LUIZ ANTÔNIO PAGANINI
OS SIMBOLISTAS MINEIROS E O DRAMA DA
MODERNIDADE
UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS
FACULDADE DE LETRAS
BELO HORIZONTE
2010
LUIZ ANTÔNIO PAGANINI
OS SIMBOLISTAS MINEIROS E O DRAMA DA
MODERNIDADE
Tese apresentada ao Programa de PósGraduação em Letras – Estudos Literários da
Faculdade de Letras da Universidade Federal
de Minas Gerais, como requisito parcial à
obtenção do título de Doutor em Letras –
Estudos Literários.
Área de concentração: Literatura Brasileira
Orientadora: Profa. Dra. Maria Zilda Ferreira
Cury
BELO HORIZONTE
FACULDADE DE LETRAS DA UFMG
2010
Universidade Federal de Minas Gerais
Faculdade de Letras
Programa de Pós-Graduação em Letras – Estudos Literários
Tese intitulada “Os simbolistas mineiros e o drama da modernidade”, de autoria do
Doutorando LUIZ ANTÔNIO PAGANINI, aprovada pela banca examinadora
constituída pelos seguintes professores:
_________________________________________________
Profa. Dra. Maria Zilda Ferreira Cury – FALE/UFMG - Orientadora
_________________________________________________
Profa. Dra. Melânia Silva de Aguiar – PUC Minas
_________________________________________________
Profa. Dra. Zahide Lupinacci Muzart – UFSC
________________________________________________
Prof. Dr. Sérgio Alves Peixoto – FALE/UFMG
_________________________________________________
Prof. Dr. Silvana Maria Pessôa de Oliveira – FALE/UFMG
Belo Horizonte, 4 de novembro de 2010
À minha mãe,
Amélia Pirilo Paganini
AGRADECIMENTOS
À minha orientadora, Professora Doutora Maria Zilda Ferreira Cury, pela confiança
depositada em meu trabalho, pelo respeito às minhas escolhas, pela interlocução e
pela paciente orientação.
À minha família, que sempre apoiou a minha formação acadêmica.
À Nilze Paganini, por sua leitura cuidadosa, por suas traduções do inglês e por suas
excelentes sugestões.
À Maria Inês Perilo Paganini, por sua ajuda com a formatação do texto, e à Mírian
Paganini Guañabens, pela digitalização e envio de material bibliográfico.
Aos Professores Doutores membros da banca examinadora, Melânia Silva de
Aguiar, Zahide Lupinacci Muzart, Sérgio Alves Peixoto e Silvana Maria Pessôa de
Oliveira, por aceitarem discutir as idéias desta tese, oferecendo-me as suas
preciosas contribuições.
Aos Professores Doutores Sérgio Alves Peixoto, da FALE/UFMG, e Eliana Regina
de Freitas Dutra, da FAFICH/UFMG, pelos relevantes comentários e ótimas
sugestões oferecidos durante o Exame de Qualificação.
À Professora Doutora Maria Luiza Berwanger da Silva, do PPG-Letras/UFRGS, por
suas observações feitas a este trabalho.
Ao Programa de Pós-Graduação em Letras – Estudos Literários da Universidade
Federal de Minas Gerais, por possibilitar este estudo.
Aos professores do Programa de Pós-Graduação em Letras – Estudos Literários da
Universidade Federal de Minas Gerais, pelos cursos que muito contribuíram para a
minha formação.
Ao CNPq, pela bolsa de Doutorado que tornou exequível a realização desta tese, e à
CAPES, pela bolsa de Estágio de Doutorado no Exterior (Colégio Doutoral Franco-
Brasileiro), que permitiu o desenvolvimento de parte das pesquisas na Université
Sorbonne Nouvelle – Paris III.
À Professora Doutora Jacqueline Penjon, Diretora do Centre de Recherches sur les
Pays Lusophones (CREPAL), minha orientadora na Université Sorbonne Nouvelle –
Paris III, por possibilitar minhas pesquisas na França, pela disponibilidade em
ajudar, pelo diálogo e por franquear a minha participação nos seminários e colóquios
promovidos pelo CREPAL.
Ao Renato de Lima Júnior, pelo empréstimo de sua dissertação e pela doação de
publicações sobre José Severiano de Rezende que muito contribuíram para as
minhas pesquisas, principalmente as desenvolvidas na França.
À Ângela Maria Salgueiro Marques, pelo empréstimo de obras sobre Alphonsus de
Guimaraens.
À Francine Fernandes Weiss Ricieri, pela gentileza de me presentear com a sua
Antologia da poesia simbolista e decadente brasileira.
À bibliotecária Jussara Rodrigues Pimentel, por sua ajuda na obtenção de material
bibliográfico.
À Rutônio Jorge Fernandes de Sant’anna, da Biblioteca Nacional, por sua gentil e
eficiente colaboração em minha pesquisa.
Às instituições onde realizei as minhas pesquisas: Arquivo Público Mineiro; Arquivo
Público da Cidade de Belo Horizonte; Arquivo dos Escritores Mineiros – UFMG;
Biblioteca do Instituto Cultural Amilcar Martins; Biblioteca da FALE/UFMG; Biblioteca
da FAFICH/UFMG; Biblioteca da EBA/UFMG; Divisão de Coleções Especiais da
Biblioteca Central da UFMG; Mineiriana, da Biblioteca Estadual Luís de Bessa;
Hemeroteca Histórica do Estado de Minas Gerais; Fundação Biblioteca Nacional;
Museu Casa Alphonsus de Guimaraens; Bibliothèque Nationale de France FrançoisMitterrand; Bibliothèque Centrale (Centre Censier) da Université Sorbonne Nouvelle
– Paris III; Bibliothèque des Études Portugaises, Brésiliennes et d’Afrique Lusophone
da Université Sorbonne Nouvelle – Paris III; Bibliothèque de l’Ambassade du Brésil
en France; Bibliothèque Interuniversitaire de Médecine et d’Odontologie (BIUM) da
Université Paris Descartes; Bibliothèque Centrale da Cité Internationale Universitaire
de Paris (CIUP); Bibliothèques Municipales de Prêt de Paris (Bibliothèque André
Mauraux, Bibliothèque Buffon e Médiathèque Jean-Pierre Melville) e Bibliothèque
Interuniversitaire Lettres et Sciences Sociales (Denis Diderot) da Université Lyon 2 e
da Université Lyon 3.
Aos meus colegas de Doutorado em Estudos Literários e aos meus vizinhos na
Maison du Brésil, em Paris, por compartilharem o caminho.
A todos aqueles, que, apesar de não mencionados, contribuíram de alguma forma
para a realização deste trabalho.
RESUMO
Este trabalho aborda o posicionamento dos simbolistas de Minas Gerais em
relação à modernidade. Primeiramente, nós apresentamos os escritores simbolistas,
seus jornais e revistas, buscando situá-los no contexto histórico. Depois, estudamos
a formação intelectual desses autores e a sua participação em redes literárias.
Finalmente, analisamos os cenários, os personagens e algumas situações
dramatizadas nas obras simbolistas.
Palavras-chave: Simbolistas Mineiros, Redes Literárias, Modernidade, Modernização,
Imaginário Simbolista
RÉSUMÉ
Ce travail a pour objet le positionnement des symbolistes du Minas Gerais par
rapport à la modernité. D’abord, nous présentons les écrivains symbolistes, leurs
journaux et revues, en cherchant à les situer dans le contexte historique. Nous
étudions, ensuite, la formation intellectuelle de ces auteurs et leur participation à des
réseaux littéraires. Enfin, nous analysons les décors, les personnages et quelques
situations dramatisées dans les œuvres symbolistes.
Mots-clés: Symbolistes Mineiros, Réseaux Littéraires, Modernité, Modernisation,
Imaginaire Symboliste.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ..........................................................................................................10
OS JARDINEIROS DOS SÍMBOLOS.......................................................................18
EMERGÊNCIA DO SIMBOLISMO EM MINAS ............................................................................................. 20
ESPAÇOS EFÊMEROS, DESEJOS DE PERMANÊNCIA.......................................................................... 37
OS SIMBOLISTAS MINEIROS E A REPÚBLICA DAS LETRAS ............................74
A FORMAÇÃO INTELECTUAL DOS SIMBOLISTAS MINEIROS ............................................................ 76
REDES LITERÁRIAS, RESSONÂNCIAS E PRÁTICAS DE TRADUÇÃO .............................................. 89
MUNDO EM EXPANSÃO E MUDANÇA ................................................................162
MODERNIZAÇÃO E DESENRAIZAMENTO ............................................................................................... 164
SUJEITOS EM TRÂNSITO E DESESTABILIZAÇÕES ............................................................................. 174
DRAMA E PATHOS DRAMÁTICO .........................................................................196
DA CIDADE MORTA À CIDADE TENTACULAR....................................................................................... 198
ENTRE REAL E IDEAL, CORPO E ESPÍRITO........................................................................................... 237
CONSIDERAÇÕES FINAIS ....................................................................................265
REFERÊNCIAS.......................................................................................................273
ANEXOS .................................................................................................................305
INTRODUÇÃO
11
N
a segunda metade do século XIX, a idéia da Europa como uma civilização
com raízes na Grécia Antiga e que, ao longo do tempo, teria alcançado
parâmetros de excelência acima de quaisquer outras, foi disseminada pelo
mundo. A Europa fabricou para si e para os países periféricos o mito de que seu
modelo civilizatório representaria a modernidade. Submetidos ao expansionismo do
Ocidente, países “atrasados” foram obrigados a transformar os modos de vida locais
para atingir o objetivo de se aproximar do modelo europeu. No entanto, não
conseguindo superar totalmente o “atraso”, países periféricos, como o Brasil, fizeram
e continuaram fazendo novas tentativas de atingir esse objetivo. Conhecidas como
processos de modernização, essas tentativas envolviam mudanças políticas,
econômicas ou socioculturais. Um exemplo disso foi a renovação de técnicas e
temáticas de literaturas não-hegemônicas a partir de modelos europeus modernos
como as apresentadas pelo Simbolismo no período da Belle Epoque. O Simbolismo
desempenhou, assim, um papel transformador em várias literaturas. Porém, apesar
de ter se desenvolvido e se difundido na Europa e nas Américas ao mesmo tempo
em que ocorria uma expansão imperialista, as vozes simbolistas eram críticas em
relação à modernidade. No processo de difusão do Simbolismo pelo mundo,
ocorreram duas fases. Inicialmente, vários escritores estrangeiros se mudaram para
Paris e buscaram escrever como os simbolistas franceses. Depois, os estrangeiros
passaram a realizar adaptações dos modelos franceses às suas tradições literárias.
Apesar de sua importância na poesia brasileira da Belle Époque, o movimento
simbolista brasileiro é, ainda hoje, pouco estudado. Tanto os decadentistas como os
simbolistas sofreram com o preconceito dos críticos e apenas os escritores mais
representativos mereceram algum destaque. Na época em que o Simbolismo esteve
em voga no Brasil, a crítica tinha dificuldade de aceitar e de avaliar as obras
simbolistas por adotar uma orientação metodológica de origem cientificista e
também por não concordar com a visão de mundo pessimista, melancólica e
universalista dos seus representantes. Uma visão de mundo que se confrontava com
o nacionalismo e os projetos de modernização de alguns setores das elites
brasileiras. A acusação de literatura imitativa, alienada e sem nenhuma base
nacional percorreu a história da recepção dos simbolistas brasileiros. A título de
exemplificação, podemos destacar José Veríssimo que afirmou ser a podução
literária dos simbolistas um ‘mero produto de importação’ e não corresponder a ‘um
12
estado d’alma’, que fosse “efeito de um estado social”.1 As mesmas acusações
continuaram a ser feitas por Antonio Candido, um de nossos maiores críticos
contemporâneos. Utilizando-se do conceito de dependência para analisar as
literaturas produzidas na América, Candido sublinhou a posição “naturalmente”
subalterna destas em relação às fontes européias. No ensaio “Literatura e
Subdesenvolvimento”, Candido atacou a posição aristocrática dos escritores latinoamericanos da Belle Époque, afirmando que a produção literária desses autores
poderia “não passar de exercícios de mera alienação cultural, não justificada pela
excelência da realização – e é o que ocorre no chamado ‘Modernismo’ de língua
espanhola e seus equivalentes brasileiros, o Parnasianismo e o Simbolismo”.2 No
prefácio que escreveu para o livro A recepção crítica: o momento parnasianosimbolista no Brasil, de Salete de Almeida Cara, Antonio Candido reforçou a atitude
predominante entre os críticos diante do Simbolismo brasileiro que é a de ressaltar
as figuras de Cruz e Souza e Alphonsus de Guimaraens e de tratar os outros
escritores com desprezo: “Até hoje os simbolistas brasileiros dão a idéia de um
conjunto geralmente fraco ou, se quiserem, com apenas dois poetas, Cruz e Souza
e Alphonsus de Guimaraens, que seriam pouco mais fortes do que os sonoros
parnasianos e o seu tambor”.3 Esta ideia é, de fato, a repetição do que Candido já
havia afirmado no livro Literatura e sociedade.4
A situação na França foi um pouco diferente. Enquanto os simbolistas mais
importantes entraram para o cânone há bastante tempo, os decadentistas só
conseguiram atingir o status de objeto de pesquisa há algumas décadas. Quando
Jean de Palacio iniciou suas pesquisas sobre o Decadentismo em 1963, os
estudiosos, os livreiros e os editores franceses desconheciam ou não se
interessavam pelos decadentistas. Somente nos anos de 1980 é que a situação
começou a se alterar.5 Hoje, a mudança de atitude dos críticos fica evidente pelo
grande número de eventos acadêmicos, livros e artigos publicados sobre o
Decadentismo francês. E este interesse tende a aumentar com o tempo.
Diferentemente dos críticos brasileiros que parecem muito mais preocupados com
1
VERÍSSIMO apud GOES, 1959, p. 8.
CANDIDO, 1989, p. 148.
3
CANDIDO, 1983, p. ix.
4
CANDIDO, 1975, p. 114.
5
PALACIO, 1994, p. 9-10.
2
13
nacionalismos e a constituição do cânone literário brasileiro por este viés, Palacio
rejeitou a acusação de literatura menor dirigida à produção decadentista. Segundo
Palacio, talvez a primeira lição do Decadentismo seja a de que não existem autores
“maiores” e “menores” neste movimento, mas uma produção literária, uma prática de
escritura, que subverte hierarquias e desordena os gêneros, sendo conveniente
colocar entre parênteses uma preocupação com a avaliação da posteridade para
conseguir percebê-la sem tantos preconceitos.6
O Simbolismo em Minas Gerais não foi obra apenas do poeta Alphonsus de
Guimaraens, como o senso comum julga ter acontecido. Outros personagens,
alguns hoje esquecidos ou pouco estudados, também atuaram no contexto artístico
e literário que acolheu as tendências ligadas ao Simbolismo. O conhecimento da
produção literária do grupo simbolista mineiro, embora mencionada em livros de
história da literatura, dicionários de literatura brasileira e alguns ensaios, não chegou
aos leitores críticos contemporâneos e nem ao grande público leitor. A imagem de
Alphonsus de Guimaraens como o grande poeta simbolista brasileiro, construída aos
poucos pelos seus leitores e por parte da crítica durante o século XX, com certeza
obscureceu os outros poetas desse movimento literário mineiro. Assim, ao
mencionarmos o Simbolismo em Minas Gerais, logo se pensa em Alphonsus de
Guimaraens, dada a grande importância do poeta de Mariana. Devemos lembrar,
contudo, que toda uma geração de intelectuais deu ao poeta as condições do
diálogo intelectual e tornou o seu brilho mais intenso.
A importância do Simbolismo mineiro é, pois, geralmente desconhecida por
muitos estudiosos da literatura brasileira. As pesquisas com fontes primárias
frequentemente privilegiaram os “grandes autores”, os escritores canônicos.
Entretanto, não podemos considerar a história apenas do ponto de vista do que é
considerado modelar, do ponto de vista daqueles que tiveram maior destaque. É
evidente que não estamos negando a importância dos “grandes”, mas a história
também se faz de miudezas, de coisas aparentemente banais e de personagens
considerados secundários. No caso dos estudos literários, é necessário que as
pesquisas abordem igualmente os autores chamados “menores”, os “seguidores”, os
“diluidores”, os “marginalizados”. Sem isso, corremos o risco de não entendermos
6
PALACIO, 1994, 13-14.
14
corretamente a produção literária dos “maiores”, já que muitos elementos dessa
produção têm relação com o conjunto de textos desprezados pela crítica e
historiografia literárias.
As pesquisas sobre a produção dos escritores mineiros do século XIX e
primeiros anos do século XX são raras. Parece existir um preconceito contra tudo
que foi escrito antes do Modernismo. Porém, como bem disse Alexandre Eulálio, os
aspectos ideológicos do Oitocentos não foram rompidos pelos modernistas mineiros:
Na verdade o fim-de-século em Minas havia de se prolongar
estilística e ideologicamente, nas suas linhas de força decisivas, até
cerca de 1920, da mesma forma que ideológica e estilisticamente
havia-se estendido até o decênio de 1840 o Setecentismo mineiro.
Apenas a revolta modernista ousará contestar esse espírito; mesmo
então apenas os aspectos menos problemáticos e significantes
dessa práxis foram postos em causa. Os conteúdos profundos do
Oitocentismo, contudo, ainda não mereceram abordagem mais
devassadora. Permanecem eles ainda extremamente presentes, nós
vivemos ainda nas franjas remanescentes desse gosto...7
Ainda de acordo com Eulálio, na “sua pobreza de superfície, o século XIX
literário afirma-se como período decisivo, nuclear mesmo para o conhecimento de
nós mesmos”.8 Para este crítico, é de fundamental importância que existam
pesquisas com fontes primárias de maneira continuada e orgânica para que o
passado literário de Minas Gerais possa ser melhor conhecido.
Ponto central em que se torna indispensável insistir até o fastio
é na rebusca e recuperação continuada dos dispersos – poesia,
prosa, teatro, outros, todos os gêneros – dos autores secundários,
em relação aos quais não dispomos, com frequência, de dados
mínimos exatos, às vezes relativos mesmo à naturalidade, filiação,
datas de nascimento e morte. Concomitantemente temos de levar
avante, com o indispensável cuidado, a reedição, em leituras
apuradas, dos textos desses escritores, a fim de que afinal possamos
estar, até o final do século, aptos para devolver ao futuro o passado
que nos coube – que nos cabe ainda – preservar. Este é o mínimo
7
8
EULÁLIO, 1992, p. 118.
EULÁLIO, 1992, p. 119.
15
que podemos fazer, conscientes como nos encontramos do quanto
ele significa.9
Nossa tese insere-se nesta linha de trabalho. Conseguimos localizar, em
nosso percurso investigativo, muitos textos dispersos em periódicos da época e
essas referências, indicadas ao final da tese, poderão favorecer futuras edições
desses autores. Encontramos várias dificuldades na busca por esses dispersos, que
foram desde o péssimo estado de conservação de periódicos até a ausência de
exemplares de alguns livros simbolistas nas mais importantes bibliotecas nacionais.
Tivemos que enfrentar ainda o problema de obtermos informações confiáveis sobre
os simbolistas mineiros que ainda não foram objeto de estudo mais alentado. As
raras informações biográficas de muitos escritores estão espalhadas pelos textos
dos periódicos. Inicialmente, foi preciso reconstituir alguns breves traços biográficos,
sem os quais teria sido impossível compreendermos a sua trajetória intelectual e o
contexto de seus escritos.
Procuramos desenvolver, no presente trabalho, um estudo em duas
dimensões: a histórica e a crítica. Em primeiro lugar, investigamos o aparecimento
do grupo simbolista no contexto mineiro, as suas publicações, a sua formação
intelectual e a sua inserção na República das Letras. Em segundo, buscamos
compreender os posicionamentos dos simbolistas mineiros em relação à
modernidade e aos processos de modernização.
A princípio, acreditávamos poder encontrar poemas que abordassem de
forma mais explícita esses posicionamentos. Fomos percebendo, no correr do
tempo, que deveríamos considerar também os outros textos que eles escreviam
para os periódicos: as crônicas, os artigos e a poesia de circunstância. Uma etapa
importante dessa pesquisa foi desenvolvida em um estágio de doutorado no exterior
do Programa do Colégio Doutoral Franco-Brasileiro, com bolsa de pesquisa da
Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), realizado
junto ao Centre de Recherches sur les Pays Lusophones (CREPAL), da Université
Sorbonne Nouvelle – Paris III, sob a orientação da diretora desse mesmo centro de
9
EULÁLIO, 1992, p. 119-120.
16
pesquisas, a Professora Doutora Jacqueline Penjon. A pesquisa no exterior visou
principalmente a localização e a transcrição dos artigos que José Severiano publicou
em periódicos franceses, mas também a aquisição de bibliografia sobre o
Simbolismo e o Decadentismo, fundamentais para a nossa tese.
O nosso trabalho se estrutura em quatro capítulos. Nos dois primeiros,
realizamos a dimensão histórica da pesquisa. Já nos dois últimos, desenvolvemos a
dimensão crítica, analisando os dramas da modernidade encenados nas obras
simbolistas.
O primeiro capítulo, “Os jardineiros dos símbolos”, se subdivide em duas
partes. Na primeira, apresentamos a origem do movimento mineiro e quem eram os
membros do grupo. Na segunda, analisamos os periódicos envolvidos na divulgação
dos escritos simbolistas.
No segundo capítulo, “Os simbolistas mineiros e a República das Letras”, a
questão da formação intelectual foi distinguida nas vertentes da educação escolar e
na que ocorria através da participação em redes, tanto as semi-institucionais como
as informais. Neste item, analisamos as ressonâncias culturais e as práticas de
tradução desenvolvidas pelos simbolistas mineiros como parte de seu aprendizado
literário.
O terceiro capítulo, “Mundo em mudança e expansão”, aborda a maneira
como os simbolistas mineiros dramatizaram a questão dos sujeitos em trânsito na
modernidade, considerando-a sob a perspectiva do desenraizamento e das
desestabilizações.
No quarto capítulo, “Drama e pathos dramático”,10 foram analisados os
cenários, os personagens e as situações dramáticas encenadas nas obras dos
10
Nesta tese, o termo drama foi usado, na maior parte das vezes, como uma categoria existencial, ao
invés de gênero literário e teatral. Baseamo-nos em Henri Gouhier (1952) que distinguia o drama e o
dramático pela presença da morte na vida. No drama, de acordo com Gouhier, o acento cai sobre a
fraqueza da condição humana e a luta contra a morte. Percebemos que seria interessante considerar
a categoria existencial drama juntamente com uma forma de apropriação metafórica de termos
originários do teatro, incluindo o próprio conceito de drama. Uma teoria que parece estar implícita nas
obras dos simbolistas mineiros é o conceito de drama tal como foi elaborado por Victor Hugo,
segundo o qual o drama seria um gênero que misturaria o sublime e o grotesco, a tragédia e a
comédia, o alto e o baixo. De acordo com Hugo, o drama como representação teatral imitaria o drama
da vida.
17
simbolistas mineiros. Procuramos mostrar que, na ambientação das cenas, esses
escritores se utilizaram do tema das cidades mortas, das ruínas e das cidades
tentaculares, onde personagens se debatiam em conflitos entre o ideal e o real, o
espiritual e o corporal.
Esperamos que, por jogar um foco de luz sobre alguns aspectos da obra e do
pensamento dos simbolistas mineiros, destacando o significado e a participação
desses autores em redes literárias brasileiras e estrangeiras, esta tese possa
cumprir um relevante papel na ampliação do conhecimento sobre o Simbolismo
brasileiro e servir como estímulo para novos estudos.
18
OS JARDINEIROS DOS SÍMBOLOS
19
Ineffables, voici le groupe des Chanteurs
Vêtus de blancs, et des lueurs d’apothéoses
Empourprent la fierté sereine de leurs poses :
Tous beaux, tous purs, avec des rayons dans les yeux,
Et sous leur front le rêve inachevé des Dieux !
Le monde, que troublait leur parole profonde,
Les exile. À leur tour ils exilent le monde !
C’est qu’ils ont compris à la fin qu’il ne faut plus
Mêler leur note pure aux cris irrésolus.
“Prologue”, Poèmes saturniens, Paul Verlaine
20
EMERGÊNCIA DO SIMBOLISMO EM MINAS
O
Simbolismo mineiro teve início, de fato, na cidade de São Paulo, onde
alguns jovens de Minas Gerais tinham ido estudar Direito. O grupo mineiro,
composto por Alphonsus de Guimaraens, Archangelus de Guimaraens,11
José Severiano de Rezende12 e Viana do Castelo13 passou a integrar o
núcleo paulista, formado por Júlio César da Silva, Leopoldo de Freitas, Júlio Prestes,
Batista Cepelos e Wenceslau de Queirós. Dois nomes serviram de liderança para
esses simbolistas: o mineiro Adolfo Araújo14 e o gaúcho José de Freitas Valle.15
Esses jovens mineiros, quando voltaram para seu estado natal (alguns
transferidos para a recém-criada Faculdade Livre de Direito, outros já como
bacharéis), levaram consigo as ideias simbolistas. Em Belo Horizonte, eles se
agruparam e deram um aspecto de movimento cultural de vanguarda para as suas
intervenções. A grande referência literária desses novos poetas era o poeta
Alphonsus de Guimaraens.
11
Arcanjo Augusto da Costa Guimarães, que adotou o nome literário de Archangelus de Guimaraens
(Ouro Preto, MG, 1872 – Belo Horizonte, MG, 1934), era irmão do poeta Alphonsus de Guimaraens.
Apesar de não ter tido uma produção muito grande, alguns de seus poemas eram bem conhecidos
dos leitores mineiros e frequentemente recitados nos saraus literários. Eles ficaram dispersos até
1955, quando Alphonsus de Guimaraens Filho os reuniu no livro Coroa de espinhos.
12
José Severiano de Rezende (Mariana, MG, 1871 – Paris, França, 1931) iniciou as suas atividades
jornalísticas aos 17 anos no periódico republicano O Tribunal, de São João del-Rei. Em São Paulo,
desenvolveu intensa colaboração nos jornais, tornando-se conhecido nos meios intelectuais da
cidade. Também colaborou no Diário da Manhã, periódico da cidade de Santos. Em 1894, ingressou
no Seminário de Mariana. Sua ordenação aconteceu em 1897, ano em que se tornou diretor do jornal
diocesano O Viçoso, que, após uma reformulação, passou a se chamar D. Viçoso. Em 1901,
começou a colaborar no jornal carioca Correio da Manhã. José Severiano de Rezende se transferiu
para o Rio de Janeiro em 1903 e, aos poucos, foi conquistando notoriedade, devido aos seus
poemas, às suas crônicas e críticas que, muitas vezes, geravam polêmicas. Severiano viveu na então
capital da República até aproximadamente 1908, quando partiu para a França, passando a residir em
Paris. Sua obra em livro é composta por Eduardo Prado (1904), O meu flos sanctorum (1908),
Mistérios (1920) e o opúsculo Hymne à l’homme qui viendra (1922).
13
Um dos poetas ligados ao Simbolismo e cuja obra ficou abafada por sua trajetória política foi
Augusto Viana do Castelo (Curvelo, MG, 1874 – Rio de Janeiro, RJ, 1953). Quando esteve em São
Paulo, colaborou em alguns jornais e revistas. Em Belo Horizonte, publicou poemas na revista Minas
Artística, em Horus e no jornal O Estado de Minas, um homônimo do editado pelos Diários
Associados.
14
Adolfo Araújo (Serro, MG, 1872 – São Paulo, SP, 1915) fez sua carreira literária e jornalística na
capital paulista. Escreveu poemas líricos e satíricos, mas eles não foram reunidos em livro. Seus
epigramas, publicados n’A Vida de Hoje, eram assinados com o pseudônimo de “Cemitério Gaiato”.
Colaborou também nos periódicos paulistas A Paulicéia, A Ilustração Brasileira e Comércio de São
Paulo.
15
RAMOS, 1979, p. 222 e MURICY, 1999, p. 428.
21
A interação entre os escritores simbolistas era, em parte, uma decorrência do
exercício das mesmas atividades (o periodismo, o trabalho em repartições públicas e
o curso de Direito) e formas de lazer (os espetáculos de teatro, as reuniões nos
salões do “Clube das Violetas”, os encontros no restaurante Genaro e no Café Paris,
em Belo Horizonte). Nesses últimos locais, onde costumavam viver a sua boemia, os
simbolistas divagavam, debatiam ideias, traçavam planos e se posicionavam em
relação aos outros literatos. Modos de relacionamento recorrentes a definir a
formação de grupos de intelectuais, isto é, de grupos que se sedimentam através
das atividades intelectuais stricto sensu, é certo, mas traduzidas também em outras
dimensões do convívio cotidiano.
As relações, parcerias e pactos entre os intelectuais simbolistas se tornam
bem evidentes nas diversas manifestações de apreço (como, por exemplo, nas
homenagens através de dedicatórias ou de epitáfios), na colaboração financeira
para viabilizar edições, nos projetos comuns, nas publicações nos mesmos
periódicos, nos textos críticos, na troca de correspondências e nas crônicas que uns
escreviam sobre os outros.
Devemos a Eduardo Frieiro informações relevantes sobre um dos grupos
simbolistas de Belo Horizonte: os “Jardineiros do Ideal”. No livro Páginas de crítica e
outros escritos, Frieiro nos legou uma descrição ímpar da posição aristocrática
daqueles simbolistas em relação à arte, sob a perspectiva do imaginário fim-deséculo.
Intitulavam-se a si próprios os Raros, os Magnificentes e os
Malditos! Um chamava-se o Cavaleiro da Rosa-Cruz, outro de
Bacelar; outros, ainda, se intitulavam Barões de Altair, do SeteEstrelo ou do Santo Lenho. Era como se usassem chapéus de
plumas, gibões de seda, punhos de renda, espadins ao lado, e se
inclinassem em curvaturas respeitosas diante de formosas damas
empoadas, brancas como lírios, olhos violáceos, longas mãos
diáfanas, criaturas imateriais como as virgens pré-rafaelitas de Burne
Jones e Dante-Gabriel Rossetti.16
16
FRIEIRO, 1955, p. 308.
22
Esta associação da imagem dos simbolistas mineiros com a pintura prérafaelita foi retomada por Luciana Stegagno Picchio na sua História da literatura
brasileira. Trata-se de uma encenação, apresentada em forma de tríptico, tendo
como personagens Alphonsus de Guimaraens, José Severiano de Rezende,
Mamede de Oliveira17 e Edgard Mata.18
Quanto aos simbolistas de Minas Gerais, surgem reunidos como num
tríptico à volta da imagem do grande solitário de Mariana: Alphonsus
de Guimaraens. De um lado, adorante, o irmão do vate, Archangelus
de Guimaraens (1872-1934), do outro, truculento e saboroso, com o
seu semblante provocador de padre apóstata, José Severiano de
Resende (1871-1931): O meu flos sanctorum, 1908; Mistérios, 1920);
dos lados, genuflexos em seu aveludado delíquio, Mamede de
Oliveira (1887-1913) e Edgar Mata (1878-1907), a cuja suave
elegância não falta certo páthos dramático (“Stalactite da dor”,
“Taciturnus bos, “A garça”...).19
Para Alexandre Eulálio, haveria certa semelhança entre o tríptico imaginado
por Picchio e as pinturas finisseculares ou as construções neogóticas que estavam
sendo realizadas em Belo Horizonte.
Com irônica simpatia, uma estudiosa estrangeira representou os
“Jardineiros” emblematicamente dispostos num retábulo leigo, de
tardio gosto pré-rafaelita, que poderia ter sido pintado por Honório
Esteves, Belmiro de Almeida ou ainda pelo imigrado Angelo Clerici,
17
Mamede de Oliveira (Paraisópolis, MG, 1887 – Belo Horizonte, MG, 1913) foi, além de poeta,
jornalista e professor de português, francês e matemática. Como jornalista, colaborou em vários
periódicos brasileiros, especialmente em jornais e revistas de Minas, adotando o pseudônimo de Dom
Lys. A fase mais representativa da poesia de Mamede de Oliveira foi produzida entre os anos de
1903 e 1907. Em 1957, Benedito Lopes organizou um livro póstumo de Mamede de Oliveira com o
título de Dona Graça.
18
Em 1900, Edgard Mata Machado (Ouro Preto, MG, 1878 – Diamantina, MG, 1907) já desenvolvia
intensa atividade cultural em Belo Horizonte. Foi um dos membros do “Clube das Violetas”, onde
proferiu uma conferência chamada Tijuco – lendas e tradições, no dia 19 de setembro. Segundo
18
noticiou o jornal Minas Gerais, a conferência foi um grande sucesso. Ainda em 1900, editou o
periódico Lotus ao lado de outros intelectuais e colaborou na folha A Violeta, um dos primeiros
veículos da produção simbolista de Belo Horizonte. Em 1901, publicou textos no Diário de Minas e
trabalhou na edição da revista Minas Artística. No ano seguinte, participou da publicação da revista
Horus. Em 1978, Cilene Cunha de Souza publicou uma edição crítica dos poemas de Edgard Mata a
partir de um códice autógrafo, de códices apógrafos compilados por familiares do poeta e de versos
publicados em periódicos.
19
PICCHIO, 2004, p. 351-352.
23
decorador parietal dos templos mineiros no “1900”. Um altar meio ao
gosto de certos oratórios cívicos dos comtianos ortodoxos, fiéis à
Religião da Humanidade cultuada à Rua Benjamin Constant da
Capital Federal (de que cheguei a ver um exemplar conservado por
Ivan Lins), e até se casaria bem com o enfático pseudogótico de
igrejas e prédios públicos que um Ecletismo arquitetônico bem
desvairado ia erguendo nas antigas paragens do Curral d’El Rei.20
A imagem criada por Picchio é muito feliz por evocar a postura desses
escritores diante da arte e da vida social. Além disso, deixa bem clara a centralidade
de Alphonsus para o Simbolismo em Minas. Uma centralidade que também foi
ressaltada por Eduardo Frieiro ao mostrar a diferença do significado de Cruz e
Souza e Alphonsus de Guimaraens para os simbolistas mineiros.
Em Cruz e Souza, que todos consideravam o maior poeta do
Brasil, pranteava-se o Mestre desaparecido. Alphonsus de
Guimaraens era o pontífice vivo, longe do grupo da capital, recolhido
em seu eremitério de Mariana, mas presente em espírito às tertúlias
e realizações dos jovens discípulos, todos inquietos, sonhadores e
amigos da estúrdia e das boas troças.21
De um lado, o mestre, o pontífice morto, do outro, o pontífice vivo. Assim
definidos, os dois só podiam ser cultuados numa espécie de celebração religiosa.
Apesar de terem declarado a sua admiração por Cruz e Souza no primeiro número
da revista Minas Artística, os simbolistas de Belo Horizonte iriam se distinguir dos
demais grupos simbolistas principalmente por tomar a obra de Alphonsus de
20
EULÁLIO, 1992, p. 116-117. Além dessa comparação feita por Eulálio, a imagem do tríptico nos faz
pensar em certas obras de arte com temática religiosa que apresentam uma figura de santo
circundada por outras personagens em poses hieráticas, solenes. Exemplos disso são o “Retábulo de
Brera (ou de Montefeltro)”, também conhecido como “Nossa Senhora com o Menino e santos” (14721477) e o “Políptico da Misericórdia”, ambos de Piero della Francesca. Entretanto, é preciso fazer
algumas observações sobre os lugares e papéis de José Severiano de Rezende e Edgard Mata no
movimento simbolista mineiro. Não nos parece correto dizer que ambos tenham sido seguidores de
Alphonsus de Guimaraens. Por isso, não deveriam estar na encenação do poeta-santo e seus
discípulos. Na verdade, Severiano de Rezende representava uma vertente diferente do Simbolismo
mineiro, uma figura de contraponto a Alphonsus de Guimaraens. Já Edgard Mata era um autor que
também buscava uma dicção própria.
21
FRIEIRO, 1955, p. 307.
24
Guimaraens como exemplar.22 Isto foi analisado por Martins de Oliveira, utilizando o
conceito de alfonsismo.
