RELAÇÕES DE FORÇA DO CAMPO LITERÁRIO: UM ESTUDO DAS
CRÔNICAS DE MILTON HATOUM
Aídes José Gremião Neto (UERJ)
Grande parte das crônicas de Milton Hatoum, sobretudo as publicadas na revista
Entrelivros, tratam de responder a pergunta inaugural que pode ser resumida nas
palavras do narrador da crônica “„A parasita azul‟ e um professor cassado” (HATOUM,
2005a, p. 26): “De onde vem o desejo de escrever?”. Mas o foco de nossa investigação,
que se segue a esta reflexão crucial, pode ser ainda resumido conforme as seguintes
palavras deste mesmo narrador: “[...]. Para a maioria dos escritores, as fontes de suas
narrativas giram na infância e juventude, cujo mundo é uma promessa de um futuro
livro. A memória incerta do passado acende o fogo de uma ficção no tempo presente”.
Há aí algumas chances de compreensão, não só do cronista e de suas crônicas, mas da
própria poética do autor, a qual se estende para outras áreas de sua produção artística:
infância e juventude; mundo real e mundo ficcional; memória sinuosa e representação
ficcional; passado e presente, dentre outros aspectos.
Neste sentido, buscamos adentrar o universo ficcional hatouniano para analisar
os possíveis limites e alcances do jogo de representação em suas crônicas, que revelam
um pouco da imagem do escritor engajado no que Pierre Bourdieu (1968) e, mais tarde,
Dominique Maingueneau (2001) pensaram como campo intelectual e campo literário.
Desta forma, vemos que, na crônica mencionada, ao pôr em cena um narrador-escritor,
que vai narrar sua experiência de leitor, Hatoum constrói uma escrita que revela índices
“bio/gráfico”, conforme o termo de Maingueneau (2001). Assim, esta narrativa sugere a
imagem do Hatoum-leitor subscrita neste narrador leitor e, ao mesmo tempo, dissolve
esta imagem através do dado ficcional. Embora saibamos que, assim como este
narrador, Hatoum possa ter passado sua infância em Manaus e ter publicado um
romance, não cabe afirmar que se trata meramente da figura do escritor Milton Hatoum.
O que podemos inferir, principalmente através da observação da poética de Hatoum, é
que suas crenças estéticas são elementos dinamizados no jogo de encenação, de modo
que não podemos identificar onde se dá a interseção entre vida e escrita ou entre texto e
contexto ou, ainda, entre ética e estética. Assim, trabalho com a escrita, leitura cerrada,
análises de aspectos estéticos de outros escritores são alguns dos temas recorrentes dos
narradores hatounianos.
De modo geral, a compilação ficcional destes narradores nos possibilita refletir,
via dialogismo (BAKHTIN, 2011), as noções de mercado, leitor, autoria, escrita e valor.
Nas crônicas de Hatoum há uma recorrência, por exemplo, do trato intratextual com a
imagem do escritor-narrador, o que ratifica os laços entre os campos intelectual e
literário com a estrutura de encenação. A imagem que moldamos do próprio Hatoum é
homóloga a este debate, uma vez que, por meio da observação do conjunto de produção
do autor, podemos depreender seu posicionamento estético frente ao campo intelectual.
Todavia, para produzirmos sentidos sobre a imagem do escritor, é preciso observar
como ele articula sua escrita com o campo literário, nele assumindo, portanto,
determinada posição.
O discurso literário contemporâneo revela um multifacetamento, no qual a
escrita deixa de assumir a concepção romântica de inspiração ou intenção do autor,
passando a assumir formas cada vez mais dialógicas, interna e externamente, o que
corresponde à intratextualidade e à intertextualidade. Parafraseando o título de uma das
crônicas de Hatoum (2005b, p. 27), publicada na revista Entrelivros e cujo título
Hatoum retirou de uma obra de Marcel Proust, é possível dizermos que o escritor vive
incessantemente “em busca da inspiração perdida”. Para não negar tal noção, o narrador
desta crônica trapaceia com a compreensão romântica de inspiração, buscando (re)
contextualizá-la nos tempos e compreensões críticas hodiernas. Este narrador, então,
afirma que a noção de „inspiração‟ só faz sentido “[...] com o esforço do pensamento e a
convivência obstinada com a palavra”, o que, trocado em miúdos, pode significar que o
autor necessita da técnica, do trabalho estético e da leitura cerrada, relações que mantêm
com o campo intelectual e que resultam no material estético ao qual chamamos de
literatura.
