empenho dos escritores em compor o sertão. No entanto, considera-os limitados como narradores literários e vê em Taunay o único capaz de salvar o sertanismo de sua perdição completa: Com o Visconde de Taunay é que vamos deparar um romancista capaz de salvar o sertanismo de sua perdição completa, mesmo permanecendo dentro dos seus rumos e dos seus moldes. Com uma extraordinária memória visual, reconstituiu os ambientes do interior com uma miúda fidelidade que tantos confundiram com realismo, enquanto transfere também a alguns tipos essa fidelidade, copiando-os simplesmente da vida e esmerando-se em situá-los na moldura exata em que os conheceu – como falavam, como procediam, como sentiam as coisas e os sentimentos – enquanto se desmanda, como era da regra romântica, na urdidura da intriga, descuidado da verossimilhança. Tal 31 verossimilhança, entretanto, está presente nos outros traços desse paisagista feliz, e por isso sobrevive ao que, nele, foi a carga deformadora da escola. Sobrevive pelo menos em Inocência, livro singular em nossas letras, de longa vida e afortunada, difundido e lido através do tempo (SODRÉ, 1976, p. 325-326). Sodré enquadra, contudo, os sertanistas como apenas uma etapa do Romantismo. Para o crítico – na linha de Antonio Candido com sua divisão do Romantismo por períodos temporais – houve apenas alguns avanços obtidos por esses escritores. Os sertanistas não romperam com o indianismo anterior em seus vícios e seus idealismos. Foi, sobretudo, com o Visconde de Taunay que ocorreu essa pequena evolução na narração literária, no entanto, também situada no Romantismo. Ainda sobre essas características em Taunay, Sodré aponta: Vamos encontrar em Taunay aquele mesmo contraste, que não é pois fortuito, entre a minúcia na reconstituição de alguns quadros, e até de personagens, e a artificiosidade romântica do conteúdo – artificiosidade que no seu livro mais lido se salva dos exageros. Aquilo que em Bernardo Guimarães e em Franklin Távora é procurado nos costumes, Taunay encontra no pitoresco, e principalmente no pitoresco da paisagem. Vai além, entretanto, e torna-se um precursor daqueles que buscaram o pitoresco na língua, esforçando-se por trazer ao romance a maneira coloquial de contar (SODRÉ, 1976, p. 326). Na mesma linha crítica de Candido e de Sodré, aparece a História concisa da literatura brasileira (1970), de Alfredo Bosi. O crítico acredita que os diversos estilos que aparecem no Romantismo não contêm em si nenhuma evolução quanto ao nível estético ou à apreensão do real por parte dos escritores. Sobre as diversidades de estilos e de escritores do Romantismo, Bosi relata: Fácil cair na tentação de guisar um esquema evolucionista para a história do nosso romance romântico: do Macedo carioca às páginas regionais de Taunay e de Távora, passando pela gama de experiências ficcionais de Bernardo, Manuel Antônio e Alencar. A idéia de um conhecimento progressivo do Brasil que, partindo da corte, alcança a província e o sertão bruto, pode levar o historiador ingênuo a escolher para critério tipológico os ambientes apanhados na ficção: romance urbano/romance campesino; romance do norte/romance do sul; método que, no seu estreito sincronismo, não se dá conta dos tempos culturais díspares que viviam cidade e campo, corte e província. Mas a verdade é que não se registrou nenhuma evolução no fato de Alencar ter escrito primeiro Lucíola e depois O Gaúcho, nem ocorreu qualquer progresso, em termos de apreensão do real, entre a fatura das Memórias de um Sargento de Milícias, em 1854, de Manuel Antônio de Almeida, e a das novelas sertanejas de Bernardo Guimarães publicadas nos anos de 70. O deslocar-se do eixo geográfico não obedeceu a nenhum acordo tácito entre os romancistas... nem resultou em aprimoramento da técnica ficcional: deu-se pela própria dispersão, no tempo e no espaço, em que viviam nossos escritores (BOSI, 2006, p. 138-139). 32 Alfredo Bosi segue a denominação dada por Nelson Werneck Sodré para o período posterior a 1870 da literatura brasileira (sertanismo) e o analisa acerca dos três mesmos escritores escolhidos pelo crítico. Assim sendo, intitula o capítulo de análise do período como “Sertanistas. Bernardo Guimarães, Taunay, Távora”. Bosi considera os três escritores inferiores a José de Alencar em termos de arte literária e que eles não conseguiam fundir arte e vida agreste com seus modelos ideológicos: As várias formas de sertanismo (romântico, naturalista, acadêmico e, até, modernista) que têm sulcado as nossas letras desde os meados do século passado, nasceram do contato de uma cultura citadina e letrada com a matéria bruta do Brasil rural, provinciano e arcaico. Como o escritor não pode fazer folclore puro, limitase a projetar os próprios interesses ou frustrações na sua viagem literária à roda do campo. Do enxerto resulta quase sempre uma prosa híbrida onde não alcançam o ponto de fusão artístico o espelhamento da vida agreste e os modelos ideológicos e estéticos do prosador (BOSI, 2006, p. 155). Sobre o Visconde de Taunay, Bosi também o considera como o mais capaz dentre os três sertanistas e Inocência como a principal obra do escritor: Por temperamento e cultura, o Visconde de Taunay tinha condições para dar ao regionalismo romântico a sua versão mais sóbria. Homem de pouca fantasia, muito senso de observação, formado no hábito de pesar com a inteligência as suas relações com a paisagem e o meio (era engenheiro, militar e pintor), Taunay foi capaz de enquadrar a história de Inocência (1872) em um cenário e em um conjunto de costumes sertanejos onde tudo é verossímil. Sem que o cuidado de o ser turve a atmosfera agreste e idílica que até hoje dá um renovado encanto à leitura da obra (BOSI, 2006, p. 160). Mais uma vez a obra de Taunay é vista do prisma de sua formação cultural, de seu senso de observação e de descrição literária verossímil. Apesar dessas contribuições para o romance do período, o crítico também o compreende como um escritor romântico: [...] Taunay idealiza, mas parcialmente, porque seu interesse real é de ordem pictória: a cor da paisagem, os costumes, os modismos, que ele observa e frui como típico. Viajante mais sensual do que apaixonado, incapaz do empenho emotivo de um Alencar, a sua realidade é por isso mesmo mais tangível e mediana. Há quem veja nele um escritor de transição para o realismo. Não é bem assim. Quando maduro, criticou o naturalismo. E a postura fundamentalmente egótica, reflexa nos romances mundanos que se seguiram a Inocência, nos diz que se algo mudou foi a sociedade, não o estofo individualista do escritor (BOSI, 2006, p. 161). Assim como Nelson Werneck Sodré, Alfredo Bosi credita as transformações no romance sertanista ou regionalista às mudanças na sociedade e não ao escritor enquanto 33 criador individual. Mesmo com algumas contribuições dos sertanistas e do Visconde de Taunay, os escritores do período seguiram a consciência e o espírito do Romantismo. Próximas da leitura de Alfredo Bosi acerca da obra de Taunay são as análises feitas por Massaud Moisés. A análise que o crítico faz, porém, possui maiores elementos sobre a possibilidade de transição de escolas na obra do escritor. Citando Lúcia Miguel-Pereira, Moisés apresenta o período sertanista da seguinte maneira: ‘O traço característico do decênio 1870-1880 é (...) [sic] a indecisão, a tonalidade furta-cor, os ecos do passado se misturando aos esboços do futuro, tudo em surdina, tudo apagado’, - assim resume, acertadamente, Lúcia Miguel-Pereira o que foi a prosa de ficção no crepúsculo romântico e manhã realista. Com efeito, três vertentes ficcionais podem ser divisadas nessa quadra fronteiriça, vertentes que integram, ora progressivamente, anunciando novos rumos que as letras tomariam no último quartel do século XIX, ora retroativamente, empregando moldes que teimavam em persistir (MOISÉS, 1985, p. 277). Assim como Sodré aponta que características do indianismo reaparecem no sertanismo, fundindo-se numa prosa híbrida como denominou Bosi, Moisés, trazendo MiguelPereira para sua análise, parte dessa tênue questão: quais os progressos e quais os retrocessos – se é que houve um ou ambos – do período sertanista? Sobre a transição de estilos ou de características românticas para realistas na obra de Taunay, Moisés traça alguns paralelos, principalmente acerca do romance Inocência. A respeito da composição das personagens, o crítico indaga: Arquetípicas, por conseguinte, as personagens de Inocência, mas elaboradas sobre matrizes românticas: pelo psiquismo acionado por paixões extremas, concentradas no assassínio e no suicídio, e mesmo por sua estratificação, movimentam-se no âmbito romântico. Delimitadas desde o começo e para sempre, planas, evoluem para um futuro predeterminado pelas condições ambientais e pelo caráter que ostentam. De psicologia pronta e cristalizada, não guardam surpresas, e à semelhança de tantas no universo do Romantismo, deixam-se descrever e perquirir antes e independentemente da ação que lhes permitiria expandir o ego imprevisível e as intenções cultas por trás da máscara social. Nada escondem ou fingem, simplesmente por não haver planos ou relevos estabelecidos entre ser e parecer: como que talhadas em pedra inteiriça, mostram-se realmente como são, na primitividade do temperamento e da conduta (MOISÉS, 1985, p. 285. Grifo do autor). Do realismo autobiográfico ao realismo descritivo: assim entende Massaud Moisés a obra de Taunay. Um misto de conhecimento do sertão, de artista e de cientista. Um escritor romântico nutrido de outras características sobre seus antecessores. Para o crítico, o realismo descritivo em Taunay “promana da experiência direta do autor, não de alheia inspiração, pois 34 nem havia em nosso passado literário modelo a que pudesse arrimar-se” (MOISÉS, 1985, p. 287). Do conhecimento de Taunay, acerca do tipo topográfico e por meio de suas descrições ficcionais, surgiram um equilíbrio entre ciência e arte, nas palavras de Moisés: Equilíbrio, ao fim de contas, entre ciência e arte (mas não como pretendiam os realistas e naturalistas inspirados nas idéias de Taine e Claude Bernard), gerando um estilo e uma visão do mundo próximos do ensaio, não por uma qualquer tese que o romance defendesse, mas por um processo de criar ficção em que a fantasia jamais se desconecta da realidade. Ainda não adere às teorias realistas em moda no final do século XIX, mas já postula uma aliança entre a veracidade perseguida pela ciência e a imaginação desenvolvida pela arte. Nem a estrita descrição da ciência, vazada em relatórios frios e impessoais, nem a descrição transbordante, em voga no Romantismo; irrigada pelo fluxo contínuo da idealidade, como que a descrição libera seu encanto secreto, a poesia recôndita nas coisas da Natureza, mais como tonalidade, atmosfera ou sugestão, que pelo emprego sistemático de metáforas ou ritmos líricos; vinculada à realidade como âncora de peso, a fantasia não perde o relevo que a torna verossímil, ao mesmo tempo que plasticamente variegada (MOISÉS, 1985, p. 288-289). Como já havia concluído o crítico, embora exista a preocupação com as descrições literárias verossímeis do local e dos costumes das personagens, o conteúdo acaba caminhando para o exótico, para o idealismo romântico – o que será analisado no segundo capítulo desta dissertação. Por fim, Massaud Moisés disserta sobre o lugar de destaque do Visconde de Taunay no Romantismo brasileiro, principalmente devido às limitações do período: Feito o balanço, observa-se que Taunay funde, em sua cosmovisão, o ficcionista e o historiador ou homem de ciências: da mesma forma que suas obras “científicas”, como A retirada da Laguna, não escamoteiam a cooperação da fantasia, as obras ficcionais timbram em percorrer a um objetivismo de intelectual virado para o real histórico. Somente falta, na primeira alternativa, que o relato científico desborde para casos individuais de amor e honra, e que, na segunda, os dados objetivos ganhem mais espaço – para que tudo quanto Taunay criou se enquadre no mesmo nicho classificatório. Indecisão, resultante das duas vertentes da mundividência do autor, permitiu-lhe, no entanto, a visão equilibrada que frutificou pelo menos em uma obra-prima do nosso Romantismo, Inocência, sem contar A retirada da Laguna, de consulta obrigatória para os fastos da Guerra do Paraguai. Pela primeira vez na história de nossa ficção, surge um prosador doublé de cientista: daí a grandeza de sua obra e o lugar de honra em nossa ficção romântica, via de regra elaborada por bacharéis em Direito ou médicos fracassados (MOISÉS, 1985, p. 295-296). Por fim, a respeito do embate entre os críticos do século passado sobre o Visconde de Taunay ter sido um escritor de transição do Romantismo para o Realismo, configuraram-se duas vertentes. A primeira, oriunda de José Veríssimo, e que compreende Taunay como um escritor de transição entre os períodos. Seguindo essa vertente temos João Luis Lafetá, que concordou com a visão de Veríssimo a respeito da obra de Taunay e o considerou um 35 “romântico-realista”. Ainda nessa linha de análise, aparece Antônio Soares Amora, que mesmo procurando desmistificar as confusões críticas sobre essa transição, acaba concluindo que Taunay ora possui características românticas, ora realistas. De encontro com a vertente de transição temos uma segunda linha crítica. O primeiro nela é Antonio Candido, que apontou a importância da vivência de Taunay pelo sertão descrito e sua louvável memória de ficcionista. Candido enquadra-o, porém, no período romântico pelo conteúdo e pelo espírito de sua obra. Seguindo essa linha de análise, surgiu Nelson Werneck Sodré, que classificou o período posterior a 1870 de Sertanista e considerou Taunay como o mais importante escritor da época. Sodré também enquadra o escritor dentro dos princípios da escola romântica. Ainda nesta vertente, aparece a importante obra História concisa da literatura brasileira, de Alfredo Bosi, que segue a classificação de sertanista de Sodré e também considera Taunay o escritor mais importante da fase. Mais uma vez é reconhecido o valor do conhecimento do escritor acerca dos locais descritos e Bosi também o categoriza no Romantismo, devido à temática e à ideologia de suas obras. Por fim, temos, na segunda vertente, Massaud Moisés, que se debruçou sobre a fusão do cientista e do artista nas obras de Taunay. Moisés reconhece o tratamento inédito de “doublé de cientista” elaborado por Taunay, mas assim como os três críticos anteriores da vertente, entende que a obra do escritor situa-se no Romantismo, devido aos vícios do escritor pela temática e pelo conteúdo da escola romântica. Traçado o embate crítico a respeito da transição do Romantismo para o Realismo na obra de Taunay, que se estendeu ao longo de todo o século XX, resta ressaltar que esta discussão retornará com um posicionamento na segunda parte da dissertação, que trata mais de características estruturais do conto Ierecê a Guaná, assim como na terceira parte, que trata mais do conteúdo crítico presente no conto e em sua reedição. 1.3 A fortuna crítica de Taunay: inclusão ou exclusão? Traçadas as duas vertentes da transição em Visconde de Taunay, a do escritor viajante e a do escritor de passagem do Romantismo para o Realismo, colocamos, aqui, uma terceira proposta de transição: a análise da fortuna crítica do escritor. Ao longo do século XX, o Visconde de Taunay esteve presente em todas as principais obras de história e de crítica literária brasileira. Como vimos, nos dois capítulos anteriores, o 36 escritor foi sempre referenciado por sua formação artística, por seu conhecimento de viajante e pela composição das obras A retirada da Laguna e Inocência. Mas quanto ao restante de sua produção bibliográfica, o que essas mesmas críticas contêm a respeito? Grande parte das mais de vinte obras produzidas pelo Visconde de Taunay acabou excluída pela crítica e pela historiografia brasileira. Dentre tais obras esquecidas, encontra-se o conto “Ierecê a Guaná”, objeto de estudo desta dissertação. O conto foi publicado inicialmente na obra Histórias brasileiras, em 1874, com Taunay utilizando o pseudônimo de Sílvio Dinarte. Vejamos o que os críticos disseram a respeito da produção literária de Taunay ao longo de um século de permanência na Literatura Brasileira. Das quatorze obras pesquisadas, em seis não consta nenhuma informação, nem mesmo menção, ao conto “Ierecê a Guaná” ou à obra Histórias brasileiras. São essas: Literatura brasileira: síntese histórica (1972), de Dino F. Fontana, e Literatura brasileira (1999), de José Aderaldo Castello, Estudos de literatura brasileira (1977), de José Veríssimo, A literatura brasileira através dos textos (s.d.), de Massaud Moisés, História da literatura brasileira (1976), de Nelson Werneck Sodré, Apresentação da literatura brasileira (1978), de Oliveiros Litrento. As críticas são elaboradas, em geral, tendo como base as obras A Retirada da Laguna e Inocência. Já em outras sete obras ocorre menção à obra Histórias brasileiras. São estas: A literatura no Brasil (1969), de Afrânio Coutinho, História concisa da literatura brasileira (1989), de Alfredo Bosi, História da literatura brasileira (1975), de Antonio Candido e José Aderaldo Castello, A literatura brasileira (1967), de Antônio Soares Amora, “Sobre o Visconde de Taunay” (2004), de João Luis Lafetá, História da literatura brasileira (1985), de Massaud Moisés, e Dicionário literário brasileiro (1978), de Raimundo de Menezes. Nas críticas de Afrânio Coutinho, Alfredo Bosi, Antonio Candido e José Aderaldo Castello, Antônio Soares Amora e de Raimundo Menezes, a obra Histórias brasileiras é apenas citada na bibliografia do Visconde de Taunay que compõe a crítica. Segundo Alfredo Bosi, em História concisa da literatura brasileira, Taunay “nada mais fez que se comparasse sequer à realização de Inocência” (2006, p. 161). Já Massaud Moisés e João Luis Lafetá citam a obra Histórias brasileiras no corpo de seus textos críticos. Para Moisés, a obra faz parte do estilo de paisagista de Taunay e do seu percurso literário: Paisagista, diríamos que Taunay foi, caso pudéssemos transladar para a narrativa os parâmetros das artes plásticas, e estivéssemos perante um escritor isento de contrapontos. Com efeito, terminado o interlúdio sertanista de Inocência e 37 descoberto o filão de seu talento de aquarelista, eis que Taunay retorna à fonte de sua juventude: Macedo. Ao invés de perseverar na trilha desvendada, resolve imprevistamente concentrar os dotes de paisagista em obras de viagens e de memórias ou nas Histórias brasileiras, onde nem falta, para acentuar o verismo descritivista, um indício de regionalismo à Afonso Arinos ou Valdomiro Silveira, em “Juca, o Tropeiro”, - destinando ao romance o aspecto menos original de seu projeto estético (MOISÉS, 1985, P.289). Moisés passa pelo estilo de Taunay, citando algumas de suas obras menos conhecidas; contudo, a profundidade analítica de sua crítica volta-se para o romance Inocência. Para João Luis Lafetá, a obra se insere no período mais produtivo da vida literária de Taunay: Bastante produtiva também do ponto de vista literário: durante esses anos, publicou quatro romances (entre eles, o que se tornaria mais famoso, Inocência, de 1872), além de um livro de contos, Histórias brasileiras, de 1874. Não era ainda a sua maturidade de homem, mas era sem dúvida o ponto mais alto atingido pelo escritor. Depois da presidência de Santa Catarina, o político suplantou o ficcionista (LAFETÁ, 2004, p. 268). Da mesma forma que Bosi e Moisés, Lafetá acreditava que Taunay não produziu nada comparável a Inocência e A retirada da Laguna: Taunay é autor de obra vasta, embora bastante irregular. Dos quase vinte títulos que publicou, pouca coisa apresenta real qualidade. Não deve isso, entretanto, causar-nos grande estranheza, pois os pontos altos da ficção brasileira no século XIX são raros [...] Pois é da experiência direta da realidade, do contato imediato com o relevo, a vegetação, os hábitos e os tipos humanos do sertão de Mato Grosso, que o observador sensível tira seus primeiros livros, notadamente suas obras mais representativas: A retirada da Laguna e Inocência (LAFETÁ, 2004, p. 274-275). O crítico José Veríssimo, em uma das primeiras críticas do século XX, já havia considerado as duas obras como superiores às demais. Atentemos para o fato de Lafetá ter seguido a linha de Veríssimo para enquadrar o Visconde de Taunay como “românticorealista”; mais uma vez os dois relatos críticos se complementam. Veríssimo conclui que: [...] Se o equilíbrio do seu temperamento lhe permitiu, em dois momentos diferentes e próximos, escrever dois livros que são duas obras-primas, e que se distinguem justamente pelas qualidades dos temperamentos normais e sãos, a sobriedade e simplicidade, a naturalidade e a espontaneidade, a Inocência e a Retirada da Laguna, por outro lado foi talvez a causa da inferioridade, da desigualdade geral de sua obra posterior, quando, com menos zelo da sua reputação 38 de escritor, entrou a produzir como quer que seja de afogadilho (VERÍSSIMO, 1977, p. 148). É relevante ressaltar que, assim como os críticos citados, mesmo o Visconde de Taunay considerava as duas obras como superiores às demais. O escritor, em seu livro de Memórias, relatou: Talvez para sempre, pode parecer imodéstia de minha parte; mas não sei, nutro a ambição que hão de chegar à posteridade duas obras minhas: A retirada da Laguna e Inocência [...] A este respeito, tomei um dia a liberdade de dizer ao Imperador – isto na festa do Instituto Histórico oferecida aos oficiais do encouraçado chileno Cochrane, em fins de outubro de 1889 – mostrando-lhe aqueles dois livros bem encadernados, que ia oferecer ao Comandante Constantino Bannen: “Eis as duas asas que me levarão à imortalidade” (TAUNAY, 2005, p. 135). Visto que, das quatorze obras de história e de crítica literária citadas, seis nem mencionam Histórias brasileiras, cinco apenas mencionam a obra em suas bibliografias e duas apenas a mencionam no texto crítico, embora não citem o conto “Ierecê a Guaná”, chegamos ao total de treze obras. A última delas é a única que faz menção ao conto: a obra Formação da literatura brasileira, de Antonio Candido. O artigo de Candido, intitulado “A sensibilidade e o bom senso do Visconde de Taunay”, traça um percurso histórico acerca do autor e de sua produção literária. Partindo da obra Inocência, o crítico estabelece comparações com a obra Memórias e a relação de Taunay com a índia Antônia no período em que o autor viveu na aldeia guaná, chegando, enfim, ao conto “Ierecê a Guaná”, a respeito do qual, Candido diz: [...] um belo conto, o melhor de quantos [Taunay] escreveu [...] O conto relata, com um mínimo de fantasia, a paixão silvestre que termina com a morte da índia abandonada pelo amante. Em todo ele perpassa uma ternura e encantamento que o tornam dos bons trechos de nossa prosa romântica. Nem lhe falta a situação descrita por Chateaubriand em René e nos Natchez, retomada com o mais alto impulso lírico por Alencar, em Iracema, e que simboliza um aspecto importante da literatura americana: o contato espiritual e afetivo do europeu com o primitivo (CANDIDO, 1997, p. 280). Este trecho é a única referência que temos ao conto “Ierecê a Guaná” ao longo do século que se passou. O conto, publicado em 1874, foi somente analisado em 1957 por Antonio Candido e republicado em 2000. Diante do exposto, pode ver-se que oitenta e três anos separam a publicação inicial do conto “Ierecê a Guaná”, em Histórias brasileiras, do 39 artigo de Candido em Formação da literatura brasileira. Da crítica de Candido até a reedição do conto, em 2000, são mais quarenta e três anos de ausência de informações sobre ele, perfazendo, deste modo, o caminho de cento e vinte e seis anos que separam a publicação inicial do conto de sua reedição. Tendo em vista que, ao longo de todo o século XX, a historiografia e a crítica literária sempre colocaram o Visconde de Taunay como um dos mais importantes escritores do Romantismo, podemos concluir que há uma inclusão. Por outro lado, se atentarmos para o fato de que as críticas foram sempre baseadas em duas obras, sendo as demais esquecidas, podemos concluir como uma exclusão. Mas não é esta a questão: a proposta de Candido para que a crítica lesse “Ierecê a Guaná” não julga as críticas anteriores como excludentes e sim lança a perspectiva futura de adicionar a leitura do conto ao cânone literário do Visconde de Taunay. Trata-se de uma questão de adição e não de exclusão e é dessa maneira que Sérgio Medeiros procurou editar o conto e a obra Memórias, inserindo-os como importantes produções da literatura brasileira do século XIX. Diante de uma fortuna crítica de apenas um texto, Sérgio Medeiros, ao republicar o conto, na virada do século XX para o XXI, inclui três novas críticas. São essas: “As vozes do Visconde de Taunay”, do próprio editor Sérgio Medeiros, “Índia romântica. Branco realista”, de Lúcia Sá, e “ Do verismo etnográfico à magia verbal”, de Haroldo de Campos. As críticas estão inseridas após o conto e após o texto crítico “A sensibilidade e o bom senso do Visconde de Taunay”, de Antonio Candido, republicado na nova edição. Sendo assim, após passar todo um século com apenas uma crítica, o conto “Ierecê a Guaná” adentrou o século XXI com quatro referências em sua fortuna crítica5. A reedição do conto, editada pela Iluminuras, dessa vez em volume autônomo, sem os demais contos que compunham as Histórias brasileiras, trouxe, ainda, para o leitor, dois outros pequenos textos de Taunay. São esses: “Os índios do Distrito de Miranda”, que aborda questões acerca dos costumes dos índios do distrito, e um “Vocabulário da língua chané”, que descreve alguns vocábulos da língua do indígena local. É a partir da reedição do conto e das novas críticas presentes nela que se debruçará e se desenvolverá todo o restante desta dissertação. 5 Cabe ressaltar ainda que, no mesmo ano da reedição de Ierecê a Guaná por Sérgio Medeiros, em 2000, foi publicado, paralelamente, no livro “Percursos da Memória: construções do imaginário nacional”, um artigo intitulado “O Visconde Viajante: considerações acerca da natureza e do índio na obra de Alfredo D’Escragnolle Taunay”, de autoria de Norma Wimmer. No artigo, a autora, analisa a natureza e o índio sob a perspectiva da literatura romântica do Visconde de Taunay. Para tanto, utiliza como suporte várias obras do autor, dentre elas o conto “Ierecê a Guaná”, até então esquecido pela crítica literária. Dessa forma, podemos contabilizar quatro novas menções ao conto no início do século XXI, juntando-se a de Candido do século passado e totalizando uma fortuna crítica de cinco artigos. 40 2. IERECÊ A GUANÁ: HISTÓRIA E FICÇÃO A reedição do conto Ierecê a Guaná, desmembrado dos demais contos de Histórias brasileiras, nos traz quatro críticas para sua análise. Para justificar a reedição do conto e a inclusão de tais críticas, o editor Sérgio Medeiros produziu um texto de apresentação intitulado “A volta de Ierecê”. Para tanto, começa o texto citando a concepção histórica acerca do indianismo romântico elaborada por Walnice Nogueira Galvão e a proposta de incluir o conto para uma leitura comparativa com o período em que foi produzido: Num ensaio sobre o nosso indianismo, Walnice Nogueira Galvão afirma: ‘O índio não teve muita sorte na literatura brasileira, depois do Romantismo’. Talvez, por isso mesmo, devêssemos olhar com redobrada atenção, neste novo século, para o referido período literário, pois nem todos os índios românticos continuam visíveis, hoje. Para o leitor, a novela Iracema exemplifica um dos grandes momentos do nosso indianismo romântico. Longe de pretender questionar esse veredicto, penso que a leitura da obra do escritor cearense sairia enriquecida se nos dedicássemos a ler também ‘Ierecê a guaná’, um conto longo do Visconde de Taunay (1843-1899), publicado em 1874, que é, à sua maneira, uma resposta à obra de Alencar, como seu autor declarou (veja-se, a esse respeito, o ensaio de Lúcia Sá, incluído nesse volume) (MEDEIROS, 2000, p. 09). Partindo do pressuposto de que o índio não teve muita sorte na literatura brasileira, depois do Romantismo, lançado por Walnice Nogueira Galvão, Sérgio Medeiros pede atenção ao período e ao esquecimento de alguns personagens da época. O crítico propõe que o leitor de Iracema, consagrado romance de José de Alencar, coloque o conto em relação com a obra alencariana, o que na sua visão resultaria numa leitura enriquecida. Entendendo o conto como uma resposta à obra de Alencar, Medeiros cita o ensaio de Lúcia Sá, terceiro texto crítico incluso após o conto. Ainda como tentativa de justificar a reedição do conto, Sérgio Medeiros relata o longo período de esquecimento dele, que só foi mencionado por Antonio Candido em Formação da literatura brasileira. O texto de Candido foi incluso na reedição, sendo o primeiro após o conto. Vários motivos levaram o editor a incluir o consagrado texto de Candido na reedição; vejamos quais: [...] Diria que ainda não lemos esse conto: não sabemos como julgá-lo nem como classificá-lo. Ninguém o menciona, exceto Antonio Candido, que o cita elogiosamente na sua Formação da literatura brasileira, num capítulo que é reproduzido neste volume, graças à generosidade intelectual do seu autor. 