Em Fevereiro de 1935, imprimiu-se em Lisboa uma separata
de «Medicina — Revista de Ciências Médicas e Humanismo»,
pequeno trabalho de 19 páginas, intitulado «A Catedral de
Évora — Plano de documentação fotográfica para o seu estudo
a distância».
O seu autor, Mário Tavares Chicó, então com trinta anos
de idade, pois havia nascido em 1905, em Beja, fizera nesta
mesma cidade, e nas de Coimbra e de Évora os seus estudos
secundários, vindo a licenciar-se em Ciências Históricas e
Filosóficas pela Faculdade de Letras de Lisboa, e na capital
realizaria também um estágio dos Museus Nacionais.
Dois anos depois de publicada aquela separata, testemunho
da escolha de uma carreira ou promessa de realização de
um destino atraído à Arte pelas poderosas forças da História
e da Museologia, rumaria ao estrangeiro, com uma bolsa do
Instituto de Alta Cultura, em busca de mais profunda preparação e de mais conhecimentos. Durante os anos lectivos de
1937-38 e 1938-39, frequentaria o Instituto de Arte e de Arqueologia da Universidade de Paris, o Colégio de França, orientado,
sobretudo, por Henri Focillon mas também por Élie Lambert
e seguiria na «École des Charles» um curso de Arqueologia
Medieval. Este sinal de particular atenção pela arte medieval
não significa que o bolseiro se não interessasse igualmente
quer pela história mundial da arte, quer pela museologia, viajando pela Europa, visitando museus e monumentos, em
França, na Bélgica, na Alemanha, na Suíça, na Inglaterra e
em Espanha e informando-se, com especial cuidado, acerca
da organização das novas unidades museográficas em Paris,
Londres, Bruges e Colónia. Regressado a Portugal, de 1940 a
1942, logo poria o seu saber e a sua sensibilidade ao serviço
da constituição do Museu da Cidade de Lisboa, colaborando
no restauro do Palácio em que ele está instalado. Em 1943,
conquistaria no concurso de provas públicas, o lugar de Director do Museu Regional de Évora e, em 1945 seria nomeado
professor de História da Arte da Faculdade de Letras de
Lisboa, tendo desempenhado estes dois últimos cargos até à
data da sua morte, em 1966.
Voltemos porém ao trabalho de 1935, dedicado à catedral
de Évora e que, tanto quanto sabemos, foi o seu primeiro
estudo publicado.
Não temos a preocupação, neste momento e neste lugar,
de esboçar uma biografia ou de analisar a obra de Mário
Tavares Chicó. Com diferente propósito, antes buscamos trabalhar uma palavra: a palavra que procuramos ao longo de
quanto dissermos que possa oferecer-se como homenagem de
sincera saudade, e também de profunda admiração. Por isso,
e porque a palavra de saudade envolve também a admiração,
quisemos deter-nos no trabalho inicial de quem, em continuidade de estudos e publicações se confirmaria como um dos
mestres incontestáveis da historiografia contemporânea da
Arte, no nosso País.
Sobretudo, queremos assinalar naquele trabalho a potencialidade bem desenhada de um método, e discernimento da
informação, o enunciado da perspectiva intelectual, as linhas
mestras de um programa de trabalho a que não mais seria
infiel, mas que sem desfalecimento enriqueceria no robustecer
progressivo da sua formação cultural e na realização plena
de uma Obra. E queria deixá-lo assinalado porque creio importante que quanto se apontou aflore, em 1935, num trabalho
que antecede o seu estágio de bolseiro fora do País.
Colhemos na referida separata que «os estudos analíticos
e comparativos são sempre necessários como ponto de partida» e que «sem descurar completamente a análise do pormenor decorativo» se atendera, com mais cuidado, no estudo
do monumento, «à parte essencial da estrutura — a construção— relacionando os seus elementos com os de outras igrejas
similares».