Em respeito ao espaço, faremos a leitura da crônica “Um inseto sentimental”
(HATOUM, 2013) e discorreremos um pouco mais sobre a narrativa já citada, “„A
parasita azul‟, e um professor cassado” (HATOUM, 2005a). Acreditamos que essas
duas crônicas amalgamam bem as questões até então debatidas, mais especificamente,
questões acerca das relações literárias ou, ainda, da autopoiesis de Hatoum-escritor.
Em “Um inseto sentimental” (HATOUM, 2013a), crônica que abre o volume
Um solitário à espreita (HATOUM, 2013), temos um narrador-escritor que nos permite
observar alguns ritos da relação de produção do objeto literário por parte do autor. Este
narrador-escritor, também sem nome, ao escrever, é incomodado por um inseto que
passa a ser designado como “monstro”. E, ao ser incomodado por “este monstro”, ele
(narrador) perde a ideia da crônica e também a alegria de escrevê-la, mesmo que saiba
que vai “[...] reescrevê-la quatro ou sete vezes” (HATOUM, 2013, p. 11). Por
conseguinte, depois do incômodo de uma pausa na escrita que o fez (o narrador) dar
“adeus à ideia da crônica e à leitura de Gógol” (HATOUM, 2013, p. 11), o inseto, ao
pousar numa velha fotografia de sua mãe, o faz trilhar os caminhos da memória e,
assim, acaba lhe concedendo outra ideia para a crônica, oriunda das lembranças de sua
falecida mãe. É válido assinalar que, nesta crônica, início e fim são interligados por uma
espécie de pacto com a escrita, ou melhor, com o trato esmerado que o escritor mantém
com esta. E é justamente desta maneira que o escritor finaliza sua meta-crônica: resta
“[...] pegar a caneta e escrever a primeira frase da crônica, quase sempre a mais difícil
[...]” (HATOUM, 2013, p. 11). Outros temas se desdobram, como a relação da escrita
com a memória ou das influências literárias tão presentes nas relações entre as obras.
Já na crônica “„A parasita azul‟ e um professor cassado”, o que está em jogo é a
importância da leitura crítica, não só para os leitores em geral, mas também para aqueles
que podem vir a se tornar escritores. Nesta crônica, mais uma vez, estamos diante de um
narrador-escritor que vai relatar as experiências de suas primeiras leituras. Por isso, o
caráter intertextual já explícito no título da crônica, cuja “parasita azul” é uma
referência a um conto de Machado de Assis. Segundo o narrador da crônica, que se
confunde com seu autor, a leitura do romance Grande sertão: veredas e do conto “A
parasita azul” foram fundamentais para o rumo de sua carreira como escritor. Nesta
questão, está imbricada a relação paratópica do autor com o campo literário, já que,
como não há um manual para se tornar escritor, tampouco há garantias outras, além da
crença do autor, no caso Hatoum, em investir cegamente no “combate” com as palavras.
Em seu tempo presente, sob o olhar amadurecido do escritor que parece consolidado na
esfera intelectual, o narrador da crônica diz que, mesmo que tenha feito a leitura
superficial dessas duas obras quando criança, elas foram essenciais para a internalização
de estilos e usos variados da linguagem de ambos os escritores, Guimarães Rosa e
Machado de Assis. Sua concepção de escrita, pois, está diretamente associada ao
contato constante com a palavra escrita ou a ser escrita. De certa forma, podemos
entender isto como uma crença estética de Hatoum, já que em muitas de suas crônicas
há menções diretas a muitos escritores feitas através de narradores conscientes das
relações existentes no campo literário.
Como toda pesquisa requer, ficamos com o recorte dessas narrativas
hatounianas, para não ultrapassarmos o espaço e o objetivo deste trabalho de
comunicação. Assim, concluímos provisoriamente que o universo cronístico de Hatoum
é rico em conhecimentos a serem explorados em releituras múltiplas. Um universo
ficcional que, em sua maioria, compõe o que propomos chamar de autopoiesis do
escritor.
Referências:
BAKHTIN, Mikhail Mikhailovich. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins
Fontes, 2011.
BOURDIEU, Pierre. Campo intelectual e projeto criador. In: POUILLON, Jean (Org.).
Problemas do estruturalismo. Rio de Janeiro: Zahar, 1968, pp. 105 – 145.
HATOUM, Milton. „A parasita azul‟ e um professor cassado. Entrelivros, São Paulo,
ano 1, n. 1, maio 2005a, p. 26-27.
______. Em busca da inspiração perdida. Entrelivros, São Paulo, ano 1, n. 2, junho
2005b, p. 26-27.
______. Um inseto sentimental. In: ___. Um solitário à espreita. São Paulo: Companhia
das Letras, 2013; pp. 11-12.
______. Um solitário à espreita. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.
MAINGUENEAU, Dominique. O contexto da obra literária: enunciação, escritor,
sociedade. 2 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
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