41 Quis que o retorno às nossas letras de Ierecê, índia guaná, viesse precedido por esse texto de Antonio Candido, não apenas porque foi durante a sua leitura que eu próprio descobri essa personagem, como também porque não poderia oferecer ao leitor melhor introdução ao universo ficcional do autor de Inocência e A retirada da Laguna (MEDEIROS, 2000, p. 09-10). A justificativa da inclusão do texto de Antonio Candido parte do fato dele ser, até o ato da reedição, a única menção crítica a respeito do conto. Sérgio Medeiros também relata que foi com a leitura da crítica de Candido que conheceu o conto e que o leitor não poderia ter melhor introdução ao universo ficcional do Visconde de Taunay que não fosse pela leitura de tal texto. É importante ressaltar também o fato de que um texto comentado em uma obra consagrada como Formação da literatura brasileira, elaborada pelo (considerado por muitos) melhor crítico brasileiro, traria maior visibilidade à reedição e mais leitores curiosos a respeito do conto. Isso ocorreu desde o lançamento da publicação de Ierecê a Guaná, que, trazendo, inclusive na capa, o nome de Antonio Candido, teve publicações sobre seu lançamento em jornais importantes e referências ao conto como “o mencionado por Candido”. Quanto à inclusão do ensaio de Haroldo de Campos, quarto texto após o conto, Sérgio Medeiros dá importância ao contato que teve com o crítico e aos estudos elaborados por ele acerca da obra de José de Alencar, o que enriqueceria o debate entre Ierecê e Iracema: Quando começava a coletar materiais para preparar esta reedição de ‘Ierecê a guaná’, tive um encontro muito proveitoso com Haroldo de Campos, recebendo dele estímulo para levar adiante esse trabalho. Sobretudo, discutimos o conto, confrontando-o com a Iracema de José de Alencar. Haroldo de Campos, como se sabe, é autor do ensaio ‘Iracema: uma Arqueografia de Vanguarda’, que me parece ser um modelo para futuras leituras do próprio conto de Taunay. A convite meu, ele aceitou escrever um texto especial para esta reedição, levando avante sem dúvida sua leitura dialógico-baktiniana do espaço romanesco brasileiro, agora incorporando ‘Ierecê a guaná’ às suas referências estéticas (MEDEIROS, 2000, p. 10). Como exposto pelo editor, mais uma vez a relação entre a obra de José de Alencar e a do Visconde de Taunay é o mote de análise. Após uma discussão com Sérgio Medeiros sobre o conto de Taunay e o romance de Alencar, Haroldo de Campos produziu um ensaio baseado em aspectos formais das ficções, na tentativa de clarear a proposta de Taunay de recriar o universo indígena na literatura romântica brasileira. O último dos quatro textos críticos presentes na reedição é do próprio editor Sérgio Medeiros. O seu ensaio, segundo após o conto, é baseado no contraste entre o comportamento “romântico” da personagem central do conto, Alberto Monteiro, e o comportamento “realista” 42 do autor do conto, Visconde de Taunay. Relacionando a vivência do escritor com o enredo, a linguagem do conto e as características da personagem central, o texto de Medeiros procura refazer o percurso do indígena na literatura e na vida do Visconde de Taunay: Se a trama de ‘Ierecê a guaná’ é tipicamente romântica, descrevendo o encontro e eventual idílio entre duas raças, a européia e a índia, em contrapartida ela possui certas características que a tornam complexa tanto na sua mensagem quanto na sua linguagem. O herói do conto, um dândi desdenhoso e entediado que não alcança o paraíso tropical e precisa retroceder, deparando, à beira do caminho, com a índia guaná do título, expressa toda a contradição que o próprio autor vivenciou, ao longo da vida, em relação à cultura indígena, pela qual sentia uma atração mesclada de certa repulsa, conforme tento discutir num ensaio acrescentado a este volume, ‘As vozes do Visconde de Taunay’ (MEDEIROS, 2000, p. 10). Os três novos textos críticos partem da vivência de Taunay em relação à composição de suas obras ficcionais. A crítica de Haroldo de Campos procura relacionar a tentativa de Taunay de compor o índio mais verossímil do que o anteriormente feito por Alencar, considerado pelo escritor como idealizado, com o efeito estético alcançado pelas obras. Lúcia Sá procura estabelecer a relação entre o indianismo de Alencar com a transição realistaromântica de Taunay, tendo como base os contrastes entre os escritores, as distinções entre a personagem branca e a indígena e ainda a relação da ficção de Taunay com sua obra autobiográfica Memórias. E, por fim, a crítica do editor Sérgio Medeiros que tenta, a todo o momento, contrastar passagens do conto e o comportamento da personagem central com a posição do escritor, Taunay, para com o indígena com quem conviveu, tomando por base, principalmente, a obra Memórias. Existe nas três novas críticas a relação da vida de Taunay com sua obra, dos fatos vividos no século XIX com a produção ficcional romântica, da História com a Literatura. Ainda no texto de apresentação da reedição, Sérgio Medeiros deixa clara essa relação. Tomando por base a vivência de Taunay pelos sertões da antiga Província de Mato Grosso, a sua atuação na Guerra com o Paraguai e dando importância inapropriada à publicação póstuma do seu livro de Memórias, esses são os fatores de ênfase que o editor lança para justificar a sua proposta. Sobre a vivência de Taunay no período relata: A esse respeito, convém lembrar que Taunay, quando ainda muito jovem, penetrou nos sertões de Mato Grosso, integrando a comissão de engenheiros de uma coluna que marchou para o Paraguai, durante da Guerra da Tríplice Aliança (1864-1870). Nessa ocasião, ele sonhara em realizar grandes feitos, não na área bélica, mas na área científica, mais especificamente na área antropológica. Por isso, 43 quando deparou com os índios do Distrito de Miranda, próximo à divisa do Brasil com o Paraguai, dedicou-se a estudar a sua língua (MEDEIROS, 2000, p. 11). A vivência de Taunay com os indígenas é marcada, na visão de Medeiros, pela intenção do escritor em realizar grandes feitos na área antropológica. Com tal intenção, ao conviver com os indígenas, Taunay dedicou-se a estudá-los, produzindo textos descritivos do local e dos costumes dos que ali viviam, além de um vocabulário da língua guaná. Dois desses textos foram, também, republicados no mesmo volume, após o conto, por Sérgio Medeiros. O editor justifica os ter incluído na reedição do conto da seguinte maneira: No seu primeiro livro publicado, Scenas de Viagem, Taunay descreve seu contato com os índios do Centro-Oeste e apresenta um vocabulário de termos guaná, a língua de Ierecê. Esses dois textos foram acrescentados a este volume, para que o leitor possa avaliar melhor o empenho de Taunay na coleta dos dados que mais tarde usaria para elaborar o conto, e também para que perceba as suas limitações como antropólogo, pois, como os homens da sua época, via o outro a partir de uma perspectiva que considerava o europeu como um ser superior (MEDEIROS, 2000, p. 11-12). Dessa justificativa até a relação entre a ficção e a vivência de Taunay, temos o último motivo de Sérgio Medeiros para a elaboração da reedição. Para comparar as personagens do conto com a vivência de Taunay com os indígenas, o editor lança o olhar sobre a autobiografia Memórias: Esse conflito será repensado por Taunay nas Memórias, obra escrita no final da vida e publicada postumamente, na qual declara haver amado uma índia chamada Antônia, sua amante durante a guerra. A personagem Ierecê incorpora os traços dessa mulher que Taunay descreveu como extremamente elegante e graciosa, mas já o herói do conto, o turista irônico e desdenhoso Alberto Monteiro, não poderia ser lido – é o que tento mostrar no meu ensaio – como um simples retrato do escritor enquanto jovem. Creio que essas informações bastam, e entrego ao leitor esta reedição de ‘Ierecê a Guaná’ (MEDEIROS, 2000, p. 12). Ao trazer à luz as Memórias para analisar o conto “Ierecê a Guaná”, Sérgio Medeiros não pretende somente mostrar aspectos que demonstrem a tentativa de Taunay de compor um índio mais verossímil em relação aos anteriormente elaborados por José de Alencar. Na comparação entre o conto e a obra autobiográfica, o editor tenta refazer a trajetória do indígena na obra ficcional do escritor. Para tanto, procura construir duas imagens de Taunay, a do jovem escritor, que entende como parecido com a personagem central do conto, e a do maduro escritor das Memórias, que seria, em sua visão, distinto e evoluído em relação aos preconceitos apresentados pela personagem do conto para com as personagens indígenas. 44 Com essas justificativas, Sérgio Medeiros encerra a apresentação da reedição e convida o leitor a ler o conto, os textos antropológicos de Taunay e as quatro críticas presentes, ou seja, a ler a reedição organizada com base em seus conceitos de crítico e em sua análise do passado e tentativa de permanência deste no futuro. Para tal permanência é proposta pelo editor uma leitura do conto em comparação com as memórias de Taunay, uma leitura da Ficção com base ou com comparações na História. 2.1 A relação entre História e Literatura: contrastes e convergências A relação entre Literatura e História é de considerável complexidade. Definir o alcance de uma ou de outra e, até mesmo, o relacionamento entre elas não é algo que seja previamente delimitado, não é uma questão de fácil visibilidade. Partindo da relação entre essas “ciências”, Antonio Esteves inicialmente aponta uma característica comum às duas, a linguagem: Em sua tentativa de captar e entender o passado, o ser humano vale-se da linguagem. E a linguagem, como se sabe, por um lado, tem regras fixas, préestabelecidas, e limita as possibilidades do falante. Por outro lado, no entanto, flui sem cessar ao longo do tempo, fazendo com que a experiência de uma geração seja diferente da de outra. Por mais objetividade que tenha, o homem acaba sempre fazendo uma releitura dos fatos que, para serem transmitidos, sofrem uma interpretação de acordo com determinados pontos de vista, dentro de certo espaço e de acordo com a visão do tempo em que vive. Assim, a história e a literatura têm algo em comum: ambas são constituídas de material discursivo, permeado pela organização subjetiva da realidade feita por cada falante, o que produz uma infinita proliferação de discursos (ESTEVES, 1998, p. 125). Com esse emaranhado de possibilidades, surgem novos questionamentos ao homem contemporâneo e, consequentemente, aos estudos dessas relações. Antonio Esteves lança algumas questões e duas respostas a elas, dentre as várias possibilidades de resposta: [...] será possível conhecer ou representar a história de maneira exata? Ou tudo não passa de uma questão de ponto de vista? Atualmente muitas respostas são possíveis. Tomemos duas delas. Ou a história, como a ficção, com seu discurso subjetivo também é uma invenção. Ou, então, também é possível se chegar à verdade histórica através da literatura. Nesse caso, não se trata de substituir a história pela ficção, mas de possibilitar uma aproximação poética em que todos os pontos de vista, contraditórios, mas convergentes, estejam presentes, formando o que o professor Maarten Steenmeijer (1991:25) chama de representação totalizadora (ESTEVES, 1998, p. 125). 45 A busca pela representação totalizadora, termo de Maarten Steenmeijer, citado por Esteves, talvez seja a função do diálogo entre Literatura e História. O que seria essa representação? Esteves entende que seria a aproximação de discursos, podendo ser dentre eles o histórico e o literário, o que gera a possibilidade de considerar vários pontos de vista sobre um fato, um período ou uma ocorrência, pontos de vista contraditórios, mas convergentes. Resta entender, dessa maneira, em que ponto existem os discursos contraditórios que convergem e qual a contribuição de tal relação. Esteves parte da teoria elaborada pelo escritor argentino Tomás Eloy Martinez, que se debruça sobre a questão da relação entre Literatura e História, e chega à seguinte definição: Deixa de existir a necessidade de se estar, a todo instante, denunciando que a história oficial foi manipulada pelo poder dominante que cassou a palavra dos dominados, sendo necessário reescrevê-la, reconquistando essa palavra. Escrever já não é opor-se a tantas crises – políticas, econômicas e de representação, principalmente – , foi o vazio. E este grande vazio começa a ser preenchido não apenas por uma versão dos fatos que se opõe, digamos, a outra versão, mas por uma série de diferentes versões de um determinado fato histórico, que mudam constantemente de acordo com o enfoque adotado (ESTEVES, 1998, p. 126-127). Desta maneira, a verdade factual, ou verdade histórica, nessa perspectiva, passa a ser a não existência de uma única verdade. Isso não quer dizer que não existem fatos comprovados ou resultados obtidos e, sim, que a história pode ser contada de diversas maneiras, por meio da adoção de causas, de efeitos e de métodos distintos. Sendo assim, é necessário enfatizar que não estamos tratando de uma crise da História, uma vez que as características citadas também servem para compreendermos a impossibilidade da “veracidade única” na Literatura e em outros campos do discurso. O que existe é uma crise da linguagem como representação da realidade, como aponta o escritor português José Saramago num ensaio intitulado “O diálogo com a História”: Tenho ouvido que existe uma crise da História. Se assim é – e eu não sou ninguém para pronunciar-me sobre uma questão tão grave –, interrogo-me se tal crise não será causa directa, ainda que não única, desta espécie de ressurreição a que assistimos, em condições diferentes e com diferentes resultados, daquilo a que, a meu ver erradamente, continuamos a chamar romance histórico. E, também, se não se tratará, afinal, de expressão particular duma outra crise mais ampla: a da representação, a da crise da própria linguagem como representação da realidade (SARAMAGO, 1995, p. 500). Saramago acredita na existência de uma crise da representação. Não é mais possível uma única versão da História como representação da realidade. Dessa forma, resta indagar 46 qual a função da Literatura, ou do discurso literário, diante do “novo” processo histórico? José Saramago, no mesmo ensaio, enxerga o papel da Literatura da seguinte maneira: [...] Claro que não esqueço que o mesmo historiador sempre fará, ele próprio, outras viagens ao tempo por onde antes viajara, esse tempo que por sua intervenção deixara de ser informe, que passara a ser História, e que, graças a visões novas, a novos pontos de vista, a novas representações, irá tornando sucessivamente mais densa a imagem histórica que do passado nos vinha dando. Restará sempre, contudo, uma grande zona de obscuridade, e é aí, segundo entendo, que o romancista tem seu campo de trabalho (SARAMAGO, 1995, p. 501). Para Saramago, restará sempre no discurso histórico uma zona de obscuridade; seria nessa lacuna que se encaixaria a versão literária. Seguindo esta concepção de análise entre História e Literatura, ou seja, pela crise da representação da realidade por intermédio da linguagem, tomamos como referência a obra de Sandra Jatahy Pesavento. Para a autora, a representação envolve uma relação ambígua: Tomemos como pressuposto que a representação envolve uma relação ambígua entre ‘ausência’ e ‘presença’. No caso, a representação é a presentificação de um ausente, que é dada a ver por uma imagem mental ou visual que, por sua vez, suporta uma imagem discursiva. A representação, pois, enuncia um ‘outro’ distante no espaço e no tempo, estabelecendo uma relação de correspondência entre ser ausente e ser presente que se distancia do mimetismo puro e simples. Ou seja, as representações do mundo social não são o reflexo do real nem a ele se opõem de forma antitética, numa contraposição vulgar entre imaginário e realidade concreta. Há, no ato de tornar presente ou ausente, a construção de um sentido ou de uma cadeia de significações que permite a identificação. Representar, portanto, tem o caráter de anunciar, ‘por-se no lugar de’, estabelecendo uma semelhança que permita a identificação e reconhecimento do representante como representado. Por outro lado, as representações do mundo social não se medem por critérios de veracidade ou autenticidade, e sim pela capacidade de mobilização que proporcionam ou pela credibilidade que oferecem (PESAVENTO, 1998, p. 19-20). Dessa maneira, a História “abrirá mão do seu poder de formulação da verdade”, nas palavras de Pesavento (1998, p. 20), e procurará construir uma versão plausível, que traga elementos inteligíveis para o leitor. Em tal concepção, a Literatura não é o avesso do real e/ou simplesmente a busca pela verossimilhança, comportando em si toda possibilidade que a criação artística/linguística e a fantasia lhe dispõem e que não são, geralmente, permitidas ao historiador. Para Pesavento, a função da Literatura para o historiador seria a seguinte: Para o historiador a literatura continua a ser documento ou fonte, mas o que há para ler nela é a representação que ela comporta. Ou seja, a leitura da literatura pela história não se faz de maneira literal, e o que nela se resgata é a representação do mundo que comporta a forma narrativa. Aliás, pode-se argumentar que, segundo estas posturas, a história também não é passível de uma leitura literal, sendo ela 47 também uma representação do real e comportando, pois, a atribuição de um sentido (PESAVENTO, 1998, p. 22). No entanto, não é por abdicar de uma formulação da verdade que a História perde sua autoridade sobre o passado. Para Pesavento, a História possui apenas um discurso que visa maior compromisso com a “fidelidade ao passado”, o que não é o objetivo do texto literário: Sem dúvida, é a história que articula uma fala autorizada sobre o passado, recriando a memória social através de um processo de seleção e exclusões, onde se joga com as valorações da positividade e do rechaço. Há, pois, um componente manifesto de ficcionalidade no discurso histórico, assim como, da parte da narrativa literária, constata-se o empenho de dar veracidade à ficção literária. Naturalmente, não é intenção do texto literário provar que os fatos narrados tenham acontecido concretamente, mas a narrativa comporta em si uma explicação do real e traduz uma sensibilidade diante do mundo, recuperada pelo autor (PESAVENTO, 1998, p. 22). Vimos que há na História um componente manifesto de ficcionalidade e que há na Literatura um esforço de dar veracidade à sua narrativa. É a História que busca a veracidade, mesmo esta não sendo plenamente alcançável. A Literatura, por sua vez, não visa narrar os fatos como ocorreram concretamente e sim produzir uma explicação do real, uma narrativa verossímil, traduzida pela sensibilidade característica da criação literária. Para José Saramago (em uma concepção aristotélica), não é o papel da Literatura narrar o que de fato aconteceu, mas aquilo que poderia ter acontecido, ou seja, uma relação verossímil. Mais uma vez, o escritor português enfatiza que o papel do romancista é preencher as lacunas deixadas pelo discurso histórico: Creio bem que o que subjaz a esta inquietação é a consciência da nossa incapacidade final para reconstituir o passado. E que, por isso, não podendo reconstituí-lo, somos tentados – sou-o eu pelo menos – a corrigi-lo. Quando digo corrigir, corrigir a História, não é no sentido de corrigir os factos da História, pois essa nunca poderia ser tarefa de romancista, mas sim de introduzir nela pequenos cartuchos que façam explodir o que até então parecia indiscutível: por outras palavras, substituir o que foi pelo que poderia ter sido (SARAMAGO, 1995, p. 501. Grifo do autor). A reconstituição dos fatos produzida pela Literatura traria, para Saramago, uma “instabilidade”, útil para a compreensão do presente feito pela leitura do passado: [...] Simplesmente, se a leitura histórica, feita por via do romance, chegar a ser uma leitura crítica, não do historiador, mas da História, então essa nova operação introduzirá, digamos, uma instabilidade, uma vibração, precisamente causadas pela 48 perturbação do que poderia ter sido, quiçá tão útil a um entendimento do nosso presente como a demonstração efectiva, provada e comprovada do que realmente aconteceu (SARAMAGO, 1995, p. 501). Com uma concepção diferenciada de entendimento do presente pela leitura do passado, José Saramago considera que o papel da História e da Literatura tradicionais é apenas o de representar a época descrita e que isso resulta em um “tempo perdido”: Olhando o passado, a minha impressão mais forte é a de que estamos perante um imenso tempo perdido. A História, e também o Romance que procura para seu tema fundamental a História, são, de alguma maneira, viagens através daquele tempo, tentativas de itinerários, todas com um só objetivo, sempre igual: o conhecimento do que em cada momento vamos sendo. Porém, apesar de toda a História escrita, apesar de tantos romances escritos sobre casas e coisas do passado, é esse tempo enigmático, a que chamei perdido, que continua a fascinar-me (SARAMAGO, Grifo do autor, 1995, p. 502). Para Esteves são cada vez mais tênues as fronteiras entre os discursos, sendo esta linha necessária para a reconstrução da cultura produzida por uma “recuperação” do imaginário: [...] Suas fronteiras são cada vez mais tênues – há uma imensa área de domínio comum, com uma série de portas entreabertas [...] Hoje, poucas dúvidas restam de que ambas, história e ficção, são escritas não mais para modificar o passado, mas sim para corrigir o futuro, para situar esse porvir no lugar dos desejos [...] Assim, o romance sobre a história tende a reconstruir e reconstrução quer dizer recuperação do imaginário e das tradições culturais de uma determinada comunidade, que depois de apropriar-se desses valores lhes dá vida de outra forma (ESTEVES, 1998, p. 127). Não existem mais verdades absolutas. Tanto a História quanto a Literatura procuram criar possibilidades de leituras do passado para o leitor do presente. Antonio Esteves parte das premissas lançadas por Walter Benjamin (teses de “Sobre o conceito de história”), e propõe a leitura/constatação dos danos causados no passado com a tentativa de uma redenção no futuro. Contudo, Esteves aponta que o “poder”, que dominou e contou a história ao longo de toda uma tradição, ainda segue camuflado sob novas roupagens ideológicas: Ficção e história também são, no entanto, apostas sobre o futuro. Se bem que escrever a história como romance e romances com os fatos da história já não signifique apenas a correção da versão oficial da história, nem tampouco um ato de oposição ao discurso do poder constituído, não deixa continuar sendo ambas as coisas. As ficções sobre a história reconstroem versões, se opõem ao poder e, ao mesmo tempo, apontam para frente. Entretanto, o que significa apontar para o futuro? Não significa certamente a intenção de se criar uma nova sociedade através do poder transformador da palavra escrita. Significa muito mais se escrever para forjar o leito de um rio por onde deverá navegar o futuro, no lugar dos desejos humanos (ESTEVES, 1998, p. 128). 49 Contrária à perspectiva acima apontada, a proposta de Sérgio Medeiros com a reedição do conto “Ierecê a Guaná”, acrescida de dois textos antropológicos de Taunay e de quatro críticas sobre o conto, visa uma leitura da obra ficcional relacionada com a vivência de Taunay com os indígenas, descrita na autobiografia Memórias. Vimos neste capítulo que a relação da ficção com os fatos históricos é muito delicada e de difícil delimitação. O retorno ao passado exige a constatação das catástrofes vividas pela humanidade para uma possível redenção no futuro. Não existe mais a possibilidade, em uma cultura moderna, de retornar ao passado como uma reconstrução da verdade absoluta. No entanto, percebemos que a descrição de Sérgio Medeiros na apresentação de sua reedição caminha rumo a uma proposta muito distinta da analogia moderna entre ficção e história. O editor propõe um retorno ao passado que procura justificar o olhar conservador da personagem Alberto Monteiro para com os indígenas do conto, o que será analisado nos dois capítulos sequentes desta dissertação. Ainda propõe trazer marcas “heroicas” e/ou estéticas da vivência de Taunay na Província de Mato Grosso e a publicação póstuma de suas Memórias como justificativa aos autoritarismos da época, presentes na ficção. Se a ficção (como constatado nas concepções teóricas deste capítulo), não é o que de fato ocorreu, mas o que poderia ter acontecido, a proposta de Medeiros segue um caminho conflituoso, ao passo que o conto não narra uma versão diferente da conduta que sabemos que o homem branco colonizador teve com o índio brasileiro. E muito menos as escolhas discursivas do Visconde de Taunay, na época de sua produção literária, foram diferentes. Se esta é a proposta de Sérgio Medeiros, nos resta, daqui a diante, colocar em discussão os elementos presentes no enredo do conto, assim como também analisar os textos críticos da reedição. Como ponto de partida tomaremos com enfoque a análise estrutural do conto e o conteúdo que é possível abstrair dela, para num segundo momento compararmos com as conclusões das críticas presentes na reedição. 2.2 O Foco Narrativo Como ponto de partida da análise dos elementos estruturais do conto, abordaremos, primeiramente, o ponto de vista adotado pelo narrador do enredo. No conto, a escolha do foco narrativo é que evidenciará a descrição das personagens, a caracterização dos diálogos e a 50 ideologia presente no desfecho da trama. A análise do foco narrativo trará referências para a compreensão dos demais elementos estruturais da narrativa, dando base para a compreensão do estilo adotado pelo Visconde de Taunay para a composição do conto. O foco narrativo no conto está todo sob a perspectiva do narrador. Para tal afirmação, utilizamos como suporte teórico o texto “O ponto de vista na ficção: o desenvolvimento de um conceito crítico”, de Norman Friedman, traduzido por Fábio Fonseca de Melo, na Revista USP, número 53, e as definições do Dicionário de termos literários, de Massaud Moisés. A partir da concepção teórica de Friedman e de Moisés analisamos o ponto de vista adotado pelo narrador onisciente e seu domínio sob as personagens. A partir desta primeira análise, podemos notar o caráter ideológico sob a perspectiva retórica do narrador do conto, o que nos leva a uma segunda análise. Para esta, utilizaremos como base teórica o texto “Dois aspectos do foco narrativo: Retórica e Ideologia”, de Ismael Ângelo Cintra. O foco narrativo adotado em “Ierecê a Guaná” é determinante para a análise das personagens, da trama e do material crítico presente em sua reedição, como veremos ao longo de toda esta segunda parte. Tanto nas críticas da reedição quanto nas obras de história literária pesquisadas, a imagem do autor (Taunay) tem sido vinculada à das personagens centrais de suas obras (Cirino em Inocência e Alberto em Ierecê a Guaná). Isso se deve muito pelo ponto de vista do narrador das obras, que mesmo em 3ª pessoa, estabelece uma visão ideológica ligada às crenças e costumes das personagens viajantes, o que remete ao escritor viajante. Massaud Moisés, no entanto, adverte que é necessário cuidado nas distinções e aproximações entre autor e narrador: [...] autor e narrador: o primeiro se refere ao escritor, um ser determinado, socialmente diferenciado, que cumpre o ofício de redigir histórias fictícias para o desfrute e o aprimoramento cultural do leitor; o narrador é o contador de histórias, espécie de alter ego ao qual o escritor transfere a incumbência de narrar. É que no ato de compor a narrativa, o escritor se desdobra numa terceira pessoa, num ‘ele’ que assume a função de relatar, de forma que o ‘eu’ do narrador não se confunde com o ‘eu’ do escritor; este, despe-se da sua individualidade civil para vestir um outro ‘eu’, tão inventado quanto as histórias narradas (MOISÉS, 2004, p. 407. Grifo do autor). Embora Moisés estabeleça a distinção entre autor e narrador, relata que a escolha pelo ponto de vista do narrador se faz pela opção estética e ética do autor, o que denomina de cosmovisão: [...] Porventura a mais estudada porque mais relevante de todas as categorias narrativas, o ponto de vista, além de condicionar a avaliação de um romance, 51 articula-se intimamente com o modo como o autor ou/e narrador vê as coisas e o mundo: em grande parte, a cosmovisão de um escritor se manifesta por meio do ponto de vista, sobretudo na medida em que o ângulo visual determina, deforma ou informa, tudo o mais que se contém num texto narrativo. Exprime, assim, não só uma opção estética como também, e notadamente, ética: a obra literária como expressão dos últimos fins do Homem se evidencia na escolha do foco narrativo; conforme sejam vastas ou estreitas as concepções éticas dum autor, assim será o ponto de vista empregado nas suas obras (MOISÉS, 2004, p. 408). Para Moisés, no tocante ao narrador onisciente, há níveis de distanciamento entre o autor e o narrador. O ponto de vista onisciente pertence mais ao narrador do que ao autor, mas a distância entre os dois pode reduzir-se ao mínimo sem haver comprometimento do aspecto literário do enredo (cf. MOISÉS, 2004, p. 412). A maior distância entre eles, para o crítico, estaria na narração onisciente em primeira pessoa, intermediariamente em uma narração feita por uma personagem secundária e em nível muito próximo quando a narração é onisciente e em terceira pessoa: O distanciamento entre o narrador e a história toca o ápice quando o narrador se volve testemunha: posta-se, agora, mais fora do que antes, no pólo extremo, dentro do prisma da primeira pessoa. E ao colocar-se no limite, aproxima-se do autor: ultrapassada a fronteira, configurar-se-ia o narrador onisciente, e a correspondente identificação, ou o ponto de vista na terceira pessoa (MOISÉS, 2004, p. 412). Este é caso do narrador de “Ierecê a Guaná”, onisciente e em terceira pessoa, com concepções éticas estabelecidas próximas ao modelo de vida da personagem central Alberto, o que tem levado a crítica a relacioná-lo com o autor Visconde de Taunay. Vejamos algumas características do foco narrativo no conto a partir do que Norman Friedman denominou Autor Onsiciente Intruso. Friedman inicia o capítulo distinguindo sumário narrativo (contar) e cena imediata (mostrar). Para o autor, a transmissão do enredo para o leitor se faz possível por meio, pelo menos, de um ponto definido no espaço e no tempo: [...] A principal diferença entre narrativa e cena segue o modelo geralparticular: o sumário narrativo é uma apresentação ou relato generalizado de uma série de eventos cobrindo alguma extensão de tempo e uma variedade de locais, e parece ser o modo normal, simples, de narrar: a cena imediata emerge tão logo os detalhes específicos, contínuos e sucessivos de tempo, espaço, ação, personagem e diálogo começam a aparecer. Não o diálogo tão-somente, mas detalhes concretos dentro de uma estrutura específica de espaço-tempo é o sine qua non da cena (FRIEDMAN, 2002, p. 172). 