Há, até, a admissão do mundo alfonsiniano ou, em termos de escola
puramente original, personalíssima, alfonsismo, seguido por alguns
poetas de seu tempo como ÁLVARO VIANA, o Spiridiam de Viana,
em São Paulo (sic), MAMEDE DE OLIVEIRA, e outros, e,
modernamente, por outros, todos considerados discípulos seus. É
que o poder do poeta é tão grande e tão puro que obriga a planos de
meditação.23
Além dos poetas mencionados por Martins de Oliveira, o irmão de Alphonsus,
Archangelus de Guimaraens, também fazia parte desse núcleo alfonsista.
No texto “Mestre Alphonsus e seus discípulos”, Eduardo Frieiro também
focalizou o modo como os simbolistas de Belo Horizonte se posicionavam do ponto
de vista social.
Compunham um cenáculo de moços imaginariamente blasés,
entediados duma sociedade que consideravam deliquescente.
Intelectuais de círculo fechado, mostravam-se refinados quanto aos
apetites e às sensações e declaravam inimizade de morte ao Tigre
Burguês e o mais sublime desprezo pela Chusma (como diziam).24
Quanto à origem, os simbolistas que tiveram maior projeção nasceram em
antigas cidades mineiras. Ciro Arno, que teve um breve envolvimento com o
22
A publicação de Câmara Ardente, Setenário das Dores de Nossa Senhora e Dona Mística, obras
de Afonso Henriques da Costa Guimarães (Ouro Preto, MG, 1870 – Mariana, MG, 1921), em 1899,
tornou-se um marco no Simbolismo brasileiro. Alphonsus de Guimaraens foi a figura mais importante
da poesia em Minas Gerais no período que antecedeu o aparecimento do Modernismo. Em 1902,
apareceu Kiriale, editado em Portugal pelo autor com verba adquirida por meio de subscrições. Na
verdade, tratava-se do primeiro livro escrito por Alphonsus de Guimaraens, anterior aos outros três
publicados em 1899. Os livros Pauvre lyre, com poemas em francês, e Pastoral aos crentes do amor
e da morte foram edições póstumas. O primeiro, revisto pelo próprio poeta, apareceu em 1921. Já o
segundo, organizado por João Alphonsus, saiu pela editora de Monteiro Lobato, em 1923.
23
OLIVEIRA, 1958, p. 140.
24
FRIEIRO, 1955, p. 324.
25
Simbolismo publicando o jornal Lótus, era de Diamantina,25 e os irmãos Álvaro
Viana26 e Viana do Castelo eram nascidos em Curvelo.
Horácio Guimarães,27
Alphonsus de Guimaraens, Archangelus de Guimaraens e Edgard Mata nasceram
em Ouro Preto. O último, por ser de tradicional família do norte mineiro, sempre
esteve ligado à cidade de sua família, Diamantina. Já José Severiano de Rezende,
nascido em Mariana, manteve estreitas relações com São João del-Rei, para onde
sua família se transferiu e de onde era originária. Afonso Pena Júnior era natural de
Santa Bárbara28 e Adolfo Araújo, por sua vez, provinha do Serro. Todos eram
membros dos clãs parentais que Cid Rebelo Horta denominou de “famílias
governamentais” mineiras. Para este estudioso, a história mineira, do ponto de vista
político, seria “a história de suas grandes famílias que fazem o jogo da cena política
desde a Colônia”. Elas teriam se desenvolvido “em torno das datas e, depois, das
grandes propriedades rurais”.29 Horta descreveu assim a sua formação:
Constituídas do entrelaçamento de três e mais “famílias nucleares”,
as “famílias extensas” mineiras formavam como que círculos
endogâmicos. Cada círculo era a área social de uma vasta parentela
25
Além de seu trabalho na imprensa, Cícero Arpino Caldeira Brant (Diamantina, MG, 1880 – Rio de
Janeiro, RJ, 1972) foi professor e escritor, publicando seus textos sob o pseudônimo de Ciro Arno.
Exercitou igualmente a tradução, tendo feito uma versão do poema “Les yeux”, de Sully Prudhomme.
Em Diamantina, escrevia para o jornal A Ideia Nova. Já em Belo Horizonte, fundou e redigiu,
juntamente com outros membros dos “Jardineiros do Ideal”, o jornal Lotus, um dos veículos do
movimento simbolista em Belo Horizonte. Arno foi membro do Instituto Histórico e Geográfico de
Minas Gerais e escreveu os seguintes livros: Memórias de um estudante, A metrópole do norte, Os
Jatobás, O Tesouro dos Piratas do Pacífico, Cartas Paulistanas, Mistério de Diamantina e Horas de
Spleen.
26
Álvaro Viana (Curvelo, MG, 1882 – Belo Horizonte, MG, 1936) exerceu, a partir de determinado
período, a liderança do grupo simbolista de Belo Horizonte. Colaborou no Diário de Minas, na revista
Minas Artística e no jornal A Épocha. Fundou e dirigiu a revista Horus. Em 1906, um grupo de amigos
publicou Para quê?, seu livro de poemas.
27
Horácio Guimarães (Ouro Preto, MG, 1870 – Belo Horizonte, MG, 1959), primogênito de Bernardo
Guimarães, participou do movimento simbolista em Belo Horizonte. Foi jornalista, poeta, cronista e
tradutor. Sua carreira jornalística iniciou-se no jornal Cidade do Rio, do abolicionista José do
Patrocínio. Posteriormente, foi redator de A Gazeta, de São Paulo. Em Minas, colaborou no periódico
O Cisne, de Ouro Preto, e depois, atuou como jornalista durante muitos anos em Belo Horizonte.
Entre os órgãos de imprensa em que trabalhou, merecem destaque o Diário da Tarde (1o) (1910), A
Gazeta (3o) (1914) e o Diário de Minas. Foi um dos editores das revistas simbolistas Minas Artística
(1901-1902) e de Horus (1902). Também colaborou, em 1921, na revista Novella Mineira.
28
Afonso Pena Júnior (Santa Bárbara, MG, 1879 – Rio de Janeiro, RJ, 1968) foi membro de dois
grupos simbolistas de Belo Horizonte, os “Jardineiros do Ideal” e os “Cavaleiros do Luar”. Escreveu
poemas e proferiu uma conferência que foi publicada posteriormente com o título “O futuro da arte”
(Imprensa Oficial de Minas Gerais, 1900). Como estudioso, investigou a autoria das Cartas chilenas
(Crítica de atribuição de um manuscrito da Biblioteca da Ajuda, 1943) e da Arte de furtar (A arte de
furtar e o seu autor,1946). Em 1947, tornou-se membro da Academia Brasileira de Letras.
29
HORTA, 1956, p. 59.
26
contígua num largo domínio de terra. Num círculo, por mais fechado
que fosse, sempre apareceria um membro mais ousado que ia ligarse, por laços de casamento, com outro círculo socialmente vizinho.
Formou-se, dessa forma, no tempo, uma verdadeira cadeia de
círculos familiares, ou parentelas, cujos membros ora se sucedem
nas tarefas da chefia política local e regional, ora se alternam. É a
constelação governamental de Minas Gerais.30
Vejamos de quais “famílias governamentais” os simbolistas mineiros eram
membros. Comecemos por José Severiano de Rezende. De acordo com Renato de
Lima Júnior, o poeta era descendente dos inconfidentes José de Rezende Costa pai
e José de Rezende Filho.31 O primeiro faleceu no exílio e o segundo, depois que
voltou para o Brasil, tornou-se deputado geral no Império. Desde então, os membros
da família Rezende, originária da região do Rio das Mortes, passaram a ocupar
cargos políticos e postos administrativos em Minas Gerais.32
Alphonsus de Guimaraens e Archangelus de Guimaraens eram filhos de pai
português e, do lado materno, eram descendentes de uma das famílias importantes
de Minas. Sua mãe era filha de J. I. de Faria Alvim e seu tio materno era Cesário
Alvim, eleito como o primeiro Presidente constitucional de Minas Gerais. Os Alvim
eram um tronco dos Martins da Costa e parentes dos Guerra, dos Lage, dos
Drummond e dos Andrade. A família Martins da Costa exerceu influência política
principalmente na região das cidades de Itabira e Nova Era.33
Quanto a Edgard Mata e Ciro Arno (Cícero Arpino Caldeira Brant), eram
descendentes das tradicionais famílias diamantinenses Mata Machado e Caldeira
Brant. Essas famílias disputavam o poder na região de Diamantina com os
Mourão.34 O pai de Edgard Mata, João da Mata Machado, teve uma carreira política
de destaque no Império e na República. Foi deputado-geral, Conselheiro do Império,
Ministro dos Negócios Estrangeiros no Gabinete Dantas, Deputado Federal na
República e Presidente da Câmara dos Deputados.35 João da Mata Machado, o
Conselheiro Mata, era um “liberal avançado” e teve um importante papel na
30
HORTA, 1956, p. 59.
LIMA JÚNIOR, 2002, p. 30.
32
HORTA, 1956, p. 63-64.
33
HORTA, 1956, p. 85-86.
34
HORTA, 1956, p. 79.
35
SOUZA, 1978, p. 10-11.
31
27
organização das instituições políticas republicanas em Minas, ao lado de Afonso
Pena e Cesário Alvim.36 Segundo Cilene Cunha de Souza, além de político, João da
Mata Machado também desenvolveu “ousados empreendimentos industriais” e criou,
de forma pioneira, um sistema de navegação regular no Rio São Francisco. Ele
consumiu sua enorme fortuna nessas arrojadas empresas, deixando sua família em
uma difícil situação financeira.37
Já Afonso Pena Júnior era da família Moreira Pena, um ramo dos RibeiroOliveira Pena. Os Moreira Pena controlavam o poder em Santa Bárbara no final do
século XIX. Afonso Pena pai foi deputado e ministro no Império, chegou ao governo
de Minas Gerais e depois à presidência do Brasil na Primeira República.
A família Viana, de Álvaro e Viana do Castelo, já era politicamente influente
desde antes da Independência, segundo Cid Rebelo Horta.38 Através de seus
diversos ramos, seus domínios estendiam-se por Curvelo, Sete Lagoas, Sabará,
Abaeté e Santa Luzia.
Uma opinião predominante a respeito da literatura simbolista é a de que se
trataria de uma produção cultural de tipo alienada e seus autores, por conseguinte,
seriam despolitizados ou apolíticos. Contudo, os fatos desconstroem tal versão. Os
simbolistas, como os dados biográficos demonstram, não eram despolitizados ou
apolíticos.39 No caso dos simbolistas mineiros, até por sua própria origem familiar,
isso também pode ser observado. Eles não estavam e nem poderiam estar em um
lugar neutro. Sempre tiveram relações com pessoas de algum setor do poder e
sempre participaram de movimentos políticos desenvolvendo algum trabalho
ideológico. Este tipo de envolvimento não aconteceu apenas por parte dos que
fizeram carreira política. Muitas das obras produzidas por esses escritores
36
MACHADO FILHO, 1978, p. 5.
SOUZA, 1978, p. 11.
38
HORTA, 1956, p. 87.
39
Existem muitos exemplos de engajamento político dos escritores decadentistas e simbolistas. Na
Europa, Verlaine e Rimbaud estiveram envolvidos com a Comuna de Paris e outros escritores com o
movimento anarquista. Maeterlinck e Verhaeren tiveram ligações com o Socialismo. No Brasil, os
simbolistas também se posicionaram em relação aos problemas políticos e sociais de seu tempo.
Podemos citar o ativismo abolicionista de Cruz e Souza, suas críticas políticas no jornal O Moleque,
de Santa Catarina, e a participação de Júlio Perneta no movimento republicano, na Revolução da
Armada e na Revolta Liberalista no Paraná. Outro simbolista brasileiro militante nas lutas
abolicionistas e republicanas foi Oscar Rosas, posteriormente eleito deputado por Santa Catarina.
Embora muitas obras simbolistas não apresentem à primeira vista uma dimensão política, uma leitura
das entrelinhas revela a visão de mundo e as ideias políticas de seus autores.
37
28
constituíam reflexões sobre os fatos políticos, portanto, produção também de
literatura de circunstância.
Vários exemplos desse tipo de literatura podem ser encontrados na obra de
Alphonsus de Guimaraens. Mencionaremos apenas um poema sobre a implantação
da República intitulado “Quinze de Novembro”,40 alguns poemas jocosos sobre as
eleições municipais de uma cidade do interior mineiro, um poema e uma crônica
sobre a Abolição41 e outra comparando a oligarquia brasileira no poder a partir da
proclamação da República a uma legião de demônios (“Aplicando o Evangelho”).42
Cumpre observar que Alphonsus de Guimaraens criticou tanto os governantes do
Império quanto os da República.
O caso do jornal O Conceição do Serro, do qual Alphonsus de Guimaraens
era redator, é bem ilustrativo do envolvimento político do simbolista nas “guerras da
política municipal” e como isso implicava em um posicionamento também diante das
“famílias governamentais” nas suas disputas por cargos. João Alphonsus, filho do
poeta simbolista, descreveu assim O Conceição do Serro:
O jornal era político. Soares Maciel se encarregava da maior parte da
propaganda partidária. Mas as sátiras versificadas abundavam em
suas colunas, além da reprodução de velhas sátiras contra os
médicos, – sendo médico o chefe da oposição local.43
Uma nota da Obra completa de Alphonsus de Guimaraens, publicada no
apêndice “Notas e Variantes”, é bem esclarecedora a respeito de quem era o
referido médico. “O poeta se colocara ao lado de Soares Maciel, seu velho amigo e
40
GUIMARAENS, 2001, p. 487-490.
No poema “Tenebra et lux” (1888), Alphonsus de Guimaraens mostrou-se um ardoroso crítico do
sistema escravocrata: “O solitário e tenebroso espaço/ que em seu seio encerrava a escravidão/ era
um circ’lo de ferro, um circ’lo d’aço,/ labirinto infernal de corrupção.// Era lá tudo escuro e tudo baço.../
nem um fulgente e tímido clarão/ da consciência humana, um estilhaço/ de luz brilhava na densa
escuridão.// Neste círculo, nobre como um bravo,/ servo da infâmia, servo d’opressores,/ gemia
trabalhando o pobre escravo.// Súbito, porém, o ‘Sol da Redenção’/ entre as trevas brilhou com seus
fulgores/ e do povo negro fez um nosso irmão” (GUIMARAENS, 2001, p. 481) A crônica “13 de Maio”,
publicada em 1907 no jornal Conceição do Serro, encontra-se em GUIMARAENS, 1960, p.612-614.
42
GUIMARAENS, 1960, p. 632-633.
43
ALPHONSUS, 1960, p. 41.
41
29
presidente da Câmara Municipal, contra o chefe da oposição, o médico Casimiro de
Souza, por sinal primo da sua esposa”. 44
O engajamento em lutas políticas era comum. José Severiano de Rezende
defendeu o regime monárquico em uma fase de sua carreira e continuou se
envolvendo com questões políticas até o fim de sua vida.45 Álvaro Viana combateu
ferozmente o governo Francisco Sales (1902-1906) na imprensa belo-horizontina e
os opositores de seu irmão Viana do Castelo no jornal O Curvelano (Curvelo, MG).
Ernesto Cerqueira participou da campanha civilista de Rui Barbosa, juntamente com
Carvalho de Brito, Afonso Pena Júnior e Gustavo Farnese, entre os anos de 1908 e
1910, dirigindo também o jornal O Momento (1915), criado para apoiar o Partido
Conservador do General Pinheiro Machado. Horácio Guimarães iniciou sua carreira
no jornalismo fazendo parte da campanha abolicionista de José do Patrocínio e a
escritora Mariana Higina lutou pelos direitos das mulheres.46
No jornal A Épocha, de Belo Horizonte, onde trabalhou Álvaro Viana, foram
publicados versos de Jacques d’Avray e Alphonsus de Guimaraens. Por isso, alguns
autores acreditaram que fosse um periódico simbolista, contudo tratava-se mais de
uma publicação de caráter político do que literário, tendo como objetivo maior a
oposição ao governo Francisco Sales.
Em 1906, Álvaro Viana fundou e dirigiu a folha O Estado de Minas, que se
dizia representante da “Liga das Classes Produtoras”. Apesar de ter aberto espaço
44
GUIMARAENS, 1960, p. 729.
A defesa que José Severiano de Rezende fez do regime monárquico explica-se, em parte, pelo fato
de ser filho de Severiano Cardoso Nunes de Rezende (1847-1920), responsável pelo jornal Arauto de
Minas (1877-1889, São João del-Rei), órgão oficial do Partido Conservador no 6o Distrito Eleitoral de
Minas Gerais. José Severiano de Rezende iniciou seu trabalho na imprensa no Arauto de Minas e
teve participação nas polêmicas que este periódico sustentou com o jornal A Pátria Mineira (18891894, São João del-Rei) defensor da implantação da República no Brasil. Em São Paulo, o poeta
tomou a defesa do professor monarquista Justino Gonçalves de Andrade no livro Cartas paulistas:
artigos sobre a questão acadêmica. As críticas de Severiano de Rezende à República e aos
governantes republicanos continuaram no jornal D. Viçoso (1898-1899), periódico diocesano de
Mariana), onde publicou, por exemplo, editoriais violentos contra o presidente Campos Sales (20 nov.
1898, p.3) e outros como o intitulado “O povo vítima” (28 maio 1899, p.1). Nos seus artigos para o
jornal Correio da Manhã (Rio de Janeiro), continuou as críticas aos governos republicanos. Exemplo
disso foi “O fúnebre reinado” (15 abr. 1903, p.1), que tinha como alvo o governo de Rodrigues Alves.
O segundo livro de José Severiano de Rezende, Eduardo Prado: páginas de crítica e polêmica,
provavelmente editado em fins de 1904, é um manifesto católico-monarquista, escrito em estilo art
nouveau.
46
Mariana Higina trabalhou no jornal feminista A Esperança (1899), de Diamantina. Um de seus
poemas foi inscrito no túmulo do poeta Edgard Mata. Com apenas 18 anos, Mariana Higina, que
faleceu aos 84, já cultivava a poesia com acento simbolista.
45
30
para veiculação de textos dos simbolistas, como tantos outros da época em que a
matéria literária não figurava como central ou importante, era um jornal com nítidos
objetivos políticos. Nele, Viana e seus colaboradores acirraram a luta contra o
governo de Francisco Sales. Para Linhares, a linguagem deste periódico “era de
uma violência sem par, desde o editorial até o noticiário”.47
Pelo que acabamos de expor, em relação ao nível social, os simbolistas
mineiros pertenciam geralmente aos estratos médios ou eram ligados à oligarquia. A
formação cultural de suas famílias e o ambiente familiar lhes possibilitaram a
apropriação de uma literatura sofisticada e a criação de uma obra literária que
dialogava com o mundo moderno. Nesse sentido, é importante ressaltar a presença
de uma tradição intelectual no seio dessas famílias. Por exemplo, Horácio de
Guimarães era filho do escritor Bernardo Guimarães e primo de Alphonsus e
Archangelus de Guimaraens.
Podemos traçar um paralelo entre a situação dos modernistas mineiros,
descrita por Fernando Correia Dias (1971), e a dos simbolistas no que concerne ao
aspecto profissional. Assim como os modernistas, muitos simbolistas foram
jornalistas e tal tipo de trabalho se coadunava com seu status inicial, na sua grande
maioria, de estudantes do curso de Direito.48 Geralmente, eles obtinham algum
cargo burocrático e conjugavam os dois tipos de trabalho.
Há, ainda, o caso de Viana do Castelo e Afonso Pena Júnior que fizeram
carreira política, além da burocrática.49 Outros simplesmente se engajaram nas
disputas políticas, como Álvaro Viana, Horácio Guimarães e o próprio Alphonsus de
Guimaraens no período em que passou a publicar periódicos no interior de Minas.
Uma outra parte dos simbolistas mineiros, composta pelos que não chegaram a ter
47
LINHARES, 1995, p. 106.
DIAS, 1971, p. 91.
49
Concluídos seus estudos secundários no Colégio do Caraça (MG) e o bacharelado na Faculdade
de Direito de Minas Gerais, Afonso Pena Júnior tornou-se deputado estadual, em 1902, iniciando uma
longa carreira política. Foi secretário do interior no governo mineiro de Artur Bernardes, deputado
federal entre 1921-1923 e presidente do Partido Republicano Mineiro (PRM) em 1929. Participou
ativamente do movimento que levou Getúlio Vargas ao poder, a chamada Revolução de 30. Mas, em
1943, foi um dos signatários do Manifesto dos mineiros, documento produzido pelas elites políticas
contra a ditadura do Estado Novo. Afonso Pena Júnior também ocupou vários cargos administrativos
de importância e desenvolveu carreira acadêmica em Minas e no Rio de Janeiro. Já Viana do
Castelo, a partir de 1906, assumiu o mandato de deputado federal pelo Partido Republicano Mineiro
(PRM), sendo reeleito até 1914. Foi Secretário da Agricultura, no governo de Antônio Carlos e
Ministro da Justiça e Negócios do Interior, no governo de Washington Luís.
48
31
cargos públicos ou políticos, buscava a profissionalização intelectual através da
colaboração na imprensa, a atuação como conferencistas e outras formas de
obtenção de rendimentos. Tal é o perfil de Mamede de Oliveira e João Camelo.50
Para termos uma ideia mais nuançada da literatura simbolista em Minas
Gerais, é relevante compreender qual era a relação dos escritores com as instâncias
do poder. Em Minas Gerais, na República Velha, vários escritores buscavam uma
sustentação geralmente através de um emprego burocrático ou do trabalho em
órgãos da imprensa oficial e oficiosa do governo estadual. Os cargos eram de vários
tipos. Os escritores podiam ocupar um lugar na burocracia, uma posição no aparelho
policial ou judiciário ou um cargo de professor. Assis das Chagas, por exemplo, foi
funcionário público, chegando a ser diretor da Secretaria de Interior de Minas Gerais.
Ciro Arno, após ter trabalhado como educador nos colégios Hydecroft e João de
Deus, de São Paulo, dirigiu o Grupo Escolar Mata Machado, de Diamantina. Ernesto
Cerqueira trabalhou como Promotor de Justiça em Santa Bárbara, Sete Lagoas e
Belo Horizonte. Foi professor do Ginásio Mineiro, fiscal de exames e funcionário da
Chefatura de Polícia. Após diplomar-se, Archangelus de Guimaraens trabalhou
como promotor de justiça e juiz interino em Caeté. Em Belo Horizonte,
desempenhou a função de auditor da Força Pública. Viana do Castelo foi promotor
em Curvelo e Secretário da Agricultura no governo Antônio Carlos. Afonso Pena
Júnior ocupou vários cargos administrativos importantes. Um deles foi o de
Secretário do Interior no governo Artur Bernardes. Já Alphonsus de Guimaraens foi
Promotor de Justiça e, posteriormente, Juiz nas comarcas de Conceição do Serro e
Mariana.
Garantido o seu sustento através do cargo público ou do trabalho de
mediação política e cultural nos órgãos de imprensa oficial e oficiosa, esses
intelectuais podiam dedicar o seu tempo livre ao trabalho literário. Em troca de
50
O jornalista e escritor João Elói Camelo (? – Uberaba, MG, 1915), que assinava seus textos como
J. Camelo, também participou do grupo simbolista de Belo Horizonte. Sua carreira jornalística iniciouse no final do século XIX, ao fundar, com outros jornalistas, o jornal Aurora (1896-1897), primeiro
periódico literário de Belo Horizonte. Antes disso, trabalhara como paginador e impressor do Belo
Horizonte, o primeiro jornal da nova capital de Minas. Em 1900, colaborou nos jornais A Violeta e
Lotus. No ano seguinte, colaborou na revista Minas Artística e na polianteia dedicada à memória de
Arthur Lobo. Depois, fundou e dirigiu o jornal Heliantho (1902), juntamente com Navantino Santos,
Auto Sá e Júlio Brandão Filho. Por certo tempo, trabalhou como diretor do jornal A Epocha e, entre
1906 e 1907, participou da comissão editorial do jornal Tribuna do Norte, de Belo Horizonte. Já em
1908, colaborou no periódico Via Lactea, tendo sido ainda redator do jornal Diário de Minas.
32
favores ou benefícios, alguns daqueles escritores faziam um trabalho ideológico
para aqueles setores do poder com os quais mantinham contato. Traçar um quadro
da origem familiar e de sua participação política nos permite compreender a rede de
contatos de que dispunham quando necessário.
Consideremos, agora, algumas práticas que contribuíram para a formação e a
coesão do grupo simbolista mineiro, estreitando e fortalecendo as relações entre os
intelectuais que dele participavam: escrever dedicatórias, desenvolver projetos
comuns,51
presentear
os
companheiros
com
poemas
manuscritos,
trocar
correspondências e prestar homenagens em textos narrativos (crônicas que tinham
os simbolistas como personagens), críticos (de tipo laudatório) ou poéticos. Essas
práticas, que não foram realizadas exclusivamente pelos simbolistas, também
tinham a função de mostrar com quem dialogavam e com quem buscavam interagir.
Vejamos alguns exemplos. Mariana Higina e J. Camelo trocaram dedicatórias;
Edgard Mata escreveu dedicatórias para Carlos Raposo, Álvaro Viana e Afonso
Pena Júnior; Severiano de Rezende dedicou poemas a Álvaro Viana, Alphonsus de
Guimaraens e Viana do Castelo; Alphonsus de Guimaraens trocou poemas com
Osvaldo Freitas e presenteou Álvaro Viana com o autógrafo de Câmara Ardente.
Álvaro Viana fez dedicatórias para Horácio Guimarães, Júlio Lemos, Viana do
Castelo, Assis das Chagas,52 Josias de Azevedo, Antônio Salvo, Edgard Mata e
Archangelus de Guimaraens. Álvaro Viana gozava de boa saúde quando foi
homenageado por Alphonsus de Guimaraens com um epitáfio.53 Um jornalista da
época considerou o fato como uma esquisitice, como um despropósito, como mais
uma das extravagâncias simbolistas:
Achamos extravagante semelhante idéia do grande simbolista
mineiro, pois, em se tratando de um moço como o poeta do Para
que?, deve a gente se lembrar de o mimosear com justos elogios e
51
Um exemplo desses projetos comuns: Assis das Chagas e Horácio Guimarães projetaram escrever
um livro de “contos e descrições destinado às crianças” sobre as belezas da “fértil terra mineira”. Cf.
Diário de Minas, Belo Horizonte, 6 mar. 1901, p.1.
52
A relação do jornalista Assis das Chagas (? – Oliveira, MG, 1916) com o movimento simbolista
ficou evidenciada por sua colaboração em um pequeno texto, assinado juntamente com Edgard Mata,
intitulado “Na alma de Brahma”, no primeiro número da revista Minas Artística. Outra participação se
deu nas atividades culturais desenvolvidas no “Clube das Violetas”, onde, no dia 15 de agosto de
1900, proferiu a conferência “Cousas do Sertão”.
53
Cf. GUIMARAENS, 2001, p. 493
33
poderoso estímulo para que sejam sempre mais brilhantes os seus
triunfos na vida e não agourá-lo com a lembrança de que para seu
túmulo já não falta tudo, pois que o epitáfio está pronto.54
É importante ter presente que, inicialmente, o Simbolismo não se distinguia
muito bem dos outros movimentos literários em Minas Gerais. Durante todo o
período de manifestações simbolistas no estado, do final do século XIX até os anos
de 1920, houve uma tendência para o ecletismo na literatura, assim como podemos
notar na arquitetura, especialmente nas primeiras construções de Belo Horizonte. As
várias correntes se interpenetravam no processo de sua difusão. Diversos autores
oscilavam entre o Parnasianismo e o Simbolismo. Outros ainda guardavam traços
do Romantismo. Por isso, são de difícil classificação. Martins de Oliveira, na História
da literatura mineira, descreveu o que acontecia nesses termos:
Cansados de hugoanas, byronianas, dos versos de
LAMARTINE, de ALFRED DE VIGNY, de MUSSET e outros poetas
franceses seguidos no Brasil com unção por vezes religiosa,
enveredavam pelo culto de COPPÉE, HEREDIA, LECONTE DE
LISLE, THÉOPHILE GAUTIER. Sem muito entusiasmo por
BAUDELAIRE e muita simpatia por HUYSMANS, em quadros sutis,
passaram a admirar VERLAINE, RIMBAUD, MALLARMÉ e os
iluminados da Bélgica, RODENBACH e VERHAEREN. Receberam,
com muita reserva, as extravagâncias de um JEAN LORRAIN, ou de
um OSCAR WILDE, sem adesão ao plano mórbido da arte. Muito
pouco de PROUST, quase nada de GIDE e alguma adoração a
ROMAIN ROLLAND, ficara a cultura mineira em meio termo, quando,
de repente, já iluminada pelo simbolismo, passou a admitir as
corajosas inovações de APOLLINAIRE, BLAISE CENDRARS, JEAN
COCTEAU e JULES SUPERVIELLE, sem muito apreço para os
exageros de MARINETTI. 55
O ecletismo poderia significar uma falta na formação estética e revelar uma
posição de subalternidade quanto aos autores europeus, mas também pode ser lido
54
Texto do Correio da Tarde e republicado n’O Estado de Minas, Belo Horizonte, 1 jul. 1906, p.2.
Nesta tese, optamos pela atualização ortográfica dos trechos citados e pela correção dos erros
tipográficos óbvios, mas geralmente conservando a pontuação original, modificando-a apenas nos
casos em que era evidente algum problema de revisão ou quando julgamos que a compreensão dos
textos poderia melhorar.
55
OLIVEIRA, 1963, p. 209.
34
como tentativa de inovação, como tomada de posição em relação às convenções
estreitas de cada escola e como busca de um caminho pessoal. O Simbolismo,
misturado a outras tendências, aponta para um processo de adaptação e de releitura
dos modelos europeus, em que as “repetições”, em contextos de produção diversos,
produziram diferenças. Em Minas, o Simbolismo se difundiu ora mais, ora menos
mesclado, até o aparecimento dos modernistas. Mesmo estes últimos, exibiam, ao
menos na sua produção inicial, traços marcantemente simbolistas.56
Os escritores e jornalistas que mantiveram alguma relação com o Simbolismo
em Minas foram muitos. Podemos citar Josias de Azevedo,57 Júlio Lemos,58 Brito
Machado,59 Salvador Pinto Júnior,60 Oswaldo Freitas61 e Agenor Barbosa.62 Martins
de Oliveira e Cilene Cunha de Souza apontam ainda Antônio Salvo, Alcino Cotti,
Ataliba Pires, Adeodato Pires, João da Mata Machado Filho, João Edmundo Caldeira
Brant.63
Demonstrando a grande difusão da poética simbolista em Minas, apareceram
os “diluidores” que usavam os clichês simbolistas combinados com elementos de
outras poéticas. De acordo com Oliveira, as obras de Honório Armond, Noraldino de
56
Cf. CURY, 1998, p. 100.
Josias de Azevedo foi jornalista e poeta. Em 1903, juntamente com Salvador Pinto Junior, J.
Camelo e outros, fundou a folha Evolução, em Belo Horizonte. Para o jornal A Épocha, também da
nova capital mineira, redigia a coluna “Fagulhas”. Azevedo ficou conhecido como “Correia-mirim”,
devido à sua vocação para as sátiras. Seu falecimento ocorreu no início do ano de 1915.
58
Em 1902, Júlio Lemos colaborou no jornal Heliantho com um poema dedicado a J. Camelo.
Durante certo tempo, teve o cargo de diretor do jornal A Épocha e foi um dos moços responsáveis
pela edição do livro de Álvaro Viana em 1906.
59
Também amigo e admirador de Alphonsus de Guimaraens, o poeta e professor Brito Machado
nasceu em Ouro Preto em 14 de julho de 1887. Seu primeiro livro foi publicado em 1927. Segundo
informações de Guimaraens Filho, o poeta Brito Machado teria escrito um livro sobre Alphonsus
intitulado Alphonsíade, que não chegou a publicar.
60
Salvador Pinto Junior, além de seu trabalho na imprensa de Belo Horizonte, foi um dos fundadores
do “Clube das Violetas” e lá apresentou a palestra “Tipos e episódios da imprensa”, em 12 de
setembro de 1900.
61
Osvaldo Freitas publicou dois livros de poesia. O primeiro, Nevroses, de 1915, teve prefácio de
Alphonsus de Guimaraens, de quem era amigo. O segundo livro de Freitas, Água-morta, apareceu
apenas em 1958.
62
O escritor Agenor Barbosa foi marcado no início de sua obra pelo Simbolismo. Na capital mineira,
Barbosa trabalhou como colaborador das revistas Vita (1914) e Vida de Minas (1915). Posteriormente,
mudou-se para São Paulo, onde foi redator do jornal Correio Paulistano e se envolveu no movimento
modernista.
63
OLIVEIRA, 1963, p. 242 e SOUZA, 1978, p. 11.
57
35
Lima, Mário de Lima, Nilo Bruzzi e Enrique de Rezende teriam essas características
ecléticas.64
Para que o Simbolismo conquistasse um espaço maior no campo cultural
mineiro, também ocorreu um processo de depuração e de melhor caracterização do
movimento, principalmente a partir do momento em que Álvaro Viana assumiu a
liderança do grupo simbolista de Belo Horizonte. Tanto as polêmicas de Álvaro
Viana com o parnasiano Mendes de Oliveira, quanto o esforço para se editar um
periódico exclusivamente simbolista e de qualidade na nova capital de Minas, caso
das revistas Minas Artística e Horus, podem ser considerados como indicativos
desse processo.
A produção simbolista em Minas Gerais não ficou circunscrita apenas aos
escritores originários do Estado. Assim, escritores como Ernesto Cerqueira,65 Carlos
Raposo,66 Alfredo de Sarandy Raposo67 e Da Costa e Silva68 devem ser
considerados por sua participação efetiva na constituição de uma mentalidade
simbolista, seja por seu papel de mediação entre grupos simbolistas, seja pela
64
OLIVEIRA, 1963, p. 242.
Ernesto Reis da Gama Cerqueira (Paraíba do Sul, RJ, 1879 – Rio de Janeiro, RJ, 1947) tornou-se
figura de relevo nos meios literários do início do século XX em Belo Horizonte. Antigo aluno do
Colégio do Caraça, Cerqueira se bacharelou pela Faculdade Livre de Direito de Minas Gerais. Como
jornalista, Ernesto Cerqueira trabalhou em vários jornais da capital mineira. Foi um dos colaboradores
do jornal Belo Horizonte (1898), da revista Lotus (1900), da revista Minas Artística (1901), do Diário
de Minas (1901) e da revista Vida de Minas (1915). Dirigiu os seguintes periódicos: O Estado (1911) e
Vita, do número 5 ao 9 (1913). No Rio de Janeiro, para onde se transferiu depois de viver muitos
anos em Minas, Cerqueira trabalhou nos seguintes periódicos: A Pátria, A Gazeta de Notícias e
Jornal do Brasil. Para este último, escrevia crônicas diárias que abordavam temas literários e
históricos.
66
Carlos Raposo foi um dos editores da revista Minas Artística e colaborador de uma polianteia em
homenagem a Cruz e Sousa. No Diário de Minas, publicou uma tradução de um texto de D’Annunzio
e redigiu uma dedicatória a Horácio Guimarães. Ele escreveu também uma obra intitulada Breviário
do sonho que foi publicada após o seu falecimento em 1902.
67
Alfredo de Sarandy (Santa Catarina, 1880 – Rio de Janeiro, 1944) era filho do educador mineiro
Custódio Raposo e irmão de Carlos Raposo. Foi poeta, novelista e conferencista. Sarandy editou a
revista Minas Artística, juntamente com Horácio Guimarães, Álvaro Viana, Edgard Mata e Carlos
Raposo. Alfredo de Sarandy também colaborou em outros periódicos belo-horizontinos. Para o jornal
Heliantho (1902), por exemplo, redigiu o texto “Epístola” e, para a Revista Mineira (1903), escreveu
“Veritas” e “Ursus”. Em 1906, publicou uma novela decadentista chamada O Malsinado.
