A DEMONIZAÇÃO DO FEMININO E A DECADÊNCIA DO MASCULINO
Fabiana Souza Valadão de Castro Macena1
RESUMO
A sexualidade e o erotismo feminino assustam a sociedade moralista. E isso ocorre
justamente porque foram construídos mitos que influenciaram a cultura e que fizeram
desta o principal entrave para a felicidade da mulher. Francesco Alberoni, Jacques
Ruffié e Mary del Priore oferecem suporte teórico suficiente para afirmarmos que,
durante séculos, o sexo tem sido associado à necessidade natural quando praticado pelo
homem e entendido como pecado se é a mulher quem o realiza e o faz para seu prazer.
A literatura ilumina essa realidade ao trazer, ao longo de sua história, poucas mulheres
como protagonistas – destas, as realizadas sexualmente são raras e, quando assim,
frequentemente punidas com a morte. Este artigo intenciona demonstrar como a
literatura serve de arquivo histórico na representação da mulher e do processo de
transição porque esta passou, saindo do lugar em que não tem direito ao sexo e ao
prazer a outro, em que faz do corpo o que bem entende. Para isso, escolhemos um dos
mais polêmicos contos de Nelson Rodrigues: A dama do lotação e sobre ele lançamos
um olhar que não procura analisar o escritor ou sua intenção ao escrever, mas o que no
texto fica evidente: uma mulher que consegue viver sua sexualidade sem que sobre ela
se abata qualquer punição, sem que tenha que abdicar de seus desejos e, muito menos,
sem sentir-se culpada por suas escolhas.
PALAVRAS-CHAVE: Nelson Rodrigues. Conto. Feminino. Sexualidade. Cultura.
Jacques Ruffié (1988) afirma que, enquanto as civilizações egípcia e grega
“consideravam a sexualidade (e sobretudo o prazer que ela proporciona) como um fim
em si, perfeitamente legítimo” (RUFFIÉ, 1988, p. 145), o cristianismo compreende que
o prazer está associado ao pecado e o papel do sexo é “estritamente fisiológico: a
reprodução” (RUFFIÉ, 1988, p. 143). A culpabilização do sexo é tamanha que, segundo
Jacques Ruffié (1988), consta em um penitencial anônimo de 1490 que “a fornicação é
‘mais detestável do que o homicídio ou o roubo que não são substancialmente maus’.
Pois, em caso de necessidade, podemos ser levados a matar ou roubar; mas nada nos
obriga a fornicar” (RUFFIÉ, 1988, p. 148). Refletindo sobre o rigoroso controle sexual
exercido pela Igreja, Jacques Ruffié pondera que
Docente da Universidade Estadual de Goiás – Campus Iporá. Doutoranda em Estudos Literários pela
Universidade Federal de Goiás.
1
na realidade cotidiana, poucos homens ou mulheres, um dia ou outro terão
tido vontade de cometer um homicídio ou um roubo. Mas todos, ou quase,
terão sido solicitados para uma ou várias aventuras extraconjugais.
Encarregando-se do controle da sexualidade e traçando-lhe limites estreitos, o
cristianismo faz de todo homem um pecador, tendo-o à sua mercê, pois
somente a Igreja, através do sacramento de penitência, possui a chave da
Redenção. (RUFFIÉ, 1988, p. 149)
A partir desses dados, é fácil compreender que a hipocrisia reina na sociedade
por meio de uma falsa virtude. “O adultério é considerado uma degradação social e
condenado. As mulheres ilegítimas não são recebidas na boa sociedade” (RUFFIÉ,
1988, p. 153). Logo, o prazer sexual foi “intencionalmente” associado à figura da
prostituta, a fim de reforçar as ideias de pecado, luxúria e vergonha.