52 Em “Ierecê a Guaná”, encontramos exemplos de sumário narrativo. O conto é narrado em terceira pessoa e começa com uma longa descrição (histórica, política e geográfica) de como o vaporzinho Alpha chegou pelo rio Mondego ao Distrito de Miranda, “alvoroçando repentinamente de alegria e perturbando de modo nunca visto o costumado e natural sossego daquela distante localidade” (TAUNAY, 2000. p. 16). É por meio da chegada do Alpha a Miranda que é apresentada a personagem central da narrativa: Chamava-se Alberto Monteiro e viajava por mera distração. Homem no pleno vigor dos anos, e bastante rico para satisfazer os seus caprichos, empreendera extensas viagens por simples distração e pelo prazer do movimento, percorrendo países uns após os outros como turista e à maneira de Victor Jaquemont, que, a pretexto de estudar a flora do Tibete, fez tão curiosas e engraçadas peregrinações pelo interior da Ásia (TAUNAY, 2000, p.20. Grifo do autor). Nota-se que a personagem nos é apresentada pela perspectiva do narrador, que faz comentários a respeito dos costumes do primeiro. Mais adiante, temos mais um exemplo de sumário narrativo: O modo por que ele viera ter ao distrito de Miranda não era dos mais naturais. Achando-se num belo dia aborrecido do Rio de Janeiro, comprou passagem para Montevidéu, passou lá um mês, transportou-se para Buenos Aires, onde se demorou algumas semanas e tomado de curiosidade pelo que diziam do Paraguai, subiu até Assunção, que, no fim de poucas horas, ficou peremptoriamente julgada e qualificada sem apelação de acanhada, monótona e estúpida. ___ Estar em Assunção, pensou Alberto, obriga-me a ir até Cuiabá. [...] Arrepender-se logo do que acabava de executar era sempre o primeiro movimento do nosso viajante; por isso a ele mesmo não causou espanto o desgosto que experimentou ao pôr pé em terra (TAUNAY, 2000, p. 20-21). Percebemos no trecho um relato generalizado de uma série de eventos, cobrindo uma extensão de tempo e uma variedade de locais, como apontou Friedman ao definir o sumário narrativo. Não temos o evento ocorrido por ele mesmo e sim pela perspectiva do narrador, que relata a trajetória de Alberto ao sair do Rio de Janeiro e passar por Montevidéu, Buenos Aires e Assunção até chegar a Cuiabá. Todo esse trajeto numa sucinta narração, na qual não nos é diretamente mostrado o aborrecimento de Alberto ao estar em cada localidade, embora seja possível abstrair isso da narração. Segundo Norman Friedman, é predominante no narrador onisciente descrever e explicar os acontecimentos do enredo por sua própria voz e não pela voz de suas personagens. Mesmo em uma narração feita de maneira impessoal, na terceira pessoa, é a voz do narrador que se coloca entre o leitor e o enredo: 53 [...] os estados mentais e os cenários que os evocam são narrados indiretamente, como se já tivessem ocorridos – e sido discutidos, analisados e explicados – em vez de apresentados cenicamente como se ocorressem naquele instante (FRIEDMAN, Grifos do autor, 2002, p. 175). Essa também é uma característica da narração em “Ierecê a Guaná”; os estados mentais e os cenários são narrados como se já tivessem ocorrido. O primeiro parágrafo do conto, mesmo sendo datado, é narrado como se tudo já tivesse acontecido: Em meados do ano de 1861, o vaporzinho Alpha, subindo da capital da província de Mato Grosso, desceu para Corumbá, e, por ordem do presidente de então, o coronel Antônio Pedro de Alencastro, demandou a foz do rio Mondego ou Miranda, cuja corrente foi cortando águas acima para conhecer das condições de sua navegabilidade durante a estação seca até a vila de Miranda, a qual assenta na margem direita e a mais de 40 léguas do ponto em que o volumoso e revolto caudal faz barra no grande Paraguai (TAUNAY, 2000, p. 15). Mais adiante, a narração feita acerca da estadia de Alberto na aldeia guaná é, mais uma vez, produzida como se tudo já tivesse ocorrido. O cenário e os estados mentais da personagem são narrados pela voz do narrador e não cenicamente, como se ocorressem naquele instante: A primeira semana correu para Alberto alegre e animada. Desaparecera de todo a febre, e ele se sentia como que retemperado pelo sossego do retiro em que vivia. De manhã muito cedo saía para a caça e só voltava quando o sol ia alto e que o calor apertava, trazendo sempre pesada enfiada de pássaros, uns notáveis pelo tamanho, outros pela plumagem (TAUNAY, 2000, p. 33). Ainda para exemplificar como os estados mentais de Alberto são narrados pelo modo sumário narrativo, como se tudo já tivesse acontecido, apontamos desfecho do conto: “Alberto Monteiro chorou largo tempo, e ainda hoje a recordação do amor de Ierecê enuvialhe o espírito e constringe dolorosamente seu coração” (p. 55). Ao narrar “ainda hoje”, fica evidente que tudo já se passou para o narrador. Encontra-se também no conto exemplo de cena imediata. Após passar um período na casa de um conhecido (Júlio Freitas) em Cuiabá, Alberto vai para o distrito de Miranda, onde pretende pegar o vapor para retornar ao Rio de Janeiro. Mas ao chegar aos arredores de Miranda, montado a cavalo e acompanhado de um servo (Florindo) do seu conhecido, Alberto 54 adoece e ao cessar a febre decide, por conselho de Florindo, passar uns dias em uma aldeia guaná que ficava no caminho: O mato foi se tornando mais fechado, depois abriu em clareiras quase regulares, formando o que se chama potreiros, denominação muito popularizada pela Guerra do Paraguai. Uma dessas abertas, maior em dimensões, era cortado a meio por um córrego encachoeirado, cujas águas cristalinas acompanhavam densa e dupla orla de buritis e taquaruçus. Não se podia encontrar retiro mais lindo, situação mais aprazível e sossegada. ___ Que belo canto do mundo para a gente viver tranqüila e esquecida, exclamou Alberto. E, voltando-se para o camarada: ___ Aquelas casas que vejo ali, perguntou ele, são já da aldeia? ___ Nhôr-não, respondeu Florindo: aqui mora o velho Morevi, quiniquinau muito meu conhecido e que é mandingueiro (TAUNAY, 2000, p. 27-28. Grifo do autor). Notamos então uma apresentação cênica: existe um cenário (mato, veredas, córrego, pássaros, casas); ocorrem ações (personagens percorrendo o caminho) e diálogo entre personagens. Embora predomine na cena o evento, caracteriza-se, ainda, a perspectiva do narrador (note-se a citação à Guerra do Paraguai e a forma verbal “podia”, indicando que o narrador já sabe do ocorrido). A mediação na narrativa, ora necessita de uma expansão dos detalhes, no mostrar da cena, ora necessita de suprimir detalhes, um sumário narrativo. Essa flexibilidade é importante, mesmo quando se predomina a visão do narrador – como é latente em Ierecê a Guaná. Acerca disso, Friedman afirma: [...] mesmo a mais abstrata das narrações trará, incorporada em algum lugar dela, indicações e sugestões de cenas, e mesmo a mais concreta das cenas exigirá a exposição de algum material sumário. Todavia, a tendência no Autor Onisciente Intruso está longe da cena, pois é a voz do autor que domina o material, falando frequentemente por meio de um “eu” ou “nós” (FRIEDMAN, 2002, p. 173. Grifo do autor). De tal forma se configura “Ierecê a Guaná”. A cena, e sua maneira de mostrar os acontecimentos, à medida que eles vão se sucedendo, cede lugar a um material sumário, que é dominado pela voz do autor. Em geral, o narrador de “Ierecê a Guaná” narra o enredo ao leitor a partir dos acontecimentos que cercam a personagem central da trama, Alberto Monteiro. Mas, ao narrar as ações de Alberto e entrar nos pensamentos deste (narrador onisciente), domina a personagem e controla toda a narrativa, uma vez que domina também as personagens secundárias do conto. 55 Além de apresentar o domínio do enredo e das personagens que compõem a narrativa, neste foco, também é possível notarmos a expressão das percepções do autor/narrador como aponta Friedman: [...] o leitor tem acesso a toda a amplitude de tipos de informação possíveis, sendo elementos distintivos desta categoria os pensamentos, sentimentos e percepções do próprio autor; ele é livre não apenas para informar-nos as idéias e emoções das mentes de seus personagens como também as de sua própria mente. A marca característica, então, do Autor Onisciente Intruso é a presença das intromissões e generalizações autorais sobre a vida, os modos e as morais, que podem ou não estar explicitamente relacionadas com a estória à mão (FRIEDMAN, 2002, p. 173). Friedman adverte, ainda, que essa relação ambígua deve ser investigada e os resultados são “quase sempre, interessantes, se não esclarecedores” (p. 173). Encontramos em “Ierecê a Guaná”, como no trecho citado de Friedman, intromissões e generalizações sobre a vida, modos e concepções morais sob a perspectiva do autor/narrador. Vejamos a seguinte passagem do conto: Morevi recebeu logo em paga de sua amabilidade um punhado de sal, que ele embrulhou cautelosamente como preciosidade inestimável. Mas quando ao sal já recolhido se adicionou um vistoso colar de vidrilho e contas de ouro que devia ornar o encarquilhado pescoço, então a sua gratidão não conheceu limites e despegou-lhe, depois de muito gesto cômico, a língua numa catadupa de palavras quase sem nexo, umas em seu idioma, outras em português estropiado. ___ Este lavrado não é para mim, disse ele afinal mais calmo a Florindo, é para a minha neta. Ela foi à aldeia grande e daqui a um nadinha estará batendo de volta (TAUNAY, 2000, p. 29. Grifos do autor). Podemos notar que o acontecimento não se passa enquanto cena, mas como narração. A personagem Morevi recebe alguns presentes do protagonista Alberto e na tentativa de agradecer mistura palavras do português (idioma que conhecia por ter tido anteriores relações com homens da cidade) com o seu idioma nativo: o guaná. Passemos a uma questão: quem julga que as palavras de Morevi são quase sem nexo e seu português é estropiado? Percebemos que a voz que julga a fala de Morevi estropiada é a voz do narrador. Uma segunda questão: por qual razão o narrador toma partido pelo português como idioma normal, ou natural, e o guaná como idioma quase sem nexo? Vejamos que o narrador chama o idioma de Morevi de “seu idioma” e não chama o português de idioma de Alberto. Esse modo de contar o acontecido ao leitor, tecendo comentários, não deixando que a cena se passe naturalmente e sob as perspectivas das personagens, faz com que a narração 56 aponte características ideológicas e morais. Para melhor exemplificar, vejamos outra passagem do conto: À tarde, depois de sã refeição, Alberto ia conversar com Morevi e tomar lições de língua chané6, com cujas palavras mais notáveis procurava coordenar um ligeiro vocabulário. Se, entretanto, o principiante mostrava alguns progressos, eram todos eles devidos às indicações de Ierecê que se admirava muito dos esforços que aquele branco empregava para vir a falar como se fora índio (TAUNAY, 2000, p. 33). A partir da leitura deste trecho, fica evidente que o narrador toma partido pelo idioma português como padrão, ou até mesmo, superior. Se quando Morevi, índio guaná, tenta se comunicar com Alberto no idioma deste, acaba por ser chamado pelo narrador de um português estropiado, quando Alberto procura aprender o idioma guaná, a mesma atitude não é tomada pelo narrador. O aprendizado de Alberto, que “mostrava alguns progressos”, como aponta o narrador, não é chamado de um guaná estropiado, mas, ao contrário, acaba sendo motivo de admiração por parte de Ierecê. Nessas passagens do conto fica evidente a ideologia do narrador onisciente, explicitada por seus comentários. Uma ideologia que aceita a cultura do homem branco como padrão, e que toma como referência as ações e perspectivas da personagem central Alberto em detrimento das demais personagens indígenas. O que levou a crítica dos ensaios presentes na reedição do conto a comparar as ações e perspectivas de Taunay para com os indígenas, descritas na obra Memórias, com as de seu personagem Alberto? O crítico Ismael Ângelo Cintra, no texto “Dois aspectos do foco narrativo”, apresenta uma organização do material sobre o foco narrativo, como já apresentado aqui com a teoria de Friedman, e a conclui sobre dois aspectos: o retórico e o ideológico. O autor cita Maria Lúcia Dal Farra e sua definição sobre a escolha do foco narrativo: [...] o autor, camuflado e encoberto pela ficção, não consegue fazer submergir somente uma sua categoria – sem dúvida a mais expressiva – a apreciação. Para além da obra, na própria escolha do título, ele se trai, e mesmo no interior dela, a complexa eleição dos signos, a preferência por determinado narrador, a opção favorável por esta personagem, a distribuição da matéria e dos capítulos, a própria pontuação, denunciam a sua marca e a sua avaliação (DAL FARRA apud CINTRA, 1981, p. 07). 6 No conto a língua de Ierecê e Morevi é chamada, ora de chané, ora de guaná. 57 Como exposto por Cintra por meio da análise de Dal Farra, o autor faz escolhas na composição de sua obra. No conto “Ierecê a Guaná”, Taunay opta por um narrador onisciente em terceira pessoa que faz comentários e conta a história, sem deixar que as cenas ocorram, tudo isso sob as crenças e os costumes do protagonista Alberto (homem branco, rico, político, cristão) em detrimento dos costumes indígenas (personagens Ierecê e Morevi). No entanto, quanto à relação entre o autor-implícito, termo utilizado por Cintra (correspondente ao narrador onisciente intruso de Friedman) e o autor real, o próprio adverte: A confusão entre este autor-implícito de Booth e o autor real (‘em carne e osso’) pode facilmente acontecer no romance de terceira pessoa [...] A escolha do foco narrativo, a manipulação do narrador, o governo das ações, das personagens, do espaço e do tempo, enfim todo esse conjunto de atribuições do autor-implícto, constitui a sua ‘retórica’ (termo de Booth7), através da qual ele transmite seus valores e tenta persuadir o leitor a aceitar o seu universo (CINTRA, 1981, p. 07-08). Quanto à confusão entre o narrador do conto (autor-implícito) e o autor real, é necessário esclarecer que o narrador nunca é o escritor e, sim, a escolha deste para dar o foco à sua narrativa. Quanto à retórica, descrita por Cintra na citação acima, o narrador do conto “Ierecê a Guaná” transmite seus valores (índio de fala exótica, de costumes estranhos, mulher submissa ao homem), na tentativa de persuadir o leitor. Sobre essa persuasão ideológica Cintra diz: A escolha do foco, da técnica narrativa, do modo de compor os elementos na estrutura ficcional enfim, não é uma escolha arbitrária, nem inocente: a esta opção retórica corresponde certamente uma opção ideológica. [...] [na] relação entre o ser (a conotação ocultada) e o parecer (a conotação privilegiada) pode-se localizar uma função ideológica. Podemos considerar, então, como ideológico, dentre suas várias acepções, por um lado o enunciado que por questões retóricas mascara significados concorrentes ocultos (CINTRA, 1981, p. 10). O que ocorre, no entanto, em uma obra ficcional é a relação entre o ser e o parecer. A retórica, na enunciação do narrador, mascara significados: a ideologia, conotação oculta no texto. Cintra conclui, ainda, que: [...] Entretanto, não se deve esquecer que por trás desta aparência de desmistificação ideológica, o autor-implícito pode estar ocultando outras visões possíveis. Assim o que parece revelação é, na verdade, ocultação. Daí o caráter de discurso ideológico (CINTRA, 1981, p. 11). 7 Citado por Ismael Ângelo Cintra. 58 É esse caráter ideológico que está ocultado em Ierecê a Guaná. Quando Taunay escolhe um narrador em terceira pessoa onisciente para narrar o conto sob as crenças e os costumes do personagem branco, oculta outras visões possíveis, tais como: narrar as cenas em suas sequências, como elas ocorrem, dar voz às personagens, etc. A posição do narrador no conto é a de um homem e não a de uma mulher, de um homem de valores aportuguesados8 em detrimento dos valores indígenas, de um viajante por vezes considerado realista (?) que se apaixona por uma índia por vezes considerada romântica (?), com valores distantes dos seus, considerados “menores” e exóticos na narrativa. 2.3 Índia Romântica. Branco Realista? Da posição do narrador no conto “Ierecê a Guaná” à retórica eleita para a narração, podemos analisar outros aspectos da obra. Notamos que a construção dos demais elementos da obra estão sempre ligados ao foco narrativo, à concepção ideológica do narrador. Isso não é diferente na elaboração das personagens. Como exposto no capítulo anterior, o narrador domina tanto a personagem central quanto as personagens secundárias e estabelece juízos de valor que pendem para a cultura da personagem branca Alberto. Devido a essa escolha do foco narrativo, da concepção diferente que possui para as falas das personagens brancas e indígenas e também pelo diferente destino que tem Alberto e Ierecê no final da narrativa, Lúcia Sá, na crítica presente na reedição do conto, lança a tese da “Índia Romântica. Branco Realista”. O que pretendemos analisar em todo este capítulo, sobre as personagens, é se existe a diferença entre a personagem branca e indígena a ponto de culminar numa transição do romântico para o realista, hipótese que já havia sido levantada na primeira parte com as referências dos críticos do século passado. Para tanto, partiremos primeiro para a definição da categoria da personagem, relacionando-a com o foco narrativo. Mais adiante, entraremos em duas outras etapas “a caracterização do exótico na fala das personagens” e “o desfecho da trama amorosa”, que completam a análise acerca da personagem e da proposta lançada por Lúcia Sá. 8 Termo utilizado por Taunay no conto. 59 Para Antonio Candido, por mais importante que seja uma personagem em uma narrativa, mesmo quando essa dá nome à obra, não é somente isso o que determina a trama. Da relação das personagens com enredo, a trama e outros elementos da narrativa, Antonio Candido, no texto “A personagem do romance”, afirma: Geralmente, da leitura de um romance fica a impressão duma série de fatos, organizados em enrêdo, e de personagens que vivem êstes fatos. É uma impressão pràticamente indissolúvel: quando pensamos no enredo, pensamos simultâneamente na vida que vivem, nos problemas em que se enredam, na linha do seu destino – traçada conforme uma certa duração temporal, referida a determinadas condições de ambiente. O enrêdo existe através das personagens; as personagens vivem no enrêdo. Enrêdo e personagem exprimem, ligados, os intuitos do romance, a visão da vida que decorre dêle, os significados e valores que o animam (CANDIDO, 1970, p. 53-54). Segundo Candido, há três elementos centrais na narrativa que são indissociáveis e fundamentais para a boa realização da ficção. Contudo, na visão do crítico, a personagem avulta face aos outros elementos e conquista o leitor por uma relação de projeção, identificação ou transferência. Para que aconteça a projeção do leitor para com a personagem é necessário que a relação gere credibilidade, isto de acordo com o que aponta Antonio Candido: Não espanta, portanto, que a personagem pareça o que há de mais vivo no romance; e que a leitura dêste dependa bàsicamente da aceitação da verdade da personagem por parte do leitor. Tanto assim, que nós perdoamos os mais graves defeitos de enredo e de idéia aos grandes criadores de personagens. Isto nos leva ao êrro, freqüentemente repetido em crítica, de pensar que o essencial do romance é a personagem, – como se esta pudesse existir separada das outras realidades que encarna, que ela vive, que lhe dão vida. Feita esta ressalva, todavia, pode-se dizer que é o elemento mais atuante, mais comunicativo da arte novelística moderna, como se afigurou nos séculos XVIII, XIX e começo do XX; mas que só adquire pleno significado no contexto, e que, portanto, no fim de contas a construção estrutural é o maior responsável pela fôrça e eficácia de um romance (CANDIDO, 1970, p. 54-55). No conto “Ierecê a Guaná”, a construção estrutural passa sempre pelo crivo do narrador. O enredo se dá sob o ponto de vista ideológico deste. As ideias também passam pelo olhar do narrador. O que não é diferente na construção das personagens. Estas são descritas e analisadas do ponto de vista do narrador onisciente intruso que está interligado à concepção de mundo da personagem central, Alberto Monteiro. Para Lúcia Sá, esse contraste na configuração das personagens se dá pela adoção do ponto de vista do narrador. Por estar mais próximo da ideologia da personagem central Alberto Monteiro, e em consequência da cultura do homem branco, a descrição destes se 60 torna menos exótica, ou mais realista. Já ao descrever o indígena, o foco narrativo também se baseia na concepção de cultura do homem branco, construindo, nesse caso, uma personagem caricatural, ou romântica. Acerca da construção das personagens indígenas de tal ponto de vista, Sá aponta: Em Ierecê a perspectiva é sempre a do protagonista. Ierecê e seu avô não tem voz, a não ser pelos raros diálogos, e jamais sabemos o que pensam, mas aquilo que o protagonista presume que pensam. A visão é quase científica, como cabe aliás à ocupação do protagonista, levado à casa de Ierecê por interesses antropológicos (SÁ, 2000, p.137). Esta perspectiva soberana em relação ao protagonista, apontada por Sá, estará evidente nos trechos em que ocorrem diálogos das personagens e no desfecho da trama amorosa, onde Alberto se sobressai sobre as vontades de Ierecê (dois capítulos subsequentes). Para definir o tipo de personagens que compõem “Ierecê a Guaná” resta saber: qual o grau de complexidade delas? São personagens sem profundidade psicológica? São iguais em profundidade as indígenas e as brancas? Para tal definição, primeiramente, temos que analisar as categorias teóricas de personagem e assim tentar distingui-las no conto. Antonio Candido, em seu texto sobre as personagens do romance, cita duas categorias: “Por isso, na técnica de caracterização definiram-se, desde logo, duas famílias de personagens, que já no século XVIII Johnson chamava ‘personagens de costumes’ e ‘personagens de natureza’” (p. 61). A primeira, o crítico define desse modo: As “personagens de costumes” são, portanto, apresentadas por meio de traços distintivos, fortemente escolhidos e marcados; por meio, em suma, de tudo aquilo que os distingue vistos de fora. Êstes traços são fixados de uma vez para sempre, e cada vez que a personagem surge na ação, basta invocar um dêles. Como se vê, é o processo fundamental da caricatura, e de fato êle teve o seu apogeu, e tem ainda a sua eficácia máxima, na caracterização de personagens cômicos, pitorescos, invariàvelmente sentimentais ou acentuadamente trágicos. Personagens, em suma, dominados com exclusividade por uma característica invariável e desde logo revelada (CANDIDO, 1970, p. 61-62. Aspas do autor). Do que foi exposto, tem-se a impressão de que as personagens do conto são facilmente encaixadas nessa categoria. Elas são descritas por tudo aquilo que as distingue vistas de fora, no caso sob um olhar alheio ao da cultura indígena. Seus traços são descritos de maneira distintiva, fortemente marcados, dando-lhes um tom caricatural. Ierecê, personagem que dá título ao conto, tem traços acentuadamente pitorescos e trágicos e é dominada por uma 61 característica invariável e já revelada desde o início da trama, a de índia romântica e facilmente manipulada por Alberto. Visto que é fácil encaixar os indígenas nessa categoria, da “personagem de costumes”, apresentamos a segunda categoria e analisaremos, então, se ela é pertinente a alguma personagem do conto. Candido a define assim: As ‘personagens de natureza’ são apresentadas, além dos traços superficiais, pelo seu modo íntimo de ser, e isto impede que tenham a regularidade dos outros. Não são imediatamente identificáveis, e o autor precisa, a cada mudança do seu modo de ser, lançar mão de uma caracterização diferente, geralmente analítica, não pitoresca. Traduzindo em linguagem atual a terminologia setecentista de Johnson, pode-se dizer que o romancista ‘de costumes’ vê o homem pelo seu comportamento em sociedade, pelo tecido das suas relações e pela visão normal que temos do próximo. Já o romancista de ‘natureza’ o vê à luz da sua existência profunda, que não se patenteia à observação corrente, nem se explica pelo mecanismo das relações (CANDIDO, 1970, p. 62). Poderíamos pensar o protagonista do conto como um ser em movimento. Como já apontado no capítulo sobre o foco narrativo, a personagem viaja pelo simples prazer do movimento e vai passando pelos locais sem saber o seu futuro destino, sem saber o prazo de tempo que ali permanecerá. Poderíamos apontar aqui então uma mudança do ser e enquadrálo na categoria da “personagem de natureza”? Não é possível a inserirmos nessa categoria somente pelo seu movimento espacial e por sua indecisão. Para estar nessa categoria de profundidade, a personagem necessitaria não ser imediatamente identificável e o autor necessitaria estar, ao longo do enredo, sempre inserindo novas características ao seu comportamento. Não é isso o que ocorre com Alberto Monteiro; a personagem é facilmente identificada como um “janota entediado”, que “viaja pelo simples prazer do movimento”. E, em nenhum momento da narrativa, Alberto surpreende, não muda seu comportamento e nem decide um caminho distinto da sua proposta inicial de viagem, que era conhecer a “diferença” dos locais, o que havia de “exótico” neles e, quando saciar-se, partir em busca de novas perspectivas. Partindo das definições de Jonhson das “personagens de costume” e das “personagens de natureza”, Antonio Candido propõe o uso da definição moderna, criada por Forster: “personagens planas” e “personagens esféricas9”. Da definição de Forster, Candido enfatiza: “As personagens planas eram chamadas temperamentos (humours) no século XVII, e são por vêzes chamadas tipos, por vêzes caricaturas. Na sua forma mais pura, são constituídas em tôrno de uma única idéia ou qualidade; quando há mais de 9 Também denominadas por “personagem redonda”. 62 um fator neles, temos o começo de uma curva em direção à esfera [...] Tais personagens ‘são fàcilmente reconhecíveis sempre que surgem’; são, em seguida, fàcilmente lembradas pelo leitor. Permanecem inalteradas no espírito porque mudam com as circunstâncias” (FORSTER apud CANDIDO, 1970, p. 62. Aspas do autor). Nota-se que a definição de “personagem plana” de Forster é praticamente idêntica à de Johnson para a “personagem de costumes”, mudando somente a denominação. Quanto à “personagem esférica”, temos a seguinte definição: As “personagens esféricas” não são claramente definidas por Forster, mas concluímos que as suas características se reduzem essencialmente ao fato de terem três, e não duas dimensões; de serem, portanto, organizadas com maior complexidade e, em conseqüência, capazes de nos surpreender. “A prova de uma personagem esférica é a sua capacidade de nos surpreender de maneira convincente” (CANDIDO, 1970, p. 63. Aspas do autor). Se Candido aponta que as “personagens esféricas” não são totalmente definidas por Forster, ele entende a definição muito próxima, também, da definição de Johnson para as “personagens de natureza”. Ambas as definições têm como principal pressuposto a surpresa, se a personagem surpreende com seus pensamentos, ideias ou ações, ganha em profundidade e torna-se “esférica”. Mais uma vez, a única alteração seria a denominação moderna da categoria de análise da personagem. Dessa forma, Candido aponta, ainda, que as “personagens planas” não são menores, ou de inferior realização, do que as “personagens esféricas”: Se nunca surpreende, é plana. Se não convence, é plana com pretensão a esférica. Ela traz em si a imprevisibilidade da vida, – traz a vida dentro das páginas de um livro [...] Decorre que “as personagens planas constituem, em si, realizações tão altas quanto as esféricas, e que rendem mais quando cômicas. Uma personagem plana séria ou trágica arrisca tornar-se aborrecida” (CANDIDO, 1970, p. 63. Aspas do Autor). Tanto a “personagem esférica” quanto a “personagem plana” necessitam ser bem definidas dentro de sua proposta para funcionarem e passarem credibilidade para o leitor, que só assim se identificará. Dessa forma, tanto uma quanto a outra categoria podem falhar ou funcionar, não havendo grau de hierarquia entre elas. Em “Ierecê a Guaná” é isso o que ocorre. As personagens são todas planas, funcionando adequadamente à proposta do foco narrativo. Se a narrativa tende para o linear ou para o plano em relação às personagens é por que a complexidade, ou o esférico, está concentrada no ponto de vista do narrador. É ele que apresenta, analisa, julga e determina o 63 que entende por coerente ou não na narrativa. Para Massaud Moisés esta é uma das características do ponto de vista onisciente, no qual “o narrador não esconde que conhece todos os recantos físicos e psíquicos de seus heróis, assim tirando-lhes qualquer possibilidade de surpreender ou embaraçar” (MOISÉS, 2004, p. 399). Mais adiante, Moisés define que esse tipo de narrador onisciente em terceira pessoa, ligado a uma personagem central, geralmente se adequa ao conto ou narrativa plana, que é o caso de “Ierecê a Guaná”: Por outro lado, o ponto de vista na terceira pessoa, sobretudo quando seletivo, aparenta-se a uma história na primeira pessoa “em que se mudasse o ‘eu’ para ‘ele’ ou ‘ela’, e o ponto de vista se tornasse meio externo, meio interno, com o autor na função de narrador, e a personagem na de quem vê”. Mais adequada ao conto e às narrativas planas, nem por isso a terceira pessoa relativa deixa de ser utilizada no romance (MOISÉS, 2004, p. 414-415. Aspas do autor). No entanto, não é somente nas descrições que o narrador faz (sumário narrativo de Friedman) que podemos abstrair toda a abrangência das personagens no enredo; restam, ainda, analisarmos os comportamentos e ações destas quando ocorrem as cenas imediatas. Como a perspectiva é sempre a do narrador (evidenciado em passagens do conto no capítulo sobre o foco narrativo), os comportamentos e ações das personagens poderão ser melhor categorizados em passagens do conto onde ocorrem as falas das personagens, pois é por meio do diálogo que acontece no enredo o contato imediato entre a cultura do indígena e a cultura do branco. 2.3.1 A caracterização do exótico na fala das personagens A respeito do diálogo das personagens do conto “Ierecê a Guaná”, Lúcia Sá apontou que os índios Ierecê e Morevi, personagens fundamentais da trama, “não têm voz, a não ser pelos raros diálogos” (2000, p.137). Desses raros diálogos, analisaremos as seguintes questões: eles são elementos para a caracterização das personagens “planas” na narrativa? Há realmente um embate entre a fala dos indígenas com a do protagonista? Para dar embasamento à análise das personagens do conto, utilizamos, mais uma vez, um texto de Antonio Candido: “A literatura e a formação do homem”. Nesse texto, o crítico reflete sobre as características do romance denominado como regionalista do século XIX. As 64 questões levantadas por Candido sobre tais romances são muito próximas, e com os mesmos conteúdos no tocante aos diálogos, do romance sertanista romântico: [...] o Regionalismo estabelece uma curiosa tensão entre tema e linguagem. O tema rústico puxa para os aspectos exóticos e pitorescos e, através deles, para uma linguagem inculta e cheia de peculiaridades locais; mas a convenção normal da literatura, baseada no postulado da inteligibilidade, puxa para uma linguagem culta e mesmo acadêmica (CANDIDO, 2002, p. 87). Para Candido, há um choque entre a linguagem inculta, dos romances baseados na vida rústica, com a linguagem normativa, seguida pela tradição literária (tese já levantada por Dino Pretti em O regionalismo na literatura, citado nesta dissertação). Dessa relação tensa entre linguagem culta e linguagem peculiar, o crítico chega a uma conclusão sobre o romance do período: [...] No conjunto, foi uma tendência falsa, correspondendo a modalidades superficiais de nacionalismo, baseada numa distância insuperada entre o escritor e seu personagem, que ficava reduzido ao nível da curiosidade e do pitoresco (CANDIDO, 2002, p. 87-88). Candido conclui que, no conjunto, o romance regionalista do século XIX foi uma tendência falsa. Na busca pelo nacional – como analisado nas referências dos críticos acerca do Romantismo, na primeira parte desta pesquisa – os escritores construíram uma barreira entre a linguagem adotada para a narração e a adotada para seus personagens. É basicamente isso o que ocorre com os diálogos em “Ierecê a Guaná”. A seguir reproduzimos um trecho do conto para referenciar tal embate de linguagens. Na passagem, a personagem central, Alberto Monteiro, homem da corte carioca, rico, viajante, curioso estudante com interesses em antropologia, está se recuperando de uma febre e decide pausar sua viagem pelo sertão mato-grossense em uma aldeia guaná: Ao cessar a febre, experimentou ele um bem-estar, uma robustez toda especial que lhe pareceram prenúncio certo de total restabelecimento. __ Não se fie nisso, disse Florindo, o soldado que Júlio deixara ao amigo para camarada, ansim é que são as maleitas. Mas vossuncê não percisa para sarar ir até a cidade; fique uns pares de dia na aldeia e os ares de lá sacodem a maldade do seu corpo. __ Aplaudo a idéia, replicou Alberto. Talvez até me entregue aos cuidados de algum velho quiniquinau formado em medicina na escola da natureza e da experiência. (TAUNAY, 2000, p. 27. Grifos do autor). 