Afirma, por outro lado, que «pela fotografia é hoje possível
realizar rigorosos estudos comparativos», que são naturalmente
complemento indispensável dos estudos no local, pois a documentação fotográfica, «graças à sua precisão mecânica, veio
substituir, com apreciável vantagem, os antigos desenhos e
gravuras». Mas Mário Tavares Chicó aflora também, recordando Riegl, a introdução do conceito de vontade artística
nos métodos de investigação, em História de Arte, lembra
Worringer e anota que a expressão poder artístico «é então
adoptada por todos os pensadores alemães». Assim, crê que os
nossos arquitectos românicos imprimiram vontade artística ao
granito das numerosas igrejas do Norte do País. Independentemente das influências recebidas de Espanha ou de França,
mostram-se nesses monumentos características de um românico tardio, cuja nacionalização se operou por coincidência
com a maneira de ser do povo português. Esse românico perdurará e atingirá a «plena época do gótico» na Batalha, por
exemplo, e alcançará até monumentos posteriores.
Importa sublinhar o significado de estas ideias expressas
por Mário Tavares Chicó em 1935, antes de seguir para o
estrangeiro.
Elas reflectem, se bem ajuizamos, uma orientação particularmente articulada com o pensamento alemão. Cita, efectivamente, Riegl, o esteta mais notável da Escola de Viena,
Deonna, que, embora suíço, desenvolveria muitos dos dados
facultados por Riegl, Meumann, Max Scheller, e Karl Woermann.
Por sua vez, os estudos franceses de História da Arte estão
sobretudo presentes pela citação de Camille Enlart e de André
Michel. A grande contribuição de Focillon para a formação
de Mário Tavares Chicó, essa só terá atingido toda a plenitude em Paris.
É justo referir que a bibliografia citada no estudo a que
vimos aludindo comporta, além de obras de Watson, do Marquês de Lozoya e de Lampérez y Romea, outras, a que eviden-
temente também ficou a dever a sua preparação, do Prof.
Reynaldo dos Santos, de Joaquim de Vasconcelos, de Vergílio
Correia, de Manuel Monteiro, de Aguiar Barreiros.
Riegl, Deonna e Worringer significam efectivamente um
movimento de reacção contra um conceito de História da
Arte denunciado por excessivamente materialista. A «Abstracção e Empatia» de Worringer, referida por Chicó, e «As Leis
e Ritmos na Arte», a obra de Deonna, que cita, significam a
atenção que lhe mereciam as ideias explanadas por ambos.
É sabido que Worringer, opondo-se à orientação de Taine
e dos seus discípulos, defendeu que «a verdadeira psicologia
do estilo só começa quando se explicam os valores formais
como expressão precisa dos valores interiores, de modo a
fazer desaparecer todo o dualismo de fundo e forma». Aspira,
contudo, a uma ciência da Arte, que se quer tornar «aproxidadamente objectiva», em vez de ser, como até então, «apreciação arbitrária e subjectiva de factos artísticos; é, em suma,
uma História da Arte» não como a simples história do saber
artístico, mas como a das intenções», pois as variações de
estilo são variações de intenções, pelo que as não devemos
considerar arbitrárias ou fortuitas. Pensa que «toda a época
se entrega com uma força particular a uma actividade artística que corresponde à sua própria intenção formal; ela dá
preferência à expressão artística e à técnica cujos meios exprimem mais seguramente e mais livremente a vontade artística.
Basta pois interrogar os factos históricos, procurar as expressões artísticas que predominam nas diferentes épocas: assim
nos encontramos na posse de um meio, o mais importante e
o mais elementar, para determinar a vontade criadora das
épocas em causa.»
Na linha de desenvolvimento de estas ideias, Wölfflin defenderia que «além do estilo individual, há pois um estilo de
escola, um estilo de região, um estilo de raça», e assim a
sua definição dos fins da História da Arte é a que considera
acima de tudo o estilo como expressão, a do estado de espírito
de uma época e de um povo, como também a de um temperamento pessoal.
Mário Tavares Chicó preconizava também o recurso à
documentação fotográfica, como vimos referido no seu trabalho de 1935. Parece-nos óbvia a importância da fotografia,
mas não devemos esquecer que Chicó tinha em vista não a
utilização da fotografia como ilustração, mas como um valioso
documento de trabalho.