68
Antônio Francisco da Costa e Silva (Amarante, Piauí, 1885 - Rio de Janeiro, 1950) publicou o seu
primeiro livro de poesia, Sangue, em 1908, no Recife. A partir de 1910, após ser aprovado em um
concurso, entrou para o quadro de funcionários do Ministério da Fazenda, sendo transferido para
Belo Horizonte. Depois de 1917, foi transferido para o Rio de Janeiro. Lá publicou o livro Zodíaco,
reunindo vários poemas que haviam saído primeiramente em periódicos da capital mineira. Em 1919,
Da Costa e Silva publicou o livro Pandora e foi novamente transferido para Belo Horizonte. A partir
dessa época, ligou-se ao grupo de Carlos Drummond de Andrade, Aníbal Machado, Emílio Moura,
Mário Casassanta e Mílton Campos. Em 1927, lançou o livro Verônica, no Rio de Janeiro.
65
36
divulgação de autores. Da Costa e Silva, por exemplo, segundo Alphonsus de
Guimaraens Filho, foi um dos grandes responsáveis pela divulgação e valorização
da obra de Alphonsus de Guimaraens.69
Publicar um livro em Minas Gerais no período da Belle Époque era uma
aventura ou um ato de heroísmo. As dificuldades aumentavam quando o autor se
preocupava com o livro enquanto objeto e desejava concretizar seus sonhos de
esteta. Não existiam editoras que pudessem cumprir uma tarefa assim. Os escritores
tinham que se encarregar das edições e conseguir os recursos necessários para
desenvolver o projeto.
Em vista das dificuldades, o número de livros simbolistas publicados em
Minas foi pequeno. Alguns dos escritores precisaram esperar muito tempo para
terem seus poemas reunidos em livro. Foi o caso de Mamede de Oliveira,
Archangelus de Guimaraens e Edgard Mata. Os livros póstumos de Mamede de
Oliveira (Dona Graça) e Archangelus de Guimaraens (Coroa de espinhos)
apareceram na década de 1950. O primeiro foi organizado por Benedito Lopes,
irmão de Mamede de Oliveira, e o segundo ficou sob a responsabilidade de
Alphonsus de Guimaraens Filho. Já o de Edgard Mata só foi editado em 1978 por
Cilene Cunha de Souza.
Os poetas que conseguiram publicar livros ainda em vida tiveram, como era
de se esperar, uma maior divulgação. Alphonsus de Guimaraens publicou Setenário
das Dores de Nossa Senhora, Câmara Ardente e Dona Mística (Rio, 1899), Kiriale
(Porto, 1902) e o livro de crônicas Mendigos (Ouro Preto, 1920). O restante de sua
obra só saiu em edições póstumas. Quanto a José Severiano de Rezende, viu a sua
obra em prosa (Cartas paulistas, Santos, 1890; Eduardo Prado, São Paulo, 1904;70
O meu flos sanctorum, Porto, 1908) editada muito antes do seu livro de poesias
Mistérios (Lisboa, 1920). Embora tenham feito um grande esforço para publicarem
livros, a grande maioria da produção literária dos simbolistas mineiros ficou dispersa
pelos periódicos da época.
69
70
GUIMARAENS FILHO, 1995, p. 349.
Cf. LIMA JUNIOR, 2002, p. 96.
37
ESPAÇOS EFÊMEROS, DESEJOS DE PERMANÊNCIA
O movimento simbolista em Belo Horizonte começou a partir da fundação de
uma associação recreativa chamada “Clube das Violetas”. No dia 6 de janeiro de
1899, o jornal Diário de Minas noticiava o recebimento dos estatutos daquele
clube.71 A sua fundação havia sido em 1898, no mesmo ano da criação do “Clube
Rose”, presidido pela primeira-dama de Minas, Esther Brandão. Os dois clubes eram
os espaços privilegiados de sociabilidade da elite belo-horizontina nos seus
primeiros anos de vida.
O “Clube das Violetas” tornou-se mais um espaço para os escritores da
cidade se manifestarem através das conferências que, naquela época, estavam em
moda
no
Brasil.
Grande
parte
dessas
conferências
era
marcada
pela
superficialidade, o que pode ser explicado pelo tipo de público que frequentava tais
reuniões. No livro A vida literária no Brasil - 1900, Brito Broca afirmou que o caráter
mundano desses eventos era a causa de seu sucesso:
Tratava-se de uma reunião social, onde as mulheres, geralmente,
iam com o espírito com que se vai ao chá-dançante, e os homens
acorriam, em parte, para ver as mulheres. Além do que, uma
circunstância importantíssima pesava no caso: em Paris se fazia
assim, esse era o chique em Paris.72
De fato, em Belo Horizonte, as conferências realizadas no “Clube das
Violetas” eram uma forma de divertimento para a elite local, semelhantes aos jogos
e bailes.
Abílio Barreto, em artigo publicado no Diário de Minas, situou a criação do
“Clube das Violetas” num contexto de uma crise econômica ocorrida três anos após
o início da construção da nova capital de Minas. Os operários e os empreiteiros, por
falta de trabalho, partiam para outras localidades; o comércio e as pequenas
71
72
RECEBEMOS. Diário de Minas, Belo Horizonte, 6 jan. 1899, p. 2.
BROCA, 2005, p. 198.
38
indústrias manufatureiras agonizavam e muitas empresas faliam. O desânimo teria
tomado conta da cidade. Nesse ambiente de crise, as diversões e a vida cultural da
elite estavam circunscritas às corridas do “Velo Clube” no Parque Municipal e a
algumas peças no Teatro Soucasaux. O “Clube das Violetas” teria surgido, de
acordo com Barreto, como forma de reação a esse ambiente de apatia e tristeza.73
As conferências ou palestras seriam maneiras de amenizar as dificuldades da vida
cotidiana e também serviriam para incentivar as letras e o gosto artístico da nova
capital, unindo o útil ao agradável.74 Os membros dos “Jardineiros do Ideal” que
compunham o “Clube das Violetas” eram doze: Lindolpho Azevedo, Prado Lopes,
Ismael Franzen, Josaphat Bello, Padre João Pio, Aurélio Pires, Ernesto Cerqueira,
Afonso Pena Júnior, Edgard Mata, Assis das Chagas, Salvador Pinto Júnior e Arthur
Lobo. Uma nota publicada no jornal Minas Gerais, do dia 20 de julho de 1900,
informou que o esse grupo formaria um “centro literário” seguindo, de certa forma, o
modelo da Padaria Espiritual, do Ceará.
Consta-nos a criação dum centro literário, constituído talvez
pelos organizadores das palestras, e tendo a feição da Padaria
Espiritual, do Ceará. Apesar do título, esses Jardineiros do Ideal,
conforme se denominam, nem celebrarão sessões e não possuirão
arquivo: o que resultar das suas confabulações será guardado pela
Violeta e ficará nos livros, jornais e folhetos que pretendem publicar
[...]75
A primeira conferência do “Clube das Violetas” seria proferida por Mendes
Pimentel. Contudo, quem inaugurou a série de eventos literários foi o padre João Pio
em 18 de julho de 1900 no Palacete Steckel, localizado na Rua dos Guajajaras.76
73
BARRETO, Abílio. Ao alvorecer da Capital. Os “Jardineiros do Ideal”. Diário de Minas, Belo
Horizonte, 3 ago. 1927. p. 1. Na verdade, de um lado, existiam os otimistas, os entusiasmados com a
modernidade. De outro, os pessimistas. A construção da nova capital de Minas representou, para
muitos, a possibilidade de melhoria de vida, de aumento de possibilidades de realização pessoal, mas
outros tantos foram se desiludindo com esse processo de modernização. Havia, portanto, dois
discursos antagônicos sobre a construção de Belo Horizonte e um deles investia numa retórica da
crise.
74
BARRETO, Abílio. Ao alvorecer da Capital. Os “Jardineiros do Ideal”. Diário de Minas, Belo
Horizonte, 3 ago. 1927. p. 4.
75
FESTAS e diversões. Minas Gerais, Belo Horizonte, 20 jul. 1900, p. 6.
76
BARRETO, Abílio. Ao alvorecer da Capital. Os “Jardineiros do Ideal”. Diário de Minas, Belo
Horizonte, 3 ago. 1927. p. 4.
39
Seu proprietário era o artista alemão Frederico Steckel, chefe da equipe responsável
pelas obras artísticas do Palácio da Liberdade e presidente do “Clube das Violetas”.
No Palacete Steckel, também ocorreram concertos instrumentais e vocais desde
1899.77 Um fato relevante na biografia de Steckel foi a organização de uma das
primeiras exposições de artes plásticas da cidade em 1901.78 Entre os participantes
da exposição estavam Alberto Delpino e Honório Esteves.
Em 25 de julho de 1900, ocorreu a segunda conferência sobre “As lendas do
teatro de Wagner”, realizada por Josaphat Bello. A seguir, foram proferidas as
seguintes conferências: “A emancipação e evolução da música”, por Ismael Franzen;
“A influência da religião sobre as artes”, por Prado Lopes; “Cousas do sertão”, por
Assis das Chagas; “Poetas mineiros”, por Aurélio Pires; “O Oriente”, por Ernesto
Cerqueira; “A ciência e arte”, por Afonso Pena Júnior; “Tipos e episódios da
imprensa”, por Salvador Pinto Júnior; “Tijuco – lendas e tradições, por Edgard Mata;
“A mulher”, por Theóphilo Pereira da Silva; “Paradoxo da liberdade”, por Castilho
Lisboa. A última, “A poesia”, foi realizada por Augusto de Lima no dia 10 de outubro
de 1900.79 De acordo com Andrade Muricy,80 o crítico e escritor Nestor Vítor teria
sido convidado pelos “Jardineiros do Ideal” para proferir uma conferência sobre Cruz
e Souza no “Clube das Violetas”. Arline Anglade-Aurand também afirmou a mesma
coisa.81 Ainda segundo Muricy, a conferência teria acontecido, embora Abílio Barreto
não a tenha mencionado no seu artigo do Diário de Minas.
As reuniões do “Clube das Violetas” eram realizadas uma vez por semana, às
quartas feiras, e também costumavam apresentar uma seção musical. Por exemplo,
no dia da conferência de Josaphat Bello sobre o teatro de Wagner, aconteceu a
primeira apresentação em Minas de um trecho de Tristão e Isolda. Até mesmo uma
orquestra foi criada para as festas e concertos do “Clube das Violetas”. Os
programas desses concertos revelam o gosto musical dos frequentadores do clube.
No dia em que Assis das Chagas fez sua palestra, os músicos Magdalena Bello,
Ismael Franzen e J. Nicodemos acompanharam a soprano Francisca Gonçalves
77
CRUZ; VARGAS, 1989, p. 124.
ALMEIDA, 1997, p. 92.
79
BARRETO, Abílio. Ao alvorecer da Capital. Os “Jardineiros do Ideal”. Diário de Minas, Belo
Horizonte, 3 ago. 1927. p. 4.
80
MURICY, 1951, p. 286.
81
AURAND, 1970, p. 47.
78
40
Ferreira que apresentou uma ária da ópera L’Africana, de Giacomo Meyerbeer, e a
Musica Proibita, de Stanislao Gastaldon. Quando Ernesto Cerqueira proferiu a sua
conferência, Luzia Cerqueira cantou o Libro Santo, de Ciro Pinsuti, acompanhada
por Maria Macedo (piano) e pelo maestro Ramos de Lima (violino). Depois foi a vez
do bailado da ópera Marília, de F. Valle, executado ao piano pelo próprio autor. Já
na ocasião da conferência de Afonso Pena Júnior, Clotilde Schimidt executou o
Caprice, de Mendelssohn, e La Campanella, de Lizst. Naquela mesma data, a
cantora Esther de Lima apresentou uma ária de Roberto, o Diabo, de Meyerbeer.
Em Beira-mar, Pedro Nava mencionou o “Clube das Violetas”, considerando-o
como antecessor do “Clube Belo Horizonte”, uma associação da elite belohorizontina inaugurada em 1904.
Parece que o Clube Belo Horizonte saíra de um primitivo Clube
das Violetas – grupo mundano da nova capital. Crescera, se firmara
e tivera de transformar-se em instituição definitiva. Isso é o que corria
no meu tempo e que aprendi da tradição. Como Clube Belo
Horizonte fora inaugurado em 1904, tendo sido seu primeiro
presidente o Dr. David Moretzshohn Campista. Era a casa onde se
reunia a elite da cidade e funcionava, quando o conheci, como ficou
dito, nos altos do Cinema Odeon. [...] Nas paredes, retratos dos
presidentes e beneméritos do fino grêmio. Numa bela moldura e
confirmando a filiação ao Clube das Violetas, fotografia de uma
diretoria do mesmo entre cujos membros se destacava a figura,
ainda muito moça, mas de maiores bigodes, do meu amigo Dr.
Afonso Pena Júnior.82
Em Belo Horizonte, alguns dos membros do “Clube das Violetas” publicaram
um jornal chamado A Violeta que durou apenas dois números. O jornal apresentou
textos de Abel Júnior, E. Nestor, Bento Ernesto Júnior, Adolfo Araújo, Fidé Yori, J.
Camelo, Assis das Chagas, Edgard Mata, Artur Lobo (escrevendo com o
pseudônimo de Carão d’Acha) e Azevedo Júnior, assinando como Pif. Os dois foram
importantes cronistas da nova capital e também redigiram sobre as atividades do
“Clube das Violetas” em seus textos do Diário de Minas. Neste periódico e em Lótus,
surgiram as primeiras manifestações simbolistas da nova capital mineira.
82
NAVA, 2003, p. 58.
41
No primeiro número de A Violeta, um texto chamado “Serata artística”
anunciava e comentava a criação das conferências. A justificativa de seu
aparecimento era semelhante àquela apresentada por Abílio Barreto.
Se fizer bom tempo e Deus não mandar o contrário, quarta
feira próxima, o Club das Violetas receberá os seus convidados,
oferecendo-lhes a palestra inaugural, marco d’um período festivo e
movimentado, de grande júbilo e cheio de atrativos, para descobrar
(sic) essa temporada sensaborona e má, que nem vibra e nem vive,
fazendo-nos passear pelas avenidas as nossas lamúrias e
queixumes, bocejando a cada passo, numa calmaria de enjoar os
mais avessos a qualquer espécie de divertimento.83
O lema do jornal A Violeta era uma frase de Raul Pompéia: “Viver é vibrar!”. A
sentença foi interpretada em um sentido vitalista, como uma espécie de reação à
tristeza dos que viviam a crise econômica daquele tempo. Na primeira página do
número um de A Violeta, um texto de abertura, como se fosse um editorial, retomou
o lema e desenvolveu uma justificativa para o surgimento do jornal: “A aparição da
Violeta obedece a esse princípio imortal. É a explosão da vida que a explica, é a
fatalidade de vibrar que a produz”.84 Nesse mesmo texto, prognosticou-se a
efemeridade do jornal e a recepção superficial e desatenta dos escritos ali
publicados. Registre-se a expectativa de leitura por parte, sobretudo, do público
feminino, indiciando tal recepção como própria a este público:
Amanhã a Violeta passará, esquecida e desdenhada, como todas as
flores quando o tempo passa... Passará como as “palestras” que
virão amanhã como uma necessidade de movimento; mas terá
cumprido a lei imperiosa, e feito talvez vibrar de curiosidade, de
surpresa, de emoção, quem sabe?, o coração dessa senhorita que a
vai ler entre os ritornelos de uma valsa e a marca de uma
contradança...85
83
SERATA artística. A Violeta, Belo Horizonte, 14 jul. 1900, p. 1.
A violeta. A Violeta, Belo Horizonte, 14 jul. 1900, p. 1.
85
A violeta. A Violeta, Belo Horizonte, 14 jul. 1900, p. 1.
84
42
Para compreendermos o tipo de textos que o jornal A Violeta veiculava,
devemos considerar que o mesmo se dirigia principalmente às mulheres. Em A
Violeta, as atividades culturais estavam associadas ao feminino e aos momentos de
lazer. Neste sentido, é bem esclarecedora a frase que funcionava como um subtítulo
do periódico: “flor... de papel impresso, cultivada por um grupo de Jardineiros do
Ideal para as senhoritas que enchem os salões do Club do espírito e graça”. A
maioria dos artigos visariam, então, uma leitora de elite, jovem e pouco interessada
em discussões profundas sobre temas políticos ou culturais. A leitora ideal do jornal
era tida por sonhadora e delicada. Além disso, a publicação do jornal era tratada
como algo sem muito preparo no texto “Última palavra”, também do primeiro número
de A Violeta:
Este jornal, ideado em uma noite, preparado no dia seguinte e
pronto na noite imediata, espécie de torneio de paladinos solícitos
em bem servir as damas, não tem outro mérito senão o do esforço,
nem outra aspiração senão o prêmio de uns olhos complacentes.86
Como se observa, A Violeta era um periódico que objetivava primordialmente
o divertimento de suas leitoras (e leitores). Nas suas páginas encontramos, por
exemplo, versos de E. Nestor celebrando a Revolução Francesa e afirmando que
Paris era o “centro de luz da humanidade”, textos sobre o teatro na nova capital de
Minas, anúncios de aniversários, pensamentos com assinatura feminina, além de
outros intitulados “A dança”, “A moda” e “Música”.
Para um dos articulistas de A Violeta, a moda era associada à representação
da mulher na famosa ária da ópera Rigoletto. Vista como fútil, a mulher tinha seu
prazer relacionado ao processo de sedução, do qual a toillette fazia parte.
Como La Donna – do Rigoletto – a moda deve ser “MOBILE QUAL
PIUMA AL VENTO” para agradar às cabecinhas ávidas de novidades
das nossas gentis patrícias, sempre prontas a estrear uma blusa feita
86
ULTIMA palavra. A Violeta, Belo Horizonte, 14 jul. 1900, p. 4.
43
no último figurino ou a arregaçar o vestido com donaire da parisiense
que vem pintada no derradeiro número do PETIT ÉCHO. E, vamos
lá, minhas senhoras, por mais graves e severas que sejamos,
experimentamos sempre tal ou qual sensação de gozo ao sentirmonos vestidas com certa elegância e portadoras na nossa TOILLETTE
de uma novidade qualquer.87
De acordo com Jean-Yves Mollier, Le Petit Écho de la mode era o periódico
de moda preferido pelas mulheres francesas da Belle Époque, tendo desempenhado
um
importante
papel
na
constituição
estandardização dos modelos.
88
da
cultura
de
massa
através
da
Os efeitos dessa produção massificada, difundida
pelo periódico francês, estendiam-se para além da França, atuando poderosamente
na formação da ideologia da “superioridade” cultural francesa em outros países.
Como fica evidente no texto de A Violeta, Le Petit Écho de la mode era a referência
de moda e de comportamento feminino a se seguir.
Em A Violeta, também eram registrados acontecimentos em tom anedótico ou
coloquial para a elite que frequentava o “Clube das Violetas”. Havia ainda pequenos
anúncios publicitários dirigidos às mulheres como este:
- Que vestido de seduzir a gente! Onde comprou isto, sinhá?
- Bem se vê que não podia ser noutra casa: o Ourivio é especialista
em fazendas.89
Tais anúncios encenavam os desejos e as aspirações daquela elite em
pequenas cenas nas quais os personagens pareciam ser tão fúteis e superficiais
quanto os personagens “absolutamente figurinos” das narrativas da Belle Époque
brasileira estudadas por Flora Süssekind.90 Esses personagens apresentados
sinteticamente, com uma condensação de traços à maneira das caricaturas, indicam
como vinha se formando na população urbana daquela época uma nova percepção
baseada na superfície e relacionada à disseminação das fotografias, charges e
87
HONORÁRIA, Jardineira. A moda. A Violeta, Belo Horizonte, 9 set. 1900, p. 3.
MOLLIER, 2002, p.73.
89
A Violeta, Belo Horizonte, 9 set. 1900, p. 1.
90
SÜSSEKIND, 1987, p. 108-109.
88
44
cartazes.91 Exemplo disso, é um texto que usava o jornalista e escritor Assis das
Chagas como personagem num diálogo anedótico para propagandear uma
alfaiataria.
O Chagas há uma semana para cá anda todo liró, como quem não
quer dar confianças a qualquer. É que o Trindade, o Manoel
Rodrigues da Trindade, proprietário da afamada alfaiataria da
Avenida Paraopeba, lhe fez um terno elegante a valer.
Façamos como o Chagas, mas não fiquemos com ares de soberbia
que ele arranjou depois da fatiota nova.92
O mesmo procedimento de tomar um dos membros dos “Jardineiros do Ideal”
como “personagem-ilustração” ou “personagem-charge”
93
de um anúncio da mesma
alfaiataria já havia sido realizado no primeiro número de A Violeta, sendo que o
personagem era Ernesto Cerqueira:
O Trindade, a continuar naquele caminho... Palavrinha! Não
prestará boas contas de si. Vender barato é justo, mas aprontar uma
fatiota, fazer de um roupa-velha um dandy à troco de à-toa... Isso
não, que é demais!
Olhem para o jaquetão do Cerqueira: daquilo pra cima e...
topam fazenda.94
A presença de Ernesto Cerqueira e Assis das Chagas em textos publicitários
é reveladora dos papéis que os literatos poderiam também ocupar na vida social
daquela época: celebridades garantidoras da qualidade de um produto ou
personagens instigadores de desejos que os produtos seriam capazes de satisfazer.
Pelo visto, tornar-se elegante como um dândi deveria ser uma aspiração dos que
frequentavam as reuniões do “Clube das Violetas”.
91
SÜSSEKIND, 1987, p. 107.
A Violeta, Belo Horizonte, 9 set. 1900, p. 2.
93
SÜSSEKIND, 1987, p.108.
94
A Violeta, Belo Horizonte, 14 jul. 1900, p. 1.
92
45
Segundo Flora Süssekind, havia uma grande preocupação com o exibir-se,
com a própria imagem transformada em figurino no período compreendido entre o
final do século XIX e os anos iniciais do século XX.95 Isso estaria relacionado ao
desenvolvimento e à disseminação da publicidade. Os textos publicitários de A
Violeta assemelham-se bastante a um texto de Martins Fontes citado pela estudiosa.
Nele, as descrições das toilettes de certos escritores, feitas por outros literatos,
serviam como modelos de elegância e divertiam os leitores.
Oh! as toilettes, por Calixto, do admirável caricaturista Calixto
Cordeiro! Adorável! Adorável! Fantástico! Fantástico!
Oh! os chapeirões do Emílio [de Menezes], filhos naturais de
cartola e coco! – As polainas do Guima [Guimarães Passos], de
todas as cores, vindas diretamente de Londres.96
O literato, tornando-se imagem ornamentada, uma grife, um estilo de vestirse, transformava-se, ao mesmo tempo, em reclame de si próprio. Tal processo pode
ser visto como um indicativo de que a venda de suas obras dependia desse exibir-se
como uma mercadoria, e, como toda mercadoria, o escritor da Belle Époque
oferecia-se como objeto-fetiche aos leitores dos periódicos. De acordo com Walter
Benjamin, essa prática foi inaugurada por Baudelaire.
A perda da auréola concerne em primeiro lugar ao poeta. Ele
é obrigado a expor-se pessoalmente no mercado. Baudelaire
empenhou-se nisso com toda energia. Sua célebre mitomania foi um
artifício publicitário.97
Os textos publicitários de A Violeta empregavam, algumas vezes, uma
linguagem com características de oralidade popular, o que lhes dava um toque de
humor. Além disso, cumpre mencionar que sua diagramação não destacava os
95
SÜSSEKIND, 1987, p. 68.
FONTES apud SÜSSEKIND, 1987, p. 68.
97
BENJAMIN, 2007, p. 380.
96
46
anúncios em páginas exclusivas e nem eram empregados recursos visuais. Os
textos publicitários eram apenas separados dos outros por pequenos traços. No
caso do anúncio da loja de tecidos mencionada anteriormente, o texto que o
precedia era o soneto “Clamor”, de Edgard Mata.
Andam pelo ar jejuns e penitências
De Monges ciliciados e contritos,
Salmos chorosos de esquecidos ritos
E um perfume de místicas essências.
Choram, nos ermos, violões, plangências
E Agonias humanas de precitos;
Cruzam-se Preces, Misereres, Gritos,
Das emoções as rubras florescências!
E tudo sobe pelos Céus remotos
Na luta ascensional de extremos votos:
Blasfêmias negras e Orações de Santos...
Tudo se eleva numa estranha guerra,
E sobre a Mágoa vesperal da Terra
Cai um dilúvio universal de Prantos.98
Os versos sofisticados de Edgard Mata não se coadunariam, à primeira vista,
com a recepção desatenta pretendida pelo jornal. Entretanto, a fluidez do movimento
ascensional sugerido pelo poema, num processo semelhante ao do ciclo da água e
numa ambiência aérea em que músicas, essências, sons espirituais, lamentos e
emoções acabam se misturando, deve ter sido considerada pelos responsáveis pelo
jornal em consonância com um suposto desejo de experimentar emoções vagas ou
“vibrações” que os textos projetavam para as suas leitoras e leitores ideais.99
É importante salientar que, apesar da sugestão de ser uma leitura destinada
ao mero divertimento, o jornal A Violeta publicou outros textos que destoavam dessa
proposta, como nos mostra o soneto “Clamor”, de Edgard Mata. Já o tema do
98
MATA, Edgard. Clamor...A Violeta, Belo Horizonte, 9 set.1900, p. 1. O texto do poema estabelecido
por Cilene Cunha de Souza no livro A obra poética de Edgard Mata difere basicamente deste
publicado no jornal por algumas modificações na pontuação e no uso de maiúsculas. São poucas as
variações no vocabulário. No livro, o soneto não aparece com título. Cf. SOUZA, 1978, p. 29
99
A violeta. A Violeta, Belo Horizonte, 14 jul. 1900, p. 1.
47
crepúsculo, um dos preferidos pelos simbolistas e tradicionalmente associado aos
estados melancólicos, apareceu em “Evangelhos no poente”, de Edgard Mata, e em
“Abismar”, de J. Camelo, publicados respectivamente no primeiro e no segundo
números do jornal. Em “Abismar”, Camelo apresentava uma sequência de imagens
do pôr do sol. Em cada estrofe, um estágio em direção ao escuro da noite/morte.
No amplo silêncio harmônico da hora
Crepuscular, de indefinido encanto,
Vagas legiões de escuro e largo manto
Sobem do oriente pelo céu em fora.
Pouco a pouco o poente descolora.
Velam-se os montes e, de canto a canto,
As planícies se cobrem do quebranto
Da grande sombra que se estende agora.
Morto o último clarão do ocaso, a cisma
Das tardes morta, a terra inteira abisma
A escuridão amplíssima que avança.
Mais um momento, e o plaino, a de granito
Alta montanha, o mar, tudo se lança
Da noite pelo túmulo infinito.100
Por sua vez Adolfo Araújo, que residia em São Paulo, colaborou em A Violeta
com um soneto no qual a vida deixa de ter sentido a partir da perda do objeto
amado, sendo considerada apenas como sofrimento, como mostram os seguintes
versos: “Morri para esta vida, morri para os gozos deste /Mundo, lodoso e vil, desde
que tu morreste/ Para o meu coração”.101
A Violeta era um periódico sintonizado com o momento, um periódico que
propiciava a expressão dos conflitos e ambiguidades vivenciados pelas elites e pela
classe média no processo de construção da nova capital mineira. O jornal fornecia
um espaço de teatralização do vivido naquele tempo conjugando textos
melancólicos e textos caracterizados pela superficialidade ou fascinados pelo
progresso. Dois lados da modernidade se revelavam: o júbilo inocente com o
100
101
CAMELO, J. Abismar. A Violeta, Belo Horizonte, 9 set. 1900, p. 2.
ARAÚJO, Adolfo. Um soneto. A Violeta, Belo Horizonte, 14 jul. 1900, p. 4.
48
processo de transformação e o sentimento de perda, de desilusão, de nostalgia em
face do que desaparecia. Os membros do “Clube das Violetas” encontravam-se
divididos entre a conservação das tradições e os desejos de mudança. Assim, em A
Violeta, eram trazidas para a cena a morte e a moda, a dor e as “vibrações”
prazerosas favorecidas pela festa e pela arte. Tais relações nos remetem a Charles
Baudelaire. No século XIX, o poeta francês já havia traçado um paralelo entre a
moda e a estética da modernidade, relacionando esta última ao jogo das máscaras,
das aparências e do artifício.102 Para ele, o moderno assumia assumia a feição do
fugitivo e do transitório. Baudelaire exaltou a moda como algo que se contrapunha
aos anseios de perenidade e imutabilidade de uma estética do Belo.103
A vida nos primeiros anos de Belo Horizonte parecia estimular a criação de
textos em que a linguagem mostrava-se como puro devaneio e tão ornamental
quanto os adereços de vestuário. Ao mesmo tempo, manifestava o tédio decorrente
de uma existência marcada pela banalidade e as angústias existenciais mais
densas.
De acordo com os textos de A Violeta, o motivo para a elite da nova capital de
Minas realizar as festas, os jogos e as palestras do “Clube das Violetas” teria sido o
tédio. No texto intitulado “Teatros e...”, o articulista exigia um espaço teatral
organizado e a existência de companhias com atores locais. Para ele, apesar do
clima de tristeza dominante, a cidade teria talentos a serem aproveitados.104 Os
espetáculos musicais mais ligeiros e as comédias com um humor mais
descompromissado seriam a demanda principal do público do único teatro da
cidade.
Foi em virtude de uma necessidade, porque o povo se cansara de
ouvir só dramalhões, que uma companhia de operetas e outras
peças do teatro leve se organizou por aqui. [...] Hoje, queremos a
comédia e o drama feito com observação e arte, a opereta e o
102
BAUDELAIRE, 1951, p. 884.
Veja-se, a esse respeito, o texto “O pintor da vida moderna”, de Charles Baudelaire. Cf.
BAUDELAIRE, 1951.
104
TEATROS e... A Violeta, Belo Horizonte, 14 jul. 1900, p. 2.
103
49
vaudeville faiscante de espirituosa malícia, a revista, o intermédio
aprimorado e escolhido.105
Marc Sagnol mostrou que, na França, algo semelhante havia acontecido na
segunda metade do século XIX. A classe média procuraria a sua diversão nos
bulevares, enquanto as elites teriam os salões como espaço de lazer. O sucesso
das operetas estaria, de acordo com este autor, associado ao mesmo fato.106
Além do interesse das elites mineiras pelas operetas e peças ligeiras, outros
aspectos importantes devem ser considerados para ampliar a nossa compreensão
da produção cultural daquele período. Em um texto sobre música, o termo
“decadente” foi aplicado à situação musical mineira em comparação com São Paulo
e Milão.107 Para o articulista, o talento musical faria parte da “índole mineira”. O
estado possuiria “vocações admiráveis”, mas faltaria “estímulo”, ou “progresso e
evolução da arte”.108
No texto de A Violeta, a decadência deveria ser considerada apenas como
uma fase, já que o “cultivo” da arte poderia favorecer a melhoria da cena artística,
fazendo-a novamente “evoluir” e atingir o nível da “vanguarda”. Assim, a decadência
poderia ser superada e o processo histórico continuar numa linha caracterizada pela
ampliação da perfectibilidade. A presença do antagonismo progresso versus
decadência em A Violeta nos mostra que a difusão das ideologias positivistas e
evolucionistas encontravam-se bem difundidas entre os intelectuais mineiros,
funcionando como referencial para a sua reflexão e produção cultural. O momento
ainda não era o da tentativa de diferenciações em que os simbolistas de Belo
Horizonte, já mais organizados, se confrontaram com o positivismo, formulando uma
ideia de decadência bem diversa da que aparece no texto de A Violeta.
Outro jornal belo-horizontino de 1900 reuniu colaboradores simbolistas. Seu
nome era Lotus. Também foi uma publicação de pequena tiragem (500 exemplares)
e curta duração (apenas cinco números, de 5 de abril a 8 de julho). Tinha o formato
105
TEATROS e... A Violeta, Belo Horizonte, 14 jul. 1900, p. 2.
SAGNOL, 2003, p. 227.
107
MÚSICA. A Violeta, Belo Horizonte, 14 jul. 1900, p. 2.
108
MÚSICA. A Violeta, Belo Horizonte, 14 jul. 1900, p. 2
106
50
de 32 x 22, quatro páginas e quatro colunas. A maioria dos seus colaboradores era
composta por estudantes de direito. Para cada edição do jornal, havia uma comissão
responsável eleita mensalmente. O primeiro número teve como editores Edgard
Mata, Francisco Sales Correia Mourão e Cícero Arpino Caldeira Brant (Ciro Arno). O
terceiro número esteve sob a responsabilidade de João Edmundo Caldeira Brant,
João da Mata Machado Júnior e João Camelo. O último foi editado por Ernesto
Cerqueira, Benjamim de Lima e Marcos Rios. Apesar de ser um periódico publicado
por escritores que trabalharam em A Violeta, o jornal Lótus apresentava um aspecto
mais decadentista e não era endereçado às senhoras e senhoritas.
Entre os que escreveram para o jornal Lótus estavam Alphonsus de
Guimaraens, Aldo Delfino, Artur França e Rodrigo Teófilo. Alphonsus colaborou com
um poema de Pastoral aos crentes do amor e da morte, mas intitulado
significativamente de “Pastoral aos crentes do amor e aos iludidos”. Já Edgard Mata
publicou o poema “Outonal” no terceiro número de Lótus e “Taciturnus bos” no
quinto número (ambos apresentando variantes das versões publicadas no livro
organizado por Cilene Cunha de Souza).
Exemplos do tom mais sombrio e melancólico de Lótus são os textos
“Páginas de um triste”, “Devil Fish” e “Casa dos Mortos”. O primeiro é assinado por
E, um provável pseudônimo de Edgard Mata. Os outros dois foram assinados
respectivamente por Ciro Arno e A. R. Pino - pseudônimos de Cícero Arpino
Caldeira Brant.
Passemos a outro periódico. Eminentemente político, pois era a voz do
Partido Republicano Mineiro (PRM), o Diário de Minas também tinha um aspecto
literário. Este jornal já havia sido estudado por Maria Zilda Ferreira Cury (1998) como
um espaço para as primeiras manifestações modernistas em Belo Horizonte entre
1920 e 1925. Porém, antes disso, nos primeiros anos do século XX, especialmente
em 1901, desempenhou a função de veículo da produção Simbolista em Belo
Horizonte.
De acordo com Maria Zilda Ferreira Cury, apesar de ser politicamente
conservador e defender as classes dirigentes, o Diário de Minas dava liberdade para
os literatos modernistas publicarem o que quisessem, desde que fossem respeitados
51
os interesses políticos do PRM.109 Em 1901, o mesmo acontecia. Como alguns dos
simbolistas mineiros eram da equipe de redatores do Diário de Minas, durante todo
aquele ano, textos simbolistas tiveram destaque, sendo frequentemente publicados
na primeira página. No Diário de Minas, foram publicados poemas de Álvaro Viana,
Edgard Mata, Archangelus de Guimaraens, Alphonsus de Guimaraens, José
Severiano de Rezende, Afonso Pena Júnior, Ernesto Cerqueira, Mamede de Oliveira
e Horácio Guimarães, que também escrevia uma coluna de crônicas intitulada “Entre
dois chopes” sob o pseudônimo de Pierrot. O periódico não divulgava apenas os
simbolistas mineiros. Havia versos, por exemplo, de Cruz e Souza, do paranaense
Silveira Neto, dos paulistas Amadeu Amaral e Júlio César da Silva, além dos
decadentistas Wenceslau de Queirós e Fontoura Xavier. A partir do ano seguinte, o
jornal foi adquirindo outra feição, dando cada vez menos espaço para os simbolistas
e para a literatura, mas alguns autores ainda nele publicaram, como Afonso Pena
Júnior, J. Camelo e Edgard Mata.
