AS REPRESENTAÇÕES SOCIAIS E O FEMININO NAS ESFERAS PÚBLICAS DA SOCIEDADE: UMA HISTÓRIA DE LUTAS, RESISTÊNCIAS E CONQUISTAS. Luciana Silva Codognoto Bacharel em psicologia Mestranda em História pela UFGD 1. Apresentação Este artigo objetiva evidenciar o percurso das representações sociais na determinação de papéis de homens e mulheres na sociedade. Abordaremos tais aspectos a partir do estudo das relações de gênero, dando ênfase às contribuições de Arendt, Safiotti, Perrot, Bordieu e Moscovici enquanto pontos para possíveis questionamentos acerca da participação das mulheres nos espaços públicos da sociedade. Por essas e outras, é possível dizer que as representações, baseadas na anatomia dos sexos, se manifestam, ao longo da história, mediante a construção de ideais femininos e masculinos, apresentando-se de forma mascarada e natural em nossa sociedade o que, consequentemente, colaborou para o estabelecimento e a perpetuação das relações sociais desiguais entre homens e mulheres, sobretudo nos espaços públicos. É, pois nesse contexto, até então secreto, ou ainda, oculto pela sociedade que intensas lutas foram e ainda continuam sendo travadas como espaço de batalhas, resistências e conquistas de muitas mulheres. 2. Introdução Nos últimos anos são frequentes as discussões que fazem referência às mulheres e relevantes são os destaques apontando as questões que fazem alusão ao feminino nas esferas públicas da sociedade, sobretudo a partir da década de 80, momento marcado pelas tentativas de ampliação das temáticas e do corpo teórico referentes à inserção das mulheres no mercado de trabalho. Desse modo, muito se tem escrito sobre as mulheres nos últimos anos devido à sua maior participação no processo produtivo do país, ocorrida pós segunda guerra mundial, repercutindo a inserção feminina na ordem do público mediante o direito à cidadania, à participação nas decisões, sobretudo na vida econômica da sociedade. Assim, ao se propor estudar as mulheres nos espaços públicos, destaca-se a necessidade de mencionarmos o papel das Representações Sociais no estabelecimento e legitimação da invisibilidade feminina ao longo da história, expressa tanto no âmbito dos registros históricos quanto na marginalização das mulheres em ambientes que restringem o espaço público. Diante disso, pretende-se enfatizar com essa pesquisa o papel das Representações Sociais baseadas na anatomia dos sexos e consequentemente a sua atuação na sociedade mediante a determinação, ainda que equivocada, de papéis de homens e mulheres no contexto social, mediante as contribuições chaves de Arendt (1983), Saffioti (1976), Moscovici (2003), Perrot (2005) e outros teóricos enquanto interrogações para possíveis reflexões acerca das mulheres nos espaços públicos da sociedade. Para tanto, a compreensão de qualquer conteúdo referente ao feminino requer pesquisa aprofundada. O estudo sobre as Representações sociais acerca das mulheres e a sua repercussão especialmente nas esferas públicas da sociedade se justifica não somente por sua relevância e complexidade, como também por sua ligação íntima com outros conceitos propostos pela psicologia, sociologia e, sobretudo pela ótica da interdisciplinaridade nas ciências humanas, ponto de onde partiremos a nossa análise. 3. As representações sociais e o feminino A historiografia acerca das mulheres revela que a presença do binômio masculino/feminino, enquanto categoria apoiada na diferenciação dos sexos tem sido determinante, ao longo da história, no que se refere à participação das mulheres na sociedade, sobretudo nos espaços públicos. Os termos público e privado são abordados nessa pesquisa a partir da visão de Hannah Arendt que ressalta de maneira marcante em sua obra “A Condição Humana”, de 1983, a noção de público e privado a partir da concepção mais remota encontrada na Grécia antiga. Segundo Arendt, na cidade-estado grega, a individualidade era vinculada à esfera pública e esse espaço consistia no "único lugar em que os homens podiam 2 mostrar quem realmente e inconfundivelmente eram" (ARENDT, 1983, p.51). Ademais, o espaço público funcionava como referência para o sujeito da construção e como acesso à sua identidade, visto que esse domínio se configurava naquele que tinha como função “iluminar a conduta humana, permitindo a cada um mostrar, para o melhor e para o pior, através de palavras e ações, quem é e do que é capaz” (ARENDT, 1983, p.01). A autora