Ao inscrever a sua utilização no método que seguiu, precisou, a par da importância da «fotografia de exactidão», a
da «fotografia de deformação».
Se Mário Tavares Chicó, antes de partir como bolseiro,
não teve porventura conhecimento, do tomo VIII da História
Geral, em que Pirenne, Cohen e Focillon, se ocuparam, em
1933, da civilização ocidental, desde o século XII até ao fim
do século XV, e em que as ideias de Focillon contêm o essencial do que lançará na sua obra fundamental «A Arte do
Ocidente», que é de 1938, nem por isso em alguns aspectos
Mário Tavares Chicó deixava de mostrar, já em 1935, pontos
de vista que o seu mestre lhe confirmaria.
Consideramos Henri Focillon como um dos historiadores
da Arte dos que melhor realizaram a síntese de esta disciplina
com a da Estética. Focillon preconizou também uma atitude
formalista, pois «a vida é forma e a forma é modo de vida».
Assim, em 1934, no trabalho que dedicou à vida das formas,
buscou mostrar que regras próprias elas têm, que essas regras
se estudam e se revelam no caminho das experiências, das
mudanças, das metamorfoses. Para ele, «a forma, pelo jogo
das metamorfoses, vai perpètuamente da sua necessidade à
sua liberdade», a vida de todo o estilo «atravessa várias idades, vários estádios», de uma idade experimental a uma idade
clássica, a uma idade de refinamento, a uma idade barroca.
Seguiu nestas ideias, como explìcitamente o afirma, o caminho
desbravado por Deonna e que este, de algum modo, encontrara, para o desenvolver, no pensamento de Riegl, ao conhecer
a existência de ciclos artísticos.
Ainda que ràpidamente, afigura-se-nos útil recordar alguns
princípios e ideias enunciados em «A Arte do Ocidente», de
Henri Focillon, publicado durante o período em que foi mentor de Mário Tavares Chicó, pois o discípulo, ao assumir as
suas funções docentes na Faculdade de Letras de Lisboa,
logo no primeiro ano do seu ensino, aquele mesmo em que o
tivemos por Professor, num curso dedicado à arte românica,
situou-nos «A Arte do Ocidente» como peça mestra de toda
a bibliografia. Não encontro razões que permitam pensar que,
salvo um ou outro ponto de pormenor, essa obra de Focillon
tivesse desmerecido na admiração que lhe votou sempre o seu
discípulo.
Focillon considerou os estilos como «sistemas orgânicos»
que podemos acompanhar na maneira como se fizeram e como
viveram, seguindo certos movimentos-experiências, progressão
interna, flutuações, permutas, expansão. Defendeu a ideia que
«a arquitectura domina a Idade Média», de que a arquitectura «subordina e determina todas as forças vivas da arte
medieval». Viu a arte da Idade Média «dominada pela Arquitectura», e com uma «rigorosa lógica construtiva», «um raciocínio sobre as relações de forças e de formas, caracterizadas
pela tendência ao universal». Viu que «os estilos não se sucedem como dinastias...», que a «arte românica persiste na Alemanha até ao século XIII, mais tarde ainda na Itália e na
Espanha Mediterrânea»; que «se a Idade Média é talvez o
fermento do Renascimento, se é a sua autenticidade—... a
sua vitalidade é ainda mais longa e mais forte no ocidente
pròpriamente dito, de que ele definiu o poder original de
invenção. Continua-se a construir gótico até ao fim do século
XVI e até mais tarde ainda». E assim, afirma igualmente:
«podemos mesmo dizer que a prática da ogiva nunca foi
absolutamente interrompida..., como atestam abóbadas de
mais de uma das igrejas construídas na época clássica».
Detivemo-nos, porventura demasiadamente, nesta nota relativa à formação de Mário Tavares Chicó e das orientações
por ele colhidas e seguidas ao iniciar a sua carreira.
Pareceu-nos contudo que tal nota era indispensável como
achega para o entendimento da sua obra de historiador de
Arte pois a essa, sem desdouro para as que realizou noutros
sectores, designadamente no da Museologia, nos referiremos
mais circunstanciadamente.