No ano de 1901, apareceu uma publicação mais significativa: a revista Minas
Artística. Primeiramente, surgiu uma edição especial, uma polianteia, em
homenagem a Cruz e Sousa, lançada no dia 19 de março de 1901. Outros três
números circularam até 1902. Todos eles, exceto o último que foi impresso em
Curvelo, foram publicados em Belo Horizonte. Colaboraram nesta revista os
seguintes escritores: Horácio Guimarães, Carlos Raposo, Alfredo de Sarandy
Raposo, Álvaro Viana, Ernesto Cerqueira, J. Camelo, Assis das Chagas, José
Severiano de Rezende, Corinto Fonseca, Archangelus de Guimaraens, Viana do
Castelo, Pereira Dasilva, Fernand Gregh, E. Bandeira, D. Veloso, H. Neto e Artur
Lobo. Em um dos números, foi publicada a tradução de Alphonsus para a Nova
primavera, de H. Heine, e, em outro, uma obra de D’Annunzio.
Por sua feição simbolista, Minas Artística foi muito criticada em certos círculos
intelectuais belo-horizontinos, especialmente pelos que redigiam as folhas O Prego e
O Norte. Por exemplo, um texto publicado na folha satírica O Prego (1902) e
assinado por Epaminondas Rios afirmava que não havia nada de artístico na revista
e que melhor seria chamá-la de “Minas Arteira”, “nome conquistado pelas muitas
109
CURY, 1998, p. 33.
52
cabriolas, pelos muitos saltos sobre as regras da gramática e da metrificação”.110
Cada colaborador da revista mereceu um ataque da parte de Rios. Nem mesmo
Alphonsus de Guimaraens escapou, sendo chamado de “vela de cera da quaresma”.
O uso da língua foi alvo de muitos reparos, como o título de um poema de Edgard
Mata em latim. A transgressão formal parecia ao autor da crítica uma coisa
insuportável. Por isso, um poema de Pereira da Silva, membro do grupo de
Saturnino de Meireles, que editava a revista simbolista Rosa-Cruz no Rio de Janeiro,
foi classificado de “nada” por misturar versos de diversas medidas.
As críticas de O Prego não se dirigiam apenas à revista, mas também aos
escritores simbolistas.
Os primeiros chamados para “O Prego” e a sofrerem o peso
dos nossos malhos são os mentecaptos da Artística.
Entenderam os pífios que uma revista pode mudar-se
rapidamente em hospital e sem mais aquela ou loquela, aboletaramse cinco doentes em um só quarto.
Preparem-se todos para apreciar a transformação radical que
os desorientados pretendem operar no latim e no vernáculo.111
Rotulados de loucos, os simbolistas eram objeto de ataques satíricos. Em um
deles, o círculo dos simbolistas era denominado de “Clube dos Cacetes” e a arte
moderna, ou melhor, o Simbolismo, se transformava em “Cacetismo”. Elaborado
como um pastiche de um edital, o texto anunciava um concurso em que uma das
provas consistia num trabalho escrito “ou em linguagem quinhentista, ou em estilo
nefelibata, cuja leitura possa fazer dormir e sonhar um burro”.112
No jornal O Norte, um artigo assinado por Armando de Condorcet também
atacou a revista Minas Artística e seus colaboradores. Segundo Armando de
110
RIOS, Epaminondas. Minas Artística. O Prego, Belo Horizonte, 21 maio 1902, p.3.
BIGORNA. O Prego, Belo Horizonte, 21 maio 1902, p. 3.
112
SIENFUEGOS, Juan. Edital: concurso no club dos cacetes. O Prego, Belo Horizonte, 21 maio
1902, p. 2.
111
53
Condorcet, a revista não tinha quase nada de Minas e “de artística um pouco
menos”.113
Assinada por Marialva, outra resenha crítica utilizava igualmente o argumento
da correção gramatical e da perfeição formal para reprovar Minas Artística. Segundo
Marialva, a revista não espelhava “de longe ao menos a cultura e o gosto artístico do
centro literário de Belo Horizonte”.114
Carlos Raposo, um dos editores e também colaborador de Minas Artística,
teve um conto intitulado “Esquife e espelhos” fustigado pelo jornal O Norte. O conto
foi considerado imoral tanto por Armando de Condorcet quanto por Marialva.
Segundo Armando de Condorcet, um “chefe de família muito nosso conhecido,
DEPOIS QUE DEU PELA HISTÓRIA, rasgou em mil pedaços a célebre revista,
querendo até ir dar parte”. Já Marialva considerou que se “o autor de ‘Esquife e
espelhos’ sente o que escreve é um homem perigoso”. Ainda de acordo com essa
crítica, o conto
[...] é uma página de Rabelais, mas sem a lealdade, a beleza da
forma e o fundo moral das obras deste. Produções como esta deve o
Sr. Raposo tê-las bem fechadas em reforçado esquife de maneira a
nunca se refletirem no espelho dos olhos de quem quer que seja. É
uma página erótica, pornográfica e imoral.115
No final de sua resenha, Marialva apresentou um argumento bem sintomático
de quanto a literatura simbolista podia ser lida como ameaçadora para a ordem
social: “Para o seu autor [Carlos Raposo] serão observações estas de um tigre
burguês, mas ele nos põe na contingência de ser burguês ou imoral... Qual
preferir?”116
113
CONDORCET, Armando de. Minas Artística. O Norte, Belo Horizonte, 29 jun. 1901, p. 2.
MARIALVA. Minas Artística. O Norte, 9 jun. 1901, p. 3.
115
MARIALVA. Minas Artística. O Norte, 9 jun. 1901, p. 3.
116
MARIALVA. Minas Artística. O Norte, 9 jun. 1901, p. 3.
114
54
A crítica de Armando de Condorcet à obra de Carlos Raposo apontou do
mesmo modo seus “defeitos” formais. Argumento que também foi utilizado por
Armando de Condorcet contra a narrativa “Litúrnia”, de Alfredo de Sarandy Raposo.
Eu direi, no entanto, que “Litúrnia” é uma página que tresanda
por todos os poros tudo quanto é triste e feio; cheia de inúmeras
repetições sem nenhum valor onomatopaico; salpicada de
exclamações e de pontinhos, como um queijo salpicado de saltões;
transbordando de arcaísmos e impropriedades; onde os erros de
gramática, os solecismos, os francesismos e tudo mais em ismos,
como barbarismos e obscurantismos, andam dando cabeçadas uns
nos outros; uma página, enfim, sem forma e sem idéia, e, portanto,
completamente nula.117
Por ter escrito um perfil literário de Alphonsus de Guimaraens, Carlos Raposo
também foi duramente criticado. Marialva e Armando de Condorcet classificaram o
texto de pretensioso. O segundo autor foi mais longe no ataque. Para ele, o texto era
produto de um neófito despreparado.
[...] o estudo psíquico e filosófico da face artística e moral dum
escritor, cabem, de direito, a um espírito elevado, a um esteta de
nome e autoridade, e não a um neófito sem um só título que o
recomende para penetrar e desvendar os grandes segredos do
sagrado tabernáculo da Arte.118
A recepção crítica também considerou o aspecto simbolista do periódico. Para
o articulista Epaminondas Rios, do jornal O Prego, os autores dos textos de Minas
Artística eram nefelibatas pouco espiritualizados.
A Minas Artística intitula-se nefelibata. Devo porém notar que
essa palavra primeiramente empregada em Portugal pelo autor do
117
118
CONDORCET, Armando de. Minas Artística. O Norte, Belo Horizonte, 29 jun. 1901, p. 2.
CONDORCET, Armando de. Minas Artística. O Norte, Belo Horizonte, 29 jun. 1901, p. 2.
55
“Interlúnio” dá a entender “homem que vive entre nuvens”, ao passo
que os redatores da Minas Artística apegaram-se demasiadamente à
matéria, assaltados sempre pelo desejo de “volúpias mansas e finas
– por desfalecimentos nervosos!”.119
Já para Marialva, os colaboradores de Minas Artística estavam muito
distantes dos seus modelos europeus e mesmo de Cruz e Souza.
Poderão ser tudo, menos continuadores de Verlaine, de
Stéphane Mallarmé, Eugênio de Castro e de Cruz e Souza.
Quem conhece Choix de Poésies, Belkiss e Broquéis bem pode
ver a distância e o repúdio em que estão dos chefes do
decadentismo. Fazem-lhes até injustiça elogiando-os e logo depois
escrevendo cousas de quem não os conhece ou não os
compreende.120
Não obstante todas as críticas, Minas Artística foi a primeira revista
exclusivamente literária de Belo Horizonte e uma das mais relevantes publicações
do movimento simbolista mineiro. Um fato merece ser destacado: a colaboração do
líder do movimento simbolista paranaense Dario Veloso, o que reforça a hipótese de
uma ligação do grupo simbolista de Curitiba com o de Belo Horizonte por intermédio
de Alfredo de Sarandy Raposo e Carlos Raposo.
Apesar de Minas Artística ter sido uma relevante produção do grupo mineiro,
foi a revista Horus (1902), que mereceu mais atenção dos críticos, sendo
considerada por Eduardo Frieiro como a mais “característica” do Simbolismo de Belo
Horizonte.121 Às vésperas de ser lançada, foi alegremente saudada pelo jornal
Heliantho (1902), outro periódico que tinha entre seus colaboradores alguns
simbolistas.122 Essa maior valoração atribuída a Horus talvez se deva a três fatores:
119
RIOS, Epaminondas. Minas Artística. O Prego, Belo Horizonte, 21 maio 1902, p.3.
MARIALVA. Minas Artística. O Norte, 9 jun. 1901, p. 3.
121
FRIEIRO, 1955, p. 309.
122
“Sob os auspícios do nosso prezado companheiro Álvaro Viana, aparecerá brevemente na Capital
esta revista literária, destinada a ser o magazine dos simbolistas à Verlaine e Cruz e Souza, em
Minas./ Para o confrade realizar o seu intento, conta com a colaboração de espíritos como Alphonsus
e Archangelus de Guimaraens, Viana do Castelo, Horacius de Guimaraens (sic) e outros./ Surja a
Horus, para o brilho das letras mineiras”. HORUS. Heliantho, Belo Horizonte, 15 jun. 1902, p. 4.
120
56
a qualidade dos colaboradores (José Severiano de Rezende, Edgard Mata, Álvaro
Viana, Viana do Castelo, Batista Pereira e Freitas Vale), o grande cuidado com a
edição demonstrado por seu diretor, Álvaro Viana, e uma maior explicitação do
sistema de valores do grupo. Em Horus, encontramos excelentes poemas de
Alphonsus de Guimaraens e a quase onipresença de Freitas Valle (“Jacques
d’Avray”). Uma onipresença explicável, já que Freitas Valle, grande mecenas em
São Paulo, financiou a publicação da revista. Márcia Camargos, no livro Villa Kyrial:
crônica da Belle Époque paulistana, ao abordar o tema da relação de Álvaro Vianna
com Freitas Valle e do financiamento de Horus, assim se refere à revista:
Ícone do saber e do bom gosto elitizado, a revista de quarenta
páginas e tiragem de quinhentos exemplares contava com sofisticado
projeto gráfico e acabamento irretocável, obtido à custa de
verdadeiras façanhas.123
Também deve ser salientada a relação que o grupo simbolista belohorizontino manteve com os poetas gaúchos Guerra Duval e Alberto Ramos. Ambos
tiveram poemas publicados em Horus. Fato bastante significativo, pois os dois são
considerados os introdutores do verso livre na poesia brasileira.
Interessante notar que, na última página da revista Horus, vinha escrito um
aviso que revelava uma expectativa de consumo internacional da publicação,
evidenciada pela indicação do preço para assinantes estrangeiros, além de uma
grande quantidade de textos escritos em francês nos dois números.124
Em Horus, Alphonsus de Guimaraens publicou, além de vários poemas em
português, alguns em francês que foram incluídos no livro Pauvre Lyre, em 1921. Os
versos franceses de Alphonsus de Guimaraens, difundidos por Horus, giravam em
torno dos mesmos temas de sua poesia em português. Curiosamente, eles
123
CAMARGOS, 2001, p. 148.
Segundo Arline Anglade-Aurand, a revista Horus chegou a ultrapassar os limites de Minas Gerais,
tendo atingido “o Rio Grande do Sul (pois assinaturas tinham sido feitas)” e “uma revista literária de
Porto [a] mencionava com elogios”. AURAND, 1970, p. 91, tradução nossa. No original : “le Rio
Grande do Sul (car des abonnements avaient été souscrits)” [...] “une revue littéraire de Porto
mentionnait avec éloges”).
124
57
terminavam com o nome de um lugar fictício – “Aix-le-Désert” –, colocado ao lado da
data de composição. O nome do lugar nos lembra certas localidades francesas (Aixen-Provence ou Aix-le-Bains) e serve para produzir um enquadramento poético para
o escritor, suscitando a imagem de isolamento e solidão tão cara a alguns
decadentistas. Um desses poemas, assinado com o pseudônimo Antoine de
Grandeuil, revela, na dedicatória, a estima que Alphonsus tinha pelo poeta belga
Georges Rodenbach. O poema “La chanson du silence”, mostra como havia uma
identidade entre as temáticas dos dois escritores.
Em seus textos para a revista, Alphonsus de Guimaraens procurou ser
comunicativo através da musicalidade de seus versos. Um de seus poemas,
Sérénade à minuit, publicado sem título em Pauvre Lyre, evoca um gênero de
música bem conhecido e apreciado. Porém, Alphonsus não procurou realizar uma
poesia de salão, de divertimento. Nesse poema, o sujeito poético nos convoca ao
canto reiteradas vezes, mas o tom da composição é mórbido e melancólico.
Outro poema de Alphonsus publicado em Horus é uma recriação do soneto
Voyelles, de Rimbaud.
Assim como este último, o poeta mineiro manipulou
assonâncias e aliterações. Dispôs as vogais no fim dos últimos versos de cada
estrofe, associando cada uma delas a uma época da existência humana. Assim, as
vogais iniciais (a, e) correspondem ao período da juventude e as finais aludem à
velhice e à morte (i, o, u).
Manhã de primavera. Quem não pensa
Em doce amor, e quem não amará?
Começa a vida. A luz do céu é imensa...
A adolescência é toda sonhos. A.
O luar erra nas almas. Continua
O mesmo sonho de oiro, a mesma fé.
Olhos que vemos sob a luz da lua...
A mocidade é toda lírios. E.
Descamba o sol nas púrpuras do ocaso.
As rosas morrem. Como é triste aqui!
O fado incerto, os vendavais do acaso...
Marulha o pranto pelas faces. I.
58
A noite tomba. O outono chega. As flores
Penderam murchas. Tudo, tudo é pó.
Não mais beijos de amor, não mais amores...
Ó sons de sinos a finados! O.
Abre-se a cova. Lutulenta e lenta,
A morte vem. Consoladora és tu!
Sudários rotos na mansão poeirenta...
Crânios e tíbias de defuntos. U.125
Ainda no ano de 1902, surgiu o jornal Heliantho que durou apenas um
número. Um dos seus editores era J. Camelo. A pequena folha teve como
colaboradores Júlio Lemos e Alfredo de Sarandy Raposo que escreveu um texto
chamado “Epístola ao Auto de Sá” no qual defendia que somente as obras que se
colocassem contra a massa, que não buscassem satisfazer o gosto do grande
público, que fossem herméticas para o vulgo deveriam ser consideradas como arte.
De acordo com Alfredo de Sarandy Raposo, o verdadeiro artista deveria se rebelar
contra as convenções do gosto popular: “Atender, quando se escreve, à impressão
que se possa dar à Massa, ou a alguém, é não ser Artista. É não traduzir fielmente a
emoção que nos empolga [...]”.126
O único que deveria ser considerado artista no Brasil, segundo Alfredo de
Sarandy, era Cruz e Souza, exatamente por se contrapor à massa.
No Brasil, Cruz e Souza, – e só Ele! – negro que viveu a sonhar
com luares de prata e os olhos cheios de uma profunda nostalgia de
Mundos inéditos, foi o tipo do verdadeiro Artista: e, por isso mesmo,
o alvo das pedradas e arrotos da Chusma.127
Este texto é bem revelador da situação em que se colocava a literatura
simbolista em Minas Gerais. A postura era a de uma vanguarda estética em defesa
125
GUIMARAENS, Alphonsus. AEIOU. Horus, Belo Horizonte, n. 2, ago. 1902, não paginado.
Publicado na Poesia completa de Alphonsus de Guimaraens, p. 492-493.
126
RAPOSO, Alfredo de Sarandy. Epístola ao Auto de Sá. Heliantho, Belo Horizonte, 15 junho 1902,
p. 2.
127
RAPOSO, Alfredo de Sarandy. Epístola ao Auto de Sá. Heliantho, Belo Horizonte, 15 junho 1902,
p. 2.
59
da autonomia da obra literária e contrária aos critérios de avaliação baseados no
valor comercial e no sucesso de público. Em Heliantho, no texto “À lápis...”, Sarandy
Raposo, sob o pseudônimo de Maurus, reforçava essas ideias. De acordo com ele,
havia um inimigo que “avassala as consciências e deprava o gosto artístico”: o
mercantilismo. Tratava-se da percepção da situação do poeta na modernidade, que
Baudelaire comparava à prostituição. Sem a proteção de mecenas nobres, o escritor
teria que conquistar os leitores. A obra literária, perdendo sua aura, se tornaria uma
mercadoria como outra qualquer. Segundo Maurus, a preocupação com a satisfação
das
necessidades
materiais
destruiria
a
arte
literária
e
favoreceria
o
desenvolvimento de um “prosaísmo grosseiro”:
O prover as necessidades da existência constitui a principal
preocupação da mente. O temor da miséria arrefece todo
entusiasmo. O supremo rei é o ouro. A auri sacra fames sufoca todos
os ideais nobres que almas heróicas ainda tentam fazer brotar do
meio infecundo em que vegetamos. Por toda parte, encontra-se no
indivíduo esse estado d’alma estranho e desolador que se apelida
“empregomania”. Destronou-se a aristocracia da graça. Reina a
oligarquia ascorosa do dinheiro. Frágil Prometeu, a alma humana
vive hoje acorrentada ao prosaísmo grosseiro, efeito das causas
poderosas que vimos de apontar.128
Ampliamos a nossa compreensão a respeito dessas reflexões quando as
relacionamos àquelas apresentadas no texto de abertura da revista Horus, uma
montagem de fragmentos de La littérature de tout à l’heure, de Charles Morice, que
funcionava como uma espécie de manifesto do grupo simbolista mineiro.
Em um dos fragmentos, Morice dizia estarem os poetas condenados à
solidão,129 uma espécie de exílio em relação ao grande público. De acordo com ele,
o grande público, identificado a uma espécie de elite da massa, era uma fonte de
corrupção da língua e da arte, as quais passariam a se orientar pelo ideal da
mediocridade.130
128
MAURUS. A lápis. Heliantho, Belo Horizonte, 15 junho 1902, p. 3.
Horus, Belo Horizonte, 1 jul 1902, não paginado. (tradução nossa).
130
MORICE, 1889, p. 2.
129
60
Em outro trecho, Morice afirmava a impossibilidade da arte ser compreendida
num mundo dominado pelos valores materialistas e burgueses.131
Tanto a “Epístola”, de Alfredo de Sarandy, quanto o “manifesto”, de Horus,
apresentavam a arte e a literatura sacralizadas em um domínio autônomo, cujos
critérios estéticos se oporiam às determinações de ordem mundana. Alfredo de
Sarandy Raposo traduzia para os simbolistas mineiros a mesma indignação moral
contra certos escritores da Belle Époque que visavam obter privilégios e honras,
empregos públicos ou buscavam fazer sucesso escrevendo folhetins, vaudevilles e
versos que atendiam às expectativas do grande público.132
Vejamos outros periódicos surgidos em anos posteriores como a Revista
Mineira (1903) e O Estado de Minas (1906), que também foram veículos do
Simbolismo em Belo Horizonte.
A Revista Mineira foi considerada por Joaquim Nabuco Linhares um dos
melhores periódicos de Belo Horizonte. Teve somente três números e tratava de
assuntos variados: política, ciência, economia e literatura. Os responsáveis pela
edição eram Augusto de Lima, Batista Martins e Alfredo de Sarandy Raposo. A parte
literária, provavelmente devido ao fato de um desses editores ser simbolista, teve a
colaboração de Alphonsus de Guimaraens, Pereira da Silva, J. Camelo, Archangelus
de Guimaraens e do próprio Alfredo de Sarandy Raposo.
131
“As Pessoas... têm da Beleza, pelas mesmas causas, as mesmas desconfianças que de Deus. O
estado de espírito essencial à compreensão de toda obra de arte se tornou impossível para elas:
seria tolo e vão tentar fazer estas almas embriagadas de luxúria e seduzidas pelo lucro
compreenderem que, para penetrar no devaneio de um Poeta, é preciso esquecer os interesses
imediatos da vida cotidiana, submeter-se às escolhas que ele fez dos tons e das relações, iniciar-se
na sua visão particular, prestar-lhe uma atenção constante? Todos estes esforços exigem dons que o
mundo perdeu: a inocência de espírito, a serenidade, a reflexão, o desinteresse das paixões, – o dom
de admirar!”. HORUS, Belo Horizonte, 1 jul 1902, não paginado. A citação encontra-se em MORICE,
1889, p. 3-4, tradução nossa. No original: "Les Gens... ont de la Beauté, pour les mêmes causes, les
mêmes défiances que de Dieu. L’état d’âme essentiel à la compréhension de toute oeuvre d’art leur
est devenu impossibile : il serait sot et vain d’essayer de leur faire entendre, à ces âmes ivres de
stupre et lucre, que, pour pénétrer dans le rêve d’un Poète, il faut oublier les intérêts immédiats de la
vie quotidienne, obeir aux choix qu’il a voulu des tons et des rapports, s’initier au spécial de sa vision,
lui prêter une attention soutenue ? Tous ces efforts exigent des dons que le monde a perdus :
l’innocence de l’esprit, la sérénité, la réflexion, le désintéressement des passions, – le don d’admirer!"
132
Aqui podemos notar uma diferença em relação aos textos de A Violeta e mesmo a certos poemas
humorísticos e crônicas de Alphonsus de Guimaraens que também visavam o entretenimento do
público leitor.
61
Na Revista Mineira, Alphonsus publicou sonetos cujos títulos são nomes de
personagens shakespearianos (“Soneto de Desdêmona”, “Soneto de Otelo”, “Soneto
de Ofélia” e “Soneto de Romeu”). Cada um deles com dedicatória a um escritor do
grupo simbolista mineiro, exceto o “Soneto de Romeu”, que foi dedicado a Augusto
de Lima. O “Soneto de Desdêmona” foi dedicado a Alfredo de Sarandy, o “Soneto de
Otelo”, a Álvaro Viana e o “Soneto de Ofélia”, a Edgard Mata. Estes poemas
evidenciam o diálogo que Alphonsus de Guimaraens manteve com o teatro em sua
obra. As personagens shakespearianas retomadas pelo poeta mineiro são mulheres
cujas mortes envolvem um grande pathos dramático. Entre estas personagens do
teatro de Shakespeare, Ofélia teve uma grande influência na estética simbolista e
tornou-se, entre o final do século XIX e os primeiros anos do século XX, tão
importante quanto a imagem de Salomé.133 Na obra de Alphonsus, Ofélia foi
retomada ainda em “Ismália”, um dos seus poemas mais célebres e um dos mais
representativos do Simbolismo brasileiro por conjugar uma série de signos
característicos daquela poética.134
Um lado do movimento que merece a nossa atenção foi a sua vertente
polêmica. Em 1906, o poeta Álvaro Vianna, quando diretor dos jornais A Epocha e O
Estado de Minas, envolveu-se em uma polêmica com o crítico Augusto Franco,
diretor do jornal Vida Mineira. Cada um deles representava posturas estéticoliterárias opostas e interesses políticos diversos. Em variados tipos de textos (artigos
de fundo, cartas, notas e poemas satíricos), os participantes da polêmica submetiam
as obras e a imagem de seus adversários a um intenso processo de deformação. O
livro de Vianna (Para quê?), publicado também em 1906, foi alvo de grandes
ataques dos seus adversários que se manifestavam nas páginas de Vida Mineira.
Mas anteriormente a essa disputa, em 1902, houve outra polêmica em que Álvaro
Vianna participou. Ele e o poeta parnasiano Mendes de Oliveira contenderam a
propósito do Simbolismo. O que desencadeou a polêmica foi justamente o
lançamento da revista Horus. Mendes de Oliveira realizou uma leitura dos textos dos
Jardineiros do Ideal do ponto de vista dos parnasianos e da crítica naturalista. Ele
fundamentou a sua argumentação nas críticas de Nordau, Vapereau e Leconte de
Lisle ao Simbolismo. A resposta a essa crítica não tardou a surgir. Vianna,
133
134
SANT’ANNA, 1985, p. 149.
SANT’ANNA, 1985, p. 151.
62
assumindo o cargo de defensor do movimento, ironizou a ideologia evolucionista
adotada por Mendes de Oliveira e o acusou de desconhecer a obra dos poetas
simbolistas. Ambos os adversários esforçaram-se para demonstrar erudição e
conhecimento do marco estético francês. A polêmica deslizou curiosamente para
uma discussão sobre o Simbolismo e o Decadentismo franceses, ao invés de
focalizar a produção da revista ou debater o movimento simbolista no Brasil.
Em 1905, outros periódicos mineiros deram espaço à controvérsia: o jornal A
Epocha, onde Álvaro Vianna colaborou com crônicas na seção “As Farpas”, e o
Minas Gerais.
A partir de uma resenha do livro Jogos Florais, do parnasiano
Mendes de Oliveira, feita por Vianna em A Epocha, desenvolveu-se uma contenda.
O parnasiano respondeu às críticas do simbolista nas páginas do Minas Gerais.
Tratava-se da continuação, anos depois, da antiga disputa acerca de concepções
estéticas e visões de mundo divergentes no ambiente cultural de Belo Horizonte.
O Estado de Minas e A Épocha existiam principalmente com a finalidade de
combater o governo Francisco Sales. O primeiro, além disso, buscava dar
sustentação para a campanha de Viana do Castelo a deputado federal como
representante da “Liga das Classes Produtoras”. Mesmo assim, ambos os órgãos de
imprensa não deixaram de apresentar algumas publicações de interesse literário. O
jornal O Estado de Minas era dirigido por Álvaro Viana e nele foram publicados
vários poemas de Alphonsus de Guimaraens e alguns do próprio diretor.
Também na disputa entre os jornais da “oposição”, O Estado de Minas e A
Épocha, com o jornal Vida Mineira, dirigido pelo crítico e polemista Augusto Franco,
as questões literárias se misturavam com as questões políticas. O Vida Mineira
combatia o Decadentismo e o Simbolismo por meio da publicação de textos como o
escrito por Mário Pereira, intitulado “Fin de siècle”. O movimento decadentista, o
socialismo e o anarquismo foram aproximados e classificados pelo articulista como
moléstias sociais. A partir das ideias de Max Nordau, o artigo comparava a
modernidade à degeneração.
“Fin de siècle” exprime o estado de espírito da gente letrada
da cidade moderna, “resume o caráter comum de numerosas
63
manifestações contemporâneas”, principalmente [n]a política e [n]a
literatura.
Socialismo e anarquismo na primeira, decadentismo, ou,
como queiram, nefelibatismo, na última, são variedades dessas
manifestações. De todas as classes sociais, é mister que se diga, a
que se acha realmente afetada da moléstia da época é, sem dúvida
alguma, a classe legente das grandes cidades. O sintoma
fundamental dessa doença manifesta-se na impossibilidade de se
adaptar o indivíduo às condições sociais vigentes. Indignado contra
tudo, tudo julgando péssimo e mal feito, começa sistematicamente a
sua obra de difamação e extermínio.135
Segundo a interpretação de Pereira, o escritor nefelibata exergaria “as coisas
através do denso nevoeiro de sua sensibilidade mórbida”.136 Tratava-se de uma
projeção da sombra de outra realidade no ambiente local. Na Europa, essas
relações de fato existiram. Como mencionamos anteriormente, vários escritores
decadentistas e simbolistas europeus demonstraram simpatia ou se engajaram nas
lutas dos movimentos de esquerda. Já os simbolistas mineiros não estabeleceram
nenhuma relação evidente com o Socialismo ou o Anarquismo.137
Em Vida Mineira, havia poemas satíricos empregando os clichês dos
simbolistas mineiros e ataques sob a forma de paródia como a que vitimou um
soneto de Álvaro Viana publicado na edição do dia 27 de abril de 1906.
Poemas de Alphonsus de Guimaraens, Edgard Mata, Álvaro Viana, Viana do
Castelo e resenhas sobre o livro Para quê?, de Álvaro Viana, estão entre os textos
publicados em O Estado de Minas (1906) de interesse para o Simbolismo. Essas
resenhas mostram dados interessantes sobre a maneira como o livro foi apreciado
pelos seus leitores. Alguns liam os versos de Álvaro Viana tendo como termo de
comparação os de Paul Verlaine, Cruz e Souza ou Alphonsus de Guimaraens. Mas
há uma resenha, assinada por Fernando Soares Brandão que comparava
curiosamente o estilo de Viana ao dos parnasianos Leconte de Lisle e Heredia.
135
PEREIRA, Mário. Fin de siècle. Vida Mineira, Belo Horizonte, 9 ago. 1904, p. 2.
PEREIRA, Mário. Fin de siècle. Vida Mineira, Belo Horizonte, 9 ago. 1904, p. 2.
137
Uma análise mais detalhada das polêmicas entre o jornal O Estado de Minas e a folha Vida
Mineira encontra-se em PAGANINI, 2000, p.131-187. Sobre o engajamento político dos decadentistas
e simbolistas, ver o comentário, em nota de rodapé, na página 27.
136
64
Na década seguinte, os periódicos Vita (1913-1914), Vida de Minas (1915) e
A Vida de Minas (1915-1916) também publicaram poemas e textos simbolistas nas
suas páginas. Entre outros textos que apareceram na revista A Vida de Minas, havia
um que se chamava “Uma embaixada das musas” e noticiava o acontecimento
literário do ano de 1915 em Belo Horizonte: o famoso encontro de Alphonsus de
Guimaraens e Severiano de Rezende, os dois grandes nomes do Simbolismo
mineiro. Encontro que contou com a participação de vários escritores, jornalistas e
intelectuais da cidade.
Esses periódicos da década de 1910 tinham um projeto gráfico mais
sofisticado, apresentando vinhetas em estilo art nouveau, ilustrações e muitas
fotografias. Além dos mineiros, também colaboravam escritores de outras regiões do
país nessas publicações.
O Simbolismo repercutiu ainda no interior de Minas Gerais. Alguns periódicos
divulgaram textos simbolistas, principalmente do grande líder Alphonsus de
Guimaraens.
Em 20 de março de 1904, foi fundado um jornal pelo presidente da Câmara
Municipal da cidade mineira de Conceição do Serro,138 Joaquim Soares Maciel
Júnior, para ser dirigido por Alphonsus de Guimaraens. Foi a maneira que Soares
Maciel encontrou para ajudar o amigo poeta que passava por dificuldades
financeiras decorrentes da perda do cargo de juiz substituto. O jornal O Conceição
do Serro, como a grande maioria dos periódicos mineiros daquela época, teve vida
curta. Seu último número circulou em 12 de fevereiro de 1905. Era uma publicação
com motivações políticas, mas também apresentou uma feição literária. Nela
apareceram textos em prosa e verso de Alphonsus de Guimaraens, sendo que
muitos deles eram assinados com os seguintes pseudônimos: Old-Tom, Punch,
Kirch, Duinhas, Guy, Guy d’Alvim, José Marques, João Carrilho, Procópio Pitanga,
Hidalgo, Ritter Brau, João das Selvas e Catimbau.139
138
Antigo nome de Conceição do Mato Dentro.
Seriam todos esses nomes apenas pseudônimos ou, na verdade, deveriam ser considerados
como heterônimos de Alphonsus? Tal investigação, que foge do escopo deste trabalho, poderia
revelar novas facetas da obra desse grande autor brasileiro.
139
65
No momento em que o jornal O Conceição do Serro apareceu, os simbolistas
já tinham conseguido espaços para a difusão das suas reflexões e da sua literatura
nos periódicos belo-horizontinos. Esse periódico, além de evidenciar as relações de
Alphonsus com as questões políticas, foi um dos veículos do Simbolismo no interior
de Minas Gerais. Nas páginas do jornal, havia obras de Archangelus de
Guimaraens, José Severiano de Rezende, Cruz e Souza e Horácio Guimarães. O
Conceição do Serro apresentou ainda textos de Raul Pompéia, Camões, Bocage e
Diogo Bernardes. Além desses autores, a publicação de um poema de Olavo Bilac
revela que Alphonsus não era radicalmente contra os parnasianos.
Em O Conceição do Serro, encontramos ainda uma faceta do poeta que
durante muito tempo foi desprezada pelos críticos, o seu humorismo, assim como
uma série de charadas e anúncios publicitários em versos. Outros escritores da
Belle Époque fizeram trabalhos semelhantes. Raimundo Correia, por exemplo,
escrevia charadas e alguns escritores bem conhecidos dos leitores produziam
propaganda.140 Bastos Tigre, que chegou a criar um escritório para trabalhar com
publicidade, foi o autor do célebre slogan “Se é Bayer é bom”. Em paródia de Os
Lusíadas, produziu uma publicidade para o xarope Bromil, revelando a intenção de
valorizar o produto pelo burilamento poético. Já Olavo Bilac redigiu quadrinhasreclame para as marcas de fósforos Brilhante e Cruzeiro, transformando as figuras
históricas do Príncipe de Gales e de Campos Sales em personagens capazes de
avalizar a qualidade da mercadoria:
Aviso a quem é fumante
tanto o príncipe de Gales
Como o Campos Sales
Usam fósforos Brilhante.141
Tais anúncios revelam que, naquele período, os escritores experimentavam
novas possibilidades de ocupação que podiam ser trabalhos cujo reconhecimento
não era realizado principalmente pelos seus pares, isto é, em círculos fechados.
140
141
SÜSSEKIND, 1987, p. 63.
BILAC apud SÜSSEKIND, 1987, p. 65.
66
Um dos anúncios publicados por Alphonsus de Guimaraens no jornal O
Conceição do Serro pode ser comparado ao estilo dos reclames de A Violeta. Nele,
percebemos também uma semelhança do ponto de vista da argumentação que
remete às representações finisseculares da frivolidade feminina e ao desejo coletivo
de exibir-se, comuns no período situado entre o final do século XIX e os anos iniciais
do século XX.
Oh minhas gentis senhoras,
Se formosas quereis ir
Pelas ruas, como auroras,
Ou pérolas de Ofir,
Ide ao Olímpio de Oliveira,
Na carreira,
Ver o que há lá em zefir!142
Curiosamente, outro anúncio redigido por Alphonsus de Guimaraens trazia
uma temática característica de sua obra lírica: a preocupação com o passar do
tempo e a morte.
A vida vem-nos, vem a morte,
E vai-se tudo devagar...
Quem desejar viver bem forte,
Rijo, feliz e de bom porte,
Compre no Juca do Aguiar!143
Vejamos um exemplo das charadas que Alphonsus de Guimaraens assinava
sob o pseudônimo de Old-Tom. Pelo aspecto sintético e coloquial do estilo, ela pode
ser comparada a certos poemas modernistas bem-humorados.
Fútil
142
143
GUIMARAENS apud GUIMARAENS FILHO, 1995, p.137-138.
GUIMARAENS apud GUIMARAENS FILHO, 1995, p.135.
67
Gente 1
Vigia 2
Em frente.144
Nesse poema-charada, cuja solução é a palavra “vanguarda”, Alphonsus
considerou duas possibilidades de formação da palavra: uma pseudo-etimológica
(“van-” como tendo origem no latim “vanu”) e outra realmente etimológica (“van-”
proveniente do francês “avant”), fazendo, assim, os significados oscilarem do “vão”,
“fútil”, passando pelo “enganoso”, o “ilusório”, o “inútil”, até chegar ao “estar à frente”
(“avant”). O poeta explora a espacialidade da escrita, criando uma identificação
imediata do primeiro com o último termo por sua posição de paralelismo. A condição
de se estar na vanguarda (vigiar/guardar adiante) foi, então, caracterizada como
inútil e destinada a uma frustração ou malogro, tornando-se uma vã-guarda.