65 No trecho, evidencia-se o choque entre a linguagem adotada para o narrador e para a personagem central Alberto e a linguagem adotada para a fala da personagem sertaneja Florindo. Os aspectos exóticos e pitorescos presentes na linguagem cheia de peculiaridades locais, como apontou Candido, se fazem presentes na fala de Florindo, evidenciadas pelo itálico utilizado por Taunay. A narração começa toda baseada na norma culta da língua portuguesa e repentinamente sofre um choque ao entrar a fala da personagem local. Ao acabar o diálogo de Florindo, entram em cena as falas de Alberto, todas na norma culta da língua portuguesa. Se não bastassem as variações de fala de Florindo em relação à narração e às falas de Alberto, elas ainda foram escritas em itálico, dando um destaque maior para o que há de exótico nelas. Ainda em “A literatura e a formação do homem”, Candido questiona: “por que tentar uma notação fonética rigorosa para a fala do rústico e aceitar para a do narrador culto o critério aproximativo normal?” (2002, p. 89). São questões como estas que dão uma característica de empobrecimento na criação das personagens pitorescas, o que não ocorre no conto com a personagem central e, em geral, com as personagens centrais do romance sertanista, em sua maioria, homens e brancos. O teórico Mikhail Bakhtin, também ao analisar o romance regional europeu do século XIX, denominado por ele de “romance de viagem”, tocou nas questões de choque entre linguagens: [...] Fatos socioculturais tais como etnia, país, cidade, grupo social, grupo profissional, não são percebidos no conjunto integrado que constituem. É isso que explica uma característica particular deste tipo de romance: o grupo social, a etnia, o país, os costumes, são registrados num espírito “exótico”, ou seja, as distinções e os contrastes, a alteridade, são objetos de uma percepção bruta. (BAKHTIN, 2000, p. 224-225). Da concepção de Bakhtin podemos abstrair que esse choque entre linguagens esteve presente em grande parte da literatura do período, que, em geral, tratava a cultura do “outro” distante do eixo do homem branco, culto e letrado. Para o teórico, o grupo social, a etnia, a cultura, os costumes do “outro” não são percebidos em sua totalidade. Desta falta de percepção, ou da falta de uma elaboração da linguagem mais adequada e menos taxativa, resultou uma percepção bruta, baseada no que há de exótico na alteridade de diversos grupos. Se o grupo social é um dos elementos dessa percepção bruta, pode-se aplicar a teoria à personagem sertaneja Florindo que, pelo fato de ser de uma região onde a fala não era regida 66 pela norma culta, naquele período, é retratada de maneira exótica. E se a etnia é outro elemento, aplica-se a teoria à construção do diálogo das personagens indígenas: __ Quixauó! exclamou Morevi, carineti tchikiiti. [...] __ Este lavrado não é para mim, disse ele mais calmo a Florindo, é para a minha neta. Ela foi à aldeia grande e daqui a um nadinha estará batendo de volta (TAUNAY, 2000, p. 29. Grifos do autor). O trecho mostra que a fala de Morevi, velho feiticeiro guaná e avô de Ierecê, recebe o mesmo tratamento que as de Florindo. As palavras, ditas no idioma guaná, são grafadas em itálico (e traduzidas no conto em nota de rodapé) e expostas de maneira estranha para o leitor. Quando o índio fala em português, também aparecem palavras em itálico, acentuando a linguagem deste de maneira inculta e cheia de peculiaridades ou, como o narrador do conto denomina: “um português estropiado”. Para encerrar a questão da linguagem peculiar ou exótica, Candido conclui que nos romances do período evidenciam-se as seguintes características: [...] Nos livros regionalistas, o homem de posição social mais elevada nunca tem sotaque, não apresenta peculiaridades de pronúncia, não deforma as palavras, que na sua boca, assumem o estado ideal de dicionário. Quando, ao contrário, marca o desvio da norma no homem rural pobre, o escritor dá ao nível fônico um aspecto quase teratológico, que contamina todo o discurso e situa o emissor como um ser à parte, um espetáculo pitoresco como as árvores e os bichos, feito para a contemplação ou divertimento do homem culto, que deste modo se sente confirmado na sua superioridade. Em tais casos, o Regionalismo é uma falsa admissão do homem rural ao universo dos valores éticos e estéticos (CANDIDO, 2000, p. 89-90). Da conclusão de Candido podemos evidenciar o que já foi apontado no capítulo sobre o foco narrativo: a linguagem do homem branco é tratada como superior à linguagem do sertanejo e, de maneira ainda mais acentuada, quando se trata de outro idioma, o do indígena. O uso do itálico para a variação da fala do sertanejo e do indígena dá ênfase à relação de superioridade. Quando a personagem Alberto tenta se comunicar na língua do índio, é tratado, pelo narrador e, até mesmo, pela índia Ierecê, como esforçado. Quando o índio tenta se comunicar na língua do homem branco é tratado pelo narrador e pelo protagonista como esdrúxulo, como “um português estropiado”. Ocorre no conto aquilo que aponta Antonio Candido em sua teoria sobre o romance regionalista. Quando o homem branco fala não existem sotaques, nem desvios, nem peculiaridades, tudo o que sai da sua boca possui tom de correto, de norma. Já o que sai da 67 boca do outro, no caso dos índios e dos sertanejos, toma forma exótica e pitoresca. Como se tais personagens fossem apenas elaboradas para a contemplação e o divertimento da personagem central branca, ou do narrador. A cultura que já era marginalizada ganha, nas páginas dessa literatura, uma falsa admissão por parte dos valores éticos e estéticos do homem branco. Em resposta às perguntas elaboradas no início deste capítulo, temos como pressuposto que elas permanecem válidas, pois, a partir da análise dos diálogos, percebemos que a organização das personagens continua na categoria em que se inseriam no capítulo anterior, ou seja, das “personagens planas”. Da análise dos diálogos, podemos ainda concluir que, mais uma vez, não há surpresas e rompimentos com a proposta em que as personagens são apresentadas desde o início da narrativa. Como resposta à segunda questão, evidenciamos que: existe diferença entre o tratamento dado às falas da personagem central e das personagens indígenas. Feita a análise da descrição e da apresentação das personagens, assim como a dos seus diálogos, resta analisar a relação delas com o enredo e o desfecho da trama. O desfecho que é possível abstrair do conjunto das estruturas do conto é diferenciado entre a personagem branca e a personagem indígena? Em algum aspecto, tal desenlace, modifica o enquadramento das personagens na categoria plana? A relação entre tema e conteúdo é mais fiel ao universo indígena do que a dos romances românticos anteriores? 2.3.2 O desfecho da trama amorosa Do enredo do conto “Ierecê a Guaná” destacam-se passagens explícitas da posição de superioridade da cultura do branco sobre a cultura do índio. A trama, desde o início apresentada sob a perspectiva do narrador onisciente próximo da cultura do homem branco, manteve as personagens indígenas caracterizadas de maneira exótica quanto aos seus costumes, ações e diálogos. A conotação dos hábitos “normais”, ou mais avançados, está sempre aliada à imagem do protagonista Alberto Monteiro. O desfecho da trama, baseada na relação amorosa entre homem branco e mulher índia, não guarda uma posição diferente para os indígenas. É com o desfecho da trama que o conto revela toda a ideologia dos elementos acima analisados. Com o enredo resolvido pelo olhar do narrador onisciente, ocorre, então uma falsa 68 admissão da cultura do outro, tratada sempre com curiosidade e divertimento pelo homem branco, como destacado nas teorias de Antonio Candido e Mikhail Bakthin. Da submissão da mulher indígena ao homem branco, destacamos, a seguir, uma passagem do conto: __ Sua neta é quiniquinau? perguntou Alberto. __ Acó, respondeu Morevi, pai tchoronó-unó, filha também: mãe só kuinunó. __ É muito bonita! exclamou o moço com sinceridade. [...] __ Você quer Ierecê para sua mulher? perguntou ele com alguma pausa e gravidade. Há de lhe dar comida e roupa. Alberto vacilou, mas Morevi, sem esperar pela resposta, pegou-lhe na destra e, abrindo-a, nela colocou a delicada mão da neta, ao passo que murmurava umas palavras cabalísticas, com os olhos mais cerrados. Ierecê não fora consultada e durante a cerimônia perfunctória que a ligava, segundo os costumes de sua gente, àquele homem desconhecido por um laço que não ela, mas só ele, podia romper, mostrou-se completamente indiferente. Uma só coisa a ocupava: era o colar de contas de ouro que no seu peito os últimos raios de sol iluminavam de pontinhos cintilantes como que a desferirem chispas, que lhe aguilhoavam docemente a feminil vaidade (TAUNAY, 2000, p. 31-32). A índia é dominada pelo homem branco e por seu avô (também indígena). A negociação de Alberto, para ter a jovem Ierecê para ser sua mulher, é toda feita com o velho índio Morevi. Primeiramente, Alberto encanta-se com a beleza da índia, depois pergunta a Morevi se ela é sua neta; com a afirmação deste, o protagonista diz o que pensa a respeito da beleza dela. Da negociação resulta que Ierecê não é nem sequer consultada se pretende casar com Alberto, nem mesmo na cerimônia de união entre eles, realizada por meio da religião indígena. Seu avô coloca sua mão sobre a de Alberto e a liga ao homem branco. Ierecê não tem direito a escolhas, de decidir se aceita a relação, assim como já sabe que também não caberá a ela o poder de um dia romper tal relação. A escolha ficará sempre a cargo do homem branco e dominador, ou em segunda hipótese do homem protetor, tratando-se em síntese de uma questão de cultura e de gênero. Nota-se, também, no trecho citado que a índia é “comprada” por Alberto por um colar de contas de ouro. Sabendo que não poderia manifestar opinião quanto à negociação de seu avô com o seu futuro amante, a índia se limita apenas a admirar o colar. Mesmo sendo evidente a relação de superioridade dos homens para com a mulher, ainda encontra-se na trama a relação de superioridade do branco para com o índio. Essa relação se faz também entre Alberto e Morevi. Mesmo ambos sendo homens, Alberto, antes de conhecer a neta, já havia comprado o avô: 69 Morevi recebeu logo em paga de sua amabilidade um punhado de sal, que ele embrulhou cautelosamente como preciosidade inestimável. Mas quando ao sal já recolhido se adicionou um vistoso colar de vidrilho e contas de ouro que devia lhe ornar o encarquilhado pescoço, então a sua gratidão não conheceu limites e despegou-lhe, depois de muito gesto cômico, a língua numa catadupa de palavras quase sem nexo, umas em seu idioma, outras em português estropiado (TAUNAY, 2000, p. 29). Para permanecer na aldeia guaná, Alberto deu um punhado de sal e um colar de ouro para Morevi, que assim ficou numa gratidão sem limites. Voltando à dominação do homem branco sobre a mulher índia, destacamos outro trecho do conto: A princípio Ierecê considerara Alberto como um ente de natureza superior, a quem devia obediência cega, enquanto lhe servisse de mero passatempo; depois foise possuindo de admiração e sobretudo reconhecimento ao vê-lo tão ocupado de tudo quanto pudesse lhe realçar a natural beleza ou agradar ao seu espírito (TAUNAY, 2000, p. 34). Era natural que Ierecê não amasse Alberto quando do início da relação dos dois. Ela apenas aceitara o envolvimento com ele pela posição que lhe era destinada, ou seja, a de dominada. No início considerava Alberto como um ente de natureza superior, a quem devia obediência inquestionável. Mas depois, como prevê a literatura indianista e a sertanista romântica, a personagem feminina passa da obediência à admiração e ao amor demasiado pelo homem branco. Com o desenrolar da trama, essa relação de admiração e amor para com o protagonista só se intensifica: O amor de Ierecê era inventivo. Tudo quanto pudesse sorrir ao espírito do moço, tratava ela, na medida de suas forças, de conseguir logo; plantas raras e curiosas, ou que lhe pareciam tal; minerais coloridos, conchas do rio e insetos, objetos por fim mais ou menos aproximados pela cor e forma a qualquer outro que Alberto houvesse fitado com mais atenção e que imediatamente a ela servia de tipo para amorosas pesquisas (TAUNAY, 2000, p. 37). O amor de Ierecê pelo protagonista aumenta tanto que chega a ser inventivo. De tudo faz a personagem para obter a atenção e a satisfação de seu amado, que está mais preocupado em observar o pitoresco e fruí-lo como objeto de pesquisa. A relação que começa com toda a dominação da personagem masculina e branca só se acentua mais ao longo da narrativa. A relação de domínio do homem para com a mulher também ocorre por intermédio das demais personagens masculinas do conto. Dessa relação, Lúcia Sá produziu seu ensaio “Índia romântica. Brancos realistas”. A autora parte da tentativa do Visconde de Taunay de 70 compor um índio mais fiel à realidade do que o anteriormente elaborado por José de Alencar e o movimento indianista e compara as ações das personagens masculinas (brancos realistas) em detrimento das personagens femininas (índia romântica). Para tanto, Lúcia Sá estabelece relações com as Memórias e chega à seguinte análise: [...] Em contraste com a tranqüilidade com que o visconde confessa seu amor por esta última nas Memórias, sobressaem também frieza, o preconceito social e a distância de Alberto e seus companheiros homens em “Ierecê”. Através de Alberto, o jovem cientista, Taunay nos traz até a frieza e o afastamento do discurso realista. A pretensa objetividade que têm em comum o narrador, o protagonista e os demais personagens masculinos do conto, atribui às mulheres o papel de meros objetos de fantasias eróticas (SÁ, 2000, p. 141). Com o desenrolar da trama, após ficar dois meses na aldeia de Ierecê, Alberto recebe a visita de seus amigos Júlio Freitas e João Faustino. Eles lhe trazem uma carta, oriunda do Rio de Janeiro, que traz notícias de um problema bancário que afetaria os negócios que Alberto tinha por lá. Ao saber que terá que partir da aldeia, o protagonista sente um ligeiro desconforto em abandonar a relação amorosa que mal começara com a índia. É nesse trecho do conto que as outras personagens masculinas demonstram que também se sentem superiores a Ierecê e à cultura indígena. Eles aconselham Alberto a partir, e concluem que era da posição do homem romper um relacionamento e entendem isso como uma “lei universal”: __ Depois, ponderou João Faustino, convém lembrar-se que os índios esquecem depressa. Ierecê poderá ficar sentida uma semana, duas, se tanto; depois consolar-se-à... é... __ É a lei universal, concluiu filosoficamente Júlio Freitas (TAUNAY, 2000, p. 46). Sobre a dominação masculina, Pierre Bourdieu, em A dominação masculina (2002), estabelece um percurso histórico sobre como a sociedade reagiu ideologicamente a tal posição. O teórico começa por analisar a questão das perspectivas mais visíveis: a biológica, ou das diferenças corporais e/ou fisiológicas, utilizadas ao longo da história, para justificar a superioridade masculina; e a social, ou da relação construída pela economia e pela relação de troca, que ao longo da história colocou o homem como superior para exercer funções determinantes na sociedade. Se a dominação masculina começara pela corporal, pela diferenciação sexual e culminara numa hierarquização da sociedade, na qual o homem ocupa os lugares mais cobiçados, deixando as mulheres nos afazeres domésticos, ela chegaria posteriormente aos mais elevados campos de relações humanas, tais como o Estado e a Escola. 71 Bourdieu aponta ainda que ao longo da história a mulher acabou por ter como papel chamar a atenção da sociedade, ou do homem, por meio do corpo. Ela devia estar sempre pronta para ser admirada, contemplada como um objeto atraente e disponível para tal. Muitas vezes isso causava insegurança nas mulheres. Pois, sob tal determinação, elas deveriam ser sempre simpáticas, atenciosas e submissas aos preceitos exigidos pela sociedade e, em consequência, dos homens que as observavam e as aprovavam segundo a satisfação de seus próprios egos. É praticamente esse papel que exerce a jovem índia Ierecê para com o protagonista Alberto no conto. Desde a primeira vez que Alberto vê Ierecê, o que lhe chama a atenção é a beleza da moça. O protagonista passa quase todo o tempo a contempla-la em Ierecê, que apenas cumpre o papel de se portar adequadamente para tal admiração, satisfazendo a cobiça de Alberto. Durante quase todo o decorrer da narrativa, ela dança para ele e procura estar bonita e prestativa aos seus caprichos. Alberto, por sua vez, pouco se importa com o que pensa e anseia a jovem índia e deleita-se até se sentir cansado de seus agrados. Desde o início da narrativa, Alberto nutre admiração pelo corpo e pela beleza de Ierecê. No entanto, devido ao sentimento de inferioridade que Ierecê sente em relação a Alberto, tanto quanto aos conhecimentos que ele possui e dos quais ela é desprovida, quanto à dominação masculina e étnica, culturais da época, acaba apenas por se preocupar com o que ele e os outros brancos possam achar dela. Numa passagem do conto, Alberto brinca com Ierecê, dizendo que a levaria para conhecer o Rio de Janeiro com ele um dia; a reação da índia é a seguinte: As narrações que Alberto fazia da vida e dos esplendores do Rio de Janeiro lhe excitavam vivamente a imaginação. A descrição do trajo das mulheres e da mudança contínua das modas sobretudo a encantava de um modo singular. __ Ah! Se eu tivesse tudo aquilo! disse ela uma vez com fundo suspiro. __ Você quer ir pra lá? perguntou-lhe o moço. __ Nhôr-não: Ierecê ficava feia perto das portuguesas tão alvas e bonitas. Eu nasci para o mato. Depois na cidade minha gente morre toda de bexigas (TAUNAY, 2000, p. 38). Fica evidente a preocupação de Ierecê com sua aparência diante da exigência do corpo ideal imposto pela sociedade. Também se evidencia o sentimento de inferioridade dela em relação à beleza e o modo de vida das mulheres e pessoas da corte carioca, por vezes causando inveja, por vezes timidez na índia. A relação de inferioridade de Ierecê para com Alberto, a sua submissão ao se unir a ele e a submissão em se mostrar bela e serviçal, assim 72 como a aceitação do seu papel perante o que lhe é imposto, estão explícitos em vários trechos do conto. Desde o início da narrativa, a personagem já se apresenta, por intermédio da visão do narrador, inserida num sistema ideológico de dominação. Ela é passiva à dominação de seu avô, mais velho e homem, de Alberto, homem, branco e rico, e dos demais homens da narrativa, que a veem como figura ingênua e exótica. E, em toda a extensão do conto, Ierecê não contesta sua posição, pois ela é parte do contrato social, segundo o qual é ideológica e culturamente submissa aos valores do homem e dos brancos. Dessa forma, ela procura então atingir o que lhe cabe na escala de ascensão, mostrar sua beleza, ser dócil, submissa e conquistar o amor do homem. Em conclusão à sua teoria da dominação masculina, Pierre Bourdieu aponta que, mesmo quando a mulher parece ter atingido uma posição diferenciada na escala social, ela continua em grau de inferioridade, e isso devido a uma relação simbólica: [...] Por um lado, qualquer que seja sua posição no espaço social, as mulheres têm em comum o fato de estarem separadas dos homens por um coeficiente simbólico negativo que, tal como a cor da pele para os negros, ou qualquer outro sinal de pertencer a um grupo social estigmatizado, afeta negativamente tudo que elas são e fazem, e está na própria base de um conjunto sistemático de diferenças homólogas (BOURDIEU, 2002, p. 55. Grifos do autor). O desfecho da trama amorosa só acentua essa posição. Chegada a hora de Alberto regressar ao Rio de Janeiro, Ierecê e Morevi vão até a beira do porto despedirem-se do protagonista: Afinal chegou a hora da partida. Ierecê foi até o porto do rio Miranda e deitou um olhar de cólera concentrada para o navio que lhe roubava o amante. Parecia, contudo, calma. Alberto, não querendo chamar sobre si a atenção da gente que acudira ver o embarque, ocupava-se ativamente de suas cargas; antes porém de saltar na canoinha que o ia levar ao Alpha já sobre rodas no meio do rio, chegou-se a Ierecê, apertou-a ao peito rapidamente mas com força e, retendo a custo as lágrimas, depositou-a nos braços de Morevi. Ela tinha perdido os sentidos, e quando uma filha das selvas e da inculta natureza desmaia, é que a dor a esmagou com mão de ferro num paroxismo horrível; é que o seu coração estalou numa contração de agonia e a sua alma entrou em dúvida se era ou não a hora de sair daquele corpo para ir buscar outro mundo, outros destinos (TAUNAY, 2000, p. 52-53). Passados cinco meses da chegada de Alberto ao Rio de Janeiro, este recebe uma carta de seu amigo João Faustino, trazendo notícias sobre Ierecê. Seu amigo começa a relatar a 73 dramática situação em que ficou Ierecê após a partida de Alberto e diz que ele estava errado em sua previsão sobre o futuro da índia. Ao contrário do esquecimento rápido da índia para com a relação que teve com Alberto, como havia previsto João Faustino, relata o adoecimento de Ierecê, seguido de sua morte: “Perguntei ao velho Morevi como chegara àquele estado em tão curto prazo. Contou-me então que desde a volta ao Hetagati, a sua neta não quisera ou não pudera mais nem dormir nem tomar alimento. Uma tristeza sombria a acabrunhava, e febre surda mas contínua lhe minava as fontes da vida. Debalde, como feiticeiro, conferenciara ele com o acauã; debalde, como sacerdote, cantara noites seguidas; debalde, como médico, chupara o lugar em que batia o coração para ir cuspir numa cova distante o terrível mal – a nada cedera a moléstia mortal. “__ O português, disse-me em voz baixa Morevi, levou a alma dela. “Observei Ierecê: poucas horas tinha que viver. “Estava como que adormecida, arfando um pouco. De vez em quando parecia sorrir. “Ao meio dia abriu de repente uns olhos espantados, pediu água e expirou, pronunciando em voz, mais e mais baixa, um nome que o senhor há de conhecer. “__ Alber...to...Al...ber...to!” (TAUNAY, 2000, p. 54. Grifos e aspas do autor). Mais uma vez, a trama amorosa guarda lugar distinto para a personagem masculina – branco realista, nos termos de Lúcia Sá – em relação à personagem feminina – índia romântica. Enquanto Alberto, recuperado do seu mal-estar adquirido no período em que viajava pelos sertões de Mato Grosso, segue sua vida normalmente ao que era antes de ter-se relacionado com Ierecê; a índia, por sua vez, não consegue voltar à sua rotina, não se alimenta, só pensa no protagonista, adoece e morre pronunciando o nome deste. Como se não tivesse nem sequer domínio sobre a sua própria alma cessa-se a vida de Ierecê, marcada pelas palavras de seu avô: “O português levou a alma dela”. Nem mesmo em seu enterro Ierecê teve algo que não a remetesse à submissão: “Antes de chegar a noite, enrolei o corpo daquela bela mulher na rede e enterrei-o no chão do rancho, conforme ela desejara e poucos dias antes pedira a seu avô. “Fiz uma cruz e finquei-a à cabeceira da sepultura. “Ierecê tinha o direito de descansar amparada pelo símbolo da religião de Deus, cujos lábios separados perdoaram àqueles que haviam durante a vida amado muito” (TAUNAY, Aspas do autor, 2000, p. 54). Na narração do enterro de Ierecê feita por João Faustino a Alberto, constata-se, outra vez, a admiração pela beleza da índia. No entanto, mesmo enterrando-a no local escolhido por ela, Faustino resolve colocar uma cruz em sua sepultura. Dessa atitude a personagem acredita que deu o direito de Ierecê descansar sob o símbolo da religião de Deus. A religião de Ierecê é 74 esquecida, ou substituída, em seu ato fúnebre, marca textual que pode induzir que o homem branco concebia a religião cristã como superior à da índia e capaz de redimir aquela pobre alma. Após a análise do enredo e do desfecho da trama amorosa do conto, pudemos concluir que há uma relação hierárquica de dominação da cultura do branco sobre a do indígena. Há também uma dominação na posição do homem sobre a mulher, evidenciada pelo destino de um em relação ao do outro no final da trama. Também foi possível concluir que as personagens são planas e não surpreendem em nenhum aspecto, seja na apresentação destas, nos seus diálogos e ações, seja no conteúdo que é possível abstrair de toda a estrutura narrativa. Contudo, isto não nos leva a encarar o conto como realista, nem mesmo sob a perspectiva do protagonista em relação à índia romântica. O que há de avanço na construção de uma literatura mais verossímil ao universo vivido pelo indígena do século XIX está nas descrições do local, do comportamento, das vestimentas e da cultura em geral deles, feitas pelo ponto de vista dominante do narrador onisciente. O tratamento diferente dado ao protagonista, homem branco, em relação à índia ou ao sertanejo, seja pelos diálogos, ações ou pelo destino reservado na trama, não são inéditos em relação ao indianismo romântico anterior. Se tomarmos como exemplo a clássica narrativa Iracema, de José de Alencar, veremos que o final trágico para a mulher, índia romântica, personagem homônima da obra, dominada pelo protagonista homem branco (Martim) em relação à religião, diálogos, costumes e demais ensinamentos, é o mesmo. Se tomarmos ainda como exemplo Inocência, do próprio Visconde de Taunay, veremos então maior semelhança: o final trágico para a mulher romântica, no caso uma sertaneja, também homônima da obra, é o mesmo que o de Ierecê, dominada por um homem branco (Cirino), viajante, curioso estudante e admirador do sertão do Centro-Oeste brasileiro, muito semelhante a Alberto e ao próprio autor das narrativas: Taunay. Após a análise dos elementos estruturais do conto, podemos tomar partido na discussão das transições apontadas na primeira parte desta dissertação. Entendemos que realmente há um avanço nas descrições do local, dos costumes e características do indígena e do sertanejo em relação ao idealismo dos indianistas românticos. Contudo, estes avanços continuam ligados apenas aos parâmetros dominadores do ponto de vista do autor/narrador onisciente. Em todas as outras características apontadas, tais como: a apresentação das personagens indígenas e sertanejas sob o ponto de vista da cultura do protagonista branco, a caracterização das falas destas personagens como exóticas, a submissão da mulher para com o 75 homem e o desfecho trágico romântico das heroínas, nos levam a concluir a permanência do idealismo romântico. É nesta perspectiva que adentraremos na terceira parte da dissertação. Da permanência no idealismo romântico no conto partiremos para a análise propriamente dita da reedição de Ierecê a Guaná, de Sérgio Medeiros. Nesta parte o foco estará sobre as críticas presentes na reedição e as comparações feitas por estas com as Memórias do Visconde de Taunay e sua vivência de escritor viajante em relação à ficção romântica. Também será dado enfoque à polêmica do escritor com a obra de José de Alencar, presente em seus depoimentos autobiográficos e nas críticas de Lúcia Sá e Haroldo de Campos. 76 3. A PERMANÊNCIA DO IDEALISMO ROMÂNTICO O Romantismo surgiu na Europa nas décadas finais do século XVIII e no início do século XIX. Deste importante movimento estético literário surgiram grandes conflitos, sobretudo, pelo caráter político e idealista que representava. O Romantismo insere-se em um contexto de grandes transformações sociais, políticas, ideológicas e, principalmente, tecnológicas. As transformações da indústria e, consequentemente, as revoluções industriais impulsionaram uma reorganização da divisão de classes. Movimentos embasados no, já consagrado, Iluminismo e no, em desenvolvimento, Humanismo e Materialismo também foram determinantes para os contrastes do período literário. A Literatura também se transformava intensamente no período, ora aprovando, ora questionando as modificações políticas, sociais, econômicas e culturais. A respeito do surgimento do Romantismo em meio a tantas transformações na sociedade, Otto Maria Carpeaux, em História da literatura ocidental, relata: O acontecimento da Revolução Francesa produziu na Europa inteira – e no continente americano – uma profunda emoção, exprimindo-se em uma literatura de tipo emocional, que se deu a si mesma o nome de ‘romantismo’. A história desse movimento literário pode ser escrita em termos de história das revoluções: foi produzido pela revolução de 1789 e 1793; foi desviado pelo acontecimento contrarevolucionário da queda de Napoleão, em 1815; reencontrou o élan inicial pela revolução de 1830; e acabou na revolução de 1848. É literatura política, mesmo e justamente quando pretende ser apolítica. A revolução francesa satisfez a reivindicações que se exprimiram através do pré-romantismo: o descontentamento sentimental e o popularismo encontraram-se na mística democrática do ‘instinto sempre certo’ do povo. Mas a Revolução não satisfaz da mesma maneira àqueles pré-românticos, que não eram políticos, nem homens de negócio, nem homens do povo, e sim literários, os primeiros literatos profissionais; estes foram logo excluídos da nova sociedade burguesa, que não admitiu outro critério de valor, senão o utilitarista (CARPEAUX, 1978, p. 1107). Outro fator importante no período romântico foi a consolidação do romance como o gênero literário mais lido. Com a invenção da imprensa, surgiram os jornais e nestes os folhetins, página dedicada à publicação de capítulos de romances literários, que pouco a pouco foram se expandindo, aumentando, e muito, o número de leitores. Depois, o romance se consolidaria definitivamente na forma do livro, outro legado da imprensa. 