É que, em nosso entender, Mário Tavares Chicó, definido
nas linhas essenciais o seu método, não mais o abandonou,
antes o enriqueceu ao calor dos ensinamentos colhidos à
medida que se foi realizando como historiador da Arte. É que
Mário Tavares Chicó não tratou especìficamente problemas
da metodologia da História da Arte. Fez História da Arte e
fê-la de modo exemplar. Assim, o seu método está realidade
viva na sua obra.
Regressado a Portugal, o bolseiro, logo em 1940, manifestaria o grande interesse por um dos monumentos capitais da
nossa História da Arte: Santa Maria da Vitória, a Batalha.
Publicou nesse ano, no Boletim do Instituto Francês em
Portugal, o estudo que intitulou «Remarques sur le choeur
de 1'église Sainte-Marie de la Victoire». E, em 1944, saiu impresso outro trabalho seu «Arquitectura da Idade Média em
Portugal», em que reuniu duas comunicações, uma ao Congresso para o Progresso das Ciências, realizado no Porto em
1942, e outra, feita em 1943, na 40.ª sessão de estudo dos conservadores do Museu Nacional de Arte Antiga. Na primeira,
aborda o problema das fontes de inspiração da Batalha, evidenciando entre elas a charola da Sé de Lisboa, e na segunda
ocupa-se do tipo de cobertura da nave e do transepto daquela
mesma Igreja, à luz de soluções idênticas em construções
góticas anteriores no País.
Pode dizer-se portanto, que os anos de 1940, 1942, 1943 e
1944 foram vividos por Mário Tavares Chicó como medievista
especialmente interessado na articulação de Santa Maria da
Vitória com os monumentos portugueses antecedentes, cujo
estudo iria, aliás, culminar com o seu trabalho de síntese,
e renovador em muitos aspectos, constituído pelos capítulos
que escreveu para o II volume da «História da Arte em
Portugal», que havia sido iniciada por Aarão de Lacerda.
É certo que publicaria ainda antes um estudo sobre a igreja
dos Loios de Évora, uma monografia sobre a catedral da
mesma cidade, esta saída em 1946, ano em que dedicou igualmente um outro estudo às esculturas do mesmo monumento
nos séculos XV e XVI.
Nestes trabalhos não faltam referências que nos permitiriam mostrar como Chicó seguia rigorosamente os seus desejos de estudo comparativo dos monumentos e da particular
atenção que nesses estudos dava às estruturas, aos elementos
construtivos.
Por exemplo, e a propósito de Santa Maria da Vitória,
em que encontrou «um dos exemplares mais elegantes e harmoniosos da arquitectura religiosa após a fase clássica da
arte gótica», explicou que «o seu merecimento consiste principalmente em ter sabido conservar todo o valor aos elementos da estrutura». Também na monografia de 1946 sobre a
catedral de Évora, em que além de dedicar lúcidas páginas
ao problema das fontes de inspiração do seu zimbório, fez a
reconstituição conjectural da cabeceira do tempo, escrevendo:
«Nenhuma outra catedral portuguesa a iguala na elegância
das combinações de volumes, ... e, em nenhuma outra também, incluídas as que foram construídas posteriormente, se
conjugam com tanta originalidade, elementos estruturais e
decorativos românicos e góticos, de tão diferentes proveniências».
Neste mesmo trabalho afloram já elementos importantes,
que desenvolveria quanto à caracterização do gótico português,
ao inserir a cabeceira edificada por D. Durando neste templo,
numa linha de realizações em que sobressai, antes de Santa
Maria da Vitória, como exemplo mais elegante, S. Domingos
de Elvas.
Assim, a colaboração que veio depois a lançar em 1948,
para a «História da Arte em Portugal», iniciada por Aarão de
Lacerda, se é a sua primeira visão de conjunto sobre a nossa
arte gótica, é também o detido e minucioso estudo dos monumentos portugueses desde pràticamente as primeiras experiências da arte gótica realizadas no nosso País.