A leitura dos textos publicitários ou daqueles de puro entretenimento nos
revela uma imagem de Alphonsus muito diferente das veiculadas pela crítica ou a
que se depreende de sua poesia lírica: “o solitário de Mariana”, “o pobre Alphonsus”
ou “o poeta de Nossa Senhora”. Através desses textos, tomamos contato com um
escritor preocupado com a satisfação das expectativas de um público leitor mais
amplo que o de sua obra lírica. Isto é, com um poeta longe da torre de marfim e tão
envolvido em suas circunstâncias que participava das “guerras da política
municipal”. Em uma delas, pelo fato do candidato da oposição a Soares Maciel ser
médico, Alphonsus redigiu vários epigramas sobre esses profissionais da saúde.
Vejamos um exemplo, em que os tratamentos médicos não curam, mas causam a
morte dos pacientes.
– Que curas, doutor sagrado?
– Toda doença velha e nova.
– E qual é o resultado?
– É todos irem p’ra cova.145
144
145
GUIMARAENS apud GUIMARAENS FILHO, 1995, p.126.
COELHO, 1934, p. 30.
68
A mesma idéia foi repetida em outros poemas satíricos. Curiosamente,
Alphonsus adotou um interessante procedimento de fazer o próprio médico dizer os
absurdos, como no seguinte exemplo:
Este doutor tão feliz,
Que segue tão satisfeito,
Que vai fazer, não me diz?
– Dar cabo de algum sujeito.146
As sátiras aos médicos continuaram em vários números do jornal. Além do
contexto político municipal, essas críticas também deveriam ser situadas em relação
às posições espiritualistas e críticas do cientificismo muito frequentes nas obras
simbolistas. Nos
poemas
satíricos
de
Alphonsus,
os
médicos
apareciam
representados como egoístas, mercenários e preocupados apenas com as coisas
materiais. Por sua forma dialógica e pelo título “Cena contemporânea”, uma dessas
sátiras nos faz pensar em um esquete teatral.
– Eis os dez mil réis
– Eis a minha receita. Pegue.
– Saro, doutor? Volta-me a fome?
(O médico, guardando a nota de dez)
– Vá para o diabo que o carregue.147
Alphonsus fustigou não apenas os que tratavam do corpo, mas também os
que cuidavam do espírito. Um deles foi criticado por extrapolar as suas atividades
pedindo votos no confessionário.
Como abusais dos devotos,
Ó reverendo vigário!
Pois até já pedis votos
146
147
COELHO, 1934, p. 30.
COELHO, 1934, p. 30.
69
Mesmo no confessionário.
Em vez de votos, vigário,
(O sr. bispo vos diz)
Pedi no confessionário
Esmolas para a matriz.148
Para Carlos Drummond de Andrade, essas obras de Alphonsus de
Guimaraens seriam, no fundo, uma tentativa de superação do cotidiano maçante
pelo humor.
As poesias de sentido gracioso ou satírico indicam, no plano literário,
essa disposição natural, exprimindo também, quem sabe? o desejo
do poeta, de retificar ou compensar com exercícios de humor a
pungência da vida cotidiana, a mediocridade dos acontecimentos de
uma existência tão erma de estímulos e motivos de entusiasmo.149
Enquanto editor do jornal, Alphonsus buscava satisfazer expectativas
diversas. De um lado, cumpria função ideológico-partidária, contentando o
presidente da Câmara da cidade de Conceição do Serro, que era patrocinador do
jornal. De outro, divulgava o Simbolismo e a sua poesia mais elaborada para um
público leitor estrito, formado geralmente por outros escritores. Além disso,
preocupava-se em cativar leitores que apenas queriam se divertir. Isso demonstra
que as condições de produção não permitiam ao escritor desvencilhar-se totalmente
do mercado (constituído por anunciantes ou pelos consumidores de textos para o
lazer) ou da dependência dos políticos para produzir um periódico destinado apenas
à literatura.
Depois que passou a residir em Mariana, Alphonsus de Guimaraens começou
a colaborar no jornal O Germinal para o qual redigia crônicas também assinando sob
pseudônimos. O mais freqüente era Guy d’Alvim. A colaboração, que se iniciou em
1906, durou até a morte de Alphonsus. O poeta também enviava poemas para
148
149
GUIMARAENS apud COELHO, 1934, p. 30.
ANDRADE apud GUIMARAENS FILHO, 1995, p. 326.
70
serem veiculados nesse jornal. Entre eles, dois dos sonetos mais conhecidos do
livro Pastoral aos crentes do amor e da morte: “Estão mortas as mãos daquela
Dona” e o soneto “LXXIV” sobre o Ribeirão do Carmo, dedicado a Cláudio Manuel
da Costa. Este último foi publicado na edição de 24 de junho de 1906 e o primeiro
em 3 de janeiro de 1908. Depois disso, um segundo soneto sobre o Ribeirão do
Carmo apareceu na edição de 6 de abril de 1913.
Também em Mariana, por volta de 1915, surgiu O Alfinete, outro periódico
onde Alphonsus de Guimaraens publicou muitos de seus textos, principalmente os
de caráter humorístico. De acordo com Alphonsus Guimaraens Filho, vários dos
pseudônimos com que seu pai assinava os textos eram nomes de modestos
moradores daquela cidade. Assim José Candinho, Dandico, Bento de Oliveira,
Jovelino Gomes, Raimundo Manecas e Joaquim Araújo tornaram-se “colaboradores”
desse periódico. O poeta divertia-se criando as características de cada um deles e
inventando histórias em que apareciam. Em uma carta dirigida a seu filho João
Alphonsus, datada de 9 de outubro de 1919, Alphonsus de Guimaraens assim
descrevia Bento de Oliveira e Joaquim Araújo:
O jornalista Bento deitou soberana importância, de pince-nez, a
tomar no seu canhenho notas que nunca serão publicadas, por
serem inexistentes; o poeta Joaquim Araújo, que usa agora um
cabelo leonino, sorria divinamente, como um deus descido à terra.150
Alphonsus chegou até mesmo a atribuir a Joaquim Araújo um auto-retrato às
margens do Ribeirão do Carmo, em Mariana, “em um sítio visitado há 2 séculos, por
Cláudio Manuel”.151 O desenho foi enviado a Laércio Prazeres para ser publicado na
revista Vida de Minas, mas não foi aproveitado. A menção à Cláudio Manuel da
Costa é importante. Ela revela a grande admiração que Alphonsus de Guimaraens
150
151
GUIMARAENS apud GUIMARAENS FILHO, 1995, p. 327.
GUIMARAENS apud BUENO, 2002, p. 17.
71
tinha pelo árcade e que foi bem explicitada no soneto “A Cláudio Manuel da
Costa”.152
Na edição do dia 17 de junho de 1919, Alphonsus escreveu vários epitáfios
com pseudônimos femininos como Lady Beer, Lys Boa e Miss. Um dos falecimentos
teria sido o de Joaquim Araújo, transformado em “Quinquim Comprido”.
Não havia quem pensasse
Que o grande Quinquim Comprido
– Digo-lhe assim face a face,
Pois assim pensam as belas –
Tendo (arcano indefinido!)
Tão esticadas canelas,
Ainda as mesmas esticasse!153
Alphonsus demonstrava grande carinho por Joaquim Araújo, atribuindo-lhe a
autoria de versos mais “sérios”. Por exemplo, antes de sair na Pastoral aos crentes
do amor e da morte, o poema de número XXIX já havia aparecido n’O Alfinete,
assinado por Joaquim Araújo.154
Os versos humorísticos de Alphonsus, em alguns casos, apareciam na coluna
“Postais”, nome bem sintomático como veremos.
Segundo Flora Süssekind, o cartão-postal foi introduzido no Brasil em 1901 e
tornou-se importantíssimo para a difusão da fotografia.155 Nos anos iniciais do século
XX, a fotografia começava a surgir na imprensa brasileira através das revistas
ilustradas e dos anúncios publicitários. Até o ano de 1905, apareceram poucos
periódicos ilustrados de Belo Horizonte. O primeiro jornal ilustrado, O Sal, data do
ano de 1901, tendo como modelos as revistas cariocas, mas, por não apresentar o
mesmo padrão de qualidade, foi rejeitado pelos leitores da cidade. Os clichês eram
trazidos de fora e a alternativa consistia no uso da xilogravura.156 Aos poucos, os
152
GUIMARAENS, 2001, p. 369.
EPITÁFIOS. O Alfinete, Mariana, 17 jun. 1919, p. 2.
154
GUIMARAENS FILHO, 1995, p. 327.
155
SÜSSEKIND, 1987, p. 33
156
SIQUEIRA, 1997, p.89.
153
72
jornais de propaganda mineiros, trazendo novas formas de apresentação dos textos
e imagens, acabaram influenciando os outros órgãos de imprensa. As inovações
foram limitadas. Entre elas, o uso da fotografia. Os almanaques ilustrados que
revelavam a paisagem da nova capital mineira através de fotografias eram
precursores das revistas Vita, A Vida de Minas e Vida de Minas, que, na década de
1910, se dedicaram a registrar em imagens a vida social, a paisagem urbana e os
personagens da cena cultural mineira.
A popularização da fotografia em álbuns, catálogos, reclames e cartõespostais é um dos aspectos do desenvolvimento da cultura de massa em Minas
Gerais. Em Belo Horizonte, os postais podiam ser facilmente encontrados nos
primeiros anos do século XX.157
Os “Postais” de Alphonsus procuravam captar imagens instantâneas daqueles
cidadãos de Mariana anteriormente mencionados, fazendo-os atuar, como
personagens-charge, em pequenas peças cômicas. Os flashes que apareciam em
cada edição de O Alfinete compunham uma espécie de álbum fotográfico da
paisagem humana local. Um exemplo que serve para mostrar a influência desse tipo
de imagem técnica (gravura e fotografia) na escrita de Alphonsus é um poema
atribuído a Jovelino Gomes. Como na deformação caricatural, Jovelino Gomes
enfatiza um detalhe de seu “auto-retrato”: as mudanças na voz.
Ai! triste de mim!
Minha voz é de flautim
E às vezes de saxofone,
De pistom ou de trombone.
E às vezes lá na retreta,
Parece até clarineta.
Quando endefluxado me acho,
Parece até voz de baixo.158
Alphonsus também enviou textos para outros jornais do interior de Minas,
demonstrando preocupação com a difusão regional de seu trabalho. Em 1910, ele
157
158
SIQUEIRA, 1997, p. 76.
POSTAIS. O Alfinete, Mariana, 11 set. 1917, p. 3.
73
enviou versos para o jornal O Curvelano, de Curvelo, onde trabalhou Álvaro Viana.
Em 1914, colaborou no periódico O Sulmineiro, de Pouso Alegre, com um dos
sonetos de Pulvis. Ainda em 1910, publicou o poema “Ismália” com o título “Ofélia”,
no Jornal do Comércio, de Juiz de Fora. O mesmo poema também apareceu em O
Alfinete no ano de 1915 e no jornal Montes Claros em 1916.
Outros periódicos do interior mineiro também publicaram textos simbolistas. O
jornal Idéia Nova, de Diamantina, publicou várias obras de Edgard Mata. Já os
jornais O Resistente e Arauto de Minas, de São João del-Rei, divulgaram textos de
José Severiano de Rezende. O aprofundamento da pesquisa sobre a disseminação
das obras dos simbolistas no interior ainda está por ser realizado. O que
mencionamos aqui é apenas uma pequena parte do que foi produzido e veiculado
em órgãos de imprensa de Minas Gerais.
Como vimos, os periódicos foram muito importantes para os simbolistas, pois
possibilitaram a veiculação de suas obras e a criação de laços sociais entre os
escritores. Assim como as outras publicações belo-horizontinas daquele tempo, os
jornais e revistas simbolistas de Belo Horizonte eram atacados por um “mal de
umbigo” e se extinguiam rapidamente.159 Eram empreendimentos editoriais que
aspiravam à permanência, mas malogravam, transformando-se em efêmeros
espaços de divulgação literária.
159
CASTRO, 1995, p. 25.
74
OS SIMBOLISTAS MINEIROS E A
REPÚBLICA DAS LETRAS
75
[...] alguns moços de Belo Horizonte, estudantes pela maior parte,
formaram aqui uma flamante capela literária, a um tempo mística e
boêmia, em que se votava culto a Verlaine, Mallarmé e Baudelaire.
Eduardo Frieiro
76
A FORMAÇÃO INTELECTUAL DOS SIMBOLISTAS MINEIROS
A
bordar a formação literária dos simbolistas mineiros não é uma tarefa fácil,
principalmente pela escassez de informações sobre muitos deles. Mesmo
em relação aos escritores que mereceram a atenção de algum crítico ou
historiador, a dificuldade não é pequena. Nesse caso, nos deparamos com muitas
informações que devem ser verificadas e analisadas cuidadosamente. Um exemplo
que demonstra muito bem o grau de complexidade desse tipo de estudo foi a
reposta dada a João do Rio por José Severiano de Rezende sobre a sua formação
literária. A declaração gera mais dúvidas e questionamentos do que certezas sobre
a formação do escritor simbolista. Em primeiro lugar, fica evidente a sua disposição
de se afastar da imagem do escritor ligada a um letramento literário de tipo escolar.
Eu positivamente não sei bem como foi a minha formação
literária. Não estou mesmo certo se houve ou se há em mim isso que
o amigo chama respeitosamente “uma formação literária”. Só sei de
uma coisa: é que desde cedo tive sempre uma insaciável
necessidade, ou para melhor dizer, uma intensa ânsia de cultura, que
me levou a ler, ler, ler, e dessas leituras várias, mas bem orientadas,
me ficaram, creio, uma estesia e um estilo – estesia ainda a
corporificar em síntese e estilo ansioso de realizar a Forma. A minha
formação literária é feita pois de um amálgama em que são
ingredientes as obras-primas que eu admiro e que eu amo. Porque
eu entendo que a coisa literária, como os diletantes a tomam, será
sempre mesquinha e desinteressante se não for elaborada com o
intuito de reproduzir o Belo, e o que reproduz o Belo é a Obra Prima,
ou seja palavra falada ou escrita, ou seja som, cor, linha ou bloco.
Por isso é que esta expressão “formação literária” me soa mal.
“Formação literária” parece querer indicar pretensiosamente o que
quer que seja que se assemelha, verbi gratia, a “colação de grau”; há
nessa fórmula de aula de retórica, um perfume de bacharelice
compenetrada da sua canonização literária. Fico por conseguinte,
tonto, instado para dizer quais os autores que mais contribuíram para
a minha formação literária. Estou certo que o Sr. Barão de Loreto160
160
Franklin Américo de Meneses Dória, barão de Loreto, foi advogado, orador, magistrado, poeta e
político monarquista brasileiro. Tornou-se professor do Externato no Colégio Pedro II após apresentar
uma tese para o concurso da cadeira de Retórica, Poética e Literatura Nacional. Integrou diversas
associações culturais e filantrópicas e foi um dos fundadores da Academia Brasileira de Letras em
1897.
77
ou o Sr. Barão de Paranapiacaba161, versicultores cobertos de cãs,
não hesitariam, um minuto, na resposta. Eu hesito, porque,
francamente, não tenho formação literária, e acho que ninguém deve
tratar de ter.162
Em segundo lugar, a menção de autores do cânone ocidental na sua
“formação”, revela a intenção de mostrar-se superior em relação aos círculos e
cenáculos nacionais, considerados como ambientes que não valorizavam os
verdadeiros talentos e se regiam por princípios mesquinhos.
A minha formação literária é isso: uma grande revolta e uma
grande aspiração – revolta contra o pedantismo inativo do medalhão
e a maçonaria nula das coteries, aspiração à luta sincera pela Arte e
pela supremacia do Talento. A minha formação literária inspira-se
pois nessa direção e a minha doutrina bebo-a nas fontes supernas
que borbulham nos píncaros: Homero, Ésquilo, Virgílio, Dante,
Shakespeare, Cervantes, Goethe, Balzac, e, sobretudo, a tout
seigneur tout honneur, Ricardo Wagner, o mestre dos mestres, o
colosso sobre-humano, o descobridor dos novos mundos da Arte, o
único a quem é imprescindível pedir licença quando se quiser
dissentir de idéias.”163
No trecho final de sua resposta, Severiano de Rezende mencionou que
também faziam parte de sua lista de autores preferidos Hugo, Péladan, Huysmans,
Leconte, Verlaine, Mallarmé, D’Annunzio, Flaubert, Chateaubriand, Heredia,
Petrarca e Poe.164
A fala curiosa e polêmica deve ser considerada com reservas. Não apenas
por sua intencionalidade polêmica, mas também por não revelar toda a gama de
seus contatos com autores brasileiros e estrangeiros. No entanto, ela nos dá um
perfil bastante interessante de Severiano de Rezende e demonstra que ele buscava
dialogar com a tradição e a modernidade literárias. Apesar de não ter mencionado
161
João Cardoso de Meneses e Sousa, Barão de Paranapiacaba (Santos, 25 de abril de 1827 — Rio
de Janeiro, 2 de fevereiro de 1915), foi poeta, jornalista, advogado, tradutor, professor e político
brasileiro.
162
REZENDE apud RIO, 1994, p. 132-133
163
REZENDE apud RIO, 1994, p. 133-134
164
REZENDE apud RIO, 1994, p. 134.
78
escritores brasileiros na resposta à questão de João do Rio, Severiano de Rezende
discorreu bastante sobre a literatura brasileira produzida entre fins do século XIX e
princípio do século XX, fornecendo elementos importantes para compreendermos o
seu posicionamento crítico em relação ao sistema literário daquela época.
Ao contrário do que Severiano de Rezende queria fazer crer, o letramento
literário de um escritor também ocorre nas escolas através das obras literárias que
fazem parte dos livros didáticos, das selecionadas pelos professores e das
acessíveis nas bibliotecas escolares. Em vista disso, torna-se necessário distinguir,
na formação literária dos escritores, uma vertente relacionada ao seu percurso
escolar, à educação administrada por instituições de ensino. Outra está relacionada
a um conjunto de saberes adquiridos no exercício de sua função intelectual, na sua
prática profissional, na frequência aos salões e clubes literários, na vida boêmia, nos
eventos culturais (teatro, mostras de arte, concertos, cinema) e através de leituras
diversas ou da troca de correspondência com outros escritores. Ou seja, um estudo
da formação literária dos escritores envolve também uma compreensão de sua
participação em variadas redes culturais.
No caso de José Severiano de Rezende, a figura paterna foi bastante
relevante para a sua formação. Além de escritor e jornalista, Severiano Nunes
Cardoso também era professor. Quando José Severiano de Rezende nasceu, seu
pai trabalhava como professor de Latim e Francês na escola pública de Mariana.
Depois, tornou-se professor vitalício de Português no Externato oficial de São João
del-Rei e na Escola Normal da mesma cidade.165 Segundo Renato de Lima Júnior, o
pequeno Severiano de Rezende teria aprendido a “soletrar brincando com os tipos”
165
O pai de José Severiano de Rezende desenvolveu uma intensa atuação política em defesa da
Monarquia como parlamentar do Partido Conservador e nas páginas do jornal Arauto de Minas, de
São João del-Rei, que ele dirigiu e onde travou acalorada polêmica com os defensores dos ideais
republicanos. O seu envolvimento com a causa da educação e as atividades intelectuais também
deve ser mencionado. De acordo com João Dornas Filho, Severiano Nunes Cardoso de Rezende
defendeu projetos relacionados à educação, como a criação da Escola Normal e de escolas primárias
em pequenas localidades do interior mineiro. Também foi “reitor e professor do ‘Instituto de
Humanidades Francisco de Assis’, cuja equiparação a ginásio pleiteou e conseguiu do governo
federal. Dedicado ao estudo do Latim escreveu uma ‘Gramática da Língua Latina’ e um tratado de
versificação”. Cf. DORNAS FILHO, 1972, p. 2. Segundo Vivaldi Moreira, ele também foi autor de um
drama sacro em quatro atos, A Virgem-Mártir de Santarém, tendo tido um “notável relevo no meio
intelectual ao lado de Aureliano Pimentel, Gastão da Cunha, Basílio de Magalhães e outros de igual
estatura.” Cf. MOREIRA, 1971, p. 5-6.
79
usados para imprimir o jornal Arauto de Minas, dirigido por seu pai.166 Em sua
formação escolar inicial, percebemos uma ênfase no estudo de línguas pois, no
Externato de São João del-Rei, Severiano de Rezende habilitou-se em Francês,
Latim e Português. Ênfase que parece ter sido decisiva em sua vida, como se verá
no decorrer de nossa exposição. Apenas para dar uma idéia de como a língua
francesa o marcou desde cedo, Severiano de Rezende publicou no Arauto de Minas,
aos 16 anos, uma tradução da fábula “A cigarra e a formiga”, de La Fontaine, e, aos
17 anos, um poema em francês dedicado a uma atriz francesa que havia atuado em
São João del-Rei. Nesse período de sua adolescência, ele estudava no Liceu
Mineiro, em Ouro Preto, onde conheceu e se tornou amigo de Alphonsus de
Guimaraens.
No Liceu Mineiro, Alphonsus de Guimaraens assistia aulas do professor de
português João Nemrod Kubistschek, um poeta romântico.167 É provável que a
escolarização da literatura realizada por este professor também tenha tido um papel
significativo na formação de Archangelus de Guimaraens, já que o irmão de
Alphonsus experimentou o mesmo tipo de ensino no Liceu Mineiro. É de se supor
que, nesse educandário de Ouro Preto, os três jovens, além de laços de amizade,
tenham
desenvolvido
afinidades
intelectuais
que
contribuiram
para
definir
posteriormente as características da literatura simbolista de Minas Gerais.
Muito interessante é a análise feita por Silvano Minense sobre a vida
intelectual de José Severiano de Rezende na época em que estudou em Ouro Preto.
Severiano de Rezende teria tido uma ligação com as idéias positivistas e sido
admirador da literatura realista de Zola.
Em Ouro Preto, a convivência com os condiscípulos de
idéias e princípios os mais livres, cimentados com os conceitos
da filosofia do século XVIII, o conhecimento das obras de
Voltaire, Rousseau e outros; a confraternização de
pensamentos com os literatos modernos, especificamente
Balzac, Zola, Victor Hugo, Renan – um sem número de
publicistas e poetas, que na ousadia da linguagem e do
pensamento pretendiam escalar o próprio Céu; a meditação
166
167
LIMA JÚNIOR, 2002, p. 28.
ALPHONSUS, 1960, p. 30.
80
das doutrinas de A. Comte, que nele tiveram logo um prosélito
– tornaram José Severiano de Rezende um pensador livre, cujo
espírito irrequieto e revolto buscava alar-se às mais vastas
amplidões, como que achando por demais limitado o círculo,
em que a educação, as conveniências sociais e a Religião o
prendiam.168
O certo é que, em Ouro Preto, havia uma relação dos professores do Liceu
Mineiro e dos participantes do movimento estudantil com a luta abolicionista e as
idéias republicanas.169 A produção literária inicial de Alphonsus de Guimaraens
abordando temas políticos deve ser pensada em relação a esse contexto. Três dos
seus professores no Liceu Mineiro atuaram na luta abolicionista: Afonso de Brito
(professor de latim e diretor substituto em 1885), Samuel Brandão (professor de
matemática) e Manuel Ozzori.170 Os dois primeiros publicavam o jornal abolicionista
A Vela do Jangadeiro no qual pregavam uma “revolução pacífica” em relação ao
sistema escravista. Já Manuel Ozzori, a quem Alphonsus de Guimaraens dedicou o
soneto “Dor eterna”, tinha uma opinião diferente, acreditando que a transformação
poderia não acontecer pacificamente. Além do jornal abolicionista O Trabalho,
Ozzori também dirigiu o Almanaque administrativo, mercantil, industrial, científico e
literário do Município de Ouro Preto que publicou vários poemas de Alphonsus.
Entre esses poemas, encontram-se os versos de “Quinze de Novembro”, com
evidente defesa dos ideais republicanos.171 Já os versos antiescravistas do soneto
“Tenebra et lux” foram escritos em 1888, numa época posterior à entrada de
Alphonsus de Guimaraens para o Curso Complementar da Escola de Minas. Além
168
MINENSE apud LIMA JÚNIOR, 2002, p. 30.
Em 1885, um grupo de estudantes fundou o Clube Republicano 21 de Abril. Cf. COTA, 2009, p. 8.
170
Segundo Luiz Gustavo Santos Cota (2009, p. 9-10), mais dois professores do Liceu Mineiro foram
atuantes no movimento abolicionista: Alcides Catão da Rocha Medrado e Eduardo Machado de
Castro.
171
Alphonsus dedicou este poema ao seu irmão Artur Guimarães que estudou engenharia na Escola
de Minas. Talvez possamos associar a homenagem ao tipo de mentalidade política modernizadora
que predominava naquela instituição de ensino superior. Poderia existir ainda uma correspondência
da figura do irmão engenheiro com o discurso modernizador de certos setores do Estado para os
quais a engenharia de obras públicas representava um papel de “vanguarda”. Alphonsus de
Guimaraens Filho considerou Artur como o irmão de seu pai que “venceu na vida como homem
prático”. De sua biografia, devemos destacar que foi professor e um dos fundadores da Escola de
Engenharia da Universidade de Minas Gerais. Ele também ocupou cargos importantes na
administração de Minas Gerais (Diretor da Secretaria da Agricultura e Obras Públicas e depois
Secretário da mesma pasta). Cf. GUIMARAENS FILHO, 1995, p. 237. Quanto ao envolvimento da
família de Alphonsus com a república, cumpre lembrar que as ideias republicanas tiveram na figura
do tio materno de Alphonsus, Cesário Alvim, um defensor histórico.
169
81
desse ambiente propício para as manifestações contrárias à escavidão, devemos
lembrar que o escritor Bernardo Guimarães, tio de Alphonsus, foi um importante
abolicionista, autor do famoso romance A escrava Isaura.
José Severiano de Rezende, Alphonsus de Guimaraens e seu irmão
Archangelus de Guimaraens se encaminharam para o curso de Ciências Jurídicas e
Sociais em São Paulo. No período em que lá estiveram estudando, a Academia de
Direito tinha uma orientação diferente da que experimentou a geração de Álvares de
Azevedo e seus amigos mineiros Bernardo Guimarães e Aureliano Lessa. No tempo
dos três poetas românticos, o ecletismo espiritualista predominava. Contrapondo-se
a esta orientação filosófica, Álvares de Azevedo escreveu um discurso proferido em
1850 na sessão de instalação da sociedade acadêmica. Azevedo afirmou que
buscava “não uma ciência fragmentária e parasita do passado, pálida cópia do que
foi, como o entendeu o ecletismo de Cousin”, preferindo o “transcendentalismo
alemão – Kant, Fichte, no idealismo mais puro e vaporoso, reduzindo o panteísmo
de Spinoza e a visão em Deus de Malebranche ao egotismo de Fichte e Hegel”.172 A
preocupação com problemas relacionados à política e ao Estado fizeram com que o
interesse pelo individualismo jurídico de Kant fosse deixado de lado primeiramente
por uma influência da doutrina de Krause e depois pelas doutrinas positivistas e
evolucionistas. No final do século XIX, as novas diretrizes do curso de Direito de São
Paulo revelavam uma crescente valorização dos estudos de Antropologia e
Sociologia segundo uma orientação positivista e evolucionista. Lá eram discutidas as
teorias sociais de Comte, Spencer, Stuart Mill, Worms, Le Bon, Tarde, Novicow,
entre outros.
A fundação do Liceu Mineiro em Ouro Preto, no ano de 1854, coincidiu com o
período áureo do ecletismo espiritualista no Brasil. Tal corrente de pensamento
predominou na fase inicial do Liceu Mineiro e também deve ter sido a diretriz
adotada por Bernardo Guimarães depois que assumiu, em 1867, o cargo de
professor de Filosofia dessa instituição, onde ele também ensinou Português,
Retórica e Filologia durante muitos anos. Além de Bernardo Guimarães, o Liceu
Mineiro contou com outros intelectuais de grande relevo como Rodrigo José Ferreira
Bretas e Afonso Arinos. Bretas, que teve um papel decisivo na difusão do ecletismo
172
AZEVEDO apud REALE, 1949, p. 64
82
espiritualista em Minas, foi diretor e professor de Filosofia do Liceu Mineiro. Já
Arinos ensinou História.
De acordo com Ângelo F. Palhares Leite, o Liceu Mineiro representou um
projeto de modernização educacional naquela época, marcando uma sensível
diferença tanto em relação ao ensino dos seminários, onde dominava a escolástica,
quanto em relação ao praticado nas escolas régias.
Na verdade, foi o primeiro processo de modernização (ou atualização
– modernismo filosófico?) do ensino de filosofia no Brasil
independente (o primeiro foi o das reformas pombalinas, mas de
extração colonial, portanto luso-brasileiro) [...]173
O Liceu Mineiro era a principal escola pública dedicada ao curso secundário
da província de Minas Gerais e disponibilizava não apenas uma formação em
humanidades, mas também uma formação técnica em Farmácia, contando com
disciplinas como Química e Matéria Médica. A disciplina Filosofia foi mantida com a
mesma orientação teórica (isto é, o ecletismo espiritualista) nessa escola até o final
do século XIX, quando foi remodelada segundo as concepções positivistas dos
republicanos e mudou de nome para Ginásio Mineiro.
Antes de ir para São Paulo, Alphonsus de Guimaraens matriculou-se no
Curso Complementar da Escola de Minas de Ouro Preto. O curso de Engenharia foi,
porém, abandonado alguns meses depois de iniciado. A Escola de Minas promovia
uma formação de quadros técnicos para o país. Muitos de seus ex-alunos se
envolveram na burocracia estatal, na criação de indústrias e na política econômica
do país. Era uma instituição com finalidade prática e com professores franceses
voltados para o estudo da natureza. Segundo José Murilo de Carvalho, aqueles
mestres eram “herdeiros das reformas napoleônicas da educação, sobretudo da
École Normale Supérieure, onde Gorceix174 fora aluno de Pasteur” e introduziram em
Minas Gerais uma mentalidade voltada para a pesquisa científica, até então ausente
173
174
LEITE, 2005, p. 243.
Claude Henri Gorceix foi o fundador da Escola de Minas e a dirigiu até o final do Império.
83
de nosso ensino.175 A Escola de Minas também foi um centro de difusão de idéias
modernizadoras do ponto de vista político. De acordo com José Carlos Rodrigues,
os estudantes e os professores da Escola de Minas “foram os propagadores mais
ardorosos das idéias republicanas” em Ouro Preto.176 Antônio Olinto dos Santos
Pires, que era professor de Matemática, Agrimensura, Topografia e Cosmografia na
Escola de Minas, foi um ardoroso republicano e, depois de instituída a república,
tornou-se o primeiro Presidente Provisório de Minas Gerais.
Voltemos, agora, a José Severiano de Rezende. O seu percurso foi curioso.
Tendo feito parte do curso de Ciências Jurídicas em São Paulo e depois se
matriculado na Faculdade de Direito de Ouro Preto, resolveu entrar para o Seminário
de Mariana, ordenando-se padre ao final de sua formação religiosa.
Quando voltamos a nossa atenção para a resposta de Severiano de Rezende
dada a João do Rio, notamos que ele fez uma crítica à expressão “formação
literária” por lhe parecer associada a “colação de grau”, “fórmula de aula de retórica”
e “perfume de bacharelice compenetrada”. Seria uma alusão à formação acadêmica
da maioria dos intelectuais brasileiros daquela época? Severiano de Rezende teria
buscado evitá-la abandonando o curso de Direito? O interessante dessa crítica do
poeta mineiro é que ela nos faz pensar na análise que Sérgio Buarque de Holanda
fez do bacharelismo associado ao caráter nacional brasileiro com seu “amor
pronunciado pelas formas fixas e pelas leis genéricas”.177 Sérgio Buarque apontou
ainda como características dessa mentalidade o prestígio
[...] da palavra escrita, da frase lapidar, do pensamento inflexível, o
horror do vago, ao hesitante, ao fluido, que obrigam à colaboração,
ao esforço e, por conseguinte, a certa dependência e mesmo
abdicação da personalidade têm determinado assiduamente nossa
formação espiritual. Tudo quanto dispense qualquer trabalho mental
aturado e fatigante, as idéias claras, lúcidas, definitivas, que
favorecem uma espécie de atonia da inteligência, parecem-nos
constituir a verdadeira essência da sabedoria.178
175
CARVALHO, 2005, p. 67.
RODRIGUES, 1986, p. 161.
177
HOLANDA, 1987, p. 117.
178
HOLANDA, 1987, p. 117.
176
84
Esta análise pode dar uma idéia do grau de ruptura que a poesia simbolista
representou no Brasil e sugerir, por outro lado, algumas explicações para o modo
como o Simbolismo foi avaliado pelos críticos e apropriada por vários poetas entre o
final do século XIX e primeiros anos do século XX. A recepção inicial de Mallarmé no
Brasil é bastante reveladora dessa mentalidade bacharelesca. Muitos leitores diziam
preferir Verlaine e outros demonstravam mais simpatia pela primeira fase de
Mallarmé. A preferência por Verlaine indicia a primazia de um Simbolismo menos
hermético e exigente.179
A entrada de Severiano de Rezende para o Seminário de Mariana causou
muita surpresa. O fato foi comentado por seus colegas da Academia de Direito de
São Paulo e também pelos jornalistas. Alguns interpretaram a sua atitude como uma
influência das obras e da vida de Huysmans.180 O importante é salientar que o tipo
de educação religiosa proporcionado pelo Seminário de Mariana era de cunho
tradicionalista e teve profunda influência na obra de Severiano de Rezende.
Repercussão facilmente perceptível não apenas na sua hagiografia, O meu flos
sanctorum, mas também nos poemas de Mistérios.
O Bispo de Mariana, D. Antônio Ferreira Viçoso, logo após assumir a Diocese
de Mariana em 1844, estabeleceu uma diretriz católico-conservadora, ou seja,
ultramontana, de origem contrarreformista, para o ensino no Seminário. Uma diretriz
justificada pelo Syllabus, de Pio IX. Se o tradicionalismo religioso tinha um aspecto
mais filosófico no período do império, ao final do século XIX, após a instituição da
república, ele adquiriu uma feição mais política. A discordância dos que seguiam
essa diretriz católico-conservadora com os fundamentos políticos de uma série de
atos dos governos republicanos foi assim analisada por José Carlos Rodrigues:
A nova República Brasileira e a opção tradicionalista
defendida pela hierarquia eclesiástica em Minas Gerais e no restante
179
Além disso, Mallarmé foi pouco conhecido entre os escritores brasileiros naquele período.
Segundo Andrade Murici (1995, p. 34), a sua influência ocorreu “há bem pouco tempo, através de
Valéry sobretudo”.
180
LIMA JÚNIOR, 2002, p. 44.
85
do País configuram um verdadeiro drama no final do século XIX. O
tradicionalismo não podia compreender o avanço das novas idéias
políticas que se impunham a partir de então. Enquanto outros países
enfrentaram sem maiores traumas a laicização do Estado, a
introdução do casamento civil e a adoção de constituição moderna e
laica, no Brasil, o novo programa político gerou um trauma com
repercussões somente superadas a longo prazo.181
A linha tradicionalista da Diocese de Mariana foi mantida pelos sucessores de
D. Viçoso, D. Silvério Gomes Pimenta e D. Antônio Correia de Sá e Benevides, e
encontra-se expressa nas páginas de uma série de jornais publicados sob a sua
responsabilidade: O Bom Ladrão, O Viçoso e D. Viçoso (1897). Este último era
redigido pelo próprio José de Severiano de Rezende que acabara de ser ordenado
padre e trabalhava junto ao Bispo de Mariana. Nesse trabalho, Severiano de
Rezende já mostrava o seu estilo combativo, defendendo a doutrina católica e
criticando os absurdos da nascente República brasileira. O antagonismo em relação
aos ideais republicanos era, ao mesmo tempo, um antagonismo em relação às
idéias positivistas. José Maurício de Carvalho notou essa posição do escritor mineiro
manifestada, em época posterior, no livro que o padre Severiano de Rezende
escreveu sobre Eduardo Prado.
