1 Um transtorno especial do amor na contemporaneidade: o consumo de drogas, a situação de rua e a posição da criança como objeto a. Adilson Pimentel Valentim (IBMR- Laureate Univerisities).Cláudia Henschel de Lima (IBMR- Laureate Univerisities. EBP-AMP). Júlia Reis da Silva (UERJ. ICP-RJ). Natália Ferreira Rodrigues (IBMR- Laureate Univerisities)1 1. Introdução O objetivo da pesquisa é abordar, pela psicanálise, a relação entre a vida nas ruas - na etapa que vai da infância à adolescência - e o uso de drogas (em especial, o crack). A partir da hipótese freudiana de que a constituição subjetiva depende do recalcamento dos representantes psíquicos das pulsões e da identificação ao ideal, promovida pela função paterna, pretende-se mostrar que a abordagem das particularidades da constituição subjetiva na população infanto-juvenil de rua exige que se analise o nível de operatividade da função paterna. Entende-se como criança e adolescente em situação de rua, aquele que, com ou sem laço familiar, vive parte de seu tempo na rua sem a supervisão de um adulto que se responsabilize por ele. A partir desta definição, é possível identificar os problemas específicos a situação de viver na rua (desnutrição, exploração do trabalho infantil, violência sexual, uso abusivo de drogas), bem como as conseqüências do consumo de crack na passagem da infância para a adolescência nesta situação: isolamento social, degradação dos cuidados com o corpo, comportamento sexual de risco, incremento da atividade ilícita (roubo, tráfico), anorexia, sentimento paranóico e passagens ao ato associados a esse sentimento. Tais aspectos exigem um olhar atento para a constituição subjetiva em situações nas quais concorrem as seguintes variáveis: situação de rua e consumo de substâncias psicoativas. Na perspectiva da psicanálise, a passagem da infância para a adolescência é marcada pela seguinte constelação subjetiva: 1. No real: a eclosão do gozo pulsional no falo. 2. No simbólico: a consolidação de uma identidade de gênero, de laços sociais e a identificação à um ideal profissional. 3. No imaginário: a maturação de caracteres sexuais secundários e as transformações puberais que conduzirão o sujeito à vida adulta. 1 A presente pesquisa teve a colaboração de Carlos Emmanuel da Fonseca Rocha (IBMR- Laureate Univerisities). 2 A efetuação da estrutura subjetiva nesses registros (RSI) depende da presença do Nome-do-Pai (NP): um significante privilegiado no Outro, um S1, que funcione como bússola para a orientação do sujeito. O problema identificado na atualidade, é que os adultos podem não se sentir responsáveis na transmissão do Nome-do-Pai. Fundamentada na indicação de Jacques-Alain Miller (2003) 2 sobre o índice de operatividade do Nome-do-Pai, a hipótese desta pesquisa em curso, é que há uma correlação entre a operatividade do Nome-do-Pai na efetuação da estrutura subjetiva e a migração da criança para a situação de rua. 2. Mal-estar contemporâneo. No quadro conceitual do primeiro dualismo pulsional, Freud (1980/1914:108)3 formulou a posição ocupada pela criança no desejo dos pais - Sua majestade, o bebê sustentando que a constituição da subjetividade está em estreita dependência da parceria amorosa com os pais. Nesta dimensão, a criança representaria o renascimento do narcisismo dos pais: “A criança terá mais divertimentos que seus pais; ela não ficará sujeita às necessidades que reconheceram como supremas na vida. A doença, a morte, a renúncia ao prazer, restrições à sua vontade própria não a atingirão; (...) ela será mais uma vez realmente o centro e o âmago da criação – ‘Sua Majestade o Bebê’(...). A criança concretizará os sonhos dourados que os pais jamais realizaram (...)”. A elaboração conceitual da pulsão de morte, a partir de 1920, produz uma modificação importante na dinâmica da parceria amorosa. Em O Mal-Estar na Civilização (1980/ 1930[1929])4 Freud expõe sua preocupação frente a expansão da modernidade, na qual se verifica o declínio da organização da sociedade em torno da identificação ao Ideal, deixando entrever a presença de uma relação conflituosa entre a experiência subjetiva e as insígnias paternas. Ele constata que o sujeito faz do modelo paterno, o objeto de uma relação sintomática, alternando entre admiração-ideal e rivalidade-culpa. Sendo assim, apesar de conceber o pai como instância simbólica de transmissão da lei, como bússola de orientação para