O primeiro dos quatro capítulos em que se condensa a
sua colaboração à referida «História da Arte», foi dedicado,
em ligação que nos dispensamos de encarecer, com os seus
trabalhos anteriores, ao Mosteiro da Batalha e à arquitectura
em Portugal nos fins do século XIV e no século XV. Seguem-se-lhe os capítulos consagrados à escultura decorativa e
monumental e à escultura funerária durante o mesmo período,
às artes decorativas em Portugal no século XV e, especialmente, à ourivesaria e à arquitectura em Portugal na época
de D. Manuel e nos princípios do reinado de D. João III, e
também ao gótico final português, ao estilo manuelino e à
introdução da arte do Renascimento.
Em continuada e normal progressão, o medievista ultrapassava, pois, pela primeira vez, o âmbito das suas investigações anteriores e, nessa medida, consideramos estes capítulos
como a abertura de um novo ciclo na sua obra.
Aliás, creio que ele próprio assim o entendeu, pois num
«curriculum» que elaborou, agrupou todos os trabalhos anteriores num sector que designou de «Arqueologia Medieval»,
abrindo com os que foram acima referidos um sector de
«História da Arte».
Não obstante, a assinalada rotura do limite medieval não
significa que Mário Tavares Chicó se afastasse, de vez, dos
problemas da Arte da nossa Idade Média. Nunca o faria, aliás,
e mais do que uma vez lhe ouvi confessar como que com
nostalgia, quando já se ocupava da nossa Arte dos séculos
XVII e XVIII. Compreende-se, naturalmente, que em 1953 se
tenha dedicado ao estudo da Catedral de Lisboa, evidenciando
o lugar primordial que lhe cabe no quadro da Arte Portuguesa
na Idade Média, em comunicação feita nesta Academia, de
que foi membro ilustre, comunicação publicada no Boletim e
editada em separata.
Compreende-se também que no ano seguinte, o de 1954,
tivesse apresentado ao 16.° Congresso Internacional de História da Arte uma comunicação sobre «A evolução da igreja
gótica de três naves em Portugal», comunicação que fez igualmente imprimir.
Compreende-se finalmente que, em 1954, se tenha iniciado a
publicação em fascículos da sua obra decisiva «A Arquitectura
Gótica em Portugal», padrão extraordinário do seu grande
legado cultural.
Em 1951, Mário Tavares Chicó havia, porém, chefiado uma
Missão de Estudo à Índia Portuguesa, e essa viagem, quanto
a nós, marcou um novo período na obra do estudioso da
nossa Arte 1 .
Paralelamente haveria que evidenciar o grande número de
exposições de documentação fotográfica que organizou, tanto
em Portugal como no estrangeiro, em Lisboa como em Évora,
em Londres como no Rio de Janeiro, no Salvador ou no
Recife, em Salamanca como em Santa Cruz de Tenerife ou
em Milão. Na verdade, os catálogos de essas exposições, contêm pequenos mas esclarecidos textos para os estudiosos da
Arte Portuguesa e abrangem linhas essenciais do desenvolvimento da nossa Arquitectura religiosa, civil e militar, desde
a arte românica à arte barroca. O catálogo de uma de elas
sobre a Arquitectura Portuguesa da Época dos Descobrimentos, menciona as que até então, 1960, haviam sido organizadas
pelo Museu que dirigiu e às quais haveria de acrescentar depois
outras mais.
Seria necessàriamente muito longo se pretendesse extrair
de todas as publicações a que fiz referência o ensinamento
que em cada uma de elas sempre se contém.
Limitar-me-ei, por isso, a focar particularmente a sua preocupação central com a caracterização da Arte Portuguesa.
Encontrou na arte nacional uma autêntica força criadora que,
absorvendo embora influências diversas, ao longo dos tempos,
como desenvolveu em lição proferida num dos cursos de
História da Arte em Portugal, promovidos pela Fundação
Calouste Gulbenkian, no seu auditório, soube revelar uma
vontade artística a impor disciplina mediterrânea às importações nórdicas. É a vontade artística dos habitantes de um
país de vertente atlântica e de vertente mediterrânica, geradora de uma personalidade que Mário Tavares Chicó sobretudo
procurou definir nos estudos que dedicou quer à nossa arte
gótica quer à nossa arte contemporânea da expansão, quando
as formas originais que criámos se projectaram no Brasil
como no Oriente e quando à Arte Portuguesa coube o duplo
papel de incorporar na sua própria unidade sugestões lá
recebidas e de ser exportadora de formas de arte europeia.