A novidade em Severiano é que o reconhecimento da Igreja Católica
como sendo a única verdadeira estava fundamentado no estudo e no
aprofundamento das ciências modernas, numa espécie de
antipositivismo. Explicando melhor, o estudo e o aprofundamento
teórico das ciências levariam, como no caso de Eduardo Prado, a
uma aproximação com o catolicismo romano. De modo algum o
aprimoramento do saber científico sustentaria o ateísmo e o
materialismo.182
Como se pode notar, tratava-se de um ataque ao sistema de valores em vigor
naquela época que se autoidentificava como a representação do moderno e do
progresso.
181
182
RODRIGUES, 1986, p. 133.
CARVALHO, 1998, p. 107.
86
No sentir de Severiano, não bastava o cumprimento da religião
no interior do lar, na vida íntima. Em outras palavras, a dimensão
prática do catolicismo era importante, mas não suficiente. Era
necessário comprometer-se com a organização social da sociedade
e esta somente teria um caminhar tranqüilo se houvesse o domínio
do catolicismo. Era portanto necessário enfrentar em todos os
campos o bacharel pedantesco, o acadêmico bisbórria, o positivista
monomaníaco, o cientista pontificante.183
A proposta de Severiano de Rezende não consistia numa condenação do
saber científico e do saber mundano, mas na busca de uma compatibilidade desses
saberes com o saber religioso católico. Então, o ideal seria uma espécie de
catolicismo esclarecido.184 Segundo José Maurício de Carvalho, o pensamento de
Severiano representaria “uma tentativa de fundamentar a moral social na religião,
suplantando o projeto positivista de uma filantropia laica”. Ao mesmo tempo,
pretenderia “dar um sentido diverso ao progresso da razão humana, mostrando que
a evolução intelectual não é inimiga da fé, mas um elemento importante do
fortalecimento da verdadeira fé”.185
Além dos simbolistas já mencionados, os escritores Viana do Castelo, Ciro
Arno e Mamede de Oliveira também estudaram em Ouro Preto. Viana do Castelo
cursou Humanidades no Colégio Ouropretano, antes de ir estudar Ciências Jurídicas
e Sociais em São Paulo. Por sua vez, Ciro Arno e Mamede de Oliveira fizeram os
preparatórios para o curso de Direito em Ouro Preto. Este último também estudou no
Ginásio de Ouro Preto, antigo Liceu Mineiro. Antes de estudar em Ouro Preto, Ciro
Arno havia sido colega de J. Camelo na Escola Normal de Diamantina, onde
também estudou Mariana Higina. Já Afonso Pena Júnior e Ernesto Cerqueira foram
ambos alunos do Colégio Caraça. Como se sabe o Caraça, instituição onde
predominava o espírito de conservação da ordem e da tradição, foi o responsável
183
CARVALHO, 1998, p. 110.
No livro Eduardo Prado, a crítica de Severiano de Rezende não era dirigida apenas aos
positivistas mas também às práticas católicas dos seguidores do ecletismo espiritualista. Para ele,
tratava-se de “um catolicismo especulativo e platônico, mais ou menos sentimental, empapado nuns
longes de inclassificado misticismo e em que entram estranhos ingredientes de uma religião sui
generis, sonhos vagos de poesia, flores murchas de retórica, nostalgias medievais com pulverizações
de bacharelismo indígena ou de conselheirismo acácico”. REZENDE apud CARVALHO, 1998, p. 108.
185
CARVALHO, 1998, p. 113.
184
87
pela formação dos homens da classe dirigente de Minas Gerais. Estava sob os
cuidados dos padres lazaristas, ultamontanos de origem francesa, que enfatizavam
o ensino das humanidades e da religião.
Entre os mineiros que participaram do movimento simbolista, Edgard Mata
teve uma trajetória escolar diferenciada. Aprendeu as primeiras letras e depois
cursou o ensino secundário no Rio de Janeiro. O seu curso de Humanidades foi feito
no conceituado Colégio Aquino, da Tijuca.186 Tanto Edgard Mata quanto Mariana
Higina não prosseguiram seus estudos após o curso secundário. Mariana Higina,
depois de terminar a Escola Normal, tornou-se professora primária em Diamantina.
Já sobre a formação escolar de Horácio Guimarães e de Agenor Barbosa pouco ou
quase nada sabemos atualmente. Em relação a Horácio Guimarães, apesar de
dispormos de reduzidos dados biográficos a seu respeito, podemos supor que tenha
tido uma formação secundária semelhante à de Alphonsus de Guimaraens no Liceu
Mineiro pois eles eram da mesma idade. Outro elemento a reforçar esta hipótese é o
fato de Bernardo Guimarães, pai de Horácio, ter sido professor daquela instituição
escolar nos meados do século XIX.
Em vista desses dados, percebemos que os membros do movimento
simbolista de Minas Gerais tiveram uma formação escolar com orientações
antagônicas. De um lado, o ensino nas escolas religiosas, como o Caraça e o
Seminário de Mariana, preocupava-se com a manutenção das tradições. Do outro, o
ensino nas escolas públicas, como o Liceu Mineiro, a Escola de Minas ou a
Faculdade de Direito, apresentava um caráter menos conservador e demonstrava
um maior interesse pelas questões da modernização. Portanto, esses escritores
tiveram que lidar, desde muito jovens, com os dois polos que caracterizavam a
educação e a produção cultural em Minas Gerais entre o final do século XIX e início
do século XX: um que pregava a conservação das tradições e o outro que enfatizava
o progresso.
A formação universitária da maioria dos simbolistas mineiros se deu nos
cursos de Direito de São Paulo e de Minas Gerais. Alphonsus e Archangelus de
Guimaraens, após um período de estudos em São Paulo, voltaram para Ouro Preto,
186
SOUZA, 1978, p. 10-11.
88
onde se bacharelaram no curso de Ciências Jurídicas da recém-fundada Faculdade
Livre de Direito de Minas Gerais.187 Em 1894, Alphonsus de Guimaraens retornou
para a Faculdade de Direito de São Paulo e lá concluiu o curso de Ciências Sociais.
Além de Alphonsus de Guimaraens e seu irmão Archangelus, Direito também foi o
curso escolhido por Adolfo Araújo, Afonso Pena Júnior, Álvaro Viana, Ciro Arno, J.
Camelo, Mamede de Oliveira e Viana do Castelo. Entre eles, Ciro Arno, Adolfo
Araújo e Viana do Castelo também estudaram na Faculdade de Direito de São
Paulo. Já Afonso Pena Júnior, J. Camelo, Mamede de Oliveira e Álvaro Viana se
bacharelaram pela Faculdade Livre de Direito de Minas Gerais.
Fundada em 1892 por um grupo de políticos e bacharéis em Estudos
Jurídicos e Sociais, a Faculdade Livre de Direito de Minas Gerais foi dirigida
inicialmente pelo pai de Afonso Pena Júnior. Além de diretor, Afonso Pena era
professor de Ciências das Finanças e Contabilidade do Estado na mesma academia.
É relevante mencionar alguns dos professores com os quais Alphonsus teve contado
na Faculdade que também eram escritores: Afonso Arinos (Direito Criminal),
Augusto de Lima (Filosofia e História do Direito) e Raimundo Correia (Direito Público
Internacional e Direito Criminal). A criação dessa faculdade na antiga capital de
Minas ocorreu pela necessidade de pessoal qualificado para trabalhar na burocracia
e para a consolidação do regime republicano. A instituição foi transferida para Belo
Horizonte em 1898 e posteriormente integrada à Universidade de Minas Gerais em
1927.
É bastante significativo o fato de encontrarmos a capa do primeiro número da
Revista da Faculdade de Direito, publicado em 1894, entre os documentos
pertencentes ao acervo do Museu Casa Alphonsus de Guimaraens apresentando a
assinatura do autor da Pastoral dos Crentes do Amor e da Morte na parte superior. A
comissão de redação da revista contava com dois nomes emblemáticos: Augusto de
Lima e João Pinheiro.188 A maior parte dos textos publicados nesta revista eram
187
A Faculdade Livre de Direito de Minas Gerais contava com três cursos: Ciências Jurídicas,
Ciências Sociais e Notariado.
188
João Pinheiro da Silva, figura pública a quem se atribui a origem do desenvolvimentismo mineiro
(Cf. GOMES, 2005), foi um dos fundadores da Faculdade Livre de Direito de Minas Gerais, tendo sido
responsável pelo ensino de Direito das Gentes, Diplomacia e História dos Tratados, no curso de
Ciências Sociais.
89
escritos pelos professores da própria faculdade e costumavam ser utilizados nas
disciplinas dos seus cursos.189
Na Revista da Faculdade de Direito, as controvérsias entre a Escola Positiva
de Criminologia e a Escola Clássica estão presentes, sendo que os autores dos
artigos geralmente se posicionavam a favor das teorias positivistas.190 A defesa do
Direito Positivo prevaleceu neste periódico até a década de 1930.
É fundamental ter em mente as ideias difundidas nos cursos de Direito tanto
em São Paulo quanto em Minas Gerais entre o final do século XIX e os primeiros
anos do século XX para compreendermos o posicionamento literário dos simbolistas
mineiros. As obras desses escritores poderiam ser lidas como reações às teorias
positivistas, evolucionistas e materialistas que compunham os currículos das
faculdades onde eles estudaram e que predominavam entre os defensores das
mudanças políticas e sociais naquela época. A divergência em relação a essas
doutrinas deve ter sido estimulada pelo contato desses escritores com redes
intelectuais diferentes das formadas em instituições escolares, como veremos em
seguida.
REDES LITERÁRIAS, RESSONÂNCIAS E PRÁTICAS DE TRADUÇÃO
Ao investigarmos a vida dos simbolistas mineiros na perspectiva das redes
literárias de que fizeram parte, notamos que eles estiveram mais envolvidos em
redes semi-institucionalizadas e em redes informais do que com as redes
institucionalizadas.191
De fato, Alphonsus de Guimaraens e José Severiano de
Rezende, os dois simbolistas mineiros mais destacados pela crítica e pela
historiografia literária, mantiveram tensas relações com a instituição literária de maior
189
Cf. LOURENÇO, 2007, p. 53.
Cf. LOURENÇO, 2007, p. 130.
191
Para Gisèle Sapiro (2006, p. 53-54), existem três tipos de redes segundo o grau de sua
institucionalização: 1) as formadas pelos grupos institucionalizados, como as academias, as
sociedades literárias, as associações, os clubes; 2) as redes semi-institucionalizadas, constituídas por
grupos mais ou menos efêmeros com perfis relativamente fluidos (revistas, grupos de vanguarda,
círculos literários, salões); 3) as redes informais, compostas por interconexões de aspectos mais
fluidos, aleatórios e com atividades mais conjunturais, como as relações de amizade.
190
90
poder cultural naquela época: a Academia Brasileira de Letras.
Muitas vezes
contraditório, Severiano de Rezende oscilou entre a tentativa de ingressar na
Academia, valorizando-a, e em criticá-la, ainda que indiretamente. Na entrevista
concedida a João do Rio, ele atacou, por exemplo, as organizações literárias
provincianas e fez observações não muito favoráveis a Machado de Assis,
misturadas a elogios com um colorido irônico. Assim, em relação aos cenáculos
literários estaduais, declarou que seriam “focos de insuportáveis esperanças das
letras”, acostumando “o espírito à estreiteza das igrejocas em que o elogio mútuo
cria irredutíveis pedantes e pretensiosos mestrúnculos de sinagogas improdutivas,
em que se cultiva a flor da retórica convencional”.192
Severiano de Rezende fez observações concernentes à prosa de Machado de
Assis. Aparentemente elogiando o fundador da Academia Brasileira de Letras,
logrou o efeito inverso:
Há Machado de Assis: a gente o lê confiantemente, a sua psicologia
calma calça uma forma elegante, e a sua linguagem, que é dele,
podia ter por divisa o in médio consistit virtus, que, se não
entusiasma, não escandaliza. É o único prosador honesto que temos
e o único observador de almas que possuímos. Mas não é um
profundo.193
As duas falas combinadas a comentários contra “o pedantismo inativo do
medalhão e a maçonaria nula das coteries”, além da avaliação negativa que fez do
estilo de José Veríssimo, também membro fundador da Academia Brasileira de
Letras,194 poderiam ter sido interpretados como críticas a essa instituição literária. E
parece que assim o foram. A tensão entre Severiano e a Academia Brasileira de
Letras continuou mais acirrada após o fracasso da campanha do escritor mineiro
para obter uma cadeira na instituição em 1905. A atitude de Severiano deve ter
contribuído para que a entrada de Alphonsus de Guimaraens na ABL fosse barrada.
Os dois poetas mineiros estavam ligados por laços de amizade e as ações de
192
REZENDE apud RIO, 1994, p. 130.
REZENDE apud RIO, 1994, p. 131.
194
Na entrevista, Severiano disse que “José Veríssimo arqueia-se sisificamente sob as densas
arroubas dos seus períodos plúmbeos, eriçados de ângulos.” REZENDE apud RIO, 1994, p. 132.
193
91
Severiano podem ter prejudicado a candidatura de Alphonsus, apesar deste contar
com defensores.195
Os dois simbolistas podiam não ser muito conhecidos da maioria dos leitores
daquela época, mas não eram desconhecidos nos meios intelectuais. De fato, há
vários registros que comprovam isso. Entre esses registros, podemos citar um rico
anedotário acerca de Severiano de Rezende e a colaboração dos dois escritores nos
mais importantes periódicos do país.
Antes mesmo de ir para o Seminário de
Mariana, Severiano de Rezende já tinha renome entre os colaboradores de jornais,
principalmente os de São Paulo. Uma crônica de Olavo Bilac publicada na coluna
“Diário do Rio” d’ O Estado de S. Paulo, em 17 de janeiro de 1898, abordava
justamente a decisão de Severiano de deixar a vida mundana para se tornar padre.
Pouca gente, em S. Paulo, não se lembrará do belo poeta e
do belo moço que foi Severiano de Rezende, que ontem abracei
aqui, revestido da batina severa, transformado, outro homem, outra
fisionomia, outra face, outra alma... A esta hora, vai ele a caminho da
triste e deserta Mariana. E, agora, começo a lembrar-me daquele
Severiano de outrora, turbulento, transbordante de talento e de
alegria, dado aos escândalos da vida boêmia, vivendo para o Sonho
e para a Blague, sacerdote do Paradoxo, achando que a glória de ser
Papa não valia a glória de ter composto um soneto perfeito.
Quando me disseram que o poeta, repentinamente, mudando
de vida, contrariando a família e amigos, abalara para um Seminário,
decidido a fazer-se padre, confesso que, como todos, supus que isso
fosse um novo capricho, uma nova originalidade, uma nova
blague.196
Este texto deixa explícita a amizade entre Bilac e Severiano de Rezende que
duraria por muitos anos, até mesmo depois que o poeta mineiro passou a viver na
195
O nome de Alphonsus de Guimaraens foi aventado para membro da Academia Brasileira de Letras
em dois momentos, mas ele nunca concorreu a uma cadeira. A primeira campanha no sentido de
promover a sua eleição foi articulada por José Severiano de Rezende e Alberto Ramos em 1916. A
outra campanha visando a ocupação do assento deixado vago com a morte de Olavo Bilac foi
iniciada em 1919 por Heitor Guimarães no Jornal do Comércio, de Juiz de Fora, e continuada por
Manuel Bandeira nas páginas do Correio de Minas. O artigo de Bandeira, um imenso elogio ao autor
de Kiriale, marca o início da releitura crítica do simbolista mineiro pelos modernistas. Cf. BANDEIRA
apud GUIMARAENS FILHO, 1995, p. 359-369. Antônio Torres também se engajou na causa da
eleição de Alphonsus de Guimaraens para a ABL, publicando uma carta aberta na imprensa. Cf.
TORRES apud RESENDE, [19 - -], p. 32-34.
196
BILAC apud DIMAS, 2006, v. 2, p. 238.
92
França. A crônica de Bilac também evidencia que as relações entre os simbolistas
mineiros e os parnasianos não foram sempre de oposição. Pelo contrário.
Alphonsus, por exemplo, manteve relações de amizade com poetas parnasianos,
demonstrando uma discordância elegante e discreta em relação ao Parnasianismo.
Ao falar da poesia brasileira do começo do século XX, José Severiano de
Rezende listou os grandes poetas da época, incluindo, na relação, tanto os
simbolistas Alphonsus de Guimaraens e Cruz e Sousa, como alguns parnasianos,
distribuindo elogios a todos.
[...] Alphonsus de Guimaraens é um gênio, Bilac o primeiro,
Raimundo e Alberto também primeiros, Luís Delfino é o incomparável
nababo da poesia, Cruz e Souza teve influência, Emílio de Menezes
pode ser chamado o mestre boêmio do soneto, B. Lopes é adorável
na sua pose, [...]197
Também Alphonsus deu provas de consideração pelos parnasianos. Como
bem salientou Alphonsus de Guimaraens Filho, seu pai demonstrou uma
“preocupação de não ser sectário” ao incluir um poema de Bilac nas páginas do
jornal O Conceição do Serro, como forma de homenagear um movimento ao qual se
opusera literariamente.198
Quando voltou para Minas em 1893, Alphonsus de Guimaraens estabeleceu
contato com Raimundo Correia, que, como já dissemos, residia em Ouro Preto
naquela época.199 Eles tinham um amigo em comum, Lucindo Filho, cultor das letras
e diretor do jornal Vassourense, da cidade de Vassouras, no Rio de Janeiro. Tanto
Alphonsus quanto Correia foram colaboradores desse jornal que tinha repercussão
na província literária. O jornal também contou com a colaboração de outros
escritores de renome como os parnasianos Olavo Bilac e Alberto de Oliveira.200
Assim, como sempre acontece, os intelectuais de um determinado período histórico
tecem redes de amizade e parceria, ainda que estejam, muitas vezes, separados no
197
REZENDE apud RIO, 1994, p. 132.
GUIMARAENS FILHO, 1995, p. 158.
199
GUIMARAENS FILHO, 1995, p. 209.
200
ALPHONSUS, 1960, p. 37.
198
93
terreno das ideias ou que não partilhem as mesmas concepções sobre o fazer
literário. O olhar do futuro, aquele do crítico ou do historiador, separa-os ou
aproxima-os com variados critérios e, frequentemente, despreza relações que
ajudam a criar o perfil de determinada geração de escritores.
O biógrafo de Raimundo Correia, Waldir Ribeiro do Val, colocou Alphonsus,
Archangelus e Horácio Guimarães entre os escritores que principiaram o movimento
literário da Faculdade Livre de Ouro Preto.
Raimundo Correia deve ter acolhido paternalmente esses
jovens de valor. Afonso de Guimarães era já seu conhecido, pelas
publicações em jornais, desde 1888, quando ambos colaboravam no
Vassourense. Arcanjo estava surgindo agora, nos jornais, e prometia
bastante.201
Alphonsus de Guimaraens chegou a se apropriar de um verso de Raimundo
Correia, estabelecendo algumas modificações no mesmo e o incluindo em um dos
sonetos que escreveu sob o pseudônimo de João Ventania. O respeito pelo
parnasiano, chamado de mestre, aparece na nota que Alphonsus colocou no final:
“Desculpe-me, mestre Raimundo, a variante do seu belo verso”.202 A pose de
discípulo deixa entrever uma formação literária que também incluía a leitura dos
poetas que se filiavam ao Parnasianismo. Leituras que não se limitavam aos autores
brasileiros como se pode verificar em várias ressonâncias dos parnasianos
franceses, sobretudo Leconte de Lisle, Heredia, Banville, Sully-Prudhomme e
François Coppée em sua poesia e a presença de livros desses autores na sua
biblioteca.203 Esse aprendizado da poesia parnasiana por Alphonsus de Guimaraens,
201
VAL, 1960, 126.
Cf. GUIMARAENS FILHO, 1995, p. 209. O verso de Raimundo Correia é “Mas, sem nada dizer,
disseste tudo!”, do soneto “Despedidas”. Alphonsus o transformou em “E sem nada dizer, diz-lhe bem
tudo...” Cf. soneto “Velha anedota”. In: GUIMARAENS, 1960, p. 590.
203
Uma idéia abreviada da biblioteca de Alphonsus de Guimaraens encontra-se em um apêndice da
tese de Arline Anglade-Aurand (1970). Além dos autores parnasianos que Aurand menciona como
tendo influenciado o poeta simbolista, a sua biblioteca contava ainda com várias obras de Catulle
Mendès. Cumpre lembrar que Arline Anglade-Aurand esforçou-se bastante para comprovar inúmeras
influências francesas que Alphonsus de Guimaraens teria sofrido. Algumas dessas influências
realmente podem ser notadas, outras parecem menos evidentes ou mais improváveis. A lista de
autores que ela elenca no decorrer do trabalho é longa e aparece parcialmente resumida nas
202
94
ocorrido principalmente na juventude, foi classificado por Arline Anglade-Aurand de
“imitação” dos modelos franceses (AURAND, 1970, 258). Preferimos, no entanto,
nos valermos de um outro conceito mais produtivo para compreender a relação de
Alphonsus com os escritores com os quais dialogava: o de textos “escriptíveis”.
Antoine Compagnon coloca a questão formulada por Barthes, autor do conceito,
nesses termos:
[...] quais são os textos que, ao escrever, eu desejaria reescrever?
Aqueles que Roland Barthes chamava de “escriptíveis” quando
perguntava: “Que textos eu aceitaria escrever (reescrever), desejar,
levar adiante como uma força nesse mundo que é o meu? O que a
avaliação encontra é este valor: o que pode ser hoje escrito
(reescrito) – o escriptível. Há sempre um livro com o qual em seu
duplo sentido, o da narrativa (da recitação) e o da ligação (da
afinidade eletiva). Isso não quer dizer que eu teria gostado de
escrever este livro, que o invejo, que o recopiaria de bom grado ou o
retomaria por minha conta, como modelo, que o imitaria, que o
atualizaria ou citaria por extenso se pudesse; isso também não
demonstraria o meu amor por esse livro. Não, o texto que para mim é
“escriptível” é aquele cuja postura de enunciação me convém (o que
cita como eu).204
Este conceito pode ser aproximado da perspectiva de leitura que Luciana
Stegagno Picchio adotou para a prática poética de Alphonsus de Guimaraens.
Segundo esta autora, o poeta foi um “simbolista indisciplinado” em relação aos
modelos europeus:
[...] no sentido de que ele conseguiu traduzir em uma poesia original,
ao mesmo tempo brasileira e exclusivamente sua, os modelos
obtidos durante o seu transfert francês, misturando-os, quase
inconscientemente, na construção do seu novo edifício. Verlaine, é
verdade, mas também Baudelaire, Mallarmé, Rimbaud, Heine e
Stecchetti. E é assim que entra neste nosso discurso, através da
porta das afinidades eletivas e da reutilização dos modelos, o
conceito de tradução: tradução como adesão, formal antes de tudo,
conclusões: Baudelaire, Villon, Ronsard, Nerval, Musset, Verlaine, Corbière, Laforgue, Mallarmé,
Rodenbach, Maeterlinck, Rimbaud, Taillade, Banville, Leconte de Lisle, Hérédia, Sully Prud’homme,
François Coppée, Villiers de l’Isle Adam e Henri de Régnier. Cf. ANGLADE, 1970, p. 353.
204
COMPAGNON, 1996, p. 32.
95
às experiências estéticas amadurecidas dentro de um mesmo
paradigma cultural e estético. Tradução como recriação original,
como captação dentro de um universo poético particular, de
invenções de outrem: ante litteram, se quisermos, o make it new de
Ezra Pound. 205
A indisciplina de Alphonsus em relação aos mestres assumiu, contudo, uma
feição discreta. O poeta mineiro modificou o verso de Raimundo Correia, mas não
sem se desculpar. A discordância se dava, porém, de maneira leve e bem-humorada
pelo que se depreende das palavras do próprio simbolista em carta escrita em 27 de
abril de 1893 ao amigo Freitas Valle (Jacques d’Avray). Portanto, no período em que
Alphonsus era estudante de Direito em Ouro Preto.
Tenho estado com o Raimundo Correia, que é meu apreciador e se
queixa estar desanimado a escrever versos, visto a nossa fase de
poesia. Venha para o meu lado, disse-lhe eu; imodestamente, como
um chefe de escola. É esse luxo que vês.206
Como já mencionamos anteriormente, estas relações com os parnasianos
não foram sempre assim. Em Belo Horizonte, as divergências se exacerbaram
principalmente entre Álvaro Viana e Mendes de Oliveira, os líderes dos movimentos
simbolista e parnasiano respectivamente. As polêmicas entre os dois foram
constantes e revelam como a modernidade poética era interpretada de maneira
distinta por eles. Em 1902, Viana e Oliveira contenderam a partir da publicação da
revista Horus. Nos textos, podemos notar que além do referencial literário no sentido
estrito, os autores também se valiam de um referencial teórico que procedia,
geralmente, dos estudos realizados nos cursos superiores, logo, com a orientação
205
PICCHIO, 1995, p. 227, tradução nossa. No original: “[...] nel senso que egli riuscì a tradurre in una
poesia originale, insieme brasiliana e unicamente sua, i modelli attinti durante il suo transfert francese,
mescolandoli quase inconsciamente, nella construzione del suo nuovo edificio. Verlaine, è vero, ma
anche Baudelaire, Mallarmé e Rimbaud: e Heine e Stecchetti. Ed è così che entra in questo nostro
discorso, e attraverso la porta delle affinità elettive e del riuso dei modelli, il concetto di traduzione:
traduzione come adesione, formale anzitutto, ad esperienze estetiche maturate entro uno stesso
paradigma culturale ed estetico, traduzione como ricreazione originale, come captazione entro un
proprio universo poetico, di invenzioni altrui: ante litteram, se vogliamo, il make it new di Ezra Pound.”
206
GUIMARAENS apud BUENO, 2002, p. 4.
96
predominantemente positivista, evolucionista, naturalista. Assim, vemos como as
leituras realizadas nos cursos de Direito acabavam interferindo na produção literária.
As críticas feitas por Álvaro Viana aos parnasianos eram, às vezes, indiretas. Por
exemplo, em uma crônica publicada no jornal A Época, ele atacou a poesia
científica, gênero cultivado pelo parnasiano Augusto de Lima. O trecho também
revela, através de uma alusão a um verso do poema “Arte poética”, de Verlaine, uma
compreensão da poesia e do Simbolismo muito mais próxima da simplicidade e
emocionalismo que defendia este poeta francês do que o hermetismo pregado por
Mallarmé:207
A poesia é o sentimento e melhor poeta será o que melhor
sentir [...]
E talvez por assim pensar, nunca pude tolerar a tal POESIA
CIENTÍFICA, coberta de pó de arroz, hipócrita e desengonçada, que
mais parece uma megera de avental e óculos lambuzando-se nos
laboratórios de química e de quanta ciência se constituiu
burguesmente até hoje.208
Este tema já havia aparecido na polêmica com Mendes de Oliveira que
acreditava que “a arte deve sempre acompanhar a marcha da ciência, em todas as
suas evoluções”.209 A terminologia não deixa nenhuma dúvida quanto a uma
interpretação da literatura a partir de um referencial teórico evolucionista,
cientificista. Além do mais, a arte deveria instruir e não apenas agradar, passando
do coração ao cérebro, da alma à inteligência.210
207
A divisão dos grupos de poesia vanguarda no final do século XIX entre decadentistas e simbolistas
foi assim analisada por Joseph Jurt: “Se os simbolistas se valem de Mallarmé e da busca da idéia
absoluta através da poesia, os decadentistas recorrem a Verlaine e à sua preocupação de exprimir a
emoção. [...] A opção por uma poesia que se volta para a busca da idéia pura parece constituir uma
escolha mais radical, mais absoluta que o da expressão musical de emoções mais ligada ao
Romantismo.” JURT, 1986, p. 25, tradução nossa. No original: “Si les Symbolistes se réclament de
Mallarmé et de la recherche de l’idée absolue à travers la poésie, les Décadents se réfèrent à
Verlaine et à sa préoccupation d’exprimer l’émotion. [...] L’option pour une poésie à la recherche de
l’idée pure semble constituer un choix plus radical, plus absolu que celui de l’expression musicale
d’émotions davantage rattachée au romantisme.”
208
VIANA, Álvaro. Prefácio. A Épocha, 2 nov. 1905, p. 2.
209
OLIVEIRA apud CAROLLO, 1980, v. 1, p. 415.
210
OLIVEIRA apud CAROLLO, 1980, v. 1, p. 416.
97
Comparando a produção parnasiana com a simbolista, Mendes de Oliveira
escreveu:
Se alguém abrir um livro de versos dos chefes do
parnasianismo brasileiro, irá beber aí muitos e muitos conhecimentos
de história, ciências naturais, etc., etc.
No livro de um decadente não se aprende coisa nenhuma; ao
fim da última página, o leitor sente a cabeça vazia de idéias, e a
alma, de sentimentos.211
Mais adiante, no mesmo texto, Oliveira se valeu de uma opinião de Leconte
de Lisle na tentativa de levar os simbolistas ao descrédito junto ao público.212
Sobre a linguagem dos simbolistas é bastante conhecida esta
opinião de Leconte de Lisle: “Deitem-se em um chapéu advérbios,
conjunções, preposições, substantivos, adjetivos, tirem-se ao acaso
e escrevam-se; sairão simbolismo, decadentismo, instrumentalismo e
todas as trapalhadas que deles procedem.”213
O caráter da linguagem simbolista era negativamente interpretado. Oliveira
acusava os poetas simbolistas de desrespeitadores das “leis da língua”, de não
conhecerem a estética e o “mecanismo da forma”, ou seja, eram “anarquistas das
letras”.214 Esta sua argumentação foi assim sintetizada em uma carta de Álvaro
Viana a Freitas Valle:
[...] o literato começou a fazer-me referências muito claras, em artigo
que ele intitulou – Aberração literária – onde éramos tratados de
bestas, ignorantes, doidos, deturpadores da grandeza, degenerados,
etc, e Paul Verlaine, Mestre Alphonsus, d’Avray eram comparados
211
OLIVEIRA apud CAROLLO, 1980, v. 1, p. 416.
É interessante notar como a crítica de Leconte de Lisle em relação aos simbolistas foi, anos mais
tarde, apropriada de forma positiva por Tristan Tzara na sua receita do poema dadaísta.
213
OLIVEIRA apud CAROLLO, 1980, v. 1, p. 417.
214
OLIVEIRA apud CAROLLO, 1980, v. 1, p. 417.
212
98
aos degenerados de que fala Lombroso ou antes do que falou a
besta do Max Nordeau (sic).215
Álvaro Viana, como bom polemista que era, ridicularizou as doutrinas literárias
de Mendes de Oliveira, realçando e deformando a sua direção evolucionista: “[...]
escreve o esperançoso vate muitas e muitas linhas que nada querem dizer, como,
por exemplo, ‘pequenas oscilações e movimentos sem influência na filosofia
evolucionista da Arte’”.216
Em 1905, o jornal A Época, onde trabalhava Álvaro Viana, publicou uma
resenha pouco favorável ao livro Jogos florais, de Mendes de Oliveira. O parnasiano
a considerou ofensiva e deu continuidade à antiga polêmica. Os textos de A Época
retomavam alguns pontos das contendas surgidas em torno da revista Horus.
Neles, foram indicados vários defeitos dos versos de Mendes de Oliveira. Entre eles,
problemas de linguagem. Assim, o poeta que havia acusado os simbolistas de
desrespeitar a língua se tornou vítima de idêntica acusação. Ao mesmo tempo, ele
foi representado como uma pessoa que fingia sabedoria científica e literária, mas
que seria, na verdade, um ignorante.217
Os parnasianos, os prosadores ligados ao realismo-naturalismo e os críticos
simpatizantes das teorias positivistas e evolucionistas dominavam a Academia
Brasileira de Letras e as academias estaduais. Por esse motivo, tinham poder de
atribuir valores aos trabalhos literários. Alphonsus de Guimaraens e Severiano de
Rezende tinham amigos entre os acadêmicos, mas isso não foi suficiente para
serem admitidos na instituição. Severiano conhecia pessoalmente Machado de Assis
e participou de encontros do cenáculo da Garnier, segundo um texto de LugnéPoë,218 publicado pela Revue Bleue, em 1932, e resumido desse modo por Pierre
Rivas:
215
VIANA apud CAROLLO, 1980, v. 1, p. 409. No Brasil, Cesare Lombroso (1835-1909) foi uma
referência para as áreas da Antropologia e da Criminologia, mas suas ideias reverberaram em outras
áreas do conhecimento e nas artes. Já Max Nordau (1849-1923) teve importância para certa crítica
literária de base evolucionista.
216
VIANA apud CAROLLO, 1980, v. 1, p. 405.
217
TRÉPLICA. A Época, Belo Horizonte, 29 out. 1905, p. 1.
218
Aurélien Lugné-Poë (1869-1940) foi um ator e diretor francês que esteve à frente do movimento
simbolista no teatro. Fundou, junto com Camille Mauclair, Maurice Maeterlink e Édouard Vuillard o
99
O autor evoca Nabucho (sic) em torno de quem se agrupavam
homens inteligentes, audazes, abertos ao espírito moderno, como
Domício Gama, Graça Aranha, Machado de Assis, Severiano de
Resende (sic), “espírito raro e, ainda por cima, padre”... As reuniões
se realizavam na velha livraria Garnier à rua do Ouvidor.219
No entanto, Severiano de Rezende estava mais à vontade no grupo de Olavo
Bilac que se reunia na Colombo. Por meio de referências breves e elípticas
encontradas na correspondência de Machado de Assis com Joaquim Nabuco,
Leopoldo Comitti notou relevantes aspectos sobre a eleição de 1905 em que
concorreram Severiano de Rezende, Domingos Olímpio e Mário de Alencar a uma
cadeira na Academia. Segundo Comitti, elas “nos sugerem um impasse, uma
situação problemática tecida por incontáveis jogos de interesses envolvendo não
apenas afinidades pessoais e políticas, mas também o controle da instituição”.220 A
eleição se deu no mesmo ano em que foi publicado o livro de João do Rio com a
referida entrevista de Severiano de Rezende. As inimizades, as divergências
ideológicas e literárias contribuíram para o resultado em que saiu vencedor o
protegido de Machado de Assis, o poeta Mário de Alencar. Alusões, ironias e
reticências envolvendo essa disputa ficaram registradas na correspondência de
Alphonsus de Guimaraens com Mário de Alencar. Algumas das alusões e ironias de
Alphonsus são disfarçadas entre manifestações de apreço e de elogios a Mário de
Alencar. Entre os temas dessas cartas estavam a eleição de 1905, as relações
afetivas entre Mário de Alencar e Machado de Assis e o valor das obras literárias.
Combinados, esses temas expressavam, no fundo, uma crítica de Alphonsus à
política literária da Academia Brasileira de Letras.221
Os três tipos de rede classificados segundo o grau de institucionalização se
misturavam na relação de Mário de Alencar com Alphonsus de Guimaraens: a
Théâtre de l’Oeuvre que foi inaugurado com a peça Pelléas et Melisande, de Maeterlink. Ele assumiu
o papel de “missionário do Simbolismo” ao realizar várias turnês com encenações de Ibsen e
Maeterlink. O texto de Lugné-Poë mencionado por Rivas referia-se a uma visita da atriz Eleonora
Duse ao Brasil. Sobre as turnês de Lugné-Poe, ver CASANOVA, 1999, p. 225-226.
219
RIVAS, 1995, p. 217.
220
COMITTI, 1999, p. 21. Sobre os jogos de interesses envolvidos nessa eleição da Academia
Brasileira de Letras, Cf. BROCA, 2005, p. 103-106.
221
Cf. COMITTI, 1999, p. 27.