77 No Brasil, o Romantismo inicia-se seguindo as tendências e estéticas dos escritores europeus, sobretudo, os franceses, como foi o caso de Taunay, e os portugueses, colonizadores do país, o que acarretou toda uma referência cultural. Segundo Alfredo Bosi, a análise estética desse período deve ser colocada em situação. Ou seja, a leitura literária deve ser feita contrapondo, ou agregando, a produção artística com as transformações políticas, sociais e econômicas: Mas aqui, como nos outros ciclos culturais, o todo é algo mais que a soma das partes: é gênese e explicação. O amor e a pátria, a natureza e a religião, o povo e o passado, que afloram tantas vêzes na poesia romântica, são conteúdos brutos, espalhados por tôda a história das literaturas, e pouco ensinam ao intérprete do texto, a não ser quando postos em situação, tematizados e lidos como estruturas estéticas. Ora, é a compreensão global do complexo romântico que alcança entender êsses vários níveis de abordagem que a análise horizontal dos "assuntos" aterra no mesmo plano (BOSI, 2006, p. 96). Como exposto na primeira parte, a produção literária do Visconde de Taunay insere-se na terceira fase do Romantismo, denominada Sertanista. Era característico dos escritores desse período a busca por uma linguagem mais verossímil do sertanejo e do indígena brasileiros. Os Sertanistas buscavam compor uma literatura “mais fiel” quanto aos costumes nacionais e romperem com os tipos de caracterização anteriores, considerados por eles idealistas e europeizados. Ocorre, então, a ideia de seguir um projeto cultural baseado na independência de 1822, recente no Brasil da época, e de contrapor-se ao indianismo anterior de José de Alencar, também considerado idealizado pelos sertanistas. Porém, esses escritores, apesar de procurarem escrever suas obras baseados na vivência do local, acabaram por compor uma literatura pautada pelo contraste entre a língua portuguesa oficial (do colonizador português), um português exótico (do homem do sertão) e a estranheza pelo idioma indígena. Do contraste de linguagens resultou que as obras foram compostas sempre sob a ótica do homem, branco, colonizador, letrado e capaz de apresentar o que o nacional trazia de pitoresco. É nessa perspectiva que se insere a ficção do Visconde de Taunay. Baseado na sua vivência de viajante expedicionário do Exército, o escritor procurou a descrição verossímil do local, das personagens e costumes, porém tinha como padrão de referência a cultura europeia. A leitura do sertão brasileiro e do homem que o habita só recebeu uma análise em termos universais e despidos do exotismo imposto pelo olhar europeu no Regionalismo posterior, do século XX. Nelson Werneck Sodré aponta: 78 O Regionalismo, que se desenvolve a partir do desencadeamento do largo movimento de idéias que corresponde às transformações operadas no Brasil nos fins do século XIX, difere fundamentalmente do sertanismo com que a escola romântica se ornamentara. A diferença não está apenas na forma, mas no conteúdo, daí a sua importância. ‘As paisagens, como os textos, só falam quando são interrogadas. Tudo é mudo nas formas a que não sabemos insuflar um verbo’, dizia o crítico [Augusto Meyer]. Ao esboço de literatura regional que acompanha o desenvolvimento romântico, convencionamos conhecer como sertanismo. Regionalismo, a rigor, começa a existir quando se aprofundam e se generalizam, a ponto de surgirem em zonas as mais diversas, manifestações a que o romantismo não poderia oferecer os elementos característicos (SODRÉ, 1976, p. 403). No final do século XIX, como aponta Otto Maria Carpeaux, várias teorias fizeram com que o caráter idealista e moral do Romantismo decaíssem, culminando na sua extinção. As concepções de Kierkegaard, de Marx, Bielinki, entre outros, auxiliaram para que a escola romântica não mais representasse a sociedade em vigência (Cf. CARPEAUX, 1978, p. 1379). O Brasil, por sua vez, sofre influências de tais teorias e também acaba por romper com o idealismo romântico. Como aponta Sodré, no trecho acima, o Regionalismo se desenvolveu baseado nas transformações de tais teorias e resultou em avanços não só na forma literária, mas também em seu conteúdo. O Sertanismo romântico pode ter sido um esboço para o que o Regionalismo do século XX viria fazer, pois naquela época, o Romantismo não fornecia os elementos para tal criação. No entanto, como evidenciado na primeira parte desta dissertação, o Visconde de Taunay foi considerado por vários críticos como um mediador entre escolas. Alguns até o colocam como principal motivador para a existência dos capítulos iniciais de Os sertões, de Euclides da Cunha, devido ao caráter descritivo da paisagem, mais distante dos idealismos. Após a análise estrutural do conto, e das críticas presentes na reedição de Sérgio Medeiros, podemos propor responder questões referentes à transição na obra do Visconde de Taunay, citada na primeira parte. O Visconde de Taunay transitou entre a experiência de etnólogo observador, da vivência com os indígenas e sertanejos, em suas viagens pelo CentroOeste brasileiro, e sua condição de escritor ficcional. Da transição entre o Romantismo e o Realismo pode-se concluir que, apesar de alguns avanços na descrição do local e das personagens que o compõe, há uma permanência do idealismo romântico, em sua linguagem, estrutura e conteúdo. Quanto à leitura que a crítica fez da obra de Taunay, em todo século XX e, antes da reedição de Medeiros, ocorre a inclusão do nome do escritor como um dos mais importantes do período, mas sempre acerca das obras Inocência e a Retirada da Laguna, deixando várias outras obras excluídas de referências, dentre elas o conto “Ierecê a Guaná”. 79 Contudo, não é a essa conclusão que chega Sérgio Medeiros com seu trabalho de inserir o conto na historiografia e na crítica literária brasileira. Para Medeiros, o conto deve ser lido em comparação com textos etnográficos produzidos por Taunay e, sobretudo, em relação à sua autobiografia, Memórias. O editor parte da vivência de Taunay no sertão do Mato Grosso e da relação que teve com a índia Antônia, enquanto esteve por lá, descrita nas Memórias, e estabelece uma comparação, ao estilo causa e consequência, com a relação ficcional entre Alberto e Ierecê. Todas as análises e propostas da reedição de Medeiros são baseadas na comparação com a vivência de Taunay descrita nas Memórias. Partindo da exclusão do conto, só anteriormente analisado por Antonio Candido, e chegando à proposta de inclusão deste por ter sido considerado pelo crítico como “um belo conto, o melhor, de quantos, Taunay escreveu”, Medeiros enfatiza a importância de comparar o conto com a autobiografia do escritor. Ocorre, então, a proposta do editor de colocar Taunay à frente dos escritores do seu tempo e a tentativa de referenciar o conto como uma transição da criação romântica para a realista. Cabe ressaltar, ainda, que, também, já na produção de seu texto crítico presente na reedição do conto, Medeiros relata, em nota de rodapé, que estava produzindo uma reedição da obra Memórias, o que seria mais um motivo para que o leitor buscasse a leitura posterior desta para estabelecer a comparação. 3.1 Entre a ficção: as Memórias Se a intenção de Sérgio Medeiros com a reedição de “Ierecê a Guaná” era inserir o conto na fortuna crítica de Taunay, o mesmo parece já considerar em sua reedição das Memórias bem sucedida sua empreitada. Se o conto permaneceu cento e vinte e seis anos sem ser publicado e oitenta e três anos sem ser citado pela crítica, que considerava como clássicos do autor apenas A Retirada da Laguna e Inocência, Medeiros acredita que em menos de cinco anos conseguiu fazer com que sua primeira reedição já fosse entendida como um clássico do Visconde de Taunay no momento de lançamento da segunda reedição. Quando lançou a reedição, em 2000, o editor pedia atenção ao conto, esquecido pela crítica do século XX, e depois, em 2005, ao reeditar as Memórias, referencia o escritor como autor de três obras clássicas e não mais de duas, como antes: 80 Estas Memórias (obra póstuma, 1948), embora falem de uma grande guerra – de seus preparativos, seu desenrolar e suas conseqüências na vida de quem a redigiu –, contêm as páginas mais joviais e humoradas (‘assuntos risonhos e comentários galhofeiros’) do autor do romance romântico Inocência (1872), do relato histórico A retirada da Laguna (1879, versão definitiva) e do conto indigenista “Ierecê a Guaná” (1874), obras com as quais, aliás, o memorialista dialoga, ao retrabalhar, de outra perspectiva, o assunto desses textos célebres do século XIX (MEDEIROS, 2005, p. 11). Nota-se que Sérgio Medeiros, em seu texto de apresentação da reedição das Memórias, propõe a leitura delas em comparação com os “célebres textos” de Taunay no século XIX. No entanto, na autobiografia, Taunay cita todas as suas obras ficcionais e históricas e não apenas três delas, o que Medeiros faz na apresentação. A ênfase dada às obras A retirada da Laguna e Inocência é natural, pois ambas foram sempre tratadas tanto pela crítica quanto pela historiografia como as obras clássicas do escritor ao longo de mais de um século de percurso. Já Ierecê a Guaná nunca foi considerada uma obra célebre do Visconde de Taunay, nem no século XIX (como referencia o editor), nem no século XX pelos sequentes estudiosos da obra do autor. Temos, a esse respeito, configurada a primeira contradição nas reedições. Na primeira delas, Sérgio Medeiros propõe com frequência a leitura em comparação com a segunda, citando que a última já estava para ser publicada. Depois, na segunda reedição, cita o conto como um clássico do autor, o que nunca foi. Em nenhuma das introduções, o editor apresenta elementos críticos para tal proposta de leitura. Pautado por interesses mercadológicos e pela aceitação de seu projeto pelos leitores, Medeiros propõe a estes a leitura das duas reedições baseada no que ele mesmo produziu e não naquilo que a historiografia crítica antes produzira. Se na primeira reedição, para reforçar a sua proposta de aceitação da reedição do conto em comparação com a vivência de Taunay, Medeiros inseriu um texto de apresentação e mais quatro textos de renomados críticos brasileiros, incluindo um de sua própria autoria, na segunda reedição produziu algo com menos referências. Baseado na mesma proposta lançada anteriormente, da leitura da ficção pela vida, da Literatura pela História, o editor apenas insere na reedição posterior um texto de apresentação, assinado por ele mesmo. O texto, de apenas oito páginas, é somente um resumo das partes da autobiografia, de mais de quinhentas páginas, e é a única proposta do editor para a leitura em comparação com a ficção de Taunay. Dessa forma, excluem-se outras leituras possíveis e outros posicionamentos que os estudiosos já haviam feito acerca da obra autobiográfica. A respeito de uma produção biográfica ou autobiográfica, cabe ressaltar, como já mencionado no capítulo sobre a relação entre História e Literatura, que nem sempre o relato 81 biográfico contém toda a “verdade” sobre um período. Ainda mais por se tratar de um texto de memórias, escrito muitos anos depois dos fatos ocorridos, o que distancia mais ainda o caráter de representação fiel da realidade. Sobre tal relação, Sheila Dias Maciel afirma: Dentro do jogo de reflexos que a escrita confessional suscita existem formas diferentes de apresentação do ‘eu’. Classificar estes textos com fôlego memorialista, no entanto, não é tarefa fácil. Escritos sob a égide da memória e centrados no sujeito, denominam-se como confessionais ou intimistas e são agrupados segundo suas semelhanças dentro do universo da autobiografia (MACIEL, 2004, p. 81). Existem, segundo Maciel, diferentes formas e reflexos da escrita memorialista. Estes textos são escritos na concepção do sujeito, narrados por um “eu” e são agrupados segundo suas semelhanças dentro do universo da autobiografia. A respeito das distâncias do texto de memórias em relação à fidelidade dos fatos, Maciel afirma: A narrativa em forma de diário inclui-se entre as formas autobiográficas por ser uma escrita voltada para um ‘eu’ que se revela e difere das demais formas confessionais por ser escrita à medida que os fatos vão acontecendo, ou melhor, por relatar os fatos também retrospectivamente, mas num espectro de tempo muito menor. Os diários são também um retorno ao passado, mas a um passado recém acabado, sem um objetivo preciso de buscar nada além do que a vontade determina (MACIEL, 2004, p. 85-86). Já em relação ao gênero memórias relata: As memórias são a parcela da literatura autobiográfica mais reconhecida como puramente literária, muito provavelmente pela maior liberdade que a elas está vinculada. De fato, as inexatidões da memória, capacidade humana de armazenar dados, transformam os fatos em recordações por meio da linguagem (MACIEL, 2004, p. 84). Segundo Sheila Maciel, o diário está mais próximo da fidelidade com os fatos relatados, pois estes vão sendo narrados à medida que vão acontecendo, ou numa parcela de tempo muito menor, permitindo ao escritor menores esforços para recordar e descrever o que ocorreu. Já as memórias se aproximam muito da ficção, pois são narradas com um espaço muito maior de tempo em relação aos fatos ocorridos, o que acarreta numa espécie de recordação sintetizada pela imaginação, gerando algumas imprecisões temporais e descritivas. Sabemos que o Visconde de Taunay escreveu suas memórias no final de sua vida, muito distante dos fatos por ele vividos e ali recordados. Sua produção ficcional possui certa 82 semelhança com este fato, pois embora seja escrita sem compromisso em relatar a “veracidade” dos fatos, também foi produzida baseada na recordação. No entanto, na reedição de Ierecê a Guaná, as Memórias são tratadas por Sérgio Medeiros como versão real dos fatos ali ficcionalizados, funcionando, até mesmo, como uma conclusão do conto. Para o editor, o conto possui resquícios de verdade em suas fiéis descrições, mas não possui resquícios de verdade no que se refere ao tratamento de Taunay aos indígenas. O tratamento dado por Taunay ao indígena é considerado por Medeiros como evoluído e deve ser analisado pelo leitor no que está descrito nas Memórias e não no conto. Dessa forma, traz para seu discurso elementos que julga positivos no conto para elevar a obra de Taunay e exclui elementos negativos para referenciar sua análise comparativa entre a vida e a obra do autor. A recordação da relação de Taunay com a índia Antônia é descrita pelo próprio escritor desta maneira nas Memórias: Era Antônia uma bela rapariga da tribo chooronó (guaná propriamente dita) e da nação chané. Muito bem feita, com pés e mãos singularmente pequenos e mimosos, cintura naturalmente acentuada e fina, moça de 15 para 16 anos de idade, tinha rosto oval, cútis fina, tez mais morena desmaiada do que acaboclada, corada até levemente nas faces, olhos grandes, rasgados, negros, cintilantes, boca bonita ornada de dentes cortados em ponta, à maneira dos felinos, cabelos negros, bastos, muito cumpridos, mas um tanto ásperos. Sobremaneira elegante de porte, costumava trajar, com certo donaire, vestidinhos de chita francesa, quando não se enrolava à moda dos seus numa julata que a cobria toda até aos seios (TAUNAY, 2005, p. 269). A descrição da índia Antônia, com quem se relacionou Taunay, possui várias semelhanças, e alguns contrastes, com a descrição da personagem Ierecê no conto. No próximo capítulo evidenciaremos tais comparações por meio das críticas de Sérgio Medeiros e de Lúcia Sá. Sobre as dificuldades do Visconde de Taunay para conquistar a índia e conseguir sua mão, temos as seguintes recordações do escritor: Verdadeiro rapto esbocei. A primeira conferência entre o meu embaixador e o índio foi infrutífera, fazendo este grande alarde não só do cavalheirismo e bondade do tenente, como da amizade que lhe dedicava a rapariga. Voltando o Salvador à cega, patentearam-se mais algumas disposições no sentido de qualquer acordo. Entretanto, as exigências por parte do chefe da família não eram pequenas – um saco de feijão, outro de milho, dois alqueires de arroz, uma vaca para corte e um boi de montaria –, o que tudo importava, naquelas alturas e pelos preços correntes, nuns cento e vinte mil réis. Além disto, pleno consentimento da Antônia, que não se mostrava assim, sem mais nem menos, disposta a deixar o Lili que a esperava impaciente (TAUNAY, 2005, p. 270). 83 Das dificuldades encontradas por Taunay até os negócios feitos com o negociador da índia, chegamos ao momento da conquista do escritor: A fim de vencer a relutância de Antônia, levara-lhe eu um colar de contas de ouro, que, em Uberaba, me havia custado quarenta ou cinqüenta mil réis. Foi argumento irresistível! Assim mesmo ela, ainda que toda embelezada do apetecido ornato, adiou para o dia seguinte o sim, mas pediu para ficar desde logo com o fascinador colar [...] Vinte e quatro horas depois, todos os compromissos estavam saldados a contento das partes interessadas menos, é inútil dizê-lo, do tenente e da sua gente, cujo furor maior foi imenso e aliás, bem justificado, cumpre convir, assoprado ainda por cima pela intriga e pelos mexericos (TAUNAY, 2005, p. 270). Nota-se que existe a semelhança entre os negócios feitos por Alberto com Morevi e os que fizeram Taunay e o protetor de Antônia. Há, ainda, o fato de Alberto oferecer a Ierecê um colar de contas de ouro, assim como Taunay oferece a Antônia. Porém, a personagem do conto não encontra dificuldades para propor a relação com Ierecê, diferente dos obstáculos encontrados pelo escritor. Também não há, no conto, nenhuma relutância por parte de Ierecê, que nem sequer é consultada e que, já no exato momento em que conhece Alberto, se une a ele. Já Antônia tinha um amante, foi consultada, relutou, aceitou o presente de Taunay, mas, ainda assim, só quis ir com ele no dia seguinte, mesmo ficando com o colar desde a noite anterior. Após a união entre Taunay e Antônia, o escritor descreve os dias que passou com a índia da seguinte maneira: A bela Antônia apegou-se logo a mim e ainda mais eu a ela me apeguei. Em tudo lhe achava graça, especialmente no modo ingênuo de dizer as coisas, na elegância inata dos gestos e movimentos. Embelezei-me de todo por esta amável rapariga e sem resistência me entreguei exclusivamente ao sofrimento forte, demasiado forte, que em mim nasceu. Passei, pois, ao seu lado dias descuidosos e bem felizes, desejando de coração que muito tempo decorresse antes que me visse constrangido a voltar às agitações do mundo, de que me achava tão separado e alheio. Pensando por vezes e sempre com sinceras saudades daquela época, quer parecer-me que essa ingênua índia foi das mulheres que mais amei (TAUNAY, 2005, p. 277). Taunay passa dias descuidados e felizes ao lado de Antônia. Diferentemente do conto, onde Ierecê é quem se apega demais a Alberto, chegando a endeusá-lo. Nas recordações Taunay deixa claro que também se apegou demais a Antônia, tendo sido esta uma das mulheres que mais amou. 84 Contudo, assim como no conto, a cultura distinta e a posição de viajante que Taunay exercia enquanto sua estadia pela aldeia guaná, fizeram com que houvesse o rompimento da relação. Sobre esse episódio, Taunay relata: Era, porém, a última vez que iria vê-la; e bom foi supor o contrário para arredar da despedida suprema a dor imensa de tão duro momento. Assim repentina e meiga ilusão atenua grandes angústias ao homem no seu peregrinar pela vida. __ Até breve! – afirmei montando a cavalo e convicto de que realizara, sem dúvida possível, a doce promessa. __ Não se esqueça, tenente, não se esqueça! – gritou ela muitas vezes e com as mãos me fazia muitos sinais de amizade e afeição, até quando as voltas do caminho permitiram (TAUNAY, 2005, p. 296). A despedida entre Taunay e Antônia é bem diferente da despedida entre Alberto e Ierecê. No conto a índia já chega muito nervosa para despedir-se do amante e desmaia ao abraçá-lo, num gesto de puro sofrimento e de amor idealizado. Na narração que Taunay faz da despedida de Antônia, ele parece sentir muito mais a separação do que a própria índia, que se mantém alegre e afeita ao momento. A vida que seguiu Antônia sem Taunay difere mais ainda do que ocorreu com Ierecê ao viver na tribo guaná sem Alberto: Não me olvidei, certamente, jamais, dessa graciosa criatura, e nisso cumpri a palavra; mas nunca mais lhe pus os olhos em cima. Sei, porém, que não foi de todo infeliz. Casou-se com um alferez e teve dois filhos. Enviuvando, tornou a casar, creio que com um oficial também. Vive hoje em Corumbá ou Cuiabá e deve ter quarenta e dois anos, o que significa que há de estar velha e feia mêmê, pois as índias cedo, muito cedo, perdem todos os encantos e regalias da mocidade. Pobrezinha da Antônia! Em mim deixou indestrutível lembrança de frescor, graça e elegância, sentimento que jamais as filhas da civilização, com todo o realce do luxo e da arte, poderão destruir nem desprestigiar! (TAUNAY, 2005, p. 296). Se Ierecê adoece com a partida de Alberto, não se alimenta e acaba por falecer, tendo “sua alma levada pelo português”, Antônia não sente a partida de Taunay, casa-se duas vezes, tem filhos e deixa no escritor uma marca de graça e elegância que este julga que as mulheres da cidade não o fizeram sentir. Porém, há também, no relato, um olhar preconceituoso e de posição superior do branco para com a indígena. Assim como Alberto no conto, Taunay acredita que as índias envelhecem rápido e perdem sua beleza, concluindo que só devem se relacionar com estas, enquanto possuem o frescor e a beleza da juventude. Outro fator importante a ser ressaltado no trecho é o caráter de distância da narração para com os fatos ocorridos, característico do texto de memórias. Taunay não se lembra 85 exatamente com quem Antônia se casou pela segunda vez, em que cidade ela mora (Corumbá ou Cuiabá) e qual a idade exata da índia. Essa comparação serve como mais um elemento para comprovar a permanência do idealismo romântico. Ao passo que a índia real (Antônia) não se importava tanto com o homem branco (Taunay), vivendo feliz com ou sem este, não se submetendo ao seu domínio e, muito menos, falecendo por amor, logo, Medeiros cai na própria armadilha. Se na realidade Antônia agiu desta maneira, fica claro que Taunay optou pelo característico final trágico das heroínas românticas e sua submissão à cultura do homem branco para seu conto ficcional. Mesmo utilizando-se de sua vivência com os sertanejos e indígenas para descrever os costumes do local, o escritor cria um narrador, um protagonista e uma personagem para seguir os clichês do Romantismo. Descrita a relação de Taunay com Antônia, presente nas Memórias, e as comparações com o conto ficcional, feitas por Sérgio Medeiros e demais críticos da reedição, resta questionar: é necessária, ou pertinente, a comparação entre o conto e a obra autobiográfica? O leitor enriquece sua leitura e/ou análise do conto ao ler o relato autobiográfico de Taunay? 3.2 Uma memória dissimulada Desde a primeira edição das Memórias, em 1948, começaram as comparações entre a relação ficcional de Ierecê e Alberto e a relação vivida entre Antônia e Taunay. Não é o caso de concluirmos que tal possibilidade analítica só veio à tona com a publicação da obra autobiográfica. Desde sempre, mesmo na época em que o Visconde estava na ativa produção de suas obras, tanto como nas críticas posteriores que as seguiram, ficou evidente a importância dada para a observação empírica em sua narração, produzida por meio de sua experiência de viajante e em confronto à narração idealista de José de Alencar. Contudo, foi com a publicação das Memórias, que a crítica deparou-se com a existência da relação amorosa entre Taunay e a índia Antônia, talvez perdida em um conto pouco lido das Histórias brasileiras, de 1874. Sabemos que até a reedição do conto, em 2000, somente Antonio Candido havia levantado a possibilidade para tal leitura. Para o crítico, a personagem Ierecê era muito parecida com a índia que viveu com Taunay na aldeia guaná, e que se chamava Antônia. Compara-a também com Inocência, personagem central da obra homônima, que trazia traços 86 dessa mesma relação. Para o Visconde de Taunay ela representava “o perfume indefinível da donzela sertaneja e a tristeza dos seus amores frustrados” (CANDIDO, 2000, p. 104). A republicação do conto, editada 126 anos depois da publicação inicial e 43 anos após a crítica de Candido e organizada por Sérgio Medeiros, nos traz mais três textos críticos inéditos, que também enfocam o relacionamento entre Taunay e Antônia. Como já exposto, “Ierecê a Guaná” não é um texto de memórias, pois a narrativa está em terceira pessoa e o nome do protagonista Alberto é diferente do autor (Alfredo). Porém, parecem ser contundentes as relações descritas nas Memórias e analisadas por Sérgio Medeiros e por Lúcia Sá, em seus textos críticos presentes na reedição. Apesar da dissonância no foco narrativo, está implícita uma memória dissimulada no conto em questão. Visconde de Taunay, assim como Alberto Monteiro, nutria grande interesse pela cultura indígena e também esteve presente em aldeias indígenas durante suas diversas expedições, descrevendo geograficamente e com apuro literário as localidades percorridas e os costumes e valores dos índios daquele período. Torna-se, desse modo, inevitável à comparação entre o autor e seu personagem. Quanto à índia Ierecê, também se tornam inevitáveis as comparações com a índia Antônia. As descrições físicas e, algumas, comportamentais de Ierecê são muito parecidas com as descrições da índia Antônia, realizadas nas Memórias. Partindo da experiência vivida pelo Visconde de Taunay nos sertões do Centro-Oeste brasileiro é que Sérgio Medeiros procura justificar a escolha do foco narrativo e do conteúdo expresso no conto “Ierecê a Guaná”. Porém, é importante a reflexão de que a crítica no século XX e, também a do século XXI, como é o caso da que se encontra na reedição, possuem outra óptica temporal sobre tal experiência, vivida no século XIX. Isto posto que a obra de Taunay foi publicada postumamente, em 1948, já em meio à concepção moderna do diálogo entre cultura e sociedade, ou entre história e literatura, no caso. Para Walter Benjamin em “Experiência e pobreza”, de 1933, devemos nos ater às seguintes questões quanto à relação entre experiência e linguagem: [...] Que foi feito de tudo isso? Quem encontra ainda pessoas que saibam contar histórias como elas devem ser contadas? Que moribundos dizem hoje palavras tão duráveis que possam ser transmitidas como um anel, de geração em geração? Quem é ajudado, hoje, por um provérbio oportuno? Quem tentará, sequer, lidar com a juventude invocando sua experiência? (BENJAMIN, 1994, p. 114). Benjamin questiona a importância da experiência para os valores culturais da sociedade moderna. Existem pessoas capazes de transmitir suas experiências e “ensinar” 87 futuras gerações em meio a tantas transformações da sociedade? Para o filósofo, a sociedade do século XX, principalmente após a 1ª Guerra Mundial de 1914, perdeu o que entendia por ensinamento através da experiência: [...] Porque nunca houve experiências mais radicalmente desmoralizadas que a experiência estratégica pela guerra de trincheiras, a experiência econômica pela inflação, a experiência do corpo pela fome, a experiência moral pelos governantes. Uma geração que ainda fora à escola num bonde puxado por cavalos viu-se abandonada, sem teto, numa paisagem diferente em tudo, exceto nas nuvens, e em cujo centro, num campo de forças de correntes e explosões destruidoras, estava o frágil e minúsculo corpo humano. Uma nova forma de miséria surgiu com esse monstruoso desenvolvimento da técnica, sobrepondo-se ao homem. A angustiante riqueza de idéias que se difundiu entre, ou melhor, sobre as pessoas, com a renovação da astrologia e da ioga, da Christian Science e da quiromancia, do vegetarismo e da gnose, da escolástica e do espiritualismo, é o reverso dessa miséria (BENJAMIN, 1994, p. 115). Após a guerra mundial, os homens sentiram-se tão radicalmente abalados pela experiência do conflito, que perderam a capacidade de transmitir os fatos que por lá vivenciaram. Ou, como relata Benjamin, eles voltaram “mais pobres em experiências comunicáveis e não mais ricos” (1994, p. 115). Tudo ao redor do homem contemporâneo estava modificado pelo desenvolvimento da técnica, que o sobrepôs. As novas teorias, que deste momento histórico surgiram, culminaram no reverso da miséria das experiências transmissíveis do homem moderno. Na literatura, a perda da experiência como transmissão de uma sabedoria para o leitor, tornou-se evidente com o advento do romance. É acerca desta nova maneira de narrar a literatura que Benjamin, em “O narrador”, de 1936, relata: O primeiro indício da evolução que vai culminar na morte da narrativa é o surgimento do romance no início do período moderno. O que separa o romance da narrativa (e da epopéia no sentido estrito) é que ele está essencialmente vinculado ao livro. A difusão do romance só se torna possível com a invenção da imprensa. A tradição oral, patrimônio da poesia épica, tem sua natureza fundamentalmente distinta da que caracteriza o romance. O que distingue o romance de todas as outras formas de prosa – contos de fada, lendas e mesmo novelas – é que ele nem procede da tradição oral nem a alimenta. Ele se distingue, especialmente, da narrativa. O narrador retira da experiência o que ele conta: sua própria experiência ou a relatada pelos outros. E incorpora as coisas narradas à experiência dos seus ouvintes. O romancista segrega-se. A origem do romance é o indivíduo isolado, que não pode mais falar exemplarmente sobre suas preocupações mais importantes e que não recebe conselhos e nem sabe dá-los. Escrever um romance significa, na descrição de uma vida humana, levar o incomensurável a seus últimos limites (BENJAMIN, 1994, p. 201). 