indica ainda dois outros fenômenos que aparecem interligados, porém distintos na questão do espaço público. O primeiro se refere ao público enquanto espaço que poderá ser escutado por todos, apresentando a máxima publicidade; o segundo se refere ao mundo na medida em que ele é comum a todas as pessoas. Logo: o termo público significa o próprio mundo, à medida que é comum a todos nós e diferente do lugar que nos cabe dentro dele. Este mundo, contudo, não é idêntico à terra ou à natureza como espaço limitado para o movimento dos homens e condição geral da vida orgânica. Antes, tem a ver com o artefato humano, com o produto de mãos humanas, com os negócios realizados entre os que, juntos habitam o mundo feito pelo homem (...) A esfera pública, enquanto mundo comum reúne-nos na companhia uns dos outros e, contudo evita que colidamos uns com os outros, por assim dizer (ARENDT, 1983, p. 62). A partir de tudo isso, pode-se perceber a questão do público e do privado enquanto importantes territórios de expressão das representações, sobretudo àquelas que tangem à concepção de feminino e masculino nas esferas da sociedade atual. Ademais, Arendt (1983) ressalta de um lado, o público como sendo um meio de referência à construção da identidade e expressão do sujeito e de outro, o privado, como local de privação e necessidade. Em suma, o público, na visão da autora supracitada estabelece as fronteiras que tanto ligam como separam as pessoas, e se faz repensar a questão mais profunda que envolve a participação de homens e mulheres na sociedade a partir de posições sociais preestabelecidas ao longo do tempo, tendo como premissas básicas a diferenciação calcada na anatomia dos sexos. Tal fato tem proporcionado, ao longo da história, um terreno favorável para o surgimento de representações que se apresentam como fortes aliadas para o confinamento das mulheres em locais que se remetem ao espaço privado. A esse respeito, Perrot (2005) salienta a concepção “sexualização de gênero”, no qual tem se dedicado a apresentar o espaço público aos homens e às 3 mulheres, o confinamento da vida privada, representada pelos afazeres de casa e pelas profissões que se configuram e se encontram apoiadas na maternagem. Logo: A concepção da mulher, talhada especialmente para o privado (e incapaz para o público), é a mesma em quase todos os círculos intelectuais do final do século XVIII [...] tornou-se uma referência no discurso sobre a mulher. Esta é representada como o inverso do homem. É identificada pela sua sexualidade e seu corpo, enquanto o homem é identificado por seu espírito e energia. O útero define a mulher e determina seu comportamento emocional e moral. [...] A combinação da fraqueza muscular e intelectual e sensibilidade emocional fazia delas os seres mais aptos para criar os filhos. (HUNT, 1991, p. 50). A partir das considerações acima, pode-se perceber que, por muito tempo, as mulheres ficaram à margem da participação social, apresentando somente características que as destinavam exclusivamente aos afazeres domésticos e às atividades que estariam ligadas à maternidade: “Apenas a casa, a maternidade e a família eram os lugares que definiam como possíveis para as mulheres” (CARDOSO; VAINFAS, 1997, p. 291). Assim sendo, é percebível ao longo da história a construção de representações acerca das mulheres, o que tem norteado e, sobretudo alicerçado a visão da condição feminina na sociedade, sendo estas carregadas de valores e sentidos socialmente aceitos. Nesse sentido, destaca-se a figura de Adão e Eva, no livro de Gênesis: [...] mas para o homem, não encontrou a auxiliar que lhe correspondesse. Depois da costela que tirara do homem, Iahweh modelou uma mulher e a trouxe ao homem. Então o homem exclamou: Esta sim, é osso de meus ossos, E carne de minha carne! Ela será chamada mulher, Porque foi tirada do homem (BIBLÌA SAGRADA DE JERUSALÉM, 1985, p. 34). Desse modo, o entrecruzamento de representações acerca do feminino a partir dos tempos passado, presente e futuro, o que tem colaborado para o estabelecimento de um eixo que passa a ser o articulador de outras representações, elaborando sentidos para a vida cotidiana de muitas mulheres, sobretudo nas relações de gêneros, fazendo pensar na questão proposta pelas idéias de Bordieu, que fundamentam o esquema teórico do que ele denomina habitus – como sendo: Um sistema de disposições duráveis e transferíveis que integram todas as experiências passadas funciona a todo o momento como matriz de 4 preocupações, apreciações e ações. O habitus torna possível o cumprimento de tarefas infinitamente diferenciadas, graças às transferências analógicas de esquemas que permitem resolver os problemas, da mesma forma, graças às correções incessantes dos resultados obtidos e dialeticamente produzidos por estes resultados (BORDIEU, 1972/1983, p. 178). Embora se possa localizar a presença do conceito de habitus em obras mais antigas do autor, o texto acima selecionado, escrito em 1972, refere-se a um dos primeiros momentos de sistematização e formalização do conceito. Segundo o autor, o habitus gera as práticas e, por conseguinte, as representações, sendo, muitas vezes, deturpadoras de sentido. Além disso, condicionam o aprendizado e, no caso de gênero, cria identidades de feminino e masculino. Nesse contexto, acaba por existir um sistema de disposições que dão significado às ações e às representações do indivíduo. Ou seja, um sistema que adentra as consciências e perpassa as práticas e estruturas sociais e individuais (BOURDIEU, 1989). Tal fato pode ser ainda expresso na formulação de idéias acerca do que seria tido como feminino e masculino, ou melhor, das representações que envolvem os termos supracitados no âmbito público e privado. O conceito de Representações foi ressaltado por vários autores, sob óticas distintas. Dentre eles, citamos os trabalhos de Falcon (2000), Chartier (2002) e Moscovici (2003). Percebe-se sua fundamentação etimológica a partir da leitura de Falcon que concebe as representações: “[...] provindas da forma latina repraesentare - fazer presente ou apresentar de novo. Fazer presente alguém ou alguma coisa ausente, mesmo uma ideia, por intermédio da presença de um objeto” (FALCON, 2000, p. 45). Moscovici (2003), autor de relevante destaque nessa análise, ressalta que as representações sociais são dinâmicas porque se constituem em um meio dinâmico que é a comunicação. Ademais, o autor caracteriza o termo representações como um importante elemento de coesão grupal, no qual determinado grupo construirá uma realidade a partir do processo de comunicação: “a realidade é socialmente construída e o saber é uma construção do sujeito, mas não desligada da sua inscrição social” (MOSCOVICI, 2003). O autor supracitado contrapõe a visão de Durkheim, ressaltando o caráter dinâmico das representações, sendo elas históricas e influenciando a vida dos indivíduos desde a sua primeira infância. Ademais, Moscovici propõe uma reflexão acerca do modo como nós nos apropriamos das representações, as quais 5 se tornam naturalizadas nas relações sociais cotidianas e mostrando-se difíceis de serem suprimidas de nosso meio, em decorrência de sua assimilação sutil e naturalizada por parte de homens e mulheres, durante suas trocas dialógicas ocorridas de uma geração à outra: “[...] categorias da ciência popular, espalhadas e irresistíveis, parecendo serem inatas, das quais fazemos uso, o tempo todo [...]” (MOSCOVICI, 2003). As representações sociais são definidas ainda por Moscovici (2003) como uma espécie de segunda língua, permitindo aos indivíduos se comunicar e se identificar, possibilitando o sentimento de pertença ao grupo. Além disso, elas correspondem a uma forma de saber prático de um determinado grupo, visando tornar o não familiar em familiar, isto é, comum ao grupo e sendo, por conseguinte, compartilhadas socialmente. A partir disso, o autor enfatiza os processos de Objetivação e Ancoragem como importantes mecanismos que permeiam as representações sociais. O primeiro mecanismo diz respeito à objetivação, correspondendo um meio de tornar familiar o não-familiar, o abstrato em concreto a partir da reprodução de um conceito em imagem. Enfim, a objetivação refere-se à forma como se estrutura e se fundamenta o conhecimento do objeto. Já a ancoragem seria segundo Moscovici (2003) um processo que visa classificar e nomear algo, consistindo na redução de idéias estranhas em imagens comuns e familiarizadas pelo sujeito. Em outras palavras, a ancoragem seria o que dá sentido ao objeto que nos apresentado, ou ainda, a maneira pela qual o conhecimento se enraíza no contexto social. Maffesoli (1996) em sua obra “No Fundo das Aparências” ressalta a questão da análise do fator social e comunicacional na constituição do eu mediante o processo de alteridade, ou seja, o eu na relação com o outro, apontando, de maneira critica, a questão da polaridade dos termos cultura e natureza. Nesse sentido, o autor destaca a culturalização da natureza e a naturalização da cultura, sendo esta última masculina, ativa e agindo, por conseguinte, sobre a natureza, feminina e vista, ao longo da história, como passiva. Enfim, segundo Maffesoli à cultura destina-se ao masculino, assim como à natureza está para o feminino, neste caso, a cultura enquanto representações que reforçam a idéia de dominação baseada na anatomia dos sexos, isto é, da natureza dos corpos. Logo, natureza e cultura se interrelacionam, gerando o que o autor 6 denomina de contaminação dos termos, o que, por sua vez geram coloridos diversos às relações desiguais tecidas entre homens e mulheres, o que se reduz ao mecanismo de objetivação mediante a inferiorização feminina a partir de concepções calcadas na anatomia dos sexos. Em suma, a tentativa de buscar nos fatores anatômicos a explicação dos traços do caráter psicológico feminino, como nos casos de muitos teóricos, colaborou para a manutenção da hipótese errônea acerca da posição das mulheres na sociedade. Ou seja, para a manutenção das representações dúbias sobre o feminino, porém, de maneira não mais baseada no senso comum, mas apoiado na própria biologia dos sexos, o que demarcaria o destino das mulheres - as suas posições sociais definidas - a partir dos traços anatômicos. A partir de uma perspectiva crítica, entende-se que as mulheres têm sido “encaixadas” em certos papéis na sociedade. Saffioti (1976) destaca o fato de a sociedade delimitar, com bastante precisão, os espaços de atuação masculina e feminina, atribuindo a ambos, os papéis construídos em uma rede de significados sociais, com hierarquias de poderes que reservam importância social diferenciada para homens e mulheres. Este fato tem levado estas a assumirem, muitas vezes, novos espaços por via da negociação com os homens e não de um partilhar nas posições que ambos ocupam. Enfim, esse fato acena para a constituição de posições desiguais de poder, enquanto que o partilhar pressupõe divisão mais justa. Nesse sentido, a concepção biológica tem colaborado na determinação das funções das mulheres na sociedade, repercutindo em atividades que refletem o pensamento e os cuidados maternais, que tem se findado na proposição “Mulheres = Mulher = Mãe”, ou seja, uma concepção que as reduz ao universo singular, neste caso, Mulheres como sinônimo de uma só Mulher, aquela ligada ao espaço privado e à maternidade (VICENT, 1995). Enfim, pode-se falar em diversas representações, de ser frágil, dócil e calmo, que se articulam em um eixo mais forte e definidor que é a representação das Mulheres na categoria do “ser mãe”. Tais representações como afirma Farias (2005) em um estudo sobre as Representações Sociais e a Participação Feminina nos Assentamentos de Reforma Agrária, coloca em questão o ponto mais definidor da representação construída para a figura da mulher na sociedade, que é o ser mãe, objetivada na condição do cuidar. Nesse sentido, a autora ainda afirma que tais construções, efetivadas nas relações sociais, encontram-se apoiadas no plano simbólico, criando sentidos que 7 são aceitos, muitas vezes, pela própria mulher, expressos por meio do consentimento e incorporando, dessa forma, os papéis socialmente construídos tendo como base a construção de valores e comportamentos dominantes. A esse respeito Bordieu (1989) afirma que a construção da identidade feminina tem se legitimado na introjeção pelas mulheres de normas enunciadas pelos discursos masculinos e que as representações da inferioridade feminina, incansavelmente repetidas, se fazem presentes nos corpos de ambos, isto é, de mulheres e homens. Em outras palavras, pode-se observar a questão do consentimento nas palavras de Chartier, ao fazer referência às idéias de Bordieu: Reconhecer assim os mecanismos, os limites e, sobretudo, os usos do consentimento é uma boa estratégia para corrigir o privilégio longamente concedido pela história às “vítimas ou rebeldes”, ativas ou atrizes de seu destino, em detrimento das mulheres passivas, consideradas com demasiada facilidade como aquilescentes à sua condição, embora juntamente com a questão do consentimento seja totalmente central no funcionamento de um sistema de poder, quer seja social e/ou sexual. Nem todas as fissuras que fendem a dominação masculina assumem a forma de rupturas espetaculares nem se expressam sempre pela irrupção de um discurso de recusa e de rebelião. Elas nascem frequentemente dentro do próprio consentimento, reutilizando a linguagem da dominação para fortalecer a insubmissão (CHARTIER, 2002, p. 96). Com isso, Chartier aponta que a questão da violência simbólica se faz presente mediante uma relação histórica e culturalmente construída, tendo como premissa a natureza dos sexos, tida como irredutível e universal em relação às mulheres, uma visão alicerçada como sendo natural e, portanto, biológica e, sustentada pelos fatores sociais, históricos e culturais que permeiam as representações sociais em torno das mesmas. Logo, o vivido pelas mulheres foi e ainda é, apesar das manifestações de resistência das mesmas, construído em meio a um fluxo de representações sociais que permeiam sua trajetória na sociedade, sobretudo nos espaços públicos. Já Bordieu (1999) ressalta a questão da violência simbólica, incorporada principalmente nos discursos, os quais, muitas vezes, reforçam as representações de feminino e masculino de uma forma ”sutil”. O autor ainda destaca que para existir a violência, não se faz necessária a agressão física, mas presença de reproduções 8 de papéis instituídos socialmente a partir do fator biológico, isto é, da chamada anatomia dos sexos. Logo: A violência simbólica se institui por intermédio da adesão que o dominado não pode deixar de conceder ao dominante (e, portanto, à dominação) quando ele não dispõe, para pensá-la e para se pensar, ou melhor, para pensar sua relação com ele, mais que de instrumentos de conhecimento que ambos têm em comum e que, não sendo mais que a forma incorporada da relação de dominação, fazem essa relação ser vista com natural (BOURDIEU, 1999, p. 41). Assim, percebe-se que a violência simbólica se manifesta, ao longo da história, na construção de ideais femininos e masculinos, transformando tal violência em naturalização, a qual se manifesta, muitas vezes, de forma mascarada em nossa sociedade e o que, consequentemente, colaborou para perpetuação e construção das relações sociais desiguais entre homens e mulheres. Essas representações que fazem referência às mulheres, advêm da construção social e histórica acerca das “ações normatizadoras” que têm regido as relações entre homens e mulheres. Logo, Chartier (2002) ao fazer referência às representações, ressalta que: [...] os confrontos sociais fundados sobre os afrontamentos diretos, brutais, sangrentos, cedam cada vez mais o lugar a lutas que têm por armas e por fundamentos as representações. [...] o essencial não é, portanto, opor a termo uma definição biológica e uma definição histórica da oposição masculino/feminino, mas, antes, identificar os discursos que enunciam e representam como “natural” (portanto, biológica) a divisão social (portanto, histórica) dos papéis e das funções (CHARTIER, 2002, p. 94/96). A partir do exposto acima, percebe-se que a diferença sexual se alicerça pelos discursos que a fundam e a legitimam, e que estes, quando pouco explorados, impedem as rupturas, isto porque, naturaliza as concepções que, envolvidas por representações, dão continuidade às relações de domínio e de poder - neste caso entre homens e mulheres. Nesse sentido, destaca-se a importância desse contexto, correlacionandoo às questões que fazem referência às representações sociais, que têm sido determinantes no processo de construção da identidade feminina ao longo da história, no que se refere à participação das mesmas em ambientes que não se restringem ao âmbito privado, bem como no estabelecimento e propagação de conceitos que permeiam as relações entre homens e mulheres mediante um processo de elaboração do vivido e também de resistência frente à concepção 9 apregoada pelas teorias baseadas na diferenciação dos sexos a partir do fator biológico. Em suma, na medida em que se consideraram as mulheres sob o ângulo exclusivamente biológico, não se atenta para a relatividade cultural e, sobretudo para as condições e características que as designam enquanto seres individuais, ou ainda, de uma categoria em movimento, que tem buscado uma maior participação dentro da sociedade, bem como a sua afirmação enquanto sujeitos concretos. Por essas e outras, é possível dizer que a representação, ao mesmo tempo em que é criada e apropriada, atua como prática social, dando à vida cotidiana um movimento constante, seja ele de dominação ou de resistência, gerando sentido comum para a vida de diferentes grupos, nesse caso, expresso nas relações entre homens e mulheres e, por conseguinte, resignificando elementos que articulam e solidificam o conhecimento, as práticas sociais e, sobretudo os papéis de homens e mulheres na sociedade. 4. Considerações Finais Ao longo dessa pesquisa, evidenciou-se que representações baseadas na anatomia dos sexos se manifestam, ao longo da história, mediante a construção de ideais femininos e masculinos, apresentando-se de forma mascarada e natural em nossa sociedade o que, consequentemente, colaborou para o estabelecimento e perpetuação das relações sociais desiguais entre homens e mulheres, sobretudo nos espaços públicos. É, pois, nesse contexto que se aborda o feminino no âmbito da vida pública e, sobretudo o papel das representações na vida de muitas dessas mulheres. Representações essas que se estabelecem e se legitimam nos discursos cotidianos, no qual o masculino ainda pode ser visto como sinônimo de universalidade no contexto social. É mediante a compreensão proporcionada pela interdisciplinaridade, que tem como foco as ciências humanas, que se procura, ao longo do texto, explorar o papel de tais discursos, ou em outras palavras, das representações atuando de modo direto ou indireto nas esferas públicas. Em outras palavras, pode-se afirmar que a sexualidade feminina tem sido definida a partir da sexualidade masculina, ou seja, o masculino tem sido ao longo da história, sinônimo do universal, retratando um modelo anterior ao sujeito cartesiano e 10 que, portanto, torna-se difícil de ser rompido, porém, passível de ser desconstruído e reconstruído “pelas e para as mulheres”. A sociedade tem se transformado, ainda que de forma muito lenta e resistente com relação à mudança dos velhos paradigmas. Teorias têm sido reformuladas, de tal forma a já começar a apresentar outra visão com relação ao feminino. Tudo isso, deve-se à luta das mulheres por melhores condições de inserção social e participação enquanto indivíduos históricos e concretos. Embora uma parcela delas esteja engajada nos espaços públicos da sociedade, muitas delas ainda buscam sair da condição de espectadores, o que contribui para a escrita social das mulheres, fato negligenciado durante muito tempo, mediante a invisibilidade feminina na história. Contudo, apesar da árdua luta realizada dia-a-dia, faz-se necessário ainda à ruptura de profundas raízes que ainda permeiam as relações sociais, bem como de lacunas que ainda necessitam ser preenchidas na luta contra os estereótipos que mantiveram as mulheres em posições marginalizadas do contexto social, os quais foram incansavelmente repetidos durante muito tempo e que agora começam a ser desconstruídos, ainda que lentamente. Por fim, é nesse contexto, até então secreto, ou ainda, oculto pela sociedade que intensas lutas foram e ainda continuam sendo travadas como espaço de batalhas, resistências e conquistas de muitas mulheres. 5. Referências Bibliográficas ARENDT, H. A Condição Humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1983. BIBLÌA SAGRADA DE JERUSALÈM. São Paulo: Edições Paulinas, 1985. BOURDIEU, P. O Poder Simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil S.A, 1989. ______. A Dominação Masculina. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil S.A, 1999. ______. Questões de Sociologia. Rio de Janeiro: Marco Zero, 1983. CARDOSO, C. F.; VAINFAS, R. (Orgs.). Domínios da História: ensaios de teoria e metodologia. Rio de Janeiro: Campus, 1997. FALCON, F.J.C. História e Representação. IN: CARDOSO, C.F; MALERBA, J. Representações: contribuição a um debate transdisciplinar. Campinas: Papirus, 2000. 11 CHARTIER, R. À Beira da Falésia: a história entre certezas e inquietudes. Porto Alegre: UFRGS, 2002. FARIAS, M.F.L de. As Representações Sociais: algumas reflexões sobre a participação feminina nos assentamentos de reforma agrária. In: Anais eletrônicos do XXII Simpósio Nacional de História: História: Guerra e Paz. Londrina, 2005. HUNT, L. Revolução Francesa e Vida Privada. In: PERROT, M. et al. História da Vida Privada 4: da revolução francesa à primeira guerra. São Paulo: Companhia das Letras, 1991. MAFFESOLI, M. No Fundo das Aparências. Rio de Janeiro: Vozes, 1996. MOSCOVICI, S. Representações Sociais: investigações em psicologia social. Petrópolis: Vozes, 2003. PERROT, M. 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