o sujeito, Freud situa no sentimento de rivalidade-culpa, um ponto de discordância, um modo desregulado e imperativo de funcionamento da lei. 2 MILLER, J.A. et al. La Convención de Antibes.Buenos Aires : Paidós, 2003, pp.202-203. FREUD,S. “Sobre o Narcisismo: Uma Introdução.”, Obras completas. Op.cit., vol. XIV. 4 FREUD,S. “O Mal-Estar na Civilização.”, Obras completas. vol. XXI. 3 3 Esse ponto de discordância o levou (Freud,1980/1923)5 a decompor o pai em duas instâncias - o ideal do eu e o supereu – e a concentrar no supereu a dimensão imperativa, pulsional, da lei. Dessa forma, sua preocupação com o declínio das insígnias paternas é correlata à própria constatação de que o pai enquanto unidade em torno do qual gravitam as identificações recuou, em nome de sua divisão entre o ideal do eu e o supereu. Tal divisão da função paterna concentra o ponto de anomia da lei, que faz do ingresso do sujeito na sociedade uma exigência desmedida de renúncia da satisfação pulsional (Freud, 1980/1927)6. A partir da anomia da lei, a formulação de 1914, sobre a criança, ganha outra leitura: da identificação da criança ao Ideal à sua localização como objeto da exigência superegóica. A dimensão de anomia da lei se apresenta contemporaneamente na forma da sociedade de consumo, fazendo eco à preocupação de Freud com o declínio do ideal na modernidade. Verifica-se na liberdade individual de escolher o que melhor satisfaz ao indivíduo - premissa da democracia liberal contemporânea - a anomia típica da sociedade de consumo: essa premissa tende a homogeneizar a droga como objeto regulado pelas mesmas leis de mercado que regulam os demais objetos de consumo7. Recorre-se à Bauman (2005) 8 para explicar essa homogeneidade como sendo o desdobramento de uma série indiferenciada de objetos de consumo que não obedecem a uma lógica pautada em um ideal, mas ao regime da satisfação auto-erótica. Nesse quadro de época definido pela hegemonia da satisfação imediata associada à lógica do consumo, pelo declínio do ideal e pelo abalo das identificações, um outro aspecto fundamental se adiciona: a formação do refugo humano. Bauman (2005) emprega esta categoria para analisar os diversos tipos de refugiados na sociedade contemporânea – dentre eles a população de rua – confirmando alguns estudos, conduzidos pela Organização Mundial da Saúde (OMS, 1995), que registram em torno de 100 milhões de crianças e adolescentes em situação de rua, em todo o mundo e que fazem uso abusivo de drogas – sendo que 40 milhões estão localizados na América Latina. Um conjunto de levantamentos sobre consumo de drogas em criança e adolescentes, em situação de rua, no Brasil 9, evidenciam o elevado 5 FREUD,S. “O Ego e o Id.”, Obras completas. vol. XIX. FREUD,S. “O Futuro de uma Ilusão.”, Obras completas. vol. XXI. 7 HENSCHEL DE LIMA, C. et al. “Pai, Modernidade e Toxicomania: versão do Pai e Diagnóstico Diferencial na Toxicomania”in Latusa. Para Que Serve um Pai? Usos e Versões. Rio de Janeiro: Escola Brasileira de Psicanálise, n. 11, 2006, p.115-130. 8 BAUMAN, Z. Vidas Desperdiçadas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora. 2005 9 Respectivamente: III Levantamento sobre Uso de Drogas entre Crianças e Adolescentes em Situação de Rua de Cinco Capitais Brasileiras (1993[1994]); IV Levantamento sobre Uso de Drogas entre Crianças e Adolescentes em Situação de Rua de Seis Capitais Brasileiras (1997[1998]); Levantamento Nacional 6 4 consumo de solventes e crack na grande parte das capitais investigadas, como São Paulo e Recife, e o registro de uso diário de 60% (consumo de 20 ou mais dias no mês). O gráfico 1 foi construído a partir dos dados apresentados em uma tese recente (Neiva-Silva, 2008)10, que mostra a busca de diversão e liberdade como sendo o motivo central para crianças e adolescentes migrarem para a rua. Gráfico 1. Frequências de Percentagens Relativas aos Motivos das Crianças e Adolescentes para Migrarem para a Rua (Respostas Múltiplas, N = 216) 35% 30% 25% 20% 15% 10% 5% 0% P rocurar diversão, liberdade A com panhar D iscussões A panhava em N ão tinha A com panhar M ortes dos B uscar B uscar M ãe P ais bebiam A buso sexual P orque quis outras constantes casa nada m ais irm ãos pais sustento para sustento para casou/juntou ou usavam pessoas em casa legal pra fazer si a fam ilia drogas O utros O dado merece atenção especial, na medida em que pode ser interpretado como fruto de uma escolha individual por parte da criança, seguindo a lógica da utopia liberal. No entanto, quando confrontados com os mesmos achados de Neiva-Silva (2008) para a incidência elevada do uso de crack, de 98.9%, na população infanto-juvenil que vive na rua há mais de cinco anos, que passam mais de oito horas na rua e que não vivem com a família, conforme os dados da tabela 1. sobre Uso de Drogas entre Crianças e Adolescentes em Situação de Rua de Vinte e Sete Capitais Brasileiras 2003[2004]). 10 NEIVA-SILVA, L. Uso de Drogas entre Crianças e Adolescentes em Situação de Rua: Um Estudo Longitudinal. Tese apresentada como exigência parcial para obtenção do grau de Doutor em Psicologia. Rio Grande do Sul: UFRGS, 2008. 5 Tabela 1. Probabilidade de início de uso de crack, em crianças em situação de rua (N = 68) Mora com a familia Não Não Não Sim Não Sim Sim Sim Anos na ru a Mai s de 5 Mai s de 5 Até 5 Mai s de 5 Até 5 Mai s de 5 Até 5 Até5 Horas na rua Mais de 8 Até 8 Mais de 8 Mais de 8 Até 8 Até 8 Mais de 8 Até 8 Prob abilidade d e iniciar uso de crack 99% 90% 87% 73% 42% 22% 17% 2% A consideração desses dados em conjunto – busca de liberdade e 99% de probabilidade de uso de crack – conduz a argumentação desta pesquisa: a baixa operatividade do Nome-do-Pai é correlata à ascensão do supereu que recai sobre o sujeito como autoridade externa demasiadamente exigente. A presença do supereu, é o avesso do sentimento de liberdade individual, favorecendo a desorganização dos lugares na família, a presença da violência entre seus membros, a ruptura da parceria amorosa da criança com os ideais transmitidos pela família e a escola. Pode-se considerar que a situação de rua como fuga para a rua e a liberdade alegada como razão para a situação de rua, como livrar-se da presença feroz do supereu. 3. Determinantes psíquicos. Essa pesquisa se ancora na hipótese psicanalítica de que o consumo abusivo de drogas não tem a mesma característica de um sintoma no sentido clínico conferido por Freud (1980/[1916-1917]) para o diagnóstico e direção de tratamento das neuroses histéricas e obsessivas, ou seja, como uma mensagem cifrada cujo sentido é ignorado pelo sujeito. Segundo Miller (2003) a evidência clínica primeira, no consumo abusivo de drogas, é a presença de um modo de gozo regulado, não pela ação do Nome-do-Pai, mas pela ação de um objeto produzido pela ciência. Nestes casos, verifica-se: 1. A não fixação da estrutura psíquica (neurose-psicose) para conceder as coordenadas do funcionamento psíquico. 2. A circulação livre das pulsões impondo uma satisfação imediata no corpo, sem a interferência do recalcamento das pulsões pelo ideal. 3. A pregnância de significações absolutas ancoradas no imaginário e que obedecem à fórmula: ‘se... então sou’: ‘se uso cachimbo, então sou sacizeiro’; ‘se uso crack, então sou crackeiro’. 6 Viganó (199811, 200812) retoma o eixo central de Três Ensaios sobre a Sexualidade(Freud,1980/1905)13, localizando no desencadeamento do uso abusivo de drogas, a ocorrência de uma interrupção na efetuação da estrutura subjetiva, entre a infância e a adolescência, que dificulta o recalque da satisfação pulsional parcial e inibe o acesso a um lugar no campo das relações sociais. Então, a substância torna-se seu universo de referência, um tipo de realidade substitutiva para o laço social. O início do consumo abusivo de drogas está no momento em que faltam recursos ao sujeito, no início da adolescência, para lidar com o remanejamento pulsional – da satisfação autoerótica da infância para a parceria amorosa e o estabelecimento do laço social mais amplo – típico deste momento. Esses recursos são subjetivos e estão em estreita relação com a presença da função paterna – concordando com o desenvolvimento conceitual de Jacques Lacan (1955-56[1998])14 a respeito da relevância do Nome-do-Pai na constituição da realidade psíquica. O Nome-do-Pai estabiliza os efeitos do desejo da mãe a fim de possibilitar o surgimento de uma nova significação para o sujeito: a significação fálica. Trata-se de uma estabilização da relação dual, sem mediação, entre a criança e mãe, que se verifica no estágio do espelho, e que pode ser exemplificada através do caráter enigmático, para a criança, de suas partidas ou de seu retorno. Se a mãe sai, se o Outro não está presente, deixando a criança diante de um vazio identificatório, então o Nome-do-Pai advém para garantir a ancoragem em uma identificação e, conseqüentemente, o limite sobre o desejo da mãe. A intervenção do Nome-do-Pai sobre o desejo da mãe será formalizado através do mecanismo de separação (Lacan, 1964[1985])15, que permite ao sujeito perguntar sobre sua existência. (Lacadée, 2006)16. Dessa forma, a criança que, no complexo de Édipo, ocupara o lugar de objeto do desejo materno (falo para a mãe), se separa desta posição obtendo como recompensa o falo simbólico que é a possibilidade de ingressar na sexualidade adulta. 11 2007. Acessado em: www.institutopsicanalise-mg.com.br/almanaqueonline.htm , em 20/07/10. VIGANÓ, C. “O Despertar Difícil”. Palestra promovida pelo Instituto de Psicanálise e Saúde Mental de Minas Gerais – IPSM-MG e Associação Mineira de Psiquiatria – AMP. Minas Gerais: Associação Médica de Minas Gerais, 1998. Inédito. 12 VIGANÓ, C. “Dependências Patológicas” in Latusa Digital, ano 5, n. 33, 1-13, junho 2008. Acessado em: www.latusa.com.br , em 20/07/10. 13 FREUD,S. “Três Ensaios sobre a Sexualidade”, Obras completas. vol. VII. 14 LACAN, J. “De Uma Questão Preliminar a Todo Tratamento Possível da Psicose” in Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1955-56[1998]. 15 LACAN, J. “Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise” O Seminário, Livro 11, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1964[1985]. 16 LACADÉE, P. “A modernidade irônica e a cidade de Deus” In Curinga. Invenções Paternas. Belo Horizonte: Escola Brasileira de Psicanálise. Vol 1, n.23, novembro -2006b, p. 35-54. 7 Os dados do Gráfico 1 e da Tabela 1, devem ser lidos à luz da operatividade do Nomedo-Pai na constituição da subjetividade. Entende-se que nesse caso, a criança está vulnerável tanto a própria organização auto-erótica da libido, como às idas e vindas do Outro social na forma de grupos de extermínio, da exploração sexual dos menores, do tráfico de drogas, do roubo e da opressão por vezes excessiva da polícia 4. Considerações Finais: a criança na civilização do objeto a Referindo-se a subjetividade contemporânea, Miller (2005: 412)17 assinala sua dependência ao objeto a, a bússola da civilização atual. A criança em situação de rua não escapa a esse modo de organização, apresentando-se em uma vertente distinta do Ideal, definido por Freud em 1914: ela encarna a versão dejeto do objeto a, ocupando o lugar de refugo no discurso capitalista contemporâneo e submetida, em sua estrutura subjetiva, à exigência superegóica. O declínio do Nome-do-Pai na efetuação da estrutura subjetiva e a preponderância da ação do supereu, que toma a forma de uma autoridade externa anônima, que exige demasiadamente do sujeito, o conduz à dois movimentos: 1. Migrar para a rua como recurso à liberdade. 2. Recorrer a substância psicoativa para apaziguar os efeitos do supereu. Sustenta-se, nesta pesquisa, que a posição da criança em situação de rua e o consumo abusivo de drogas, respondem a essa versão do objeto a-dejeto para o Outro. Assim, ao invés de ser a causa de desejo nos pais, encarnação amorosa do Ideal do eu (Freud, 1980/1914), ela assume a posição de objeto pulsional na atualidade, favorecendo a ocorrência das passagens ao ato específicas do consumo abusivo de drogas: overdose, atos de violência associados aos efeitos paranóicos de drogas como o crack, recaídas. No avesso do contexto contemporâneo da liberdade individual de escolha, o referencial epistêmico da psicanálise produz uma leitura precisa da situação de rua. É, portanto, população infanto-juvenil de rua porque: 1. Estão destituídos da proteção dos significantes que compõem o discurso familiar. 2. Encarnam o refugo da sociedade de consumo. 17 MILLER, J.A. “Uma Fantasia”. Opção Lacaniana. 42,7-18, fev. 2005 8 3. Servem-se de seu corpo, da degradação de seu cuidado, da marca de seu abandono, para encarnar o lugar radical de exceção, de refugo, na sociedade – por meio de um processo denominado por Recalcatti (2002) de evidência obscena18. 4. Estão fixados em uma certeza imaginária que orienta sua existência na situação de rua, e que compõem a série dos nomes-do-pior: débil, perigoso, viciado, crackeiro. 18 RECALCATTI, M. “O “Demasiado Cheio” do Corpo. Por uma Clínica Psicanalítica da Obesidade”. In Latusa. Revista da Escola Brasileira de Psicanálise – Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Escola Brasileira de Psicanálise – Seção Rio de Janeiro, 2002, p.51-74.