88 Com o advento da imprensa, no auge da burguesia, ocorreu a popularização do romance, gênero literário vinculado ao livro. O que diferia muito dos anteriores gêneros narrativos e épicos, que eram produzidos, geralmente, para serem declamados, encenados em público e/ou serem transmitidos oralmente de geração a geração. O autor do romance segregase para escrever e o seus leitores os leem sós e silenciosos. O romance não tem mais a intenção de transmitir conselhos, pois sua narração não é baseada numa experiência exemplar que deve ser comunicada de boca a boca. A proposta da narração romanesca é construir uma profusão de teorias e pensamentos, que fazem o leitor levar “o incomensurável a seus últimos limites”. Desta abordagem da experiência como algo que não é mais capaz de transmitir ensinamentos ao leitor, até a relação da vivência relatada por Taunay nas Memórias, utilizada por Medeiros como leitura complementar de “Ierecê a Guaná”, concebemos duas conclusões. A primeira é que Taunay já escrevia sua ficção para ser publicada e lida em forma de romance, ou seja, mesmo que provinda de suas experiências, eram escritas solitariamente para serem lidas por um seleto público de leitores brasileiros da época. A segunda é que, mesmo as Memórias sendo produzidas antes do século XX e da guerra mundial, as reedições de Medeiros, feitas à luz do século XXI, deveriam levar em consideração as transformações que a propagação do romance já havia produzido nos leitores e não procurar abordar os aspectos das experiências vividas por Taunay como principal foco comunicador e de transmissão de ensinamentos ao leitor moderno. Sérgio Medeiros enfatiza e contrasta a existência de duas vozes no conto “Ierecê a Guaná”, a do jovem escritor Taunay, parecido com a personagem central Alberto Monteiro, e a do maduro Taunay, escritor das Memórias, distinto da personagem central do conto. O editor lança sua proposta de leitura da seguinte maneira: [...] O herói do conto, um dândi desdenhoso e entediado que não encontra o paraíso tropical e precisa retroceder, deparando, à beira do caminho, com a índia guaná do título, expressa toda a contradição que o próprio autor vivenciou, ao longo da vida, em relação à cultura indígena, pela qual sentia uma atração mesclada de certa repulsa, conforme tento discutir num ensaio acrescentado a este volume ‘As vozes do Visconde de Taunay’ (MEDEIROS, 2000, p. 10). Na crítica, sobre a proposta das duas vozes inicias diz: Nas páginas iniciais de ‘Ierecê a Guaná’, a voz do narrador lembra a voz do engenheiro militar que escreveu a crônica histórica A retirada da Laguna num 89 estilo direto e econômico. Mas há um mistério por trás dessa voz objetiva, que é a voz do jovem Taunay. Gostaria de discutir isso a seguir (Idem, 2000, p. 109). Medeiros lança a proposta inicial de duas vozes no conto, da personagem central Alberto, sob o ponto de vista do narrador onisciente, e o jovem escritor da obra Alfredo d’Escragnolle Taunay. Primeiramente aponta que a voz do conto é parecida com a voz do jovem escritor; no entanto, veremos que, num segundo momento, considera a existência de uma terceira voz, a do maduro escritor das Memórias, que se distanciaria da voz da personagem de “Ierecê a Guaná”: Mas, talvez, o mais correto fosse considerar, aqui, que o Taunay maduro e saudoso que relembra Antônia não se parece em nada com o herói do seu conto de juventude, o dândi blasé Alberto Monteiro, que seduziu e depois abandonou Ierecê (MEDEIROS, 2000, p. 113). Mais adiante, ainda sobre a diferença entre a narração feita pelo jovem Taunay acerca do abandono de Alberto a Ierecê e da maneira como o maduro Taunay narra o rompimento de sua relação com a índia Antônia, Medeiros relata: [...] [Ierecê] é uma ‘selvagem’, o que, para o jovem Taunay (o leitor pode consultar as suas anotações etnográficas sobre os índios de Miranda, incluídas neste volume), e também para Alberto Monteiro, que abandonará Ierecê, significa reconhecer que existe uma barreira intransponível entre o civilizado, esse recém-chegado da Corte, e o habitante da mata, o indígena. Para o Taunay maduro, essa barreira, embora ainda exista, é mais maleável e não impediu que a paixão do militar pela índia desabrochasse livremente, como vimos (MEDEIROS, 2000, p. 113). Ao analisar o comportamento de Alberto, que abandona Ierecê, Medeiros compara a personagem ao escritor Taunay enquanto jovem. Ainda pede que o leitor leia as anotações etnográficas de Taunay, incluídas por ele na reedição, para fazer tal comparação. De alguma maneira, procura justificar os acontecimentos da ficção pelos fatos vividos pelo autor do conto. Nesta proposição procura justificar os juízos de valor conservadores do narrador e do protagonista, se valendo da vivência do jovem escritor Taunay. Esta mediação servirá para sua síntese, a de que o maduro Taunay concebeu voz e respeito à cultura indígena, propondo ao leitor a posterior leitura das Memórias. Ainda ao analisar as vozes do jovem e do maduro Taunay acerca dos relacionamentos amorosos com as índias, Sérgio Medeiros adota estratégias distintas para relatar os interesses e posicionamentos de cada uma das vozes por ele propostas: 90 [...] Taunay, um esteta de sangue francês, como lembra Antonio Candido, não obstante seu envolvimento com a vida da Corte, mostra também um ‘certo desprezo latente em relação à boa sociedade’, para ele não suficientemente polida, daí a razão por quê, desencantado, entregou-se a experiências exóticas, como o seu herói, descobrindo, finalmente, numa índia guaná, a beleza e a elegância que sempre almejara, porém, agora envoltos em hábitos e maneiras nada europeus, que acabaram por decepcioná-lo e, finalmente, por indigná-lo. Dispôs-se, a partir daí, a educar, a refinar a mulher índia (aparentemente, as moças da Corte não se submeteriam de bom grado ao tratamento), até conseguir que ela se comportasse e se vestisse de outra maneira, dentro dos padrões aceitos pelo dândi. Mas Ierecê jamais conseguiu ser a mulher ideal (MEDEIROS, 2000, p. 119). Ao constituir a comparação do jovem Taunay com a personagem Alberto e a busca da mulher ideal por eles, tanto na corte quanto na aldeia guaná, Medeiros estabelece um paralelo duvidoso entre a insatisfação destes com o que resultou da relação. Primeiro o editor aponta que tanto Taunay quanto Alberto estavam cansados da vida e das mulheres da corte e decidiram buscar nas indígenas algo mais puro e simples, ou exótico. No entanto, Medeiros aponta que os dois se cansam da simplicidade das índias e buscam algo mais refinado, do que apenas a beleza delas, assim, tentam transformá-las em mulheres iguais às da corte carioca, mudando suas vestimentas e tentando ensinar-lhes novos hábitos. Não conseguindo obter êxito em suas tentativas de transformar as índias, ambos abandonam-nas, nunca as considerando mulheres ideais. Se a leitura destas vozes é válida, Medeiros não questiona qual a razão de Alberto e Taunay tentarem transformar as índias em mulheres iguais às da corte, se antes eles mesmos eram insatisfeitos com os comportamentos daquelas. E nem qual a razão de não estarem satisfeitos com as índias, uma vez que elas possuíam a simplicidade primeiramente desejada e também o domínio cultural que eles não possuíam sobre as mulheres da corte. Para acentuar mais ainda o ponto de vista distinto entre o jovem Taunay e a personagem central do conto em contraste com o maduro Taunay, Medeiros compara a vida do escritor posterior à relação que teve com a índia com o que imagina que seria a vida da personagem após a relação que teve com Ierecê. Na página 123 de sua crítica, o editor aponta que Alberto e o jovem Taunay eram praticamente idênticos, com exceção da pesquisa estabelecida pelos dois enquanto observadores do sertão. Na tentativa de embasar sua proposta, Medeiros cita o vocabulário da língua guaná, produzido por Taunay, e presente na reedição. Desta maneira, reforça, mais uma vez, a tentativa de fazer o leitor pensar na reedição como um todo e não só na leitura do conto das Histórias brasileiras, impondo sempre a comparação com os textos por ele inclusos nela e a leitura de sua próxima reedição (Memórias): 91 O engenheiro Taunay tanto se interessou pela língua guaná que, como já afirmei, decidiu estudá-la seriamente, conseguindo recolher cerca de 2 000 vocábulos, que, segundo afirma, se perderam quando os paraguaios, em junho de 1867, saquearam e incendiaram Nioaque, uma localidade próxima à fronteira com o Paraguai. O pequeno vocabulário, acrescentado a este volume, é tudo que restou dessa extraordinária pesquisa lingüística. Parece-me que o herói do conto, na sua condição de convalescente indolente e desencantado com o mundo, inclusive com a cultura indígena, jamais teria podido elaborar uma obra dessa envergadura intelectual, embora ele também, como o jovem Taunay, tivesse certa curiosidade antropológica, chegando mesmo a dar alguma atenção à língua guaná. Mas Alberto Monteiro é, como já afirmei, o herói que nunca atinge sua meta (não alcança algo pleno em sua peregrinação) e, por isso, deve retroceder, deixando inconclusa a sua obra antropológica e vivenciando, no máximo, ‘episódios curiosos’ à beira da estrada, os quais, é claro, não o realizam, não o satisfazem inteiramente (MEDEIROS, 2000, p. 125-126). Na comparação entre a pesquisa elaborada por Taunay e a não elaborada por Alberto, Medeiros rompe totalmente a comparação entre a relação amorosa entre eles e as índias. Valendo-se de uma publicação do vocabulário da língua guaná realizado por Taunay em outro contexto, com outras intenções e anos depois, o editor chega à comparação, baseado num enredo ficcional de 40 páginas, de que Alberto jamais seria capaz de fazer algo semelhante. Cabe-nos a indagação: como Medeiros chega a tal concepção? No conto não há evidências das atividades exercidas pela personagem central antes do início da narração. Muito menos sabemos em quais atividades se envolve Alberto após a relação amorosa com Antônia, uma vez que o conto só relata o tempo em que ele esteve nos sertões de Mato Grosso e na aldeia guaná. De onde então Sérgio Medeiros tira conclusões para afirmar a inferioridade e a incapacidade da personagem diante do escritor Taunay? E qual sua intenção com tal afirmação? Se levarmos em conta outra afirmação de Sérgio Medeiros em sua crítica, a de que o maduro Taunay evoluiu muito em relação ao jovem Taunay, por qual razão não poderia também Alberto evoluir e concluir um projeto semelhante? Começa a ficar claro que o editor, mesmo considerando o jovem Taunay muito parecido com a personagem central do conto, já começa a distanciar o escritor deste para justificar (talvez corrigir) no maduro Taunay os conservadorismos deixados em sua ficção romântica. Esta tentativa de justificação da ficção de Taunay se acentuará mais ainda na conclusão que o crítico faz do impasse entre as vozes de Taunay: Ao contrário do Taunay maduro, o jovem Taunay vivenciou um conflito semelhante ao de Alberto Monteiro, terminando por julgar a cultura do outro como inferior, numa perspectiva colonialista. Ora, é nesse momento de desqualificação do outro que Alberto Monteiro e o jovem Taunay finalmente se igualam, muito embora o segundo também tenha se dedicado seriamente a aprender a língua guaná, 92 fazendo um esforço enorme para reinventar a relação entre o branco e o índio, a fim de não cair num impasse que anulasse os seus próprios planos de estudo científico (MEDEIROS, 2000, p. 126). Primeiro Medeiros equipara o jovem Taunay à personagem Alberto, isso devido ao julgamento de inferioridade que eles atribuíram às índias, ao tentarem mudá-las e ao abandoná-las. Depois, traz novamente as pesquisas e observações elaboradas pelo jovem Taunay para colocá-lo à frente da personagem do conto. Do que considera uma primeira vantagem do Taunay jovem à personagem do conto, chega à posição de superioridade do maduro Taunay em relação ao mesmo: No entanto, o Taunay maduro, ao fazer um balanço de sua vida, tentará resolver esse impasse, narrando o seu romance indígena com outra voz, a voz de quem se entregou ao idílio ‘selvagem’ sem reservas, certo de que essa experiência era um dos pontos altos da sua vida sentimental. Essa certeza talvez seja a do velho, que viveu outras experiências e pôde compará-las entre si, além do que era ‘picante’ incluir nas Memórias uma autêntica transgressão, enaltecendo o outro e afirmando tê-lo amado, sem desqualificá-lo, sem rebaixá-lo. A relação especular entre Alberto Monteiro e os dois Taunays, o jovem e o maduro, é, pois, muito complexa. Tentei, acima, oferecer apenas algumas indicações que possam esclarecer melhor esse fato, esse emaranhado de vozes, cujo valor simbólico é riquíssimo (MEDEIROS, 2000, p. 127). O maduro Taunay resolve o impasse do romance ficcional entre Alberto e Ierecê? Mais uma vez, Medeiros se vale da vivência de Taunay relatada nas Memórias como uma experiência que deve ser transmitida para o leitor. O editor traz as descrições mais amenas em relação ao indígena, presentes na autobiografia, para justificar tanto a relação autoritária do jovem Taunay com Antônia quanto a de Alberto com Ierecê. Contudo, Medeiros não racionaliza da mesma maneira a questão da distância das rememorações, feitas à luz de uma maturidade e de um saudosismo maior, daquelas feitas por uma juventude intensa, do escritor do conto que pretendia marcar um momento doce e interessante ou mesmo apenas compor um enredo ficcional. Por outro lado, é necessário, também, ressaltar que não existe um emaranhado de vozes em Ierecê a Guaná, como aponta Sérgio Medeiros. Há apenas uma única voz, a do narrador onisciente intruso que vê o índio e o sertanejo sob o olhar do homem branco colonizador. As outras duas vozes, a do jovem e a do maduro Taunays, são trazidas de fora do conto e induzidas nas reedições do editor. Por fim, Medeiros encerra sua crítica da seguinte maneira: 93 Não podemos julgar Taunay, insisto, tomando como referência o comportamento do dândi entediado que seduziu e abandonou a índia dele enamorada. Sabemos, lendo as Memórias, que o Taunay maduro não emitiu julgamentos duros sobre a cultura indígena, mas ao contrário, tentou mostrar o quanto esta o havia interessado e fascinado. E, sobretudo, o quanto amou a bela Antônia, cujo retrato, real ou idealizado, ajudou o escritor a propor no final da vida, uma solução para o impasse que viveram o jovem Taunay e Alberto Monteiro: a atração-repulsão pelo outro, que incompreendido em sua especificidade moral e cultural, se tornou inacessível e por fim indesejável, após um período de alguma intimidade, pois eram demasiado fortes as barreiras que separavam aquele que considerava superior do outro que tentou acercar-se dele. (MEDEIROS, 2000. p. 131). E quem pretendia julgar o comportamento da pessoa, do escritor Visconde de Taunay, pelo que era narrado acerca de uma personagem em um conto esquecido da literatura brasileira do século XIX? Não procede a leitura do conto sob a óptica desta crítica e da reedição das Memórias, a narração do conto existe e independe de publicações posteriores, apresentando características de personagens típicas do Romantismo brasileiro, tanto do indianismo nacionalista quanto do sertanismo romântico posterior. Além de o conto não possuir estas duas vozes, que na crítica às vezes se tornam três, como já mencionado acima, o relato da experiência em contraste com a linguagem apresenta outras questões importantes. Para Beatriz Sarlo, o contraste entre o relato da experiência e a linguagem pode ser entendido da seguinte maneira: Que relato da experiência tem condições de esquivar a contradição entre a firmeza do discurso e a mobilidade do vivido? A narração da experiência guarda algo da intensidade do vivido, da Erlebnis? Ou, simplesmente, nas inúmeras vezes em que foi posta em discurso, ela gastou toda possibilidade de significado? A experiência se dissolve ou se conserva no relato? É possível relembrar uma experiência ou o que se relembra é apenas a lembrança previamente posta em discurso, e assim só há uma sucessão de relatos sem possibilidade de recuperar nada do que pretendem como objeto? Em vez de reviver a experiência, o relato seria uma forma de aniquilá-la, forçando-a a responder a uma convenção? Há algum sentido em reviver a experiência ou o único sentido está em compreendê-la, longe de uma revivência, e até mesmo contra ela? Qual é a garantia da primeira pessoa para captar um sentido da experiência? Deve prevalecer a história sobre o discurso e renunciar-se àquilo que a experiência teve de individual? Entre um horizonte utópico de narração da experiência e um horizonte utópico de memória, que lugar resta para um saber do passado? (SARLO, 2007, p. 23-24). São questões relevantes como estas e outras mais que não são colocadas em perspectiva nos relatos críticos de Sérgio Medeiros, nem na proposta da reedição de Ierecê a Guaná nem na proposta de reedição das Memórias. A mobilidade do discurso nunca é posta à prova e o relato da experiência vivida por Taunay é sempre concebido como “verdade absoluta”, ficando a história tida como factual acima do discurso ficcional. Não é proposta a 94 discussão se ainda é possível a recordação do vivido como algo que transmite experiência ou se apenas Taunay o revive, distante do próprio ato de reviver, ou, até mesmo, contrapõem o legado que deixaria em seus primeiros escritos, procurando deixar outra versão para o contraditório que havia. É possível, dentro de tudo o que existe de utópico e subjetivo na recordação da experiência e de tudo que há de utópico e subjetivo na narração da experiência, encontrar um saber do passado? Na relação entre o conto ficcional e a obra autobiográfica estabelecida pelas reedições de Medeiros não há tal questionamento: a ficção, produzida muito antes da autobiografia, é recondicionada à perspectiva do relato da experiência, racionalizada pelo protótipo da realidade e sintetizada como resolução de impasses que havia no conto. Beatriz Sarlo, no tocante à relação entre experiência e narração, propõe algumas possibilidades para a abordagem desta complexa analogia: A narração da experiência está unida ao corpo e à voz, a uma presença real do sujeito na cena do passado. Não há testemunho sem experiência, mas tampouco há experiência em narração: a linguagem liberta o aspecto mudo da experiência, redime-a de seu imediatismo ou de seu esquecimento e a transforma no comunicável, isto é, no comum. A narração inscreve a experiência numa temporalidade que não é a de seu acontecer (ameaçado desde seu próprio começo pela passagem do tempo e pelo irrepetível), mas a de sua lembrança. A narração também funda uma temporalidade, que a cada repetição e a cada variante torna a se atualizar (SARLO, 2007, p. 24-25). Entre o recordar os fatos vividos e colocá-los em linguagem comunicativa entendemos que não há nenhuma narração que não se origine de uma vivência. Mesmo quando a narração tem a intenção de ser extremamente ficcional, de alguma vivência o autor parte para produzila. Conclui-se que a vivência é distinta da experiência quando se trata de narração. Tudo parte de uma vivência, mas quando colocada em discurso esta não mais transmite uma sabedoria inquestionável que o leitor carrega para si e transmite a outros. Não há mais a possibilidade, em uma análise feita à luz do século XXI, de tratarmos de uma experiência como “verdade absoluta” capaz de redimir um passado. Enquanto as reedições de Medeiros procuram trazer as experiências como resolução das limitações encontradas na obra de Taunay, vimos que o próprio autor procurava separar sua obra ficcional de sua obra etnográfica e memorialística. No entanto, para referenciar sua proposta de reedição do conto acerca das experiências do autor, o editor se vale dos textos etnográficos: 95 No relatório antropológico “Os índios do Distrito de Miranda”, incluído neste volume e escrito quando o jovem militar voltou à Corte, o retrato que Taunay nos dá de Antônia é bastante discreto, e, lendo-o, não podemos adivinhar que existiu algo entre essa índia e o autor do texto. [...] E, nesse outro documento que é A Retirada da Laguna, escrito num estilo igualmente objetivo, o nome e a pessoa da índia são rasurados, apagados – Antônia foi excluída desse relatório histórico. Parece que o escritor só se sentiu à vontade para assumir publicamente seu romance com Antônia no final da vida, ainda assim ao fazer-lhe o retrato numa obra que, conforme exigiu, só poderia ser publicada postumamente. Há muitas outras omissões em A Retirada da Laguna, sobretudo são deixados de lado os fatos que dizem respeito o próprio escritor [...] (MEDEIROS, 2000, p. 120). Ao propor a leitura da ficção pelo relato da experiência de Taunay nas Memórias e em suas obras etnográficas, Medeiros relata que em “Os índios do Distrito de Miranda” o retrato de Antônia é discreto e não deixa transparecer que houve a relação amorosa entre ela e Taunay. Mas qual a finalidade, em um texto produzido para descrever o local e os costumes dos índios da aldeia guaná, de narrar experiências amorosas? Sobre A Retirada da Laguna, o editor diz que Antônia fora excluída. Mais uma vez, qual seria a finalidade, num texto que tem por objetivo narrar a retirada estratégica do exército brasileiro de uma batalha contra o exército paraguaio, de narrar uma relação individual com a índia em um momento de trégua do conflito? Por fim, Medeiros ainda diz que há outras omissões na obra sobre a Guerra do Paraguai e que são deixados de lado os fatos que envolvem o próprio escritor, o que ele só se sentiu à vontade para assumir posteriormente em sua obra autobiográfica. Não é bem isso o que concluímos, e sim que o Visconde de Taunay sabia muito bem separar suas experiências particulares dos relatos de guerra e estudos etnográficos. Em textos objetivos e de caráter histórico e/ou científico, o escritor procurava elucidar elementos para tal análise, deixando de lado casos de seu cotidiano individual. Já em sua obra ficcional, Taunay não quer propor uma “verdade absoluta” baseada em sua experiência e sim compor, através de seu conhecimento do local, uma descrição verossímil, produzindo uma ficção agradável e plausível para o leitor. Resta, ainda, ressaltar que Lúcia Sá questiona, em seu relato crítico presente na reedição, o caráter de “verdade absoluta” das Memórias como redenção ao apagamento étnico/cultural presente no conto: Não se trata, evidentemente, de tomarmos as Memórias como verdade biográfica contra a qual se deve contrastar o conto, mesmo porque elas foram escritas anos depois de “Ierecê”. A comparação entre os dois textos ressalva o processo de invenção da heroína romântica em “Ierecê”, ao mesmo tempo que aponta para a criação da mulher realista das Memórias, ajuda-nos a compreender “Ierecê” como um texto de 96 transição, situado no entre-lugar dos discursos romântico e realista (SÁ, 2000, p. 133). No entanto, mesmo considerando que não devemos tratar a obra autobiográfica como verdade que deve ser contrastada ao conto, Sá acredita que a leitura do relato auxilia na compreensão da ficção. A crítica ainda acredita que o conto está situado no entre-lugar dos discursos romântico e realista e é o que tenta mostrar na relação que estabelece entre o conto de Taunay e o romance Iracema, de José de Alencar, nossa próxima investigação. 3.3 Da polêmica com Alencar Embora o Visconde de Taunay tenha separado os fatos de sua vivência de sua obra ficcional, foi por meio do conhecimento que obteve da observação, dos lugares que percorreu, que o escritor procurou compor uma literatura mais verossímil. Desta concepção de escrita ficcional, Taunay buscou contrastar-se ao idealismo dos romances anteriores de José de Alencar, considerados como indianismo romântico. Tanto Taunay quanto outros escritores, do final do século XIX, sertanistas românticos, naturalistas e regionalistas, buscaram tal verossimilhança. A crítica de Lúcia Sá, presente na reedição do conto “Ierecê a Guaná”, parte da seguinte questão: “O que levaria Taunay à arriscada tentativa de re-escrever, em tão singelo conto, a obra consagrada de Alencar?” (2000, p. 133). Lúcia Sá, numa espécie de ensaio dialético, desenvolve as comparações entre o conto de Taunay e o consagrado romance de Alencar. Primeiro, a crítica, parte da análise dos nomes das heroínas das ficções, ambas homônimas às obras. Enquanto Iracema é um anagrama de América e tenta voltar o olhar para o indígena americano, com uma palavra criada para soar parecida com o idioma tupi, Ierecê é uma palavra do idioma guaná, o que levou Sá a entender que Taunay conhecia melhor a realidade indígena e seria mais capaz do que Alencar de compor uma literatura mais verossímil à realidade por eles vivida no século XIX. Mais adiante, Sá compara a descrição, o comportamento e os diálogos das duas índias e conclui que ambas possuem aspectos positivos e aspectos negativos. Enquanto a descrição de Ierecê é mais verossímil à realidade guaná, realçada por traços característicos e diálogos em seu idioma original, a descrição de Iracema possui mais elementos literários, sendo a índia 97 apresentada na perspectiva do decorrer das cenas e não somente sob a óptica do narrador onisciente intruso, preservando a perspectiva do indígena (Cf. SÁ, 2000, p. 134-137). Do idealismo criado na ficção de Alencar, acerca do indígena e do sertanejo, Visconde de Taunay, em seu livro de Memórias, indaga: Permita a justiça da posteridade que eu consiga a posição de que me acho digno e para a qual trabalhei com todo esforço, vencendo, não raras vezes, desalentos violentos. Possuía Alencar, não há contestar, enorme talento e grande força de trabalho; tinha pena dúctil e elegante; mas não conhecia absolutamente a natureza brasileira que tanto pretendia reproduzir nem dela estava imbuído. Não lhe sentia a possança e verdade. Descrevia-a do fundo do seu gabinete, lembrando-se muito mais do que lera do que daquilo que vira com os próprios olhos. Parecendo muito nacional obedecia mais do que ninguém à influência dos romances franceses. Nos seus índios deixou Alencar a trilha aberta por Fenimore Cooper para de perto seguir Chateaubriand e reeditar as pieguices de que se constituiu porta-voz este escritor, tornando-as toleráveis a poder da pompa e do brilhantismo da frase. Tudo porém artificial e cansativo (TAUNAY, 2005, p. 224). Nota-se na crítica que Taunay faz a Alencar que o escritor almeja ser um dia reconhecido como um escritor à frente do anterior. Embora reconheça que Alencar possui enorme talento e força de trabalho, o Visconde aponta que o escritor não conhecia a realidade brasileira e que, por isso, sua literatura não transmitia verossimilhança. Ainda diz que o conhecimento de Alencar era baseado em leituras de gabinete e cópias da literatura dos franceses, tornando-se artificial e cansativa. Cabe ressaltar que, embora Taunay diga que os romances de Alencar são cópias dos romances franceses, os seus romances também sofreram influência direta destes. Mesmo em sua busca pelo verossímil quanto ao comportamento, aos costumes e a linguagem dos índios brasileiros, os conceitos que perpassam por seus romances são quase todos pautados pela óptica europeia, sob o ponto de vista do colonizador que observa a cultura do outro, narrando o que há nesta de exótico e pitoresco. Mais adiante em seu relato memorialístico, Taunay faz ainda um julgamento mais enfático sobre a produção indianista de José de Alencar: Dos índios fez Alencar heróis de verdadeiras fábulas, oriundas dos Natchez, Atala e René, a falar com a linguagem poética e figurada de exuberância e feição oriental. Conheci-os bem de perto, com eles convivi seis meses a fio e pude observálos detidamente. E eram aborígenes de procedência e cunho mais elevados, chanés de Mato Grosso que se dividem em quatro numerosos grupos – chooronós ou guanás, quiniquinaus, laianos e terenas. 98 Decerto tinha fraseologia por vezes pitoresca, mas daí a conversações todas de tropos e elegantes imagens há um mundo (TAUNAY, 2005, p. 224). No entanto, é necessário ressaltar que, em literatura, o grau de conhecimento da realidade e a descrição fidedigna desta não bastam para considerá-la como superior a uma literatura criada pelo viés da imaginação. O que dizer da literatura fantástica, por exemplo, ela é inferior ao romance histórico? O que dizer de Mário de Andrade, estudioso de gabinete, como se refere Taunay a Alencar, que compôs a partir de seus estudos uma literatura capaz de dialogar e representar todo um imaginário cultural do interior do Brasil? Sob essa perspectiva, Antonio Candido delimita que as fronteiras entre a invenção e a realidade em literatura são muito tênues: [...] Neste caso, deveríamos reconhecer que, de maneira geral, só há um tipo eficaz de personagem, a inventada; mas que esta invenção mantém vínculos necessários com uma realidade matriz, seja a realidade individual do romancista, seja a do mundo que o cerca; e que a realidade básica pode aparecer mais ou menos elaborada, transformada, modificada, segundo a concepção do escritor, a sua tendência estética, as suas possibilidades criadoras. Além disso, convém notar que por vezes é ilusória a declaração de um criador a respeito da sua própria criação. Ele pode pensar que copiou quando inventou; que exprimiu a si mesmo, quando se deformou, quando se confessou. Uma das grandes fontes para o estudo da gênese das personagens são as declarações do romancista; no entanto, é preciso considerálas com precauções devidas a essas circunstâncias (CANDIDO, Grifo do autor, 1970, p. 69). Para Candido, todas as personagens no final das contas são inventadas. A ilusão do escritor de estar criando algo baseado no real pode levá-lo a criar algo inventado, isso devido a crenças ideológicas, que o levam, muitas vezes, a julgar e moldar a personagem baseada em uma perspectiva. Por outro lado, o caminho inverso também é possível e, muitas vezes, ao criar, o escritor chega à composição de uma personagem que adentra a realidade de vários leitores. Para o crítico, o que pensa e escreve o autor sobre sua própria composição é, por vezes, enganoso, mas é preciso levar em consideração tais declarações, utilizando-as como mais uma possibilidade de análise e considerando-as com precauções. Para fechar tal questão, Antonio Candido considera que a estrutura do romance como um todo é que será capaz de resolver se o funcionamento da personagem é coerente, seja esta criada ou recordada: [...] O que julgamos inverossímil, segundo padrões da vida corrente, é, na verdade, incoerente, em face da estrutura do livro. Se nos capacitarmos disto – graças à análise literária – veremos que, embora o vínculo com a vida, o desejo de representar o real, seja a chave mestra da eficácia dum romance, a condição do seu 99 pleno funcionamento, e portanto do funcionamento das personagens, depende dum critério estético de organização interna. Se esta funciona, aceitaremos inclusive o que é inverossímil em face das concepções correntes (CANDIDO, Grifos do autor, 1970, p. 77). No momento histórico em que surgiu o sertanismo, o naturalismo e o regionalismo do século XIX, os escritores ainda não haviam chegado a tal concepção de análise e criticaram o indianismo anterior, muito mais pelo caráter estético idealista do por sua perspectiva conservadora e pitoresca, baseado nos costumes europeus. Acerca desse momento histórico, Sandra Jatahy Pesavento elabora a seguinte análise: [...] Embora o romantismo se volte para o específico e o singular, que dariam o tom original brasileiro no contexto da civilização ocidental, seu padrão de referência ainda é a Europa. Na falta de um passado clássico ou de uma Idade Média, José de Alencar vai idealizar o substrato nativo, nas trilhas do indianismo romântico que permite criar o “mito das origens” para o Brasil [...] A positividade das virtudes do índio era afirmada como compensação simbólica diante da carência das tradições históricas que a Europa esbanjava. Romantizado o contato com o homem branco [...] O resultado é uma recriação imaginária distante das condições concretas da existência, mas que não invalida a sua força de representação. A leitura do real feita pelo texto literário era dotada de uma alta carga de positividade para a elite branca escravista e se apresentava como plausível e conveniente [...] Por outro lado, a menção a uma América como pano de fundo para performance brasileira, encontrada na prosa e poesia romântica, não constitui um horizonte para a construção da identidade nacional (PESAVENTO, 1998, p. 25). Na busca por compor o índio sob aspectos mais verossímeis, surgem, na década de 1870, os sertanistas. Esses escritores eram, em sua maioria, viajantes e observadores do sertão brasileiro que, baseados em tais estudos, tentaram recriar o índio de uma maneira mais próxima ao seu habitat natural. Sobre o movimento sertanista, Pesavento relata: Recriando o real, a literatura e história constroem uma identidade para o país onde a legitimação da supremacia luso-brasileira é dada ora pela idealização romântica da dominação, ora pela sua ‘natural’ superioridade, perspectiva que se desdobra na também ‘natural’ submissão dos índios e dos negros [...] Mas índios e negros ‘não fazem história’, são excluídos de um processo narrativo como atores sociais, tal como se depreende dos compêndios da época. Imbuída das teorias européias de Darwin, Spencer, Comte, Taine, Renan, esta geração buscava o universal de forma explícita, assumindo um cosmopolitismo declarado: o Brasil deveria acertar o passo com a história, ingressando na modernidade de seu tempo. A Europa fornecia o padrão de refinamento civilizatório e de patamar cultural. Dela vinham as idéias, a moda, as novas técnicas, e o Brasil precisava acompanhar o trem da história, nem que fosse no último vagão... A alteridade estava posta de forma inquestionável: ela estava do outro lado do oceano, onde o Brasil buscava os seus padrões de referência e colocava seu horizonte (PESAVENTO, 1998, p. 26-27). 