Por outro lado, defendeu que o «nacionalismo em Arte
verifica-se em Portugal muito melhor na Arquitectura e na
Escultura do que nas chamadas Artes Decorativas».
Encareceu pois a importância da Arquitectura, enriquecendo
o exame de essa Arte, em que foi crítico da maior agudeza
e penetração, vindo ùltimamente a juntar aos seus iniciais
exames de estrutura a subtil interpretação dos espaços. Por
exemplo, e por palavras suas: «como estas duas artes — a arquitectura e a escultura decorativa e arquitectural — são aquelas
em que melhor se definem o equilíbrio, o sentido espacial e
a rude sobriedade da vontade artística portuguesa, Goa, teve,
por certo, maior importância do que a que lhe tem sido atribuída na história das relações artísticas do Mundo Atlântico
com o Mundo Oriental, misterioso, tumultuário e distante»
ou, «No estudo da Arquitectura religiosa não é apenas a fachada
que deve ser analisada com interesse: uma igreja é um todo
em que convém observar até que ponto a frontaria se harmoniza com a planta e com a estrutura, e o espaço interior
corresponde às combinações de volumes e é por eles modelado.»
Eis, em outro exemplo, como definiu a originalidade da
nossa Arquitectura, a propósito das igrejas manuelinas saídas
daquelas em que a fachada corresponde à disposição interior:
«A continuidade da arquitectura portuguesa mantém-se em
oposição com o espaço compartimentado da arquitectura espanhola que não consegue desprender-se das influências muçulmanas, e as fachadas são quase sempre muito simples e a
sua evolução muito lenta.»
Não devo, porém, terminar sem referir, ao menos por forma
sincopada, outras facetas da acção de Mário Tavares Chicó.
No campo da Museologia, além da organização do Museu
da Cidade de Lisboa, sobre que escreveu também um estiudo
publicado em 1943, foi sobretudo notável a criação de essa obra
museográfica do maior alcance, realizada no Museu Regional
de Évora e, na sua dependência, que é o Museu de Arte Sacra
instalado na Igreja das Mercês.
Exerceu a sua actividade, neste domínio, em comissões e
em júris de concursos para conservadores e directores de
Museus. Deu colaboração aos seus colegas do Brasil, país que
tanto amou.
E nesta faceta da sua obra importa sublinhar que, para
a realizar, o historiador de Arte contava com uma formação
sólida e vasta, que mal se desprenderia de quanto assinalámos
se não recordássemos que o extraordinário crítico de arquitectura estudou também a talha, a ourivesaria, a escultura, a
pintura, arte a que dedicou, por exemplo, o trabalho «Pinturas
flamengas e holandesas do Museu Regional de Évora», impresso em Lisboa em 1954. A sua cultura e a sua sensibilidade
permitiam-lhe situar-se, sempre com grande discernimento,
perante a obra de arte de outros tempos como perante a dos
nossos tempos.
E poderia, particularmente, sublinhar a extensão e a riqueza
dos seus conhecimentos dando conta das múltiplas trocas de
impressões com José-Augusto França e comigo, quando publicámos o «Dicionário da Pintura Universal».
Comporta naturalmente a sua actividade a vida dos Congressos. Participou no IV da Associação Portuguesa para o
Progresso das Ciências, no Porto, em 1942, fez parte da Comissão Organizadora do XVI Congresso Internacional de História
da Arte, presidiu à Secção de Belas-Artes do I Congresso Internacional de Estudos Luso-Brasileiros, em Washington, 1950,
onde apresentou uma comunicação sobre a arquitectura religiosa do Alto Alentejo nos séculos XVI, XVII e XVIII, participou no II Colóquio em S. Paulo, 1954, com a comunicação:
«Monumentos da Índia Portuguesa», fez parte da Comissão
do III, em Lisboa em 1954 e participou no IV, na Baía, em
1959, em que foi um dos relatores.