O conto A dama do lotação traz como protagonista uma mulher casada que,
todas as tardes, entra em um lotação à procura de um “amante efêmero”. Segundo
Ismail Xavier,
a dama do lotação é a figura radicalmente cindida entre o gozo sexual fora do
casamento e a sublimação amorosa vivida na relação com o marido (na qual
o sexo, como sujeira, gangrena, não pode ter lugar). Na vida de Solange, o
sexo faz parte de “outra cena” – seu teatro do desejo libera-se nas ruas e no
itinerário dos ônibus, forma peculiar de viver ao ar livre e no cruzamento dos
corpos o mesmo paradigma presente com mais elegância, no bordel de A bela
da tarde [1967], de Luis Buñuel, encenado entre quatro paredes. (XAVIER,
2003, pp. 190 e 191),
Os dados até aqui oferecidos não comportam, porém, todos os aspectos que
envolvem este, que é um dos contos de Nelson Rodrigues mais polêmicos, se não o
mais. De acordo com Ismail Xavier (2003), as adaptações de alguns textos rodrigueanos
para o cinema (entre contos e peças) promoveram o apogeu do “cinemão” [aspas do
autor], o qual atraia o público pelo poder dos dramas e a alta carga de erotismo presente
nas cenas “ousadas” [idem]. “Ou seja, o que havia sido conquista na representação do
sexo e na presença do corpo chega, nesse momento, ao patamar da vulgarização,
repetição mecânica, rentabilização do erotismo” (XAVIER, 2003, p. 188 – 189). Ismail
Xavier (2002) nos conta que A dama do lotação foi o primeiro conto de A vida como ela
é... adaptado para o cinema. É relevante a exposição de todos esses dados, pois essas
afirmações giram em torno do filme e este, sem dúvida, influenciou a maneira como a
produção rodrigueana é compreendida por aqueles que leram apenas alguns de seus
textos, ou que conhecem tão somente o que foi adaptado para o cinema ou televisão. De
acordo Ismail Xavier (2003, p. 192), podemos dizer que, no filme, a liberação de
Solange foi feita sem decoro e ainda que a culpa seja exposta, “o sexo continua rimando
com sujeira e traição” [op. cit.] e é em decorrência do lado voyeur que o filme apresenta
em relação ao corpo feminino que “A dama do lotação oferece um cardápio variado de
fantasias em torno da mesma figura, valendo aí o ponto de vista do homem, não um
suposto senso de liberação feminina” (XAVIER, 2003, p. 193).
Como podemos perceber, a visão lançada sobre a narrativa cinematográfica não
corresponde, de fato, ao conto e, por outro lado, auxilia-nos na compreensão dos
elementos que levaram à interpretação “pornográfica” habitualmente feita a respeito da
história de Carlinhos e Solange.
Passemos à narrativa. Ele, Carlinhos, suspeitando que a mulher lhe seja infiel,
procura o pai, que reprime, prontamente, as desconfianças do filho. Nas palavras do
narrador: “o velho, que adorava a nora, que a colocava acima de qualquer dúvida, de
qualquer suspeita, teve uma explosão” (RODRIGUES, 1992, p. 219). Ameaça romper
com o filho caso insista em tamanha infâmia. Esses são alguns aspectos da narrativa,
porém não bastam. Destaquemos outros. Primeiro, o texto tem início com os seguintes
dizeres: “Às dez horas da noite, debaixo de chuva, Carlinhos foi bater na casa do pai”
(RODRIGUES, 1992, p.219). O horário e a circunstância em que Carlinhos procura o
pai já devem servir como indícios de uma quase certeza, considerando que a angústia
que sente o marido é suficiente para que ele procure um conselheiro em um momento
nada apropriado para isso. Segundo, expressões como “desabando na poltrona” e
“profundíssimo suspiro” (RODRIGUES, 1992, p.219) reforçam a ideia de desolação
que vai tomando forma e consistência ao longo da narrativa, justificando o que, na visão
do pai, seria uma calúnia. Terceiro, mais confiante na própria intuição do que na opinião
do pai, Carlinhos promete: “Se for verdade o que eu desconfio, meu pai, mato minha
mulher! Pela luz que me alumia, eu mato, meu pai!” (RODRIGUES, 1992, p.219). Ao
final da narrativa, porém, verificaremos que não passa de um blefe. Ainda que a
sociedade exigisse de Carlinhos uma “reparação”, ele se mostra fraco demais para
qualquer atitude mais drástica. A solução encontrada será bem menos violenta e bem
mais patética.
Nessa mesma noite, do aguaceiro, coincidiu de ir jantar com o casal um
amigo de infância de ambos, o Assunção. Era desses amigos que entram pela
cozinha, que invadem os quartos, numa intimidade absoluta. No meio do
jantar, acontece uma pequena fatalidade: cai o guardanapo de Carlinhos. Este
curva-se para apanhá-lo e, então, vê, debaixo da mesa, apenas isto: os pés de
Solange por cima dos de Assunção ou vice-versa. Carlinhos apanhou o
guardanapo e continuou a conversa, a três. (RODRIGUES, 1992, p. 220)
A suspeita ganha corpo e nome: Assunção. O pequeno incidente doméstico
talvez não suscitasse tanta angústia se não houvesse, anterior a ele, a dúvida quanto à
fidelidade de Solange. A certeza da traição, porém, só é alcançada quando, por
imprudência ou tripúdio, Assunção comenta ter viajado com Solange em um lotação.
Intrigado, ao chegar a casa, Carlinhos questiona a mulher sobre quanto tempo não via
Assunção. Ela diz que “nunca mais”, deixando subentender que a noite em que o amigo
jantou com eles fora a última vez. Diante da mentira evidente, Carlinhos não hesita e
ameaça matar Assunção. Tentando evitar uma tragédia, Solange assume: “Um mês
depois do casamento, todas as tardes, saía de casa, apanhava o primeiro lotação que
passasse. Sentava-se num banco, ao lado de um cavalheiro. Podia ser velho, moço, feio
ou bonito...” (RODRIGUES, 1992, p. 222). Mais uma vez Solange surpreende, agora
por assumir integralmente suas ações: assume que, se Carlos quisesse “vingar-se”, teria
de matar não um, mas vários homens.
O casamento deveria, por excelência, garantir a obediência feminina imposta,
socialmente, pelas autoridades religiosas e políticas. Nas palavras de Robert
Muchembled (2007, p. 76), a esposa deveria “comportar-se com virtude, modéstia e
humildade, aceitando a tutela do esposo como natural e normal”. Solange, visivelmente,
encaixava-se com perfeição nesse modelo. Não havia aparente motivo para que ela
traísse o marido. Ambos, de “ótima família”, eram “felicíssimos” nos dois anos de
casados (RODRIGUES, 1992, p. 220). Entretanto, a narrativa permite concluir que a
relação conjugal não satisfazia Solange que, em resposta ao que a sociedade e a cultura
lhe legaram, sai à procura de felicidade, ou de liberdade, por meio do prazer sexual. A
vida extraconjugal da mulher se revela como uma mancha na vida do casal, e o homem,
que deveria punir a esposa e “lavar” a honra maculada, recolhe-se num estado de inércia
próprio da morte física.
Entrou no quarto, deitou-se na cama, vestido, de paletó, colarinho, gravata,
sapatos. Uniu bem os pés; entrelaçou as mãos, na altura do peito; e assim
ficou. Pouco depois, a mulher surgiu na porta. Durante alguns momentos
esteve imóvel e muda, numa contemplação maravilhada. Acabou
murmurando:
- O jantar está na mesa.
Ele, sem se mexer, respondeu:
- Pela última vez: morri. Estou morto.
A outra não insistiu. Deixou o quarto, foi dizer à empregada que tirasse a
mesa e que não faziam mais as refeições em casa. Em seguida, voltou para o
quarto e lá ficou. Apanhou um rosário, sentou-se perto da cama: aceitava a
morte do marido como tal; e foi como viúva que rezou. Depois do que ela
própria fazia nos lotações, nada mais a espantava. Passou a noite fazendo
quarto. No dia seguinte, a mesma cena. E só saiu, à tarde, para sua escapada
delirante, de lotação. Regressou horas depois. Retomou o rosário, sentou-se e
continuou o velório do marido vivo. (RODRIGUES, 1992, p. 223)
Neste conto, encontramos não a morte física, mas de certa forma uma morte
efetiva já que não é, mas produz um efeito real. Afinal, tanto Carlos quanto Solange
agirão como se a morte fosse um fato.
O comportamento de Carlinhos irá contra a promessa por ele feita ao pai no
início da narrativa. Carlos é o marido fraco que não sabe reagir e deixa-se castrar. Sua
catatonia apontará para a fragilidade da figura masculina que tenta frear e dominar a
figura feminina, mas não consegue. A morte física é substituída pela inércia e esta se
torna uma estratégia que não surte, sobre Solange, efeito algum. O marido a convida a
participar de uma encenação que servirá tão somente para preencher a lacuna criada
pelas expectativas sociais, segundo as quais, como marido e homem, Carlos, não
podendo matar os incontáveis amantes da mulher, deveria punir a esposa adúltera e, de
fato, matar a mulher seria a única forma de contê-la. A iniciativa de “se matar” em nada
coibirá o comportamento da esposa. Instala-se, portanto, a decadência do masculino, o
que garantirá espaço à sexualidade, promovendo a vitória dos que seriam os inimigos
“da moral e dos bons costumes”. Afinal, Solange “reza” o marido morto, mas depois de
fazê-lo volta à sua rotina no lotação.
Por outro lado, a figura de Solange assumirá contornos demoníacos porque o
leitor poderia compreender a traição se fosse resultado de um mau casamento ou se a
mulher tivesse sido arrebatada por um amor sem precedentes. Entretanto, Solange sai à
procura de parceiros e o faz aleatoriamente, desse modo, revelando uma face ainda mais
transgressora que a própria traição poderia promover. Fancesco Alberoni (1988) muito
bem ilustra o modo como a sociedade vê a mulher que não presa pela continuidade
erótica e, consequentemente, afetiva. “A mulher que encarna a fantasia erótica
desresponsabiliza o homem do seu desejo. Não pede ao prazer compensações éticas”
(ALBERONI, 1988, p. 61) . Esse arrebatamento erótico fere os princípios e a moral
porque a mulher, aparentemente, não espera nada do homem a não ser o ato sexual e a
satisfação momentânea. Assim, ela assume uma postura marcadamente masculina e,
portanto, reprovável, uma vez que vai contra ao que secularmente foi estabelecido. O
leitor, influenciado por conceitos morais que lhe foram, durante décadas, impostos, não
vê uma mulher infeliz e sem amor, que, errante, tenta encontrar sua felicidade; vê, sim,
uma fêmea no cio, um animal que procura sexo para extravasar sua energia sexual. O
erotismo, em A dama do lotação, destaca-se e causa profundo incômodo justamente
porque, entre outros aspectos, não se rende à ordem. Por exemplo, o fato de o sexo não
acontecer em um lugar reservado a ele. O enredo é ambientado em um momento
histórico em que os ensinamentos moralistas estão cristalizados e no qual a sexualidade
feminina permanece sendo caçada, atacada e punida. Em outro momento, no Brasil
Colônia, Mary Del Priore (1989) destaca que “os manuais de confissão indagam sobre a
clara mostra de que a noção de privacidade para o sexo ainda não se tinha instaurado”
(DEL PRIORE, 1989, p.18). Ao determinar o quarto como o lugar apropriado para as
relações sexuais, a Igreja e a sociedade procuravam mais uma forma de domesticar a
libido e controlar as relações conjugais. Sendo assim, o elemento mais polêmico desta
narrativa é também o mais importante para demarcação do poder da mulher sobre seu
corpo e seu desejo; colocando-a em condição de poder, decidindo por si mesma a quem,
onde e como se entregar.
Além disso, o espaço é muito importante por outros motivos: segundo Jacques
Ruffié (1988, p. 80-83), a apropriação territorial precede as relações sexuais e isso se
aplica a todas as espécies. Apenas depois de conquistar um espaço é que o macho
procura, então, atrair uma fêmea. “A vantagem do comportamento territorial é muito
evidente: ela instala cada casal ou grupo de reprodução na sua propriedade e assim
diminui as chances de confronto e de conflito. Se cada um ficar em casa, reina a paz”
(RUFFIÉ, 1988, p. 82). A análise de Jacques Ruffié é referente a diferentes espécies;
mas, como ele mesmo esclarece, o instinto territorial é inato aos invertebrados e
vertebrados, logo, aplicável ao homem. É natural que este queira sua esposa dentro do
lar, longe dos olhares cobiçosos de outros homens, afastada de situações que possam
levar ao adultério. Enfim, as saídas de Solange por si só configurariam uma
transgressão. Ela não está confinada ao espaço que seu lar representa, bem como não
estão represados seus desejos só porque ela é uma mulher casada. Além disso, Jacques
Ruffié (1988, p. 77) afirma que “somente o homem é capaz de separar os dois
fenômenos: isto é, o prazer e a procriação”. Homem no sentido de “ser humano”, o que
Solange faz nada mais é do que tomar posse dessa condição já bastante usufruída pelo
sexo masculino.
Considerações finais
Se retomamos o discurso platônico, encontramos de Sócrates os seguintes
dizeres: “se em vez de uma probabilidade não é uma necessidade que seja assim, o que
deseja deseja aquilo de que é carente, sem o que não deseja, se não for carente”
(PLATÃO, 2001, p.18). Em paráfrase: não se deseja força quando se é forte, nem beleza
quando se é belo. O natural é desejar aquilo que não temos, a fim de preencher o vazio
existente. Filosofia que pode ser aplicada ao comportamento de Solange, pois inferimos
que ela não trai simplesmente como algo que seja exemplo de luxúria ou sedução;
apenas persegue o mito do andrógino e, insatisfeita em seu relacionamento, procura por
aquela que seria sua verdadeira metade. Assim, quer pela perspectiva contemporânea de
libertação do feminino, quer pela ótica platônica do amor incompleto, a dama do lotação
alcança não precisa ser redimida ou purificada aos olhos do leitor, pois este, uma vez
tendo esclarecido os aspectos culturais que rodeiam a mulher e sua sexualidade,
compreende Solange como apenas o que é: sujeito de suas ações. Afinal, como Octavio
Paz (2004) defende, a expressão “os sexos” deve vir no plural já que mesmo o prazer
dito solitário não o é, pois, ainda que no plano da imaginação, há um ou mais parceiros.
As cerimônias e jogos eróticos são criados de acordo com o que o prazer estimula, daí o
novo olhar sobre o comportamento de A dama do Lotação. A personagem procura
outros homens com quem copular. Não pretende procriar, quer apenas dar vazão aos
seus desejos, entregar-se ao prazer, ser feliz.
A falta ensinou à mulher a importância de desfrutar o prazer e o amor. A mulher
que procura o sexo fora do casamento está buscando saciar os seus desejos. Dentro do
casamento, a esposa busca saciar o marido. Assim, a mulher age em busca de emoção e
prazer, luta contra séculos de opressão e procura satisfazer-se. Não que a postura de
Nelson Rodrigues seja feminista, mas, se não contribuiu para a emancipação sexual das
mulheres, seus textos, ao menos, anunciam-na e retratam-na. A liberdade dada à mulher
rodrigueana é a melhor expressão do livre-arbítrio. Se, como nas palavras de Michel
Foucault (1988, p. 53), “a sociedade moderna tentou reduzir a sexualidade ao casal – ao
casal heterossexual e, se possível, legítimo”, A dama do lotação apontará para um
fracasso dessa tentativa secular.
Entretanto, é importante mencionar que, ao falar de pornografia, Francesco
Alberoni (1997, p. 13) cita Pascal Brukner e Alain Finkielkrault e afirma que “os heróis
pornográficos estão milagrosamente isentos do dever de conquistar e de perder-se em
prelúdios amorosos: ‘basta um olhar e as mulheres ficam nuas e disponíveis; nada de
apresentações, trocas de cumprimentos, nenhum preâmbulo...’. As mulheres despertam
o desejo antes mesmo que o homem tenha pensado em se aproximar”. Sob essa
perspectiva, de fato, é natural que muitos entendam A dama do lotação como
pornografia, todavia a narrativa dos encontros extraconjugais ocupam pouco mais que
dois parágrafos. Não é sobre as aventuras que o escritor se debruça, mas sim sobre a
dúvida que primeiro se abate sobre Carlinhos, a descoberta da verdade e a solução que o
marido encontra para amortizar sua vergonha. Entretanto, a audácia da personagem
Solange é de tal modo marcante e incômoda, que ela servirá de mote para vários dos
comentários tecidos a respeito da produção de Nelson Rodrigues, como se apenas uma
leitura de seu comportamento pudesse ser feita e como se apenas este enredo resumisse
todos os contos de A vida como ela é....
Cabe-nos ainda mencionar que, segundo Ismail Xavier (2003), as retaliações à
sexualidade feminina fazem com que as personagens sigam atormentadas pela “culpa
gerada em transgressões [mesmo – grifo meu] bem-sucedidas, como Solange, a dama
do lotação” (XAVIER, 2003, p. 162). As personagens, de acordo com Ismail Xavier
(2003, p. 162), não alcançariam o “moderno moderno”, pois as mulheres continuam às
voltas com a contradição entre a moral e o desejo.
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