MÁRIO TAVARES CHICÓ, O HOMEM E O AMIGO Conheci o Prof. Mário Tavares Chicó em Évora, numas férias de verão, durante a II Grande Guerra Mundial, há quase 30 anos. Foi-me apresentado nessa altura pelo Dr. Luís Silveira, que eu tinha encontrado na Alemanha, em 1935. Eu vinha mostrar Portugal a minha Mulher, e Évora era um dos pontos fundamentais do programa. Chicó foi o nosso cicerone, com aquela simplicidade fidalga de quem gosta de comunicar e de ensinar sem o fazer sentir. Ficámos com a óptima impressão de ter conhecido um director de Museu, absolutamente senhor do seu assunto, e cujo saber trasbordava do Museu para todos os monumentos de Évora e que, ao mesmo tempo, era profundamente civilizado. De tempos a tempos, nas minhas vindas a Lisboa, encontravamo-nos, e ficava-me sempre uma agradável recordação desse encontro. Em 1950, fizemos ambos parte da delegação portuguesa ao Colóquio Internacional de Estudos Luso-Brasileiros em Washington, e quis a sorte que ficássemos sentados um ao lado do outro no avião. Nesses dias de convívio com colegas estrangeiros, as nossas relações estreitaram-se mais e começou a nascer uma grande simpatia mútua. No decorrer dos anos viajámos muito, os nossos horizontes foram-se alargando em relação às gentes e às coisas, permitindo conversas sobre os temas mais variados. Chicó tinha sempre uma opinião sua, mas nunca a conversa tomava ar de polémica, nascida da necessidade de a fazer prevalecer. Não era um homem de discussão — era um homem de diálogo, com respeito pelo opositor. A minha admiração por Mário Tavares Chicó nunca foi desiludida; pelo contrário, cada vez cresceu mais, até se tornar numa verdadeira e profunda amizade, que hoje se transformou numa grande saudade. Durante os anos em que fui professor da Faculdade de Letras, as relações com Mário Chicó amiudaram-se. Almoçávamos juntos, pelo menos, uma vez por semana e foi sempre enorme o proveito que tirei desses encontros regulares durante vários. anos. Chicó era, além do seu vasto saber, um representante de um tipo de homem europeu, hoje extremamente raro. Era o europeu de raiz greco-latina, mas homem do seu tempo e aberto a todos os problemas da cultura viva. Era daqueles para quem a forma e a beleza tanto estavam num quadro, como numa catedral, numa casa rústica, como num livro, no convívio com outra pessoa, como numa refeição bem preparada, num bom vinho ou num concerto de câmara. Não era de maneira nenhuma o tipo de super-especializado, ambicioso de publicar, invejoso, competidor, maledicente, angustiado com falta de tempo, como é hoje tão frequente na nossa profissão. Creio mesmo que não tinha qualquer ambição que não fosse a de ser um intelectual, que se realiza harmoniosamente na vida de todos os dias. E realizava-se tanto na cátedra, como na conversa, numa conferência, num colóquio, como num trabalho que escrevesse. Talvez ninguém me desse o bem-estar que me dava o Chicó. O seu equilíbrio perfeito servia-me de espelho, onde por contraste via muitos dos meus defeitos e fraquezas, e sobretudo os defeitos e fraquezas da grande maioria dos homens. Chicó, o peripatético sorridente, não tinha complexos de inferioridade, nem de superioridade, não tinha sentimentos de frustração, nem de angústia, não tinha inveja, nem ódios. Na sua conversa não se ouvia uma palavra violenta, nem criticava ninguém com azedume. Quando fazia uma referência crítica a alguém, usava sátiras cheias de finura e de espírito e, nesses momentos, os seus olhos azuis-claros tinham um brilho agarotado, enquanto com a mão tapava a boca, naquele gesto que lhe era tão peculiar. As nossas conversas sobre cultura portuguesa eram intermináveis. Excelente observador, relacionando com facilidade dados de diferentes ramos do saber, as suas opiniões e objecções eram sempre pertinentes e fecundas. Deambulador infatigável, nunca escravo do tempo, Chicó era um dos poucos portugueses verdadeiramente civilizados que conheci, inteiramente despido do provincianismo que, muitas vezes, é aflitivo, mesmo em pessoas muito sabedoras. Para o fim da vida, que aliás eu estava longe de prever, o reumatismo apoquentava-o. A grande pasta com fotografias e diapositivos que sempre o acompanhava, foi substituída por uma pasta leve. As mãos começavam a deformar-se, mas nunca se queixava. As idas e vindas ao Brasil, com as mudanças bruscas de clima agravavam o seu mal, mas na sua fisionomia nunca transparecia a preocupação ou o sofrimento. Vivia com a maior dignidade, sem querer dar aos outros o espectáculo deselegante do sofrimento. Quando lhe dizíamos que não devia comer certas coisas, ou beber vinho, porque estava a tomar cortisona, respondia sorrindo que era precisamente para poder comer e beber o que lhe apetecia, que tomava as drogas. Esta atitude podia parecer um pouco inconsciente; mas eu creio que era de pura coerência. A vida tinha de seguir o seu ritmo normal, com a harmonia e a elegância de sempre. Ele não era homem para a alterar de qualquer maneira. A doença não conseguiu vencê-lo, a não ser pelo aniquilamento, pois quando o visitei poucos dias antes de nos deixar, Chicó, já só com a pele sobre os ossos, continuava a conversar e os seus olhos a sorrir da mesma maneira agarotada. Não lhe ouvi um queixume, uma frase de desânimo, era o Chicó de sempre, que a natureza devorava mas não conseguia dominar. Viveu com a elegância, a nobreza e a harmonia de um homem grande, e deixou esta vida fiel aos princípios que sempre soube manter. ANTÓNIO JORGE DIAS