100
amizade (rede informal), a relação com a instância de legitimação literária
representada pela Academia Brasileira de Letras (rede institucionalizada) e a
participação na Revista Brasileira (rede semi-institucionalizada). Considerada como
a antecâmara da Academia Brasileira de Letras, a Revista Brasileira teve
colaboradores de peso como Afonso Arinos, Araripe Júnior, Sílvio Romero, Coelho
Neto, Raul Pompéia, Joaquim Nabuco, Euclides da Cunha, Machado de Assis,
Graça Aranha e Raimundo Correia. Era uma publicação que valorizava e divulgava a
poesia parnasiana. A Revista Brasileira não se restringia à literatura ou à crítica
literária, dando espaço para artigos de caráter científico que abrangiam, entre outras
áreas, a História do Brasil, a Filologia, o Direito, a Engenharia, a Saúde, a Botânica e
a Antropologia. Os autores que publicavam nesse periódico procuravam abordar a
realidade nacional baseando-se nos princípios cientificistas daquela época, com
muita sisudez intelectual. Uma seriedade que também era exigida dos membros da
Academia Brasileira de Letras, em oposição às posturas dos intelectuais que se
entregavam à vida boêmia.222
De acordo com Francine Ricieri, a influência de Mário de Alencar foi “decisiva”
para que José Veríssimo, diretor da revista, publicasse, em 1898, os 44 poemas da
tradução completa da Nova Primavera, de Heine, feita por Alphonsus de
Guimaraens por meio da versão francesa de J. Daniaux.223 Além dessa tradução, a
Revista Brasileira publicou as seguintes obras de Alphonsus de Guimaraens:
“Cantigas e voltas”, “Árias e canções”, “Citarpa” e “Elias”. Em 1899, Mário de Alencar
também ajudou a publicar Setenário das dores de Nossa Senhora e Câmara
ardente, responsabilizando-se pelo acompanhamento da edição feita pela Tipografia
Leuzinger.224
Uma faceta desse intercâmbio literário foi o do aprendizado poético
envolvendo a afirmação de individualidades artísticas. Nas cartas, Mario de Alencar
enviava sugestões, avaliando a qualidade de certos versos e adotando, em alguns
trechos, uma postura pedagógica. A atitude de Alphonsus de Guimaraens foi a de
mostrar, educadamente, a sua independência em relação ao processo de
doutrinação antissimbolista que Mário pretendia. As críticas negativas de Mário
222
DIMAS, 1994, p. 557.
RICIERI, 1996, v. 1, p. 26.
224
RICIERI, 1996, v. 1, p. 26 e GUIMARAENS FILHO, 1995, p. 74.
223
101
pareciam reflexos das que José Veríssimo fez à poesia de Alphonsus.225 Algo como
um recado indireto do crítico para que o poeta mineiro mudasse de direção.
Na carta que Alphonsus de Guimaraens escreveu para Mário de Alencar no
dia 2 de agosto de 1908, há uma resposta a essa doutrinação disfarçada em
sugestões e comentários:
Concordo com muitos dos teus reparos. O soneto “A um amante” não
me agrada absolutamente. Só se salva dele, talvez, a primeira
quadra. Aquele abismo fatal da sepultura está mesmo pavoroso.
“Vórtice perene”, no entanto, não acho de todo mau. Melhor seria
que eu tivesse escrito – num turbilhão perene de vertigem.
Conversemos sobre os outros sonetos. Foste para muitos de uma
generosidade que cativou o meu amor-próprio de artista; para alguns
mostraste a má vontade que tens a uma escola a que me filiei, mas
da qual tenho aproveitado o que há nela de bom e razoável, sem
exageros pindáricos, nem alcandorações gongóricas... Quanto ao
que me dizes sobre “Vendo-te rezar”, muito bem. Envio-te alterado, e
mesmo assim não o suponho perfeito. Notaste tudo quanto nele
havia de pior. – “O Caronte infernal etc.” Dando a impressão de
ilusório a Létis, isto é, vão, falso, quis dizer com o 3o e 4o versos que
o inferno, o purgatório estão neste mundo, – ideia, aliás, já velha.
Num soneto de tão amargo pessimismo não acho descabido o
qualificativo inglório dado ao sol. Fantasma atroz está mesmo
ruim.226
O texto de Alphonsus deixa bem claro que as críticas de Mário de Alencar se
referiam geralmente ao vocabulário e às imagens simbolistas. Segundo Alphonsus
de Guimaraens Filho, a correspondência entre os dois escritores foi diminuindo
exatamente porque Mário de Alencar repetia um “apelo” para que Alphonsus de
Guimaraens não se entregasse aos “prejuízos e exageros do Simbolismo”.227 Em
carta de 20 de julho de 1908, Mário de Alencar, apesar de se declarar apreciador
dos versos de Alphonsus, teceu comentários sobre eles que explicitam a sua
oposição ao Simbolismo.
225
Cassiana Lacerda Carollo (1980, v.1, p.364), denominou José Veríssimo de “‘porta voz’ do
antagonismo ‘oficial’” ao Simbolismo no Brasil.
226
GUIMARAENS apud BUENO, 2002, p. 12.
227
GUIMARAENS FILHO, 1995, p. 76.
102
“Vendo-te Rezar” – Não gosto de luar de desamparo, entre
mágoas suaves, ave... abraçando a amplidão, em verde alfombra,
aquela sombra, o pôr-do-sol, agonizante e rubro, caiu, íngremes
encostas. Belo, o último terceto. O mais está desigual, com
expressões incolores, abstratas, velhas, impróprias. Valeria a pena
refundir o soneto para salvar o final.228
De “Quem Vem Lá?”, Mário de Alencar rejeitou o último verso (“sem um
ossuário que me esconda os ossos”) e desprezou totalmente “Lírios” e “Minh’Alma é
um branco ossuário”, considerando-os “insinceros, artificiais”. Segundo Alencar,
seria preciso eliminar da poesia de Alphonsus “os lírios, círios e martírios”.229
Apesar da preleção anti-simbolista de Alencar não ter produzido efeito sobre a
orientação literária de Guimaraens, suas palavras parecem ter estimulado o
aperfeiçoamento dos versos do poeta mineiro. Por exemplo, o soneto “XXXIII”, da
Pastoral, criticado por Alencar, foi modificado na versão definitiva.
Os destaques dados por Mário de Alencar ao vocabulário ligado ao universo
religioso mostravam um leitor mais impaciente com o conteúdo do que com a forma,
o que coincide com a leitura que José Veríssimo fez de Setenário das Dores de
Nossa Senhora. Para este crítico, tratava-se de obra de devoção religiosa, o que era
uma maneira de desconsiderar o seu caráter literário. Ainda de acordo com José
Veríssimo, o Setenário das Dores de Nossa Senhora “podia ser adotado como livro
de reza, se uma ou outra vez a ‘literatura’ não o traísse, o poeta não prevalecesse
ao crente e se não fora a ímpia alusão final ao ‘Mosteiro de Verlaine’, em que
quisera oficiar”.230 Em sua crítica, Veríssimo apontou ainda uma falta de sentido no
soneto “Mãos que os lírios invejam, mãos eleitas” e a presença de “uma melodia
cantante e dolente, como certos hinos litúrgicos” no livro de Alphonsus.
228
ALENCAR apud GUIMARAENS, 2001, p. 556.
ALENCAR apud GUIMARAENS, 2001, p.556.
230
VERÍSSIMO apud GUIMARAENS, 2001, p. 564. Nesta citação, fica evidente uma acusação de
filiação à poética de Verlaine. Convém lembrar a opinião de Veríssimo sobre Verlaine. Para o crítico
brasileiro, apesar de “todo o seu catolicismo” e de “seu grande talento poético”, Verlaine “era um
crápula”. VERISSIMO apud GUIMARAENS, 2001, p. 564.
229
103
E os dois últimos versos do segundo quarteto não querem
positivamente dizer nada, mas na poesia nova é um defeito comum
esta insignificação das palavras, que a tornam antipática aos
espíritos que ainda pensam que se escreve para dizer alguma coisa
e que é preciso que as palavras signifiquem alguma coisa.231
Como se sabe, o Parnasianismo pregava a precisão vocabular (mot juste), as
formas fixas, a perfeição técnica e a correção gramatical. Já o Simbolismo buscava o
vago, o impreciso na linguagem e um maior experimentalismo na poesia, com a
utilização de ritmos fluidos e o uso de metrificação variada ou do verso livre. É
preciso lembrar ainda que Machado de Assis, ao lado do amigo José Veríssimo,
desempenhou um papel de relevo na divulgação dos princípios parnasianos no
Brasil. De acordo com Péricles Eugênio da Silva Ramos, Machado de Assis
[...] foi figura de influência na transição do realismo para o
parnasianismo, não só por meio de seu aconselhamento a Alberto de
Oliveira, como por meio de sua doutrina formal, por ele exposta em
artigos, cartas e prefácios: envolvia ela, entre outros pontos, as
exigências de correção métrica e gramatical, a precisão vocabular e
a sobriedade no uso das figuras, particulares esses que mais tarde
constituiriam a espinha da doutrina formal parnasiana, tal como
aceita e praticada pelos poetas mais representativos da corrente. 232
A opinião de José Veríssimo sobre o Simbolismo era compartilhada por
Machado de Assis. Por outro lado, como já dissemos antes, José Veríssimo e
outros colaboradores da Revista Brasileira buscavam refletir sobre a identidade
cultural brasileira através de uma perspectiva cientificista. Para esses
intelectuais, o valor literário de uma obra estava relacionado à maior ou menor
capacidade de representação da realidade nacional. A partir disso, o que
consideravam ser mera cópia de modelos estrangeiros era desmerecido.
Veríssimo, por exemplo, julgou que o livro Broquéis, de Cruz e Souza, era uma
“imitação falha de Baudelaire, modificado pelo poeta de Fêtes galantes”
231
VERÍSSIMO apud CARA, 1983, p. 63.
RAMOS, 1994, p. 321.
233
VERÍSSIMO apud CARA, 1983, p. 62.
232
233
e
104
que o Simbolismo brasileiro era algo “canhestro”, sem sinceridade, “todo de
imitação, todo artificial”.234 Ainda segundo Veríssimo, este movimento literário
era uma forma de reação estética (“o Simbolismo é também uma reação contra
a perfeição do Parnasianismo”), 235 mas também ideológica (“reação idealista”).236
A associação entre Idealismo e Simbolismo convertia-se, no caso da leitura da
obra
de
Alphonsus
de
Guimaraens,
Idealismo/Simbolismo com o Catolicismo.
em
uma
associação
do
A condenação do Simbolismo de
Alphonsus também foi feita por Sílvio Romero e consistia numa identificação
dos versos que abordavam temas religiosos com um idealismo conservador, isto
é, na associação dessa poesia a uma reação contra os valores e ideais da
geração de 1870. Assim, tanto Veríssimo como Romero recomendaram aos
escritores um afastamento dos “exageros” do Simbolismo. Romero declarou que
seria necessário colocar de lado “as ladainhas” de Bernardino Lopes e
Alphonsus de Guimaraens para o desenvolvimento do Simbolismo no Brasil.237
Já Veríssimo afirmou que, se Guimaraens se livrasse “dos exageros e
extravagâncias fatais em todo movimento de reação como é o simbolismo”, a
poesia brasileira poderia “ter nele um digno cultor”.238 De outro modo, se
continuasse a seguir uma corrente que não levava a nada, Alphonsus de
Guimaraens seria mais um “estro perdido para a nossa poesia”. 239
Uma vez que as instâncias oficiais de consagração literária da capital do país
eram contrárias aos simbolistas, foi no ambiente da boemia e dos periódicos que
eles encontraram espaço para se manifestar. Foram sendo criadas possibilidades
expressivas em uma série de periódicos, simbolistas ou não-simbolistas, muitos dos
quais impressos fora do Rio de Janeiro. A edição desses periódicos era uma
estratégia de inserção no meio intelectual. Através de seus textos, os escritores
simbolistas defendiam as suas idéias, publicavam as suas experimentações poéticas
e divulgavam os seus nomes. Logo que adquiriam alguma notoriedade por seu
trabalho na imprensa, lançavam livros que circulavam pelos cenáculos simbolistas
brasileiros situados no Rio ou nas províncias.
234
VERÍSSIMO apud CARA, 1983, p. 63.
VERÍSSIMO apud CARA, 1983, p. 66.
236
VERÍSSIMO apud CARA, 1983, p. 66.
237
GUIMARAENS, 2001, p. 560.
238
VERÍSSIMO apud CAROLLO, 1980, v. 1, p. 371.
239
VERÍSSIMO apud RICIERI, 1996, v. 1, p.74.
235
105
Cassiana Lacerda Carollo salientou que, em São Paulo, ocorreu uma
gestação do Simbolismo anterior ou paralela à do grupo da Folha Popular, no Rio de
Janeiro.240 Uma nova sensibilidade e uma nova visão de mundo idealista estavam se
formando como reação ao materialismo e aos valores burgueses. No fim do século
XIX, os jovens poetas sentiram o esgotamento da poesia objetiva e descobriram um
novo caminho a partir das leituras de Baudelaire. Foi esse ambiente cultural que
Alphonsus de Guimaraens, Severiano de Rezende e outros escritores mineiros
encontraram ao chegar à capital paulista.
De acordo com Arline Anglade-Aurand, foi José Severiano de Rezende quem
introduziu Alphonsus de Guimaraens no meio jornalístico e literário da capital
paulista.241 Severiano já trabalhava no Diário Mercantil quando Alphonsus chegou a
São Paulo e também colaborava no Estado de São Paulo, no Correio Paulistano, no
Federação e em O Prego. Alphonsus de Guimaraens pôde, então, desenvolver uma
atividade jornalística em São Paulo. Ele assinava uma coluna intitulada “Spleen”, em
O Mercantil, e colaborava na coluna “Parnaso”, d’ O Estado de São Paulo. Já no
Correio Paulistano, publicou artigos e poemas.
O Diário Mercantil, que era dirigido por Gaspar da Silva e Léo de Afonseca,
era o jornal que dava mais espaço para a literatura na imprensa paulista e o que
melhor pagava. De acordo com Spencer Vampré, o Diário Mercantil tinha entre seus
colaboradores “as penas mais brilhantes de Portugal e do Brasil”, como Olavo Bilac,
Júlio Ribeiro, Sena Freitas, Teófilo Dias, Augusto de Lima e José Severiano de
Rezende.242
Nesse periódico, Severiano publicou um poema dedicado ao baudelairiano
Teófilo Dias que recebeu elogios do parnasiano Raimundo Correia. O jovem
Severiano de Rezende assinava suas crônicas para O Mercantil com o pseudônimo
de Emir. Muitas vezes, Emir se transformava em personagem e dialogava com Guy,
um dos pseudônimos adotados por Alphonsus de Guimaraens em suas crônicas e
poemas.
240
CAROLLO, 1977, p. 190.
AURAND, 1970, p. 78.
242
VAMPRÉ, 1977, v. 2, p. 313.
241
106
As crônicas de Alphonsus publicadas em O Mercantil revelam muito de suas
leituras naquele tempo e exibem uma imagem do meio intelectual paulistano sob a
ótica particular do poeta. Em uma delas, o cronista realizou uma bem-humorada
crítica de um evento ocorrido no Instituto Histórico, semelhante às palestras literárias
que estavam na moda na Belle Époque, e chamado por ele de “sarau artístico”. Em
pequenos flashes, ele mencionou os participantes do evento: escritores iniciantes e
de renome, entre os quais estava Wencesclau de Queirós,243 tratado ironicamente
por Guy.
Tem a palavra, ou antes, a lira, o decano dos poetas da
Paulicéia, o Sr. Wenceslau de Queirós. Empertiga-se, e dita o título:
a águia e o ideal. Em chegando a este ponto, a minha alma não pôde
mais. Boceja como um chinês bêbado de ópio. E soluça: tem
piedade, ó poeta, ó vate, ó diabo que te leva! Vai-te vate! Mas o Sr.
Wenceslau não a escuta. Continua e acaba. As palmas do estilo.244
Anos mais tarde, em carta escrita a Freitas Valle no dia 7 de março de 1900,
Alphonsus de Guimaraens abordou a sua experiência no ambiente cultural de São
Paulo, as suas inclinações literárias e o importante papel de Wenceslau de Queirós
na divulgação dos jovens escritores nos jornais O Mercantil e Correio Paulistano.
Quanto aos jornais em que colaborei de 91-94 são três: O Mercantil
(de cuja redação fiz parte, escrevendo Crônicas da Semana e a
seção diária Spleen [...], o Estado de São Paulo e o Correio
Paulistano, outrora campo onde se esgrimia literalmente o heróico
cantor W. de Queirós [...]245
243
Wenceslau de Queirós, um dos precursores do Simbolismo brasileiro, ficou conhecido por seus
versos de marcado satanismo. A poesia de Wenceslau de Queirós estava intimamente ligada à dos
“primeiros baudelairianos” como Teófilo Dias, Carvalho Júnior e Fontoura Xavier, mas principalmente
à de Teófilo Dias, a quem dedicou o seu poema “Nevrose”. Esses poetas exprimiam uma atitude de
rebeldia ao abordar temas relacionados à sexualidade e à política em suas obras. Para Péricles
Eugênio da Silva Ramos (1979, p. 215), o satanismo de Wenceslau de Queirós foi “o mais
desenvolvido e constante” do período de fim de século e início do século XX.
244
GUY, 1977, p. 321.
245
GUIMARAENS apud CAROLLO, 1977, p. 190.
107
Sobre a sua “evolução literária”, Alphonsus mencionou, na mesma carta, ter
passado por fases em que esteve inclinado à poesia oriental, à chinoiserie, ao
parnasianismo, do qual declarou ter conservado vestígios formais, e ao satanismo
baudelairiano, analisado por ele da seguinte maneira: “Fui satânico terrível no tempo
em que não compreendia o espírito essencialmente católico de Baudelaire. O que
sou hoje, melhor que ninguém dirás”.246 Esta análise é muito elucidativa. Podemos
supor que, quando escreveu Setenário das Dores de Nossa Senhora, Câmara
Ardente e Dona Mística, Alphonsus de Guimaraens entendia a poesia de Baudelaire
a partir de um prisma católico. Um texto de Alphonsus de Guimaraens publicado no
jornal Conceição do Serro em 1904 mostra claramente que esta chave de leitura
continuou sendo utilizada depois da publicação dos livros acima mencionados. Nele,
o simbolista mineiro posicionava Verlaine como o continuador de Baudelaire. Essa
interpretação da obra desses poetas franceses pode ter sido a responsável pela
transformação operada na poesia de Alphonsus.
Baudelaire é a alma atribulada pelo temor do inferno,
decantando os horrores de tudo quanto é o mal em versos dignos de
Dante; Verlaine é a alma que em doce serenidade alcança a paz
completa esparzindo em Sagesse e Bonheur páginas que parece
virem da Imitação de Cristo.247
Isso nos faz pensar que, no percurso literário de Alphonsus de Guimarães,
teria havido um processo de superação de Baudelaire que conservaria vestígios de
sua poética, melhor dizendo, uma suprassunção 248 baudelairiana.
Já em José Severiano de Rezende, a presença de Baudelaire é muito
evidente, tendo sido notada tanto por leitores brasileiros quanto por europeus.
Philéas Lebesgue, por exemplo, acrescentou outros elementos aos traços
baudelairianos para caracterizar a obra de Severiano: “Irmão espiritual de Santa
Teresa, ele é o herdeiro direto de Baudelaire e de Verlaine, e, às vezes, em sua
obra, os entusiasmos delirantes de Rimbaud se unem às visões dantescas, até
246
GUIMARAENS apud CAROLLO, 1977, p. 190.
GUIMARAENS apud GUIMARAENS FILHO, 1995, p. 153.
248
No sentido de Aufhebung: suprimir e conservar simultaneamente.
247
108
apocalípticas.”249 Em outro texto, Lebesgue comparou o livro Mistérios a uma
“verdadeira Divina Comédia dos tempos modernos”. Na primeira parte do livro, o
poeta teria percorrido “os círculos malditos” ao lado de Baudelaire e, com Verlaine,
teria passado pelo Purgatório.250
Retornemos à Alphonsus de Guimaraens. Devemos lembrar que São Paulo
foi o centro de difusão do romantismo byroniano através de Álvares de Azevedo,
Aureliano Lessa e Bernardo Guimarães. Que Alphonsus de Guimaraens tenha
Aureliano Lessa como patrono da cadeira que ocupou na Academia Mineira de
Letras é bastante sintomático de sua relação com essa linhagem poética. Na obra
de Alphonsus, podemos observar tanto ressonâncias das apropriações de Byron
realizadas pelos românticos brasileiros quanto apropriações que o próprio simbolista
mineiro fez do poeta inglês. Entre os livros da biblioteca de Alphonsus de
Guimaraens conservados, existe, por exemplo, uma edição francesa da poesia de
Lord Byron. Além disso, Freitas Valle, que Arline Anglade-Aurand supõe ter
emprestado volumes ao poeta mineiro, também possuía exemplares de Byron. Outro
aspecto interessante a ser mencionado é que o baudelairianismo de Alphonsus de
Guimaraens se deu, como para os outros baudelairianos brasileiros da segunda
metade do século XIX, mediada pelo byronismo. De acordo com Glória Carneiro do
Amaral, o satanismo baudelairiano
[...] insere-se na libertinagem do século XVIII francês, em que o Mal é
objeto de indagação metafísica. No Brasil, a assimilação tingiu-o de
uma coloração macabra. Terá contribuído para isso o byronismo que
assolou a nossa literatura romântica, veiculado, em parte, pela
poesia de Álvares de Azevedo.[...] Podemos verificar que as
deformações que Byron sofre no Brasil, constatadas por Onédia
Barboza, são também recuperáveis em alguns aspectos da
assimilação d’ As Flores do Mal. No seu balanço final, ela aponta
uma tendência à sensualização e ao funéreo.251
249
LEBESGUE, 1931, p. 506, tradução nossa. No original : “Frère spirituel de sainte Thérèse, il est
l’héritier direct de Baudelaire et de Verlaine, et les frénésies de Rimbaud s’unissent parfois chez lui
aux visions dantesques, voir apocalyptiques."
250
LEBESGUE, 1927, p. 355.
251
AMARAL, 1996, p. 297.
109
Já para o estudioso Jamil Almansur Haddad, haveria um baudelairianismo
avant la lettre no byronismo dos românticos brasileiros. O ponto de contato entre
Baudelaire e Byron, de quem o poeta francês era admirador, estaria nos resquícios
barrocos presentes na obra de ambos.252
Assim como no caso de Alphonsus de Guimaraens, as leituras de Byron feitas
pelos românticos brasileiros, de acordo com Glória Carneiro do Amaral, aconteciam
geralmente por meio de traduções francesas. Ainda segundo esta mesma estudiosa,
o sucesso de Baudelaire estaria relacionado a uma suposta semelhança com a
poesia de Álvares de Azevedo.
[...] o Byron que aportou no Brasil veio em paquete francês: os
tradutores recorriam, em geral, a traduções francesas e quando
se partia diretamente do texto inglês, chegava-se a ressaltar o
fato, demasiado insólito. Assim, por trás do nosso
baudelairianismo está um byronismo afrancesado, vazado, em
muitos aspectos, pela popularidade da literatura alvaresina.
Não é de espantar, que a poesia do segundo tradutor de
Baudelaire fosse, em muitos aspectos, aparentada à de
Álvares de Azevedo, ao que, inclusive, Guilhermino César
atribui seu sucesso.253
Certos leitores perceberam as reminiscências românticas na obra de
Alphonsus. José Guilherme Merquior, por exemplo, usou a expressão “pequeno
Romantismo elegíaco”254 para designar o tipo de Simbolismo representado por
Alphonsus de Guimaraens. Outro foi o perfil traçado por Jamil Almansur Haddad: “Às
vezes (como em alguns poemas de Kiriale) Satã se infiltra, tornando-se a poesia
híbrida, satânico-religiosa – revivescência nitidamente romântica”.255 Emílio Moura,
por sua vez, notou características byronianas em Alphonsus em um artigo publicado
n’O Estado de Minas, 1943, justamente intitulado “Alphonsus de Guimarães, o
romântico”. Já Brito Broca detectou traços ultrarromânticos, à moda de Álvares de
252
Cf. HADDAD, 1985, p. 26-27.
AMARAL, 1996, p. 298.
254
MERQUIOR apud GUIMARAENS, 2001, p. 52.
255
HADDAD apud GUIMARAENS, 2001, p. 40.
253
110
Azevedo, nas crônicas que Alphonsus de Guimaraens publicava no jornal O
Mercantil:
[...] o clima geral das crônicas é geralmente o da tristeza romântica,
com laivos de satanismo, visões tumulares e sombrias, parecendo
denunciar leituras mal-assimiladas de Poe [...] 256
Aqui temos um outro ingrediente no cadinho alquímico do simbolista mineiro:
as apropriações de Edgar Allan Poe. A ideia de uma má assimilação está ainda
observação crítica que Brito Broca fez de um conto intitulado “Death club”, publicado
por Alphonsus no jornal A Gazeta, de São Paulo, e, posteriormente, no livro
Mendigos. Segundo Broca, seria “qualquer coisa meio à Edgar Poe e de menor
significação literária, como toda prosa desse grande poeta”.257 No entanto, a
presença de Poe na obra do simbolista mineiro deveria ser vista numa outra
perspectiva. Isto é, como um diálogo criativo com seu antecessor estrangeiro.
Exemplo disso é “A cabeça de corvo”, poema de Kiriale,258 que se destaca
especialmente como exemplo da devoração e incorporação crítica dos elementos
tomados de empréstimo, transformados em parte do universo poético alfonsino.
Trata-se daquele mesmo processo tradutório que Picchio identificou muito bem.259
“A cabeça de corvo” é um exemplo admirável da capacidade que Alphonsus tinha de
tornar seu o que era de outrem. Não é uma simples utilização da imagem do corvo,
mas um sofisticado diálogo com a “Filosofia da composição”. Ângela Maria Salgueiro
Marques, ao comparar a poética de Alphonsus com a de Poe, afirmou que:
Com relação a esse processo, torna-se imprescindível voltar ao
texto “Filosofia da composição”, de Poe, pois o autor enfatiza aí o ato
de “fabricação” em detrimento do processo de “inspiração”. O que se
vê, em Alphonsus de Guimaraens, tanto nos poemas “A cabeça de
256
BROCA, 1991, p. 183.
BROCA, 2005, p. 297.
258
Este poema foi publicado primeiramente na Gazeta de Notícias, do Rio de Janeiro, em 1893, e
escrito no período em que Alphonsus era estudante de direito em Ouro Preto. Pelas suas
características, insere-se na mesma fase da poesia produzida quando viveu em São Paulo.
259
Cf. p. 95 desta tese.
257
111
corvo” e “Memento, homo, quia...”, quanto no texto em prosa “O
fígado” é exatemente a primazia da inspiração. É aquilo que vem de
dentro, é movimento visceral, muito mais do que racional.260
Em “A cabeça de corvo”, Alphonsus de Guimaraens desenvolve o tema da
escritura poética numa perspectiva de manifestação de conteúdos inconscientes: “E
a minha mão, que treme toda, pinta / Versos próprios de um louco.” Convém
sublinhar aqui que a poesia sobre poesia, gênero muito cultivado na modernidade
literária,261 constituiu parte significativa da obra de Alphonsus de Guimaraens.262
Além de Alphonsus, os escritores José Severiano de Rezende e Edgard Mata
também sofreram influência de Poe. Cada um à sua maneira. Em carta a Freitas
Vale, Severiano de Rezende imitou a reprimenda paterna quando decidiu abandonar
o curso de Direito. Trata-se de uma evidência do enorme valor que o poeta norteamericano teve para Severiano, principalmente no início de sua carreira literária:
Meu pai toma a palavra e apoda-me: poeta, sujeito que vive
no mundo da lua, leitor de Edgar Poe, literato, etc. [...] Não se come
literatura, versos não enchem barriga – e, se eu algum dia estiver
morrendo à fome, não será o Edgar Poe nem o Shakespeare que me
virão dar de comer.263
260
MARQUES, 2008, p. 126.
A poesia do poema, ou a poesia sobre poesia, um dos grandes temas da literatura moderna, foi
desenvolvida pelos simbolistas em estreita relação, segundo Jean Pierrot, com as teorias da criação
poética de Poe. Enquanto os simbolistas valorizavam este lado reflexivo da obra do poeta norteamericano, os decadentistas preferiam os aspectos mais ligados ao imaginário e as sensações: “Se
quiséssemos realizar, deste ponto de vista, uma distinção entre ‘simbolistas’ e ‘decadentistas’,
poderíamos dizer que, os primeiros, sob a influência de Mallarmé, foram sensíveis sobretudo às
ideias de Poe referentes à criação e à consciência poética, assim como à teoria do efeito: nesta
perspectiva, a obra de Valéry poderá ser considerada como a mais representativa da influência
profunda de Poe. Ao invés disso, os escritores mais propriamente decadentistas dele imitaram a
busca do mórbido e dos efeitos macabros, o convite ao sonho e à descrição dos fenômenos nervosos
excepcionais.” PIERROT, 1977, p. 47, tradução nossa. No original: “Si l’on voulait opérer de ce point
de vue une distinction entre ‘symbolistes’ et ‘décadents’, on pourrait dire que les premiers sous
l’impulsion de Mallarmé, furent surtout sensibles aux idées de Poe relatives à la création et à la
conscience poétique, ainsi qu’à la théorie de l’effet: dans cette perspective l’oeuvre de Valéry pourra
être considérée comme la plus représentative de l’influence profonde de Poe. En revanche, les
écrivains plus proprement décadents imitèrent en lui d’abord la recherche du morbide et des effets
macabres, l’invitation au rêve et la description des phénomènes nerveux exceptionnels.”
262
Cf. PEIXOTO, 1999, p. 224.
263
REZENDE apud LIMA JÚNIOR, 2002, p. 42.
261
112
Em “Crepúsculo macabro”, um dos poemas de Severiano de Rezende que
mais exibe características decadentistas, o tema do corvo teve destaque na quarta e
quinta estrofes.
É uma hora amarga e torva, em torno à qual, volteando,
Um magro corvo, o olhar amargo e torvo,
Torvelinhando, as asas rufla, turvo e brando,
A corvejar, o hediondo e híspido corvo.
Dir-se-ia o hirto avatar do pássaro edgar-poesco,
Tirado a um álbum de caricaturas,
Tal o seu torto esgar, ridículo e grotesco,
Mefistofélico a assobiar pelas alturas.264
Quanto a Edgard Mata, convém lembrar um fato bem revelador, narrado por
Cilene Cunha de Souza: “Mude de pseudônimo, Mário Corvo é muito fúnebre.
Lembra Edgar Poe!”, disse-lhe Afonso Arinos, quando o poeta escrevia as suas
crônicas para o jornal Comércio de São Paulo sob o referido pseudônimo.265 Edgard
Mata era um admirador de Poe e de Verlaine, assim como Alphonsus de
Guimaraens. Em “Signo Escorpião”, poema de Edgard Mata, percebemos alguns
ecos da musicalidade de “O Corvo”, de Poe, assim como algumas semelhanças com
o clima sombrio da poesia de Augusto dos Anjos. 266
As “afinidades eletivas” de Alphonsus de Guimaraens e dos outros simbolistas
mineiros os situam ao lado dos que se posicionaram críticamente em relação à
modernidade. O Simbolismo constitituiu-se a partir do Decadentismo e este, por sua
vez, como continuação de uma sensibilidade romântica. Neste sentido, é
interessante mencionar a concepção de Romantismo defendida por Michael Löwy,
para quem o Romantismo não deveria ser considerado apenas como um movimento
literário do século XIX ou uma reação tradicionalista contra a Revolução Francesa.
264
REZENDE, 1971, p. 148.
SOUZA, 1978, p. 11.
266
MATA apud SOUZA, 1978, p. 73-75.
265
113
O romantismo é, antes, uma forma de sensibilidade que irriga todos
os campos da cultura, visão do mundo que se estende da segunda
metade do século XVIII até nossos dias, cometa cujo “núcleo”
incandescente é a revolta contra a civilização industrial/capitalista
moderna, em nome de certos valores sociais ou culturais do
passado. Saudoso de um paraíso perdido – real ou imaginário –, o
romantismo opõe-se, com a melancólica energia do desespero, ao
espírito quantificador do universo burguês, à coisificação mercantil, à
insipidez utilitarista e, sobretudo, ao desencantamento do mundo.267
A permanência de um espírito de revolta romântica no Decadentismo e depois
no Simbolismo foi sublinhada por José Carlos Seabra Pereira. Para este autor, o
movimento decadentista insere-se numa luta contra a modernidade entendida como
sendo um estado de declínio social e cultural do mundo.
Em França, como por toda a Europa, de Portugal à Rússia, agudizase a consciência de um estado de decadência social e cultural: a vida
materializada, a sociedade injusta, a destruição da beleza, a
limitação e a vulgaridade ou o formalismo em arte; e o pensamento
sente-se, também já, aprisionado no beco-sem-saída de um
imanentismo absurdo. Surge, ao mesmo tempo a revolta contra as
causas sistemáticas e mais patentes de tais penas: o tecnocratismo
e o convencionalismo moral da sociedade burguesa; o Positivismo e
o Cientismo; o Naturalismo e o Parnasianismo. Essa revolta –
sobretudo quando não dirigida aos últimos dois adversários – é
confusa e inconsciente, realizada pela afectividade e pelo irracional,
facilmente desiludida e afogada em melancolia, pessimismo e
nevropatia, para finalmente se lançar em busca de derivativos (o
cenário medieval; a irrealidade do sonho; os perfumes, as flores e as
jóias de raridade excitante...). Tomando a forma de avatar
reconhecível do mal du siècle romântico, o Decadentismo afirma-se
como uma luta instintiva pela libertação da vida interior, longamente
amordaçada por dogmas racionalistas e convenções vitorianas.268
Trata-se de um posicionamento crítico muito semelhante ao que os escritores
simbolistas também adotaram.
267
268
LÖWY, 2008, p. 839.
PEREIRA, 1975, p. 22-23.
114
Não se trata apenas do desencanto perante o quotidiano, perante a
fealdade do interesse mundano e a bruteza de uma sociedade
industrializada, mas sobretudo do desgosto íntimo face à opacidade
de um universo material e mecânico, fechado em si mesmo, e da
angústia mortífera do sem-sentido da Vida, a que iniludivelmente
conduzira o pensamento positivista e cientista. O que quer dizer que o
universo ideológico-moral e estético do Simbolismo é incompreensível
se não se considerar a mutação que se vinha realizando no campo
das idéias e da cultura em geral.269
Ao classificar o Simbolismo de “reação idealista”, José Veríssimo se referia à
uma espécie de retorno ao Romantismo empreendido pelos escritores simbolistas
como Alphonsus de Guimaraens.270 Sendo um dos maiores representantes da crítica
e historiografia literária brasileira da geração de 1870, Veríssimo não poderia ver
com bons olhos a literatura dos simbolistas.
A reação dos jovens escritores, classificados pejorativamente pelos críticos e
literatos que ocupavam posições de destaque no meio intelectual de “decadistas”,
“nefelibatas” e “novos”, foi a recuperação desses termos com um sentido positivo.
Ridicularizados, assumiram o qualificativo “novos” para atacar os que os criticavam.
Do lado dos escritores de reputação já estabelecida, os “novos” eram “confundidos
com iconoclastas e anarquistas”. Do lado dos jovens escritores, os “velhos” eram
considerados “representantes decrépitos de valores contestados”.271 Os “velhos”
eram associados aos parnasianos e aos naturalistas que almejariam uma poesia
descritiva, semelhante à fotografia, enquanto os simbolistas queriam seus versos
próximos ao sonho e à emoção. Para estes últimos, os “velhos” teriam nivelado o
homem a um animal regido por leis biológicas e banido da arte o sentimento. 272
Entre o final do século XIX e primeiros anos do século XX, foi sendo
construída, aos poucos, uma rede de periódicos simbolistas no Brasil. Os princípios
de solidariedade entre os membros dessa rede eram baseados em aspectos
geracionais (“novos” versus “velhos”), posicionais (escritores de vanguarda versus
269
PEREIRA, 1975, p. 60-61.
Sílvio Romero também considerava o Simbolismo como reação ao Parnasianismo e um retorno ao
Romantismo. Utilizando termos semelhantes aos de Veríssimo, Romero preferiu classificar esse
movimento de “reação espiritualista”.
271
CAROLLO, 1980, v. 1, p. 326.
272
RAMOS, 1994, p. 336.