A sua obra notável de pedagogo compreende os cursos que
regularmente professou na Faculdade de Letras de Lisboa, em
acção que seria inadequadamente avaliada se não se referissem,
a contribuição dada através da orientação de dissertações de
licenciatura e a menção de outros cursos que regeu no estrangeiro: nas Universidades de Poitiers, La Laguna, Milão e, sobretudo ,no Brasil, nas do Recife — que lhe conferiu a distinção
de Professor «Honoris causa»— da Bahia, e do Brasil, no Rio
de Janeiro.
O alto apreço em que era tido naquele País e as amizades
que nele contraiu têm testemunho na condecoração com a
Ordem do Cruzeiro do Sul, com que foi agraciado, e com a
desolação provocada pela notícia do seu desaparecimento, que
pude sentir ao vivo, por ali me encontrar nessa altura dolorosa, na viagem em que tive a honra de acompanhar o Presidente da Fundação Calouste Gulbenkian.
Então ali perduravam os ecos da sua última dádiva constituída pelas exposições levadas ao Rio de Janeiro, na oportunidade das comemorações da criação da cidade.
Seja-me lícito referir que a perda do Professor da Faculdade
de Letras de Lisboa, do Director do Museu de Évora, do membro do Conselho Superior do Instituto de Alta Cultura, representa também a perda dum valioso colaborador da Fundação
Calouste Gulbenkian, pois era o seu consultor para exposições,
para a atribuição de bolsas de estudo e, sobretudo, para a
planificação da iniciativa, já em curso, de recolha de documentos de arquivo de interesse para a História da Arte em Portugal.
Ficámos todos mais pobres e, atrevo-me a dizer, eu mais
do que os outros. Perdi um Mestre desde o seu primeiro curso
na Faculdade, um colaborador desde que me vi investido nas
funções que me estão confiadas na Fundação Calouste Gulbenkian, e um Amigo desde que o conheci em Évora, nos
tempos já distantes em que lá chegou para tomar conta do
seu Museu.
A homenagem à memória do Professor, do investigador e
do museólogo exigia a evocação, ainda que parcelar e fragmentária, da sua obra e não podia dispensar-se de tentar
documentar aspectos do que foi o alto valor da sua contribuição para a cultura portuguesa. Assim o entendi e procurei
fazer.
A homenagem ao Amigo, a um tempo mais simples e mais
difícil, essa, dispensa palavras, é intimidade de recolhimento
comovido e doloroso silêncio.
ARTUR NOBRE DE GUSMÃO
' De essa mesma viagem foram resultando, em progressiva contribuição, vários trabalhos, entre os quais me permito apontar:
— «Aspectts of Religious Art of Portuguese India», In Marg, Bombaim, 1954;
— «A Igreja do Priorado do Rosário da Velha Goa, a arte manuelina e a arte de Guzarate», no Boletim desta Academia, n.º» 7,
1954;
— «A escultura decorativa e a talha dourada nas Igrejas da Índia
Portuguesa» (Belas Artes, n.º» VII, 1954);
— «A Igreja dos Agostinhos de Goa e a Arquitectura da Índia
Portuguesa» (Garcia de Orta—II, fasc. 2—Lisboa, 1954);
—«Igreja de Goa» (Garcia de Orta, número especial, 1956);
— «A cidade ideal do Renascimento e as cidades portuguesas da
Índia» (Garcia de Orta, número especial, 1956);
— «Algumas observações acerca da arquitectura da Companhia
de Jesus no distrito de Goa» (Garcia de Orta, número especial—Lisboa, 1956);
— «Gilt carved-work retables of the churches of Portuguese India»
(Connoisseur—número especial—Londres, 1956);
— « A Arquitectura Indo-Portuguesa» (Colóquio n.° 17—Fevereiro,
1962).
Download

Em Fevereiro de 1935, imprimiu-se em Lisboa uma separata de