100 Imbuídos da tentativa de criar uma narrativa verossímil, após a produção indianista, a geração de 1870 procura ir além da relação de dominação europeia para com o índio e com o negro, que nunca tiveram voz para serem os atores sociais do processo de nacionalização do país. Baseados nas teorias que surgiram nos meados do século XIX, assumiram uma postura de cosmopolitismo declarado, no qual o Brasil deveria entrar na grande marcha da história e evoluir, até chegar num padrão de refinamento civilizatório próprio e próximo ao patamar atingido pela Europa. Dessa forma, para Pesavento, a geração de 1870, mesmo em busca de uma linguagem verossímil ao universo indígena, ainda tinha como padrão conceitual a Europa. E esse fator é semelhante ao que ocorre em “Ierecê a Guaná”, pois mesmo quando Taunay procura configurar Ierecê e as demais personagens indígenas e sertanejas, sob um ponto de vista mais verossímil aos aspectos culturais por eles vividos, acaba por sintetizá-los nos padrões “civilizatórios” e arquétipos europeus. Ainda na tentativa de dar outro destino ao índio e ao negro brasileiro, surge Joaquim Nabuco10 e toda a polêmica que envolve sua obra com a de José de Alencar. Nabuco escreveu várias críticas à obra do escritor cearense e com ele travou um verdadeiro conflito crítico/literário. A este respeito Pesavento discorre: Outros, como Joaquim Nabuco, reconheciam o problema e admitiam a necessidade de incorporar os egressos da escravidão à sociedade brasileira, como cidadãos, mas propunham para isso soluções ingênuas e incompletas, como a educação. Usando os óculos do realismo para chegar ao verdadeiro Brasil, proporcionava-se o mal estar da incômoda revelação da realidade nacional, que na passagem do século XIX para o XX, jogava no mercado de trabalho em formação os egressos da senzala, os caboclos nacionais e os imigrantes europeus, numa hierarquia de aceitação que associava o elemento branco estrangeiro como o motor da regeneração nacional (PESAVENTO, 1998, p. 28). Segundo Pesavento, Joaquim Nabuco e a geração que o seguiu, reconheciam a necessidade de colocar os negros e índios como agentes da civilização brasileira, mas, para 10 Joaquim Aurélio Barreto Nabuco de Araújo (Recife, 1849 – Washington, 1910). [...] Nabuco seguiu na política os ideais do pai [...] elegeu-se deputado, destacando-se no decênio de 80 como grande tribuno abolicionista (O Abolicionismo, 1883) [...] A ação de Nabuco fundava-se menos na rotina partidária que na paixão intelectual e ética das reformas: daí a emergência da sua figura humana [...] Como escritor é claro e vivo, lembrando de perto as fontes francesas que bebeu na mocidade [...] Não foi espírito original: há em Minha Formação (1898) não poucos lugares-comuns de cosmopolita e diletante, ainda preso a tipologias feitas como “o espírito inglês”, “a alma francesa”, “a democracia americana”, etc. Mas, sempre que volta à memória de infância, aos primeiros contatos com o negro [...] demonstra o pulso do memorialista capaz de dar à História a altura da “ressurreição do passado” que lhe preconizava Michelet. A proclamação da República não o demoveu dos ideais monarquistas, mas também não o impediu de servir ao país na qualidade de embaixador em Londres e em Washington, onde faleceu em 1910. (BOSI, 2006, p. 164). 101 isso, buscavam a regeneração destes pela educação, mais uma vez tendo como referência o homem branco europeu. Tania Franco Carvalhal, em “O próprio e o alheio no percurso literário brasileiro” analisou a polêmica entre Alencar e Nabuco. A autora apontou as críticas, por vezes ofensivas, de Nabuco, que dizia que Alencar construía uma brasilidade forçada, inexistente, e que era plagiador do romantismo europeu. Em contrapartida, Carvalhal expõe a réplica de Alencar, que acusava Nabuco de produzir sua literatura e viver sob os moldes franceses, causando, assim, um abrasileiramento. O texto crítico da autora elucida todo o impasse que envolvia os dois escritores, mostrando os limites da concepção de Alencar, que não conseguiu colocar o habitante brasileiro como agente do processo de construção do nacional. E, por outro lado, os limites da concepção de Nabuco, que não conseguiu perceber que a voz que estendia ao homem brasileiro era toda regulada pela “evolução” da sociedade imposta pelo colonialismo europeu. No entanto, a autora acaba se rendendo à estética da linguagem, do português falado no Brasil, apresentados na obra alencariana. A respeito disto, Carvalhal escreve: Assim, ao nacionalismo “máscara” ocasional Alencar contrapõe o sentimento patriótico, nativista, que expressaria, desde a literatura brasileira do período colonial, o apreço à terra, ao país. Associa, pois, nacionalismo e patriotismo, numa complementaridade que une também, no projeto de Alencar, a construção de uma língua nacional – o português falado no Brasil com características próprias e as representações multifacetadas da terra brasileira em suas variantes regionais, sendo estes elementos capazes de formar uma consciência unificada de nacionalidade ou, dito de outro modo, uma unidade aparente na diversidade real (CARVALHAL, 2006, p. 141). Partindo da discussão do próprio (brasileirismo de Alencar) e o alheio (europeísmo de Nabuco) e tentando chegar a uma síntese, expressada pela autora como exemplos nas obras de Mário de Andrade e no Quarup, de Antônio Callado, Carvalhal acaba tomando partido na polêmica a favor de Alencar. A autora se rende à estética verbal expressiva da obra de Alencar e deixa em segundo plano as questões ideológicas presentes na obra do autor, tais como: a posição dominante do homem branco em relação ao indígena, a submissão da mulher em relação ao homem, o exotismo na criação de personagens típicos do sertão, entre outros. Essa concepção acerca da obra de Alencar é bem próxima da concepção que aparece no último texto crítico da reedição, “Ierecê e Iracema do verismo etnográfico à magia verbal”, de Haroldo de Campos. Neste, o autor aborda a tentativa de Taunay de compor um índio com 102 características mais verossímeis que as anteriormente produzidas por Alencar por meio de sua vivência de viajante expedicionário. No entanto, Campos considera que “Ierecê a Guaná não resiste à comparação com Iracema em termos de realização estética” e acaba, também, se rendendo às questões estruturais do texto de Alencar, deixando de lado, mais uma vez, as questões ideológicas que aparecem tanto no conto de Taunay quanto na obra de Alencar. Das polêmicas que surgiram no século XIX envolvendo a obra de Alencar, pode-se perceber que o impasse não foi solucionado. Todas as tendências tiveram suas limitações, presas aos referenciais estéticos e éticos europeus. Para o Visconde de Taunay, ele próprio havia superado a obra de Alencar devido à construção da linguagem real do índio e a descrição verossímil do local em que vivem. Embora realmente exista este avanço, de tom científico, na obra de Taunay, tanto ele quanto os outros sertanistas e, também, Joaquim Nabuco, não puderam, talvez pelos padrões de criação literária brasileira da época, perceber que ainda estavam totalmente presos ao moralismo e à dominação europeia sobre o “outro”. O que se constata é que não há nenhum escritor que esteja realmente à frente do outro na tentativa de dar voz ao homem brasileiro na literatura do século XIX. A hipótese lançada por Sérgio Medeiros de colocar (por meio das comparações estabelecidas nas reedições e não pelo que se apresentava no panorama do século XIX) o Visconde como um escritor à frente de seu tempo é, no mínimo, conflituosa. Assim como as concepções de Tania Franco Carvalhal e de Haroldo de Campos em colocarem José de Alencar acima dos demais escritores por conta do seu padrão estético de escrita, e excluindo todo apagamento étnico/cultural que sua obra guarda, também o é, pois acabam encobrindo suas limitações em virtude do esteticismo europeu. Por fim, cabe ressaltar que Lúcia Sá, no texto da reedição de Ierecê a Guaná, estabelece uma mediação entre os escritores, colocando o conto de Taunay e o romance de Alencar, pareados em seu conteúdo e estética: Entretanto, o realismo de “Ierecê” é amoldado a um enredo que segue de perto vários clichês do indianismo romântico: a paixão sem freios da jovem índia, sua inocência infantil, sua profunda ligação com a natureza, e a morte por amor. Como explicar a combinação de elementos tão distintos? (SÁ, 2000, p. 139). E, mais adiante, a crítica conclui que: Por tudo isso, pode-se dizer que “Ierecê a Guaná” é um texto exemplar de um período de transição da narrativa brasileira. O realismo do protagonista, destinado a corrigir os excessos de Alencar, nunca chegam a incorporar o intenso amor romântico de Ierecê. A apaixonada índia, por sua vez, embora não ultrapasse o 103 papel de pobre criatura isolada e exótica, detém o título indiscutível de heroína que ainda pretende, ao que tudo indica, arrematar alguns românticos corações. Entre o anti-indianismo romântico exarcebado, o conto estabelece um diálogo sui-generis, cheio de amor e desamor com a obra de Alencar (SÁ, 2000, p. 142-143). Para Lúcia Sá, tanto o conto de Taunay quanto o romance de Alencar são importantes para o Romantismo brasileiro, sendo textos exemplares da criação literária do século XIX. E finaliza relatando que, entre a tentativa de reconstruir o indianismo sob o viés do sertanismo, o conto do Visconde de Taunay estabelece um diálogo sui-generis, ora aproximando, ora contrastando com a obra de Alencar. 104 4. O CÂNONE REVISITADO Das reedições de Sérgio Medeiros até aqui analisadas, pode-se concluir que elas perfazem um caminho conflituoso enquanto retorno ao passado e crítica no presente. A primeira, “Ierecê a Guaná”, era uma obra esquecida pela crítica e foi republicada de maneira muito distinta da forma original adotada por seu autor, o Visconde de Taunay. Esta era apenas uma narrativa curta inserida em uma obra com vários outros contos (Histórias brasileiras). Estes contos eram de caráter ficcional e não possuíam relação direta, ou explícita, com a vida de Taunay. Já na reedição de Medeiros, o conto retorna ao meio editorial com mais dois textos etnográficos de Taunay e quatro textos críticos, que estabelecem comparações entre o conto e a autobiografia Memórias. A segunda reedição, Memórias, constitui-se do relato autobiográfico do Visconde de Taunay, publicado postumamente, e a mando do autor para que só viesse a público cem anos após seu nascimento ou cinquenta anos após sua morte. A reedição possui apenas um pequeno texto de apresentação assinado pelo seu editor Sérgio Medeiros. No texto, o editor apenas mantém a relação dos aspectos da vida de Taunay com sua produção ficcional. Medeiros insere, na apresentação, Ierecê a Guaná entre as três obras clássicas de Taunay, mantendo a conexão com sua reedição anterior. Estes novos elementos, inseridos em obras produzidas há mais de um século, visam muito mais conservar os padrões daquela época, consagrando de maneira ideológica um autor que já fora consagrado pelo público leitor, do que estabelecer uma nova abordagem crítica que possibilite uma leitura de maior amplitude ao leitor do futuro. (Concluímos ainda nas reedições a necessidade de convencer o mercado editorial da importância das novas reedições, visando à aceitação e à permanência destas no mesmo mercado). As reedições retornam ao passado inserindo elementos que necessariamente não estavam ali presentes, pelo menos não da maneira como são reconstituídos. A essa repaginação daremos o nome de “mito fundador”. 4.1 O mito fundador Marilena Chauí, na obra Brasil: mito fundador e sociedade autoritária, elabora a teoria do mito fundador. Para a autora, na cultura brasileira, o mito não tem apenas o significado 105 etimológico grego de narração de feitos lendários, mas sim, um sentido antropológico que visa resolver impasses e contradições não solucionadas pela sociedade no nível da realidade. Nesta relação, ocorre a permanência de mitos criados no passado, que vão sendo repetidos ao longo da história e, assim, interferem no trabalho de diferenciação temporal e de compreensão do presente enquanto tal. (cf. CHAUÍ, 2000, p. 09). Mais adiante, Chauí diferencia o termo fundação do termo formação, visando categorizar mais precisamente o fenômeno do “mito fundador”. Primeiro, ela define a formação: Quando os historiadores falam em formação, referem-se não só às determinações econômicas, sociais e políticas que produzem um acontecimento histórico, mas também pensam em transformação e, portanto, na continuidade ou na descontinuidade dos acontecimentos, percebidos como processos temporais. Numa palavra, o registro da formação é a história propriamente dita, aí incluídas suas representações, sejam aquelas que conhecem o processo histórico, sejam as que o ocultam (isto é, as ideologias) (CHAUÍ, 2000, p. 09. Grifos da autora). Já a fundação, para Chauí, não faz esse jogo de idas e voltas pelo processo histórico. Para ela, a fundação se define da seguinte maneira: Diferentemente da formação, a fundação se refere a um momento passado imaginário que se mantém vivo e presente no curso do tempo, isto é, a fundação visa a algo tido como perene (quase eterno) que traveja e sustenta o curso temporal e lhe dá sentido. A fundação pretende situar-se além do tempo, fora da história, num presente que não cessa nunca sob a multiplicidade de formas ou aspectos que pode tomar (CHAUÍ, 2000, p. 10). O retorno ao passado estabelecido por Sérgio Medeiros possui as características da fundação, pois ao retornar à ficção de Taunay, o faz sem posicionamentos críticos quanto aos aspectos conservadores presentes nas obras. O editor eleva Taunay a um nível superior ao dos demais escritores do período, excluindo aspectos questionáveis de sua obra em detrimento de concepções ideológicas morais e conservadoras. Suas reedições aceitam e legitimam a dominação da mulher e dos indígenas sob o ponto de vista e o julgamento do homem, branco, europeu e letrado. Ocorre, então, a permanência do idealismo romântico em uma crítica feita à luz do século XXI, a ideologia e a estética literária do século XIX se repetem no presente como uma fundação inquestionável. O escritor português Vergílio Ferreira, num prefácio à segunda edição de sua obra Vagão J, e intitulado “O escritor e a sua obra”, escreve sobre os cuidados que um autor ou editor tem de ter ao reeditar uma obra: 106 [...] Grave problema este, o de uma reedição. Se o público não perdeu o contacto com uma obra, se ela foi sendo reeditada desde cedo, a fidelidade ao público que a sustentou obriga-nos particularmente a ser fiéis a nós próprios. Necessariamente mudamos, se não nos problemas ou interesses que nos absorvem, ao menos no modo como os perspectivamos [...] a tais valores reagimos. Mas porque o público fixou essa obra, porque ela existe em função do que nela o público elegeu, obviamente essa obra é mais do público do que nossa [...] Mas e uma obra que jamais se reeditou? (FERREIRA, 1995, p. 508). Para Vergílio Ferreira, é grave o problema de uma reedição. Se o escritor muda com o tempo, passa a ter novos valores, teria ele o direito de corrigir uma obra? Ao tomarmos, por exemplo, uma obra consagrada como Inocência a resposta é mais simples: se o público a elegeu da maneira como é, capaz de permanecer e se tornar um clássico, não existe a necessidade de mudá-la. Dessa forma, a obra é mais do público do que de seu próprio autor, pois é daquela maneira que os leitores se identificam com ela, mesmo que o próprio autor não mais o faça. E num caso como o do conto “Ierecê a Guaná”, que permaneceu mais de cem anos sem ser republicado? Talvez, aqui, a resposta seria favorável a uma repaginação. Talvez o autor pudesse alterar valores ou elementos estéticos e estruturais que fizessem o leitor nutrir maior apreço pela obra. Ou, deveria ele assumir de uma vez o fracasso dela? Talvez esperar o reconhecimento tardio do seu valor? No entanto, não é esse o caso presente. Outra pessoa, não o próprio autor da obra, e quase dois séculos depois, não pode alterar a composição de uma obra. Sem a autorização de Taunay, Medeiros insere novos elementos ao conto, o retira de sua sequência original, de sua obra original, e reedita a obra de uma maneira que seu autor não havia pensado. Caso o Taunay das Memórias tenha evoluído em relação ao que escreveu o conto, o que parece aceitável, seria válido Sérgio Medeiros colocar os elementos que o fizeram acreditar nisto em um relato crítico sobre tal perspectiva. Caberia, num segundo momento, o leitor concordar ou não. No entanto, Medeiros traz o Taunay das Memórias e propõe uma nova leitura do conto por meio de três vozes, a do narrador do conto ficcional, a do jovem Taunay dos textos etnográficos e a do maduro Taunay das Memórias. E a partir desta nova configuração, propõem justificar os autoritarismos presentes no conto. E se Taunay pretendesse que a personagem central do conto tivesse uma concepção de mundo contrária a sua própria? Além disso, a ficção pode também ser consagrada pelo público apenas por elementos estéticos de seu conteúdo, deixando de lado fatores externos a eles. Se o autor, fora da narração, for viajante, cientista ou, até mesmo, presidente da república, não confere uma garantia de aceitação e consagração da obra pelo público leitor. 107 Se Taunay evoluiu na concepção que tinha dos indígenas em sua fase madura, não será exatamente o que leremos em sua ficção sertanista. É a partir dos enredos que ali estão narrados que o leitor vai ter que se identificar com a obra, fazendo-a permanecer em seu tempo, ou ser esquecida por não mais os satisfazerem. Se Taunay tivesse vivido mais meio século, sua concepção de mundo provavelmente mudaria mais ainda, em meio aos avanços tecnológicos, políticos, econômicos e sociais, e sua obra ficcional ficaria ainda mais distante de sua ideologia. Este fato faria com que tivéssemos que compará-las ao que o autor pensava e fazia no final de sua vida? Podemos afirmar que não. A volta ao passado deve ser feita como um exercício crítico, trazendo reflexões para o presente, elucidando as novas abordagens históricas e as constatações dos “erros” anteriormente cometidos, visando uma possível redenção destes no futuro. Segundo Vergílio Ferreira, resta ao escritor aceitar os erros cometidos, refletir sobre o que o levou a ter aquela concepção de mundo no momento em que produziu a obra, buscando desta constatação a tal redenção de valores para o futuro: [...] O que muda para nós é sobretudo o desafio a que respondemos – e assim nossa própria resposta. Por mais que a pessoa que somos seja a nossa própria resposta. Por mais que a pessoa que somos seja a resposta a um desafio que ao nascermos nos foi lançado. Um livro é o registro do nosso diálogo com o mundo, ele não pode emendar-se com a juventude que erramos. Irremediável é já o passo que demos, a palavra que proferimos. O que apenas estará ao nosso alcance é esclarecermos o espírito que nos animou para entendermos à sua face essa palavra e esse gesto. E essa é a correção que aceito para o livro que já nos não é (FERREIRA, 1995, p. 509). Equívoco maior apresenta a reedição da obra mais consagrada do Visconde de Taunay: Inocência, de 1872. A obra foi reeditada, em 2006, pelo Instituto Histórico e Geográfico de Mato Grosso do Sul e dirigida por Hildebrando Campestrini, num volume todo comentado por notas de pé de página que, em sua totalidade, considera o romance como “símbolo do estado de Mato Grosso do Sul”. A reedição, denominada “romance histórico”, tenta, por intermédio dos valores concebidos por Taunay no século XIX, afirmar que aqueles elementos representam, em pleno século XXI, a cultura de Mato Grosso do Sul. Os comentários de Hildebrando Campestrini excluem várias concepções do romance, como a mulher submissa ao homem, o branco dominador dos sertanejos, o fato de estes não pensarem, falarem esquisito e todo o exotismo dado às características dos que habitavam o local. Tomando como pressupostos basicamente 108 as descrições das paisagens, vivenciadas por Taunay, e algumas descrições físicas do homem que habitava o estado no século XIX, Campestrini considera o romance “símbolo” do estado. Outro elemento importante que destacamos como equívoco da reedição de Campestrini estaria no fato de a obra já ser consagrada, e por de mais de um século, pelo público. Fato que demonstra não haver nenhuma necessidade do romance ser publicado de maneira distinta daquela escolhida como motivo de admiração pelos leitores. Há nesta nova reedição, talvez impulsionada pela abertura do mercado para o nome de Taunay, oriunda das duas reedições anteriores de Medeiros, intenções de atestar a cultura regional por meio de uma ideologia dominante, muitas vezes não explicada pela realidade, como aponta a teoria do mito fundador. Deste exercício de volta ao passado para a conservação de uma ideologia autoritária e conservadora, Marilena Chauí afirma: [...] A marca peculiar da fundação é a maneira como ela põe a transcendência e a imanência do momento fundador: a fundação aparece como emanando da sociedade (em nosso caso, da nação) e, simultaneamente, como engendrando essa própria sociedade (ou nação) da qual ela emana. É por isso que estamos nos referindo à fundação como mito. O mito fundador oferece um repertório inicial de representações da realidade e, em cada momento da formação histórica, esses elementos são reorganizados tanto do ponto de vista de sua hierarquia interna (isto é, qual o elemento principal que comanda os outros) como da ampliação de seu sentido (isto é, novos elementos vêm acrescentar ao significado primitivo). Assim, as ideologias, que necessariamente acompanham o movimento histórico da formação, alimentam-se das representações produzidas pela fundação, atualizando-as para adequá-las à nova quadra histórica. É exatamente por isso que, sob novas roupagens, o mito pode repetir-se indefinidamente. (CHAUÍ, 2000, p. 10). A reedição de Campestrini nos traz a marca peculiar da fundação, como aponta Chauí, a transcendência e a imanência. Há, na reedição, a tentativa de fazer a obra transcender o tempo, estar situada além dos valores da época, como é característico do símbolo. Mas há, também, uma imanência, ou seja, a permanência de valores autoritários e conservadores, baseados no patriarcalismo e na ideologia da classe dominante. Desta maneira, o mito fundador é re-configurado a partir do seu elemento interno, no caso o romance, e da ampliação do seu sentido, no caso as anotações introduzidas nele por Campestrini. É da relação entre estes elementos que a fundação se atualiza à nova marcha da história, podendo o mito fundador repetir-se indefinidamente, sob novas roupagens. 109 Com o advento da reedição de Inocência, como “romance símbolo de Mato Grosso do Sul”, a ficção passa a ser útil para a continuidade da dominação ideológica imposta pelo estado. Como próximo ponto de análise, analisaremos como a ideologia pode ocultar significados e manter um mito fundador desta espécie em uma cultura. Num segundo momento delinearemos um panorama do sentido autoritário provocado pelo símbolo por meio de uma relação cultural. Como fechamento da proposta, procuraremos discutir o papel de uma leitura da ficção do passado no presente, visando entender os limites e possibilidades desta leitura para uma redenção de valores no futuro. 4.2 Da ficção à ideologia: símbolo e alegoria nas reedições O romance Inocência completa cento e trinta e oito anos em 2010. Neste percurso histórico foi sempre aclamado pelo público e pelo meio editorial, atingindo várias reedições. Após tornar-se obra de domínio público passou a ser ainda mais comercializada, tratada como um clássico literário brasileiro, e sendo reeditada em coleções de bolso com baixo custo para o leitor, além de ser estudada em colégios públicos, particulares, exames vestibulares e nos meios universitários. Já a nova edição do Instituto Histórico e Geográfico de Mato Grosso do Sul, dirigida por Hildebrando Campestrini, vai de encontro a tais ocorrências históricas. No site do instituto estadual, a obra é tratada por “nosso romance”, o “romance símbolo de MS” e o trabalho do editor como original e incomparável: [...] Trabalho original A edição anotada de Inocência, publicada em 1872 é trabalho original. Além da riqueza de informações, mostra como Taunay criou o romance. É possivelmente, o primeiro trabalho, neste gênero, publicado no país. Notas e referencial O prof. Campestrini refez o roteiro de Taunay pelo Bolsão Sul-MatoGrossense e pesquisou toda a obra do autor. Concluiu que o romance é todo ambientado e inspirado no sertão de Santana, região de Mato Grosso do Sul a leste do rio Sucuriú. Na edição, o leitor encontrará toda as informações sobre em quem se inspirou o autor para criar cada personagem e a localização dos ambientes, com fotos, mapas e ilustrações. Obra incomparável 110 Segundo F. Leal de Queiroz, ex-presidente da Academia Sul-Mato-Grossense de Letras, a edição de Inocência, promovida pelo Instituto, é a mais rica de todas as que foram feitas até hoje. [...] Memorial de Inocência O Instituto Histórico e Geográfico de Mato Grosso do Sul, com parceria da prefeitura municipal de Paranaíba, na pessoa de seu prefeito, Manuel Olívio, e com a colaboração do Rotary Club e da população da cidade iniciou a construção do Memorial de Inocência, para resgatar e perenizar a imagem símbolo de Mato Grosso do Sul, principalmente da mulher de nossa terra. [...] O livro Do romance Inocência, anotado, foram impressos, em edição de luxo, com estojo, somente mil exemplares, numerados e rubricados, tornando-se uma verdadeira edição histórica (CAMPESTRINI, 2007)11. A descrição do lançamento de Inocência como “romance símbolo de Mato Grosso do Sul” é produzida no site em um formato de propaganda, com intenções de vangloriar o trabalho realizado e vender os mil exemplares fabricados. A primeira descrição da proposta da edição simbólica demonstra um desconhecimento do que tem sido produzido pelos pesquisadores de literatura no país, ou se trata apenas uma estratégia para convencer o leitor que não conhece tais pesquisas. O trabalho de perfazer o caminho da produção de uma obra ou de seu escritor e fornecer grande número de informações para o leitor foi realizado durante todo o século XX pela crítica literária, tanto em referência a Taunay quanto aos demais escritores considerados importantes. Dessa forma, só seria inédito, neste caso, a republicação do romance em exemplar de luxo e nomeado como “símbolo do estado”. As informações a respeito da vivência e descrições verossímeis do autor já haviam sido evidenciadas pela crítica há mais de um século, como vimos na primeira parte desta dissertação. A reedição é considerada incomparável, isso por um ex-presidente do mesmo órgão que a está lançando, não tendo o aval de um grande crítico literário brasileiro e nem mesmo das universidades do estado, que não compraram a proposta como referência para os estudos acerca da obra e do autor, já estudadas nestas instituições há décadas. No entanto, o instituto conseguiu o apoio e a parceria da prefeitura de Paranaíba e de um órgão da cidade para a 11 Site do Instituto Histórico e Geográfico de Mato Grosso do Sul. Inocência: o nosso romance. Disponível em: http://www.ihgms.com.br/artigos/artigos_materia.asp?ID=14 Acesso em: 01/07/2010. 111 construção de um memorial da Inocência, o que tem como objetivo permear a imagem da personagem homônima da obra como símbolo do estado. Outra disparidade entre a nova edição e as anteriormente produzidas se refere ao valor no mercado. As reedições de domínio público são encontramos em diversos catálogos do país com preço acessível aos leitores, já a obra “símbolo de Mato Grosso do Sul” é vendida em edição de luxo, com estojo e num lote de mil exemplares, que custam de dez a quinze vezes acima do valor das coleções de bolso. A proposta de Campestrini e do IHG/MS é a de elevar a obra literária da popularidade ao requinte luxuoso, transformar a simplicidade em algo rico, simbólico, inquestionável e atemporal. Para tanto, a reedição insere elementos na obra original, remontando o passado de dominação do homem branco sobre a mulher, configurando um mito fundador. Nesta proposta a ficção é transformada em ideologia. Para Marilena Chauí, em O que é ideologia, o retorno ao passado deve ser feito levando em consideração os limites do próprio passado e da leitura que está sendo feita no presente. A constituição de uma ideia, teoria ou proposta de análise não pode ser feita como independentes da realidade histórica e social e também não podem ser consideradas verdadeiras para todas as épocas, como ocorre na construção de um símbolo: Em outras palavras, uma teoria exprime, por meio de idéias, uma realidade social e histórica determinada, e o pensador pode ou não estar consciente disso. Quando sabe que suas idéias estão enraizadas na história, pode esperar que elas ajudem a compreender a realidade de onde surgiram. Quando, porém, não percebe a raiz histórica de suas idéias e imagina que elas serão verdadeiras para todos os tempos e todos os lugares, corre o risco de estar, simplesmente, produzindo uma ideologia. De fato, um dos traços fundamentais da ideologia consiste, justamente, em tornar as idéias como independentes da realidade histórica e social, quando na verdade é essa realidade que torna compreensíveis as idéias elaboradas e a capacidade ou não que elas possuem para explicar a realidade que as provocou (CHAUÍ, 2009, p. 13-14). Foi a realidade histórica que permitiu que a concretização de Inocência fosse possível, e é a capacidade que a obra possui em sua realização estética que exprime a realidade que a provocou. Na reedição de Campestrini o romance é tratado como símbolo do estado em pleno século XXI, muito distante da realidade histórica que o gerou. Apartado desta raiz histórica e lançando uma proposta simbólica, que visa ser verdadeira para todos os tempos, o editor acaba por produzir uma ideologia. Marilena Chauí define a ideologia da seguinte maneira: 112 A ideologia é um conjunto lógico, sistemático e coerente de representações (idéias e valores) e de normas ou regras (de conduta) que indicam e prescrevem aos membros da sociedade o que devem pensar e como devem pensar, o que devem valorizar e como devem valorizar, o que devem sentir e como devem sentir, o que devem fazer e como devem fazer. Ela é, portanto, um corpo explicativo (representações) e prático (normas, regras, preceitos) de caráter prescritivo, normativo, regulador, cuja função é dar aos membros de uma sociedade dividida em classes uma explicação racional para as diferenças sociais, políticas e culturais, sem jamais atribuir tais diferenças à divisão da sociedade em classes a partir das divisões na esfera de produção. Pelo contrário, a função da ideologia é a de apagar as diferenças como de classe e fornecer aos membros da sociedade o sentimento de identidade social, encontrando certos referenciais identificadores de todos e para todos, como, por exemplo, a Humanidade, a Liberdade, a Igualdade, a Nação, ou o Estado (CHAUÍ, 2009, p. 113-114). Em nosso objeto de estudo, a ideologia é formada como algo prescrito sobre o que as pessoas devem valorizar e a maneira como devem valorizar, ou seja, a representação da figura feminina de Inocência como símbolo da mulher sul-mato-grossense por meio da edição histórica de luxo, editada por Campestrini. A proposta da edição produzida pela classe que possui o poder, Instituto Histórico e Geográfico e até mesmo prefeito e membros da prefeitura e de órgãos legisladores do estado, procura fornecer à sociedade o sentimento de identidade social. Assim, a mulher pobre, romântica, ingênua, inocente, honesta, obediente e de um amor puro e idealizado é tratada como símbolo de “todas” a mulheres do estado em “todos” os tempos, ocorrendo a criação de uma identidade simbólica social. Como vimos na teoria do mito fundador de Chauí, o símbolo é algo que leva à imposição e à aceitação do atemporal na sociedade. Diferentemente desta concepção temos a categoria da alegoria e/ou do típico. O símbolo preexiste à obra ficcional e não pode ser resultante dela. Assim, para a sociedade, o branco é o símbolo da paz, a cruz o símbolo do cristianismo, o leão representa majestade e coragem, e tais elementos vão permanecendo como atemporais, possuidores de significação real ao longo de vários séculos e em várias sociedades. Umberto Eco, em “As personagens: uso prático da personagem”, diferencia o símbolo da tipicidade, o que, muitas vezes, gera uma personagem: O símbolo, além disso, diferencia-se do tipo porque pode muito bem preexistir à obra como elemento de um repertório mitológico, antropológico, heráldico, mágico. Pode preexistir como tópico literário na origem e agora achatado pela convenção, como situação cotidiana que a literatura tornou tópica e prenhe de possibilidades alusivas (a viagem, o sonho, a noite, a mãe), pode existir como ‘idéia arquétipa’, manifestações do inconsciente coletivo de que nos fala Jung (exemplo: a fecundidade como feminilidade, Gea, Cibele, a deusa-mãe e o eterno feminino em várias religiões). O tipo, ao contrário, nunca preexiste à obra, mas constitui o que dela resulta. Nada impede que o tipo, como resultado, se torne popular e se achate em tópico de repertório (o acontecimento ‘odisséico’, a ‘perpétua’). E ao contrário, 113 freqüentemente acontece que um tópico, um símbolo muito comerciado e de pesada tradição histórica, entrando numa nova obra, se encarne tão bem numa personagem, que se resolva em tipo individualíssimo, não obstante suas originais atribuições simbólicas (ECO, 2006, p. 227). Da leitura de Eco entendemos que o símbolo é algo que preexiste à obra, assim como nos exemplos citados do branco, da cruz, do leão; geralmente o símbolo se origina do imaginário mítico (mitologia grega, cristianismo ou bíblia, antropologia, criação popular de mitos, folclore, etc.). As características que Taunay insere na personagem Inocência não preexistiam à obra e ao local de Mato Grosso do Sul e nem foram produzidas para tornarem símbolo do estado. O que permanece em uma obra que ultrapassa séculos, recebe novas leituras e estudos é o tipo, seja de personagens, narradores, estilos e concepções políticas, culturais e sociais. Nesta perspectiva, o termo dantesco surgiu do impacto da Divina comédia e do nome de seu autor Dante Alighieri, acaciano representa um discurso vazio, enfeitado e pomposo, mas sem conteúdo, oriundo da personagem Conselheiro Acácio da obra O primo Basílio, de Eça de Queirós, para citar alguns exemplos. Da permanência do romance Inocência pode até surgir na sociedade o uso do vocábulo para adjetivar ações e características de pessoas que remetem à personagem, mas isto não passaria de um tipo de ilustração, um tipo de releitura. O símbolo induz ao atemporal, a crenças e valores que constroem uma sociedade ao longo de séculos. O filósofo Walter Benjamin, em sua tese sobre o drama barroco, Origem do drama barroco alemão, realizou uma abordagem esquemática para a relação entre o símbolo e a alegoria que são válidas para a leitura literária em geral. O autor recorre à noção de tempo, que se apresenta em face histórica como uma caveira, o sentido da morte, do sofrimento, não apresenta “nenhuma liberdade simbólica de expressão, nenhuma harmonia clássica da forma, em suma, nada de humano”, e afirma que é através disso que a história “exprime, não somente a existência humana em geral, mas, de modo altamente expressivo, e sob a forma de um enigma, a história biográfica de um indivíduo” (1984, p. 188). Nesta perspectiva, Benjamin concebe o fundamento básico da alegoria: a significação e a sua relação com sujeição à morte, destacando que a natureza sempre esteve sujeita à morte e, portanto, sempre foi alegórica, pois “a significação e a morte amadureceram juntas no curso do desenvolvimento histórico” (1984, p. 188). Benjamin elabora uma perspectiva dialética “incontornável” na evocação do drama barroco, profere contra o mundo profano um veredito devastador, no qual esse mundo é 114 exaltado e desvalorizado simultaneamente, pois a alegoria é convenção e expressão e ambas são antagônicas: A alegoria do século XVII não é convenção da expressão, mas expressão da convenção. Por isso era a expressão da autoridade, secreta em vista da dignidade de sua origem, pública em vista de sua esfera de validade. [...] A escrita alfabética, enquanto combinação de átomos gráficos, está mais afastada que qualquer outra dessa escrita sagrada. É nos hieróglifos que esta se manifesta. O desejo de assegurar o caráter sagrado da escrita [...] impele essa escrita a complexos de sinais, a hieróglifos. É o que se passa com o Barroco. [...] Tanto no romantismo como no Barroco, não se trata tanto de corrigir o classicismo, como de corrigir a própria arte. [...] Na esfera da intenção alegórica, a imagem é fragmento, ruína. Sua beleza simbólica se evapora, quando tocada pelo clarão do saber divino. O falso brilho da totalidade se extingue. Pois o eidos se apaga, o símile se dissolve, o cosmo interior se resseca. Nos rebus áridos, que ficam, existe uma intuição, ainda acessível ao meditativo, por confuso que ele seja. Por sua própria essência, era vedado ao classicismo perceber na physis bela e sensual o que ela continha de heterônomo, incompleto e despedaçado. Mas são justamente essas características ocultas sob sua forma extravagante que a alegoria barroca proclama, com uma ênfase até então desconhecida. (BENJAMIN, 1984, p.197-198). Assim como a escrita alfabética afasta-se da escrita hieroglífica, distanciando-se do sagrado pela convenção da expressão, a leitura barroca, ou romântica no nosso caso, afasta-se do sagrado simbólico. Os símbolos mitológicos, românicos, cristãos, pagãos ou simplesmente clássicos rompem-se diante da correção que as novas escolas literárias fazem acerca de sua própria arte. Da leitura simbólica surge a intenção alegórica, onde a imagem é fragmento, ruína e onde o falso brilho da totalidade simbólica se esvai. No romantismo, ou no sertanismo romântico brasileiro, ou mais especificamente em Inocência, de Visconde de Taunay, a literatura é produzida em uma perspectiva histórica. Ocorre a relação com a verossimilhança e a sujeição à morte alegórica, há uma ruptura com o sagrado, idealizado e atemporal, para a construção de uma leitura científica/histórica, como objetivava o escritor viajante e etnográfico. Para Benjamin, ruína e história se fundem sensorialmente com o cenário. O que se origina da história é a visão que temos de um amontoado de ruínas que cresce aos nossos pés à medida que o tempo contínuo se estabelece. “Sob esta forma a história não constitui um processo de vida eterna, mas de inevitável declínio. Com isso, a alegoria reconhece estar além do belo. As alegorias são no reino do pensamento o que são as ruínas no reino das coisas” (1984, p. 199-200). Tomando por base a perspectiva benjaminiana, entendemos que a história moderna e a representatividade literária não podem ser lidas como simbólicas, como ocorre na proposta do 115 IHG/MS em Inocência. A construção histórica do romance representa um momento de ruína que é lida alegoricamente em outro momento histórico sob outras perspectivas fragmentadas e não como um processo eterno e atemporal. Para Benjamin, é o que jaz em ruínas, o fragmento significativo, o estilhaço, o que há de mais nobre na criação barroca, ou na leitura alegórica (cf. BENJAMIN, 1984, p. 200), havendo nessa leitura uma conciliação entre duas perspectivas, arte e milagre, ou arte como milagre: A atitude experimental dos poetas barrocos assemelha-se à prática dos adeptos. O que a Antiguidade lhes legou são os elementos, com os quais, um a um, mesclam o novo todo. Ou antes, não há mescla, mas construção. Pois a visão perfeita desse “novo” era a ruína. [...] Essa literatura deveria chamar-se ars inveniendi. A noção do homem genial [...] foi a de um homem capaz de manipular modelos soberanamente. A “imaginação”, a faculdade criadora do novo, era desconhecida como critério para hierarquizar os espíritos. [...] O poeta não pode esconder sua atividade combinatória, pois não é tanto o todo que ele visa em seus efeitos, como o fato é que esse todo foi por ele construído, de modo plenamente visível. As obras típicas do Barroco não conseguem recobrir o conteúdo com uma forma adequada. Sua ambição, mesmo nas formas poéticas menores, é sufocante. [...] A obra de arte barroca quer unicamente durar, e prende-se com todas as forças ao eterno. Só assim podemos compreender a doçura libertadora com que as primeiras Tändeleyn (bagatelas, frivolidades) do século seguinte seduziam o leitor (BENJAMIN, 1984, p.200-202). O escritor moderno parte do desconhecido, ou do novo, para romper com o que a Antiguidade lhe legou, e este novo é a ruína. A arte barroca tinha como ambição durar, prender-se ao eterno. As formas literárias que surgiram no século seguinte aparecem como libertadoras desta ambição, como ocorre no romantismo. Partindo desta concepção alegórica e retornando para a leitura simbólica do IHG/MS em Inocência, atentemos para a possibilidade da permanência da personagem como típica. Mesmo quando fluem para o típico, as personagens românticas possuem uma integridade estética pertencente ao conjunto da obra, é sobre isso que adverte Umberto Eco: A personagem não se torna típica por encarnar uma categoria sociológica e psicológica, geral e abstrata. Os Buddenbrook não são típicos por generalizarem numa contradição eficaz todas as análises possíveis sobre um dado tipo de burguesia mercantil, num dado momento histórico. Todavia, o sociólogo e o psicólogo podem muito bem esclarecer a própria análise recorrendo à personagem ou à situação típica. Esse emprego pode restringir-se à mutação de uma figura num processo de achatamento e convencionalização, com o ‘complexo de Édipo’; mas, outras vezes, pode ocorrer o recurso esteticamente vivaz, e nesse caso o cientista recorre ao tipo como uma metáfora, com toda a esteticidade de discurso que o emprego de uma metáfora inusitada comporta. Outras vezes, ainda, o recurso ao típico, para usos teóricos, tem a mesma intensidade emotiva que acompanha o recurso ao típico, no ápice de uma experiência pessoal nossa: pensemos no uso que Kierkegaard faz da figura de Dom Juan. 116 Em todos esses casos, ainda que depois o tipo se transforme em categoria geral, no momento do recurso subsiste um respeito à integridade estética da personagem, sentida e fruída como tal (ECO, 2006, p. 227-228). As personagens podem vir a ser utilizadas por sociólogos, psicólogos como exemplos típicos, por vezes achatadas em modelos de convenção, outras vezes como metáforas que se adéquam como ilustração à teoria por eles desenvolvida. Mas em todos esses casos, isto não significa uma mudança de significação da personagem original. Ela continuará funcionando na obra dentro do seu limite ficcional, existindo em uma integridade estética. Se a utilização da personagem como típica ou metafórica deve guardar tal respeito estético, a leitura simbólica se torna mais contundentemente autoritária, pois induz a uma leitura social e cultural atemporal. A edição do IHG/MS propõe a leitura de uma personagem ficcional, ingênua, dominada pelo homem, de um amor puro e idealizado que culmina numa trágica morte romântica por amor, oriunda da submissão tradicional à figura do pai (homem), como símbolos da mulher sul-mato-grossense. São deixadas de lado questões como o limite ficcional da personagem na obra, ou sua integridade estética, em prol da imposição de valores culturais propostos por órgãos estaduais numa edição de luxo, que visam à fundação de um patrimônio memorial simbólico e à criação de uma identidade social: a ficção transformada em ideologia. Resta aos pesquisadores da obra de Taunay combater, ou manter outra versão dos fatos, aquilo que está sendo imposto pelas novas pesquisas acerca do autor. Estes estudos obtiveram considerável evidência e proporcionaram novas estratégias na entrada do século XXI no meio editorial brasileiro. É inegável que a construção de um memorial da Inocência, sob o aval de importantes políticos locais e o lançamento de uma obra de luxo acarretará em algum impacto na sociedade, que por muitas vezes poderá acatar como “verdadeira” esta versão em detrimento daquela produzida por pesquisadores universitários e críticos literários. Desta outra versão dos fatos, ou do combate à criação simbólica surge o que Marilena Chauí denomina crítica da ideologia: Quem e o que pode desmantelar a ideologia? Somente uma prática política nascida dos explorados e dominados e dirigida por eles próprios. Para essa prática política é de grande importância o que chamamos de crítica da ideologia, que consiste em preencher as lacunas e os silêncios do pensamento e discurso ideológicos, obrigando-os a dizer tudo que não está dito, pois dessa maneira lógica da ideologia se desfaz e se desmancha, deixando ver o que está escondido e assegurava a exploração econômica, a desigualdade social, a dominação política e a exclusão cultural (CHAUÍ, 2009, p. 123). 117 Acreditamos que a crítica da ideologia não necessita apenas de surgir da prática política nascida dos explorados e dominados. Os que são detentores de conhecimentos e de ferramentas para o embate, como os universitários e pesquisadores, e que pertencem a uma classe da elite do saber, podem preencher estas lacunas e estes silêncios do pensamento e do discurso ideológico, o que já ocorre há algum tempo em pesquisas modernas e engajadas. Do apagamento étnico/cultural oriundo das reedições das obras de Taunay no século XXI, proporemos uma leitura a partir do conceito de história das ruínas, em uma concepção distinta de progresso, contraposta à criação ideológica do poder. 4.3 Sobre o conceito da história nas reedições Partindo das concepções benjaminianas da experiência como pobreza e da história como um amontoado de ruínas chegamos à leitura do passado no presente, visando uma redenção no futuro. Em “Sobre o conceito da história”, de 1940, Benjamin constrói esta teoria, entendendo que somente em uma humanidade verdadeiramente redimida o passado se torna citável: O cronista que narra os acontecimentos, sem distinguir entre os grandes e os pequenos, leva em conta a verdade de que nada do que um dia aconteceu pode ser considerado perdido para a história. Sem dúvida, somente a humanidade redimida poderá apropriar-se totalmente do seu passado. Isso quer dizer: somente para a humanidade redimida o passado é citável, em cada um dos seus momentos. Cada momento vivido transforma-se numa citation à l’ordre du jour – e esse dia é justamente o do juízo final (BENJAMIN, 1994, p. 223). O historiador ou cronista, o que vale em nosso caso para os editores, sabe que nada do que aconteceu é considerado perdido para a história. Num retorno ao passado, no caso das obras literárias de Taunay, cabe considerarmos os limites impostos pela realidade histórica e a leitura que se faz desta no presente. No caso de Medeiros, há uma tentativa de justificar os apagamentos étnicos e culturais das obras literárias de Taunay por intermédio da vivência do escritor, descrita em suas Memórias, sobretudo em sua fase final, denominada pelo editor de fase madura. Já no caso de Campestrini ocorre a leitura deste mesmo passado, ou momento histórico, como uma proposta de consolidação de um símbolo, ou da construção de uma 118 identidade social no presente. Em nenhuma das propostas ocorre um questionamento dos limites deste passado pela leitura no presente, visando uma redenção no futuro. Leituras tradicionais do passado como estas remetem a uma falsa construção do futuro pela perspectiva do progresso. Este, não atinge a humanidade como um todo e representa a continuidade da ideologia imposta pela classe dominante. Para Marilena Chauí, é desta maneira que tal classe justifica o apagamento de culturas e etnias consideradas não civilizadas, alegando que por meio da imposição de sua ideologia sobre as demais classes estarão inserindo-as no caminho do progresso: [...] a ideologia burguesa (em qualquer de suas formulações) tem o culto da história entendida como progresso. Para a ideologia burguesa, toda a história é o progresso das nações, dos estados, das ciências, das artes, das técnicas. É que o historiador burguês aceita a imagem progressista que a burguesia considera um progresso seu modo de dominar a Natureza e de dominar os outros homens. Com esse culto do progresso, a burguesia e seus ideólogos justificam o direito do capitalismo de colonizar os povos ditos ‘primitivos’ ou ‘atrasados’ para que se beneficiem dos ‘progressos da civilização’ (CHAUÍ, 2009, p. 120). Diante da tradição dos oprimidos e da tradição da ideologia do progresso, Walter Benjamin propõe a construção de outro conceito de história, o que levará a constatação de um assombro insustentável perante a continuidade histórica: A tradição dos oprimidos nos ensina que o ‘estado de exceção’ em que vivemos é na verdade a regra geral. Precisamos construir um conceito de história que corresponda a essa verdade. Nesse momento, perceberemos que nossa tarefa é originar um verdadeiro estado de exceção; com isso, nossa posição ficará mais forte na luta contra o fascismo. Este se beneficia da circunstância de que seus adversários o enfrentam em nome do progresso, considerando como uma norma histórica. O assombro com o fato de que os episódios que vivemos no século XX ‘ainda’ sejam possíveis, não é um assombro filosófico. Ele não gera nenhum conhecimento, a não ser o conhecimento de que a concepção de história da qual emana semelhante assombro é insustentável (BENJAMIN, 1994, p. 226). Theodor Adorno, pertencente ao mesmo movimento filosófico de Benjamin, denominado Escola de Frankfurt, em um ensaio intitulado “Progresso”, releu a teoria do conceito histórico em relação ao progresso. Para Adorno, a conceituação de progresso vai muito além da definição do que progride e do que não progride, assim como também vai muito além do que uma dada época busca descobrir de maneira utópica e destrutiva, ou seja, se há progresso: “Seu uso pedante defrauda apenas naquilo que promete: resposta à dúvida e 119 esperança de que finalmente as coisas melhorem, de que, enfim, as pessoas possam tomar alento” (cf. ADORNO, 1995, p. 37-38). Assim como Benjamin evoca o assombro de que episódios catastróficos ainda se repitam em pleno século XX, Adorno também questiona tal continuidade diante do chamado progresso. Para o filósofo o homem evoluiu do estilingue à bomba atômica, mas diante do “nível alcançado pelas forças produtivas técnicas, ninguém mais deveria padecer de fome sobre a face da terra”, o que ainda não cessou: “Exclusivamente sobre isso recai a possibilidade de progresso, a possibilidade de afastar a catástrofe extrema, total” (cf. ADORNO, 1995, p. 38). De volta às teses de “Sobre o conceito da história”, de Walter Benjamin, vislumbramos o passado como um amontoado de ruínas que culminam para uma catástrofe única, total: Há um quadro de Klee que se chama Angelus Novus. Representa um anjo que parece querer afastar-se de algo que ele encara fixamente. Seus olhos estão escancarados, sua boca dilatada, suas asas abertas. O anjo da história deve ter esse aspecto. Seu rosto está dirigido para o passado. Onde nós vemos uma cadeia de acontecimentos, ele vê uma catástrofe única, que acumula incansavelmente ruína sobre ruína e as dispersa a nossos pés. Ele gostaria de deter-se para acordar os mortos e juntar os fragmentos. Mas uma tempestade sopra do paraíso e prende-se em suas asas com tanta força que ele não pode mais fechá-las. Essa tempestade o impele irresistivelmente para o futuro, ao qual ele vira as costas, enquanto o amontoado de ruínas cresce até o céu. Essa tempestade é o que chamamos progresso (BENJAMIN, 1994, p. 226). A figura do anjo pintada por Klee é lida por Benjamin como alguém que encara o passado de maneira perplexa, onde normalmente veríamos uma cadeia de acontecimentos ele vê uma catástrofe única. Ele, no presente, gostaria de consertar as catástrofes do contínuo, mas o progresso o arrasta irresistivelmente para o futuro e o impede de exercer a redenção. Para Adorno o progresso acaba por existir somente em nível técnico e, à medida que ele avança a humanidade não progride da mesma maneira. Mesmo que muitos dos avanços tecnológicos beneficiaram a humanidade ao longo dos séculos, estes acabam por servir para manter o domínio ideológico da classe dominante sob a promessa e o espetáculo da ciência, que hipnotiza e anestesia o homem. É possível, nesse sentido, considerarmos a existência do progresso da técnica e não considerarmos a existência de fato do progresso da humanidade, que não alcança a igualdade social, econômica e cultural. Das premissas benjaminianas, Adorno conclui: 120 [...] Por menos, contudo, que a humanidade enquanto tal avance conforme a fórmula publicitária do sempre-melhor-e-melhor, tampouco existe uma idéia de progresso sem a de humanidade; a passagem de Benjamin poderia então entenderse mais como uma crítica aos social-democratas por terem confundido o progresso de habilidades e conhecimentos com o da humanidade, do que a intenção de erradicar este último da reflexão filosófica. [...] o progresso seria a geração da humanidade, perspectiva que se abre pela via da extinção. Segue-se disso, como também ensina Benjamin, que o conceito de história universal é irrecuperável; ele só se manteria na medida em que fosse confiável a ilusão de uma humanidade já existente, internamente harmônica e em movimento ascendente uniforme. Quando a humanidade fica confinada pela totalidade que ela mesma configura, então não existiu no dizer de Kafka, nenhum progresso, já que, ao mesmo tempo, somente a totalidade permite pensá-lo. [...] Se ela se tornasse uma totalidade que não contivesse em si mesma mais nenhum princípio limitador, seria, simultaneamente, uma totalidade livre de coação que submete todos os seus membros a tal princípio e já não mais seria nenhuma totalidade: nenhuma unidade forçada (ADORNO, 1995, p. 40). Para que a humanidade chegue de fato a progredir será necessário sair do encantamento, tomar consciência da dominação que exerce sobre a natureza e do autoritarismo exercido entre as classes sociais; em outras palavras, como afirma Adorno, “poder-se ia dizer que o progresso acontece ali onde ele termina” (1995, p. 47). A humanidade precisa encontrar meios para evitar que catástrofes se repitam no futuro. No entanto, estas ocorrem no contínuo da história há séculos e retornam em construções ideológicas, seja por meio das imposições simbólicas, fundadoras ou progressistas, como exposto até aqui. A leitura do sertanismo romântico, ou mais especificamente das obras do Visconde de Taunay, devem ser feitas levando em consideração a época em que foram produzidas, os seus limites estéticos, históricos e as ruínas do passado. Nesta concepção de leitura acreditamos que uma obra que estava em plena transição entre os idealismos românticos e as descrições realistas não pode ser considerada símbolo do estado e da mulher do século XXI. Se a personagem representa o típico de uma literatura ou de um momento histórico do país e, por consequência, do estado de Mato Grosso do Sul, não é motivo (e nem deve ser) para ser concluída como modelo simbólico e atemporal de uma cultura. Reconhecermos o valor literário e todos os aspectos positivos presentes nas descrições produzidas por meio dos conhecimentos do local vivenciados pelo escritor viajante, Visconde de Taunay, são necessários e evidentes. No entanto, tais características não justificam a imposição de uma identidade social baseada em concepções e/ou ideologias ultrapassadas de quase dois séculos atrás. A leitura de Inocência como “romance símbolo da mulher e da cultura de Mato Grosso do Sul” serve para perdurar a ideologia de uma classe dominante política e masculina, distante 121 do que é vivido pela classe popular e pela mulher. A construção do memorial da Inocência e a produção do exemplar de luxo do romance símbolo mantêm, no contínuo da história, o passado no presente e quiçá no futuro, atestam a mulher, o sertanejo e o indígena que não pensam, que possuem características exóticas e que são dominados pelo colonizador ou pelo homem letrado da capital como símbolos da cultura de Mato Grosso do Sul em pleno alvorecer do século XXI. 122 CONSIDERAÇÕES FINAIS Em suma, entendemos que a obra de Alfredo d’Escragnolle Taunay, o Visconde de Taunay, foi, é, e continuará sendo, de grande importância para a literatura brasileira. Se o autor foi estudado pela crítica ao longo de todo o século XX, parece-nos que continuará sendo alvo de pesquisas no novo século que se inicia. Se basicamente foi mencionado pela crítica canônica pela produção de Inocência e A retirada da Laguna, também nos parecem válidas as novas incursões críticas que se debruçam acerca de outras obras significativas do autor. Novos olhares críticos sob a luz de novos conceitos teóricos podem fornecer aos estudos literários um panorama mais conscientemente político e cultural da produção literária do século XIX e de todas as transformações que surgiram na transição do Romantismo para o Realismo, do nacionalismo para o naturalismo, do Império para a República e todas as demais reformas que se instauraram. O objetivo desta dissertação foi o de fornecer um estudo comparativo entre as novas reedições de obras não canônicas do Visconde de Taunay, que surgiram na virada deste novo século, com a crítica do século passado e seus conceitos sobre o autor. Desta maneira, cabe ressaltar que acreditamos na existência de alguns “avanços” na obra de Taunay em relação às obras românticas indianistas. No entanto, também entendemos que a observação e o conhecimento do local descrito, característico dos sertanistas, culminaram numa fusão de “arquétipos românticos e observação realista”, como apontou João Luis Lafetá. Ou, nos dizeres de Antonio Candido, “o sertanismo nada traz de novo enquanto tema, traz contribuições no tocante à fidelidade da observação, o que não significa melhoria de nível”. Ou, ainda o que relata Massaud Moisés, mais especificamente sobre o Visconde de Taunay, “suas personagens arquétipicas são delimitadas desde o começo, sempre planas”. Diante da relação entre o que foi dito por renomados críticos literários brasileiros e os objetivos das novas reedições de Taunay, percebemos um embate teórico. Tomamos partido aqui pelo posicionamento do Visconde de Taunay como um importante escritor brasileiro do século XIX, que merece continuar sendo pesquisado pela crítica, principalmente com novas abordagens históricas e críticas e acerca de suas obras esquecidas pela historiografia. Acreditamos que a reedição do conto “Ierecê a Guaná” é realmente muito importante para os estudos sobre o autor e que funciona como contraponto entre a sua produção indianista e a de 123 José de Alencar, ainda mais quando levamos em consideração que o crítico Antonio Candido, quarenta e três anos antes da reedição, já havia apontado para a importância do conto. Acreditamos também que a reedição das Memórias e de diversas outras obras ainda não reeditadas são e seriam de grande importância para o debate acerca do autor e do período. O Visconde de Taunay, como apontaram diversos críticos citados aqui, foi o escritor de maior senso artístico dentre os sertanistas e é aquele que melhor produziu uma obra capaz de dialogar com o indianismo alencariano. Por outro lado, acreditamos que sua obra não transcende os valores do período e sim que permanece nos idealismos românticos. Entendemos que sua produção não deva ser justificada por sua posição de viajante e estudante etnográfico e que as escolhas feitas durante sua vida não dão continuidade as que foram feitas anteriormente em sua ficção, como apresentam as reedições de Sérgio Medeiros. A partir destas perspectivas, questionamos de maneira mais enfática a reedição de um cânone do autor, Inocência (centenas de vezes republicado) num formato de luxo e denominado como “símbolo da mulher e da cultura de Mato Grosso do Sul”, produzido pelo Instituto Histórico e Geográfico de Mato Grosso do Sul e dirigido por Hildebrando Campestrini. Resta aos estudantes e leitores do Visconde de Taunay e do Romantismo brasileiro ter acesso a uma versão histórica e fundamentada, sem interesses políticos e editoriais acerca da obra do autor. Se por um lado muitas das obras do escritor não foram republicadas e não existem materialmente para consultas, por outro lado pesquisadores de sua obra, espalhados por universidades do país, compuseram, ao longo das últimas décadas, artigos, revistas, simpósios, dissertações e teses que podem nortear o leitor curioso por novas abordagens sobre o autor. Muitas destas produções podem ser encontradas em sites da internet, banco de dados e nos acervos das universidades e podem ser absorvidas por professores do ensino básico e universitário, fornecendo ao leitor e estudante uma versão plausível e bem fundamentada do que foi e do que nos legou este importante escritor brasileiro chamado Visconde de Taunay. 124 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ADORNO, Theodor W. Progresso. In: _______. 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