270
115
escritores institucionais) e ideológicos (neoidealismo versus realismo, espiritualismo
versus materialismo, cosmopolitismo versus nacionalismo, etc.). Ao mesmo tempo,
outros lugares de sociabilidade foram adquirindo importância como, por exemplo, os
espaços da vida boêmia (cafés, bares, restaurantes), dos salões literários, os clubes
ou o ponto de encontro nas livrarias. Alphonsus de Guimaraens, José Severiano de
Rezende e outros jovens mineiros participaram dessa rede e da boemia literária na
capital paulista. Severiano de Rezende era frequentador das rodas do Diário
Mercantil. Já Alphonsus de Guimaraens costumava ir à Livraria Garraux273 e ao café
Vecchio Leone di Caprera, onde se reuniam os estudantes universitários, os
escritores e os jornalistas conhecidos.274 Em São Paulo, Alphonsus participava de
noitadas de estudantes e adquiriu um comportamento de dândi, levado depois para
Minas, conforme o depoimento de Horácio Guimarães.
De São Paulo trouxe ele hábitos de requintada elegância,
embasbacando os Brummel provincianos da ex-Capital do Estado
com os seus costumes, talhados pelos melhores alfaiates da
Paulicéia, a sua irrepreensível cartola de pêlo, polainas, monóculo,
gravatas do mais apurado gosto, etc. Mesmo em S. Paulo, deixou ele
uma tradição de dandismo.275
Alphonsus e Severiano participaram de outra rede intelectual importante em
São Paulo: a de José de Freitas Valle, poeta e mecenas que exerceu uma grande
influência na vida cultural da Belle Époque paulistana e desempenhou o papel de
líder do movimento simbolista. A amizade entre Freitas Valle, Alphonsus de
Guimaraens e Severiano de Rezende se desenvolveu logo que os mineiros se
mudaram para São Paulo e continuou por toda a vida, mesmo à distância, mantida
273
Em uma de suas crônicas para o jornal O Mercantil que tematizava a vida na Paulicéia, Alphonsus
de Guimaraens situou a sua narrativa em frente à Livraria Garraux, importante ponto de comércio de
livros estrangeiros, especialmente os franceses, na capital paulista. Era lá também que os estudantes
de Direito encontravam as obras para o seu curso. A loja vendia igualmente as “finas” novidades
importadas de papelaria. A Livraria Garraux foi parte da rede intelectual e espaço da sociabilidade
literária decadentista e simbolista em São Paulo.
274
Em outra de suas crônicas intitulada “Cai a garoa... (Recordações de São Paulo)”, Alphonsus de
Guimaraens utilizou-se de alguns elementos como o café Vecchio Leone di Caprera, o frio do inverno,
a garoa e a neblina para representar metonimicamente a capital paulista. As recordações, no caso, se
referiam apenas às da boemia literária.
275
GUIMARÃES apud ALPHONSUS, p. 36-37.
116
por meio de cartas. A correspondência entre Severiano de Rezende e Freitas Valle
iniciou-se em 1886 e só terminou com a morte do poeta mineiro. Freitas Valle o
ajudou em muitos sentidos, inclusive financeiramente. Foi por seu intermédio que
Severiano começou a escrever sobre arte e literatura no Correio Paulistano.
Quanto à Alphonsus e Freitas Vale, apesar de não se escreverem
frequentemente, mantiveram uma relação epistolar muito intensa e de grande
importância do ponto de vista literário. Eles tratavam de assuntos relacionados à
edição de livros (projetos editoriais de Alphonsus de Guimaraens pelos quais Freitas
Valle se responsabilizaria em São Paulo, mas que não foram realizados) e um
comentava o trabalho do outro. Por meio dessa correspondência, observamos a
preocupação do poeta mineiro com o contínuo aperfeiçoamento de sua obra e
algumas de suas reflexões sobre literatura.
Vejamos agora as relações dos simbolistas mineiros com os círculos literários
do Rio de Janeiro. Assim como Severiano de Rezende, Alphonsus de Guimaraens
se fez conhecido nos meios intelectuais cariocas do final do século XIX com
trabalhos veiculados pela imprensa. Em 1895, Alphonsus e seu irmão Archangelus
viajaram para o Rio com a finalidade de conhecer pessoalmente Cruz e Souza de
quem eram admiradores. Essa estadia na antiga capital brasileira foi marcada ainda
por encontros de Alphonsus com Emílio de Menezes, Coelho Neto e outros
destacados escritores da Belle Époque. Alphonsus, que também apreciava a obra
de Coelho Neto, lhe dedicou o soneto “Espírito mau”, de Kiriale, e sobre ele
escreveu uma crônica elogiosa n’O Mercantil, em 1891.276 Coelho Neto, por sua vez,
publicou um texto sobre Alphonsus n’O País, do Rio de Janeiro, em 1893. Nele,
declarou acompanhar a produção literária do poeta mineiro. O aparecimento da
poesia de Alphonsus na literatura brasileira era considerado por Coelho Neto como
algo de grande importância:
Entras pela literatura como o rei profeta entrou pela cidade dos
mirtos, cantando salmos, e, como os da turba israelita, folgo em ser o
276
GUY, 1977, p. 351-352.
117
primeiro a despir as palmeiras, para forrar o caminho que hás de
trilhar, com sapatos verdes.277
Todavia, as obras de Aphonsus e Severiano não foram apresentadas como
simbolistas no Compêndio de literatura brasileira, de Coelho Neto, mas como a
expressão de uma corrente mística do Parnasianismo: “Entre os parnasianos, pelo
respeito que consagram à forma, devem ser incluídos os místicos, os ‘oracionais’,
como o melancólico Alphonsus de Guimaraens e o impetuoso Pe. Severiano de
Resende”.
278
Este último, por sua vez, na entrevista a João do Rio, afirmou que
Coelho Neto era um escritor “vibrante” e que merecia “o nome de artista”.279
Os elogios mútuos e a convivência de autores situados em posições
diferentes no meio intelectual nos mostram que, em geral, os simbolistas mineiros
não fizeram oposição sistemática aos escritores consagrados naquela época. Os
simbolistas mineiros experimentaram uma tensão entre o Parnasianismo e o
Simbolismo, entre o que era aceito e a inovação, entre o reconhecido e a ruptura
dos modelos. Por isso, a imagem que Coelho Neto tinha de Severiano e de
Alphonsus de Guimaraens como parnasianos não era de todo sem razão. As marcas
do Parnasianismo estão presentes nas obras dos dois escritores. Além disso, eles
publicaram em periódicos parnasianos ou que mesclavam textos parnasianos com
escritos simbolistas.280
O espaço cultural é, em grande parte, o espaço de expressão de lutas pela
hegemonia discursiva. Os escritores, para serem reconhecidos, travam disputas que
envolvem alianças e ocupação de territórios. É claro que tal ocupação não se dá,
geralmente, por um plano, por premeditação, mas pelo desejo individual de publicar,
de divulgar suas produções. Era natural que os simbolistas procurassem as revistas
parnasianas para divulgar seus trabalhos pois os parnasianos detinham a
hegemonia do campo literário naquele momento.
277
COELHO NETO apud RICIERI, 1996, v. 1, p. 69.
COELHO NETO apud RICIERI, 1996, v. 1, p. 75.
279
REZENDE apud RIO, 1994, p. 131.
280
Para citar alguns exemplos, Kosmos, revista redigida por Olavo Bilac, teve colaboração de Coelho
Neto e de Severiano de Rezende. O jornal O Vassourense, de cunho parnasiano, publicou Alphonsus
e Coelho Neto. Por sua vez, a revista Os Anais apresentou textos de Severiano de Rezende,
Gonzaga Duque, Coelho Neto e do crítico José Veríssimo.
278
118
Passemos agora a considerar um processo interessante e ainda pouco
estudado: a tentativa de constituição de uma rede cultural entre os simbolistas
mineiros e os grupos do sul do Brasil. O Almanaque Literário e Estatístico do Rio
Grande do Sul, dirigido por Alfredo Ferreira Rodrigues,281 veiculou um poema de
Horácio Guimarães e os poemas “Quadras a Lúcia” (1891), “Coroa” (1891) e
“Memento quia”(1890), de Alphonsus de Guimaraens. O Almanaque publicou ainda
uma tradução do “Soneto de Arvers” realizada por Alphonsus.282 Essa publicação
tinha um caráter eclético, misturando em suas páginas literatura, história e geografia.
Do ponto de vista literário, divulgava obras de autores ligados a correntes diversas,
do Romantismo ao Simbolismo.283 Além dos escritores sulinos, poetas e prosadores
de outras regiões brasileiras tiveram espaço no Almanaque, entre os quais estavam
Raimundo Correia, Cruz e Souza e Wenceslau de Queirós.
A publicação do poema “A voz do rochedo”, de Alphonsus de Guimaraens, na
revista paranaense, Club Curitibano, em 1891, demonstra o interesse do poeta
mineiro em ampliar a sua atuação para além dos meios literários de São Paulo, do
Rio de Janeiro e de Minas. Foi nesse periódico, dirigido por Dario Veloso, que o
Simbolismo do Paraná deu seus primeiros passos. A revista, que durou de 1890 até
1913, foi um órgão de características ecléticas na fase inicial. Os seus
colaboradores foram os mesmos d’O Cenáculo, outra publicação de Curitiba
também dirigida por Dario Veloso. Ambas abriram espaço a autores de outros
estados. Graças à liderança de Dario Veloso, o Simbolismo teve boa receptividade
entre a intelectualidade local e adquiriu o aspecto de literatura oficial no Paraná
durante um largo período.284
Anos mais tarde, em 1901, foi a vez dos simbolistas mineiros retribuirem
publicando “Soledade”, de Dario Veloso, na revista Minas Artística. Devemos
lembrar que, na comissão editorial desta revista belo-horizontina, existiam dois
autores que haviam vivido em Curitiba e lá começado a sua produção intelectual:
Carlos Raposo e Alfredo de Sarandy Raposo. Antes de trabalharem em Minas
Artística, foram diretores d’O Farol, um pequeno jornal curitibano publicado em 1898.
281
O gaúcho Alfredo Ferreira Rodrigues foi poeta, tradutor, historiador e ensaísta.
Cf. GUIMARAENS FILHO, 1995, p. 300.
283
FREITAS, 2007, p. 20.
284
CAROLLO,1982, p.XI.
282
119
A ideia de editar uma revista de arte em Belo Horizonte para congregar os
talentos locais e difundir a estética simbolista teria seguido o modelo paranaense e
cearense. Este objetivo foi explicitado em carta escrita por Horácio Guimarães e
pelos irmãos Raposo a Alphonsus de Guimaraens solicitando colaboração para
Minas Artística.285 Nela, os simbolistas afirmaram a intenção de constituir um
movimento intelectual em Belo Horizonte à moda da Padaria Espiritual, do Ceará, ou
do Cenáculo, do Paraná.286
Um interesse comum dos simbolistas que escreveram nos referidos
periódicos curitibanos era o ocultismo. Segundo Cassiana Lacerda Carollo, O Farol
deu uma ‘notícia da Iniciação sobre o ouro artificial, acompanhada de alguns dizeres
a respeito da Alquimia, em um de seus números.287 O nexo entre Dario Veloso e os
irmãos Raposo fica mais claro se considerarmos que o pai destes escritores, o
professor mineiro Custódio Raposo, era um estudioso dos textos esotéricos e amigo
do simbolista paranaense.288
É sabido que Alphonsus de Guimaraens e José Severiano de Rezende foram
leitores de literatura esotérica. A obra de ambos está repleta de referências
ocultistas, como o poema “Os cardeais” que Alphonsus de Guimaraens enviou em
uma carta a Freitas Vale.289 Alusões e outros tipos de intertextualidade relacionadas
ao ocultismo apareceram em certas crônicas de Alphonsus. Por exemplo, em
“Bruxos e médicos”,290 ele mencionou Jules Bois, autor do livro Le satanisme et la
magie, que fazia parte de sua biblioteca. Em “Feiticeiros”, crônica publicada na
revista A Vida de Minas, o escritor mineiro abordou a maneira como a justiça
medieval tratava os casos de feitiçaria e mencionou Flammarion.291 Além do livro de
Bois, Alphonsus possuía exemplares de Stanislas de Guaita (Le temple de Satan,
Essais de sciences maudites e Au seuil du mystère), O livro dos médiuns, de Alan
285
BUENO, 2002, p. 41.
A Padaria Espiritual (1892-1898) foi uma agremiação intelectual de Fortaleza, Ceará, cujos
membros mantiveram alguma relação com a poética simbolista. Fundada por Antonio Sales,
integrava escritores, pintores e músicos. Já o Cenáculo (1895-1897) foi um grupo simbolista-esotérico
fundado por Dario Veloso, Silveira Neto, Júlio Perneta e Antônio Braga em Curitiba.
287
CAROLLO, 1980, v.1, p. 61.
288
Cf. VELOSO apud CAROLLO, 1980, v. 1, p. 61.
289
Cf. CAROLLO, 1980, v. 1, p. 53.
290
GUIMARAENS, 1960, p. 463-467.
291
Arline Anglade-Aurand (1970, p. 340), comentando as crônicas e artigos de Alphonsus de
Guimaraens, afirmou que elas combinavam a fé cristã com uma atração ou uma inclinação para a
magia, o ceticismo e o orientalismo.
286
120
Kardec, e obras de Joséphin Péladan que misturavam ocultismo e fantasia. O
interesse de Alphonsus pelo ocultismo fica ainda bem evidenciado na promessa de
um estudo sobre Péladan para a revista Rosa-Cruz, do Rio de Janeiro. Ele não
chegou a fazê-lo, mas publicou neste periódico carioca o texto “Lendo Shakespeare”
e vários sonetos reunidos sob o título “Do livro Escada de Jacó”. Cumpre lembrar
que a revista Rosa-Cruz teve papel de relevo na consolidação do ideário simbolista
no Brasil.
A admiração por Péladan também foi manifestada por José Severiano de
Rezende que chegou a comparecer, em 1918, ao sepultamento do escritor francês
em Neuilly-sur-Seine.292 Depois, Severiano escreveu uma carta para o Mercure de
France defendendo Péladan de algumas críticas feitas pelos jornalistas nos
necrológios. Para o simbolista mineiro, ao contrário do que diziam, Péladan era um
escritor dotado de genialidade, “um dos mais puros e maiores espíritos” da França e
havia dado uma grande contribuição à literatura. Ainda segundo Severiano de
Rezende, Péladan teria sido um “poderoso romancista”, o “criador de uma forma
nova de dramaticidade muito nobre”, o “formulador de uma soma incalculável de
visões novas e definitivas no domínio universal do pensamento”.293
O interesse de Severiano pelo ocultismo surgiu na juventude e continuou por
toda a vida.294 As ligações de Severiano com as tradições mágico-religiosas foram
mencionadas por Luís Edmundo. Para ele, Severiano de Rezende foi um dos
membros dos círculos esotéricos da Princesa Matilde no período em que morou no
Rio de Janeiro.295 Já de acordo com Philéas Lebesgue, Severiano foi um
292
Muito antes de se mudar para a Europa, Severiano de Rezende explicitou a sua estima pela obra
de Péladan na entrevista a João do Rio publicada primeiro em 1905 em um jornal carioca e
posteriormente no livro O momento literário.
293
REZENDE, José Severiano de. Péladan jugé par un brésilien, Mercure de France, Paris, Revue de
la Quinzaine, t. 128, n. 482, p. 375-376, 16 juil. 1918, tradução nossa.
294
Em carta a Alphonsus de Guimaraens, em 1893, Severiano escreveu: “Cada vez mais ando
maravilhado pelo ocultismo. Quanta ciência, quanto saber e que deslumbramentos de verdade!”
REZENDE apud BUENO, 2002, p. 38.
295
“‘Princesa’ Matilde é uma mulher de todos os diabos, que desdenha as sacerdotisas do seu
gênero, exibindo cartas que lhe escreve a famosa Madame de Thêbes mostrando um retrato que lhe
foi dado com a dedicatória de Papus, dizendo-se íntima de Sâr Péladan. Usa perfumes do Oriente,
excêntricos berloques [...] As suas sextas-feiras são concorridíssimas. Lá vão, entre outros, para
discutir o Ocultismo da Índia, o Cabalismo hebraico, o Esoterismo egípcio, Swedenborg, Allan
Kardec, Comte, em panaché erudito, céticos como Gonzaga Duque, displicentes como César de
Mesquita, crédulos como Magnus [...] calculistas como o Padre Severiano de Resende”. EDMUNDO,
1957, v. 1, p. 185-186.
121
colecionador de obras de hermetismo e de metafísica
296
e a sua literatura estaria
impregnada desses conhecimentos.297
Até em O meu flos sanctorum, encontramos passagens que demonstram a
valorização do esoterismo. No texto que trata do mistério da Santíssima Trindade,
por exemplo, Severiano defendeu as Ciências Ocultas e, ao mesmo tempo, atacou o
positivismo de Spencer. Um claro exemplo da postura rebelde que adotou em
relação às ideologias que se tornaram predominantes entre os fins do século XIX e
primeiros anos do século XX.
Spencer, esse bom burguês que filosofou assaz congruamente,
chamou o Sobrenatural de Incognoscível e empacou, perro e charro,
no umbral do Além, fazendo sociologias mansas. Mas o autor dos
Primeiros Princípios ignorava o Primeiro Princípio. Ele ignorava,
como um cientista oficial ou como um oficioso sabichão, o Princípio.
No entanto, se é lícito descompreender, não é permitido ignorar. A
nossa época, prenhe de políticos e de comerciantes, duas classes
equipolentes, soma 2 + 2 = 4, mas, alheando-se à Equação ideal,
esquece que o Ternário rege o universo e que a Trindade carimbou o
Cosmos, por toda parte e alhures, com o número Três. E, ao passo
que a ciência das academias menospreza a cogitação das coisas
excelsas, a Ciência Oculta, que é a mais positiva – e a mais difícil –
das ciências, porque é toda-a-ciência, escala o céu e enxerga, mais
intensamente que o telescópio, o Mistério que Jesus trouxe, numa
afirmação clara, à terra.298
Retornemos aos intercâmbios dos mineiros com os escritores do Sul e do
Rio. Tanto a dimensão humana quanto a dimensão textual de uma rede podem ser
notadas na relação de Alphonsus de Guimaraens com o grupo da revista RosaCruz.299 Mencionando um retrato de Maeterlinck feito por Maurício Jubim e
296
LEBESGUE, 1931, p. 506.
LEBESGUE, 1927, p. 353.
298
REZENDE, 1970, p. 76-77.
299
Diferentemente da abordagem de Gisèle Sapiro, Daphné de Marneffe propôs a análise da dimensão
humana e da dimensão textual da rede constituída por uma revista. A primeira dimensão seria uma “questão
de relação entre grupos: a ‘rede social’” (“question de relation entre groupes: le ‘réseau social’”), que pode ser
percebida pela “troca de colaboradores, participação em projetos comuns, troca de correspondência, etc”
(“échange de collaborateurs, participation à des projets communs, échange de correspondance, etc.”). Já a
segunda envolveria “uma questão de citação, de referência textual: a ‘rede intertextual’” (“une question de
citation, de renvoi textuel : le ‘réseau intertextuel’”), que se daria, por exemplo nas citações de nomes ou nas
referências sob a rubrica “revistas recebidas”. Cf. MARNEFFE, 2008, não paginado. (tradução nossa).
297
122
elogiando a sua alta qualidade estética, Alphonsus de Guimaraens noticiou o
reaparecimento de Rosa-Cruz no seu jornal Conceição do Serro em 12 de junho de
1904.
Rosa-Cruz – Reapareceu no Rio de Janeiro esta brilhante Revista de
arte pura, que tinha suspendido a sua publicação. O fascículo que
temos adiante da mesa nada deixa a desejar no domínio da estesia.
É seu diretor o admirável poeta e prosador Saturnino de Meireles.
Traz um belo retrato do maravilhoso dramaturgo e poeta belga
Maurice Maeterlinck, feito pelo aplaudido pintor Maurício Jubim.300
Já em 31 de junho do mesmo ano, o jornal Conceição do Serro registrava o
recebimento do segundo fascículo da Rosa-Cruz com um novo encômio. De acordo
com o seu redator, era a melhor revista de arte que, do ponto de vista estético, se
estava publicando no Rio.301
Tendo ido ao Rio de Janeiro por duas vezes, Alphonsus de Guimaraens
estabeleceu contato com os grupos simbolistas na antiga capital brasileira através
da participação na boêmia. Eram encontros nos quais os escritores exibiam os seus
talentos e divulgavam a poesia simbolista européia. Em uma de suas noitadas
cariocas, Alphonsus se encontrou, por exemplo, com Emiliano Perneta e Gonzaga
Duque, evento narrado por Leôncio Correia em seu livro de memórias.
Por um lento cair da tarde encontramo-nos, sem combinação
prévia, no Café Java, Emiliano, Alfonsus de Guimarães (sic),
Gonzaga Duque e eu. Às 20 horas saímos. Descemos a Rua do
Ouvidor, e, sem que houvesse consultas, embarafustamos pela Rua
Nova do Ouvidor, e entramos na Cervejaria Maurin. Cerveja de uma
pataca, com pires de tremoços. Em pouco aquela cerveja barata
sabia a vinho de deuses, bebido em cíato de ouro. Que noite
olímpica! Uma vibração estranha animava a palestra. Os meus três
companheiros – estetas supersensíveis – falavam como iluminados
por uma flama divina. Os mais adoráveis poetas franceses, os que
vivem entre flores e entre estrelas, mercê de uma arte refinada e
torturada, eram declamados pomposamente, enfaticamente, como se
300
301
GUIMARAENS apud GUIMARAENS FILHO, 1995, p. 131.
GUIMARAENS apud GUIMARAENS FILHO, 1995, p. 134.
123
dos lábios dos declamadores escorresse o mel divino da arte
perfeita. E assim, a cem léguas da cidade, no coração da cidade, nós
fomos pela noite adentro. Quando, fatigados de tanto
deslumbramento, acordamos para a monotonia da vida cotidiana,
como que tínhamos as almas salpicadas do pó dos astros...
Aurorescia... E enquanto o alto se toucava de suave claridade, os
nossos corações batiam como enjaulados em cárceres de
estrelas...302
Quando observamos a troca de colaboradores, as dedicatórias e as notícias
sobre as publicações de outros grupos, percebemos todo o esforço dos simbolistas
para estabelecer uma lógica de solidariedade com o propósito de favorecer a difusão
e a recepção positiva de suas obras. Assim, vamos encontrar, por exemplo, versos
do gaúcho Mário Artagão, um trecho de um romance de Gonzaga Duque e uma
dedicatória a Mário Pederneiras escrita pelo poeta mineiro Gastão Itabirano na
revista belo-horizontina Vita. Ou então, trabalhos de Pereira da Silva, integrante do
grupo paranaense e do Rosa-Cruz, em Minas Artística e do gaúcho Guerra Duval
em Hórus.
Iniciadas no período em que Alphonsus e Severiano moravam em São Paulo,
as relações dos simbolistas mineiros com os simbolistas gaúchos e paranaenses
tiveram continuidade através das revistas publicadas no Rio de Janeiro. Uma delas
foi a Fon-Fon. A colaboração de Alphonsus de Guimaraens na Fon-Fon se deu
exatamente no período em que lá trabalhavam os gaúchos Eduardo Guimarães,
Álvaro Moreyra e Felipe d’Oliveira.
A bem sucedida experiência da Fon-Fon, criada em 1907, parece ter tido
reflexos nas publicações mineiras Vita, A Vida de Minas e Vida de Minas, todas da
302
CORREIA, 1955, p. 123-124. Nessa cena da boêmia carioca, estavam Emiliano Perneta e Leôncio
Correia, escritores que atuaram no grupo O Cenáculo, de Curitiba. No Rio, Emiliano Perneta
participou do grupo Rosa-Cruz e antes escreveu para a Folha Popular. Gonzaga Duque, o outro
personagem da cena, também foi colaborador da Folha Popular e da Revista Contemporânea,
periódicos da primeira fase do Simbolismo brasileiro. Depois, ele editou, junto com Mário Pederneiras
e Lima Campos, a Fon-Fon, órgão da terceira fase do movimento. A Fon-Fon contou com obras de
Alphonsus de Guimaraens e de Severiano de Rezende. Já a Revista Contemporânea apresentou
trabalhos dos irmãos Alphonsus e Archangelus de Guimaraens. A dimensão intertextual da rede pode
ser observada na significativa reprovação da opinião de Sílvio Romero por Félix Pacheco.
Interrompendo uma citação de Romero, que afirmava ser necessário colocar de lado as “ladainhas”de
Bernardino Lopes e Alphonsus de Guimaraens, ele colocou o seguinte comentário indignado em um
de seus textos publicados na revista Rosa-Cruz: “pobre Alphonsus, vê tu que horror!”. Cf. nota da
Poesia Completa, de Alphonsus de Guimaraens, 2001, p. 560.
124
década de 1910 e com características semelhantes às que Antonio Dimas observou
na publicação carioca. Segundo Dimas, havia uma mistura de eventos da
mundanidade com literatura e uma preocupação em ‘fixar os sinais exteriores’ da
modernidade na revista Fon-Fon.
Buscava-se a “substituição do aconchego doméstico pelo burburinho da vida
nas ruas, agora menos caipiras e mais adequadas a uma convivência reputada
europeizante”.303 Todas essas revistas, com impressão bem cuidada e papel de boa
qualidade, utilizavam intensamente imagens fotográficas e veiculavam textos entre
vinhetas art nouveau. Além disso, um traço comum a esses periódicos é que
publicavam textos de admiradores dos simbolistas belgas. Na Fon-Fon, trabalhavam
gaúchos que escreveram suas obras em diálogo com o Simbolismo belga e a revista
Vida de Minas, por exemplo, publicou um artigo, em 1915, sobre a literatura da
Bélgica, mencionando, entre outros, Rodenbach, Verhaeren e Maeterlinck.
O Rio de Janeiro era o grande centro para onde convergiam os mais
importantes intelectuais brasileiros naquela época. É a esse fato que Arline AngladeAurand atribuiu a formação da relação (rede) entre os grupos simbolistas do Sul e do
Sudeste do Brasil.304 Alphonsus de Guimaraens e Archangelus de Guimaraens,
apesar de residirem em Minas, conseguiram publicar nos periódicos simbolistas
cariocas mais significativos. Quanto a José Severiano de Rezende, que já vinha
escrevendo textos para o Correio da Manhã desde 1901, continuou a sua atuação
no jornalismo carioca depois que se transferiu de Mariana para o Rio no final de
1902.
Uma crônica de Olavo Bilac, publicada em 16 de janeiro de 1898 na Gazeta
de Notícias, demonstrava de maneira eloquente que Severiano de Rezende era
muito respeitado na imprensa carioca antes mesmo de se mudar para o Rio de
Janeiro.305 O tema desenvolvido por Bilac era a primeira missa celebrada por
Severiano de Rezende em homenagem aos seus colegas jornalistas. A cerimônia
contou com a presença de 50 jornalistas e repercutiu também nas páginas de O
303
DIMAS, 1994, p. 558.
AURAND, 1970, p. 24.
305
BILAC apud DIMAS, 2006, v. 1, p. 263-265.
304
125
País, A Notícia e na Gazeta da Tarde.306 Tratava-se de um acontecimento que
combinava o religioso com o literário-mundano e prenunciava a transformação de
Severiano de Rezende em conhecida figura da boêmia carioca. Há registros da
participação do Padre-poeta no grupo literário da Colombo, liderado por Olavo Bilac,
e que contava com Emílio de Menezes e Guimarães Passos. Essas relações de
amizade acabavam viabilizando a colaboração de Severiano nas publicações de
maior prestígio da Belle Époque, como, por exemplo, na revista Kosmos (19041909), que tinha Olavo Bilac e Gonzaga Duque na redação.307 De um lado, Kosmos
exibia o progresso do Rio de Janeiro, e, de outro, através das charges e caricaturas,
mostrava os problemas sociais e as dificuldades das classes populares. Foi também
um modelo de revista bem produzida que apresentava diagramação moderna,
ornamentação art nouveau, uso de cores, abundante ilustração por meio de
fotografias e caricaturas, papel couché e com colaboradores de renome como
Coelho Neto, Domingos Olímpio, Inglês de Souza, João do Rio, Artur Azevedo e
Capistrano de Abreu.
Vejamos agora o caso de Edgard Mata, outro simbolista mineiro que buscou
trabalho fora de Minas nos anos iniciais do século XX. Ele se mudou de Belo
Horizonte para a capital paulista em 1902 e começou a trabalhar no jornal O
Comércio de São Paulo, dirigido por Afonso Arinos. Este periódico, que havia sido
transformado por Eduardo Prado em órgão de defesa da Monarquia, contou ainda
com a redação de Horácio Guimarães e a revisão de Arduíno Bolívar, outro poeta
306
Cf. LIMA JÚNIOR, 2002, p. 48-49.
Em janeiro de 1905, Kósmos publicou “Olhando a natureza”, versos que Jayme Lessa dedicara a
Severiano de Rezende. Alguns meses depois, em julho do mesmo ano, Severiano colaborou nessa
revista com um poema dedicado ao Bispo de Mariana. Além do trabalho em Kósmos, Severiano de
Rezende escreveu para os seguintes órgãos de imprensa do Rio de Janeiro: Tagarela, Jornal do
Brasil, Os Anais, O País, Correio da Manhã e A Notícia. Entre os colaboradores do Jornal do Brasil,
destacavam-se Carlos de Laet e Afonso Celso. Já a revista Os Anais, de inspiração francesa, foi
dirigida por Domingos Olímpio e contava com uma colaboração selecionada de escritores brasileiros
e portugueses. José Veríssimo, Coelho Neto, Araripe Júnior, Rocha Pombo, Sílvio Romero e
Gonzaga Duque foram alguns dos intelectuais que tiveram textos veiculados por essa revista. Sobre
o jornal O País, é necessário lembrar que publicava textos dos renomados Carlos de Laet, Júlia
Lopes de Almeida, Gilberto Amado, Olavo Bilac e Artur Azevedo. Foi também em suas páginas que
apareceram os versos iniciais de Archangelus de Guimaraens. A colaboração de Severiano de
Rezende no Correio da Manhã durou até 1903, tendo publicado crônicas sobre assuntos variados
(política, reformas urbanísticas do Rio, mendicância, artes plásticas, teatro e religião) e alguns
poemas. Foi nesse período que o escritor mineiro consolidou a sua reputação entre os meios
intelectuais do Rio de Janeiro. O Correio da Manhã, órgão de oposição ao governo Campos Sales,
era um dos jornais que melhor remunerava os seus colaboradores e por isso, contava com um
renomado grupo de intelectuais nas suas páginas. Coelho Neto, Artur Azevedo, José Veríssimo,
Osório Duque-Estrada, Medeiros e Albuquerque, Bastos Tigre, Afonso Celso, Carlos de Laet foram
alguns dos que escreveram para esse periódico.
307
126
mineiro. Em suas crônicas, Edgard Mata abordava questões relativas às tradições
nacionais, à vida literária e à política internacional.
A participação de Edgard Mata n’O Comércio de São Paulo, cujo proprietário,
Eduardo Prado, havia sido objeto de um livro de Severiano de Rezende, nos revela
o lado monarquista destes dois simbolistas mineiros. Ao lado da reação
espiritualista, houve, por parte deles, uma reação monarquista. O livro Eduardo
Prado, de Severiano de Rezende, já demonstrava essa relação através da frase de
Balzac usada como epígrafe: “O Catolicismo e a Realeza são dois princípios
gêmeos”. Antes da publicação dessa obra, Severiano de Rezende já havia escrito,
em 1901, uma série de artigos para o Correio da Manhã sobre o catolicismo de
Eduardo Prado. Duas análises do livro de Severiano merecem ser destacadas.
Enquanto José Maurício de Carvalho analisou o tradicionalismo político de
Severiano de Rezende expresso nas páginas de Eduardo Prado, a ênfase de
Renato de Lima Júnior foi para os aspectos literários da mesma obra. De acordo
com Lima Júnior, o livro reflete o ideário decadentista de Huysmans. Comentando a
crítica de Araripe Júnior308 ao livro de Severiano de Rezende, Lima Júnior afirmou
que
Araripe, mesmo estando informado sobre o Decadentismo francês e
sabendo que o padre Rezende era filiado à escola, não percebeu
que Eduardo Prado seguia a esteira de Huysmans e que por isso a
sua sintaxe reversa não era sintoma de um mau escritor ou de um
escritor incompleto, mas sim um recurso estilístico deliberadamente
escolhido. Ainda que tenha percebido que o livro é apologético ao
estilo de Tertuliano, não viu na escritura do autor uma tática
apontando para a ordem simbólica da Idade Média, visto que não
sabia que a linguagem arcaizante compreendia um duplo sentido – a
recusa da história por vir e a regressão a um passado mítico. Pelo
mesmo motivo, não percebeu que os aristocráticos autores
decadentes não tinham interesse de agradar ao grande público, pois
escreviam apenas para um grupo restrito de leitores iniciados.309
308
O texto de Araripe Júnior foi publicado em 1905, na revista Os Anais. Nele, Araripe Júnior analisou
o livro de Severiano destacando o seu estilo polêmico. Cf. ARARIPE JÚNIOR, 1966, v. 4, p. 151-162.
309
LIMA JÚNIOR, 2002, p. 96.
127
Já o anti-republicanismo de Edgard Mata pode ser notado num texto que
escreveu para homenagear o Visconde de Barbacena, Felisberto Caldeira Brant,
neto do seu homônimo, e que completava cem anos em 1902. Apresentado como
um homem que se sacrificou pelo bem, pela honra e a glória da pátria, o Visconde
de Barbacena teria vivido “cem anos de virtude e de nobreza”. Edgard Mata,
assinando como Mário Corvo, mostrava-se favorável à Abolição, mas associava a
República a uma época de sofrimentos, de “homens raquíticos”, de decadência. O
Visconde de Barbacena, sobrevivente de muitas transformações históricas, seria
como uma grande árvore em um ambiente de vegetação mais baixa, resquício
solitário de uma floresta devastada.310
Foi abolida em nossa terra a escravidão deprimente. Veio
depois a República. A bordo do Alagoas partiu para a Europa,
desterrado e banido, o maior patriota, o mais puro dos brasileiros.
Correu o primeiro decênio sombrio e doloroso da República.
Finou-se um século e o visconde de Barbacena aí está firme, ereto,
solene, tendo contemplado todos esses fatos, meditado sobre eles,
representando em síntese o passado e a história de nossa terra
durante um século todo.311
O trabalho de Edgard Mata n’O Comércio de São Paulo durou apenas alguns
meses. Findo esse período, decidiu retornar a Minas. Edgard Mata havia perdido os
seus pais em Belo Horizonte pouco tempo antes de ir para a capital paulista. Não se
sabe o motivo da interrupção do seu trabalho em São Paulo, mas uma grande
melancolia atormentava o poeta.
Para Mário de Lima , as crônicas de Edgard Mata eram “escritas com uma
facilidade admirável”, mas com frases primorosas. Nesses textos, o simbolista
mineiro teria utilizado “as pedrarias que o seu cérebro, com a feracidade de uma
mina fabulosa, produzia, torrencial, ininterruptamente [...]”.312
310
CORVO, 1978, p. 9.
CORVO, 1978, p. 9.
312
LIMA, 1921, p. 4.
311
128
Tanto Edgard Mata quanto Alphonsus de Guimaraens escreveram um tipo de
prosa que procurava chamar a atenção para a própria linguagem, seguindo na
mesma direção de Cruz e Souza. O experimentalismo literário do fim do século XIX
está, em grande parte, justamente nesses textos que representam um enorme
desafio para os leitores contemporâneos com outras expectativas de leitura.
Enquanto Edgard Mata retornava a Minas, José Severiano de Rezende
exercia o jornalismo e cumpria as suas obrigações sacerdotais, além de participar da
boêmia carioca. Marcados por um stilus pugnax, isto é, por um estílo típico dos
polemistas, os textos de Severiano eram repletos de críticas contra tudo o que
achava injusto ou errôneo. Já a sua participação na vida boêmia era considerada
escandalosa pelo clero conservador. Além disso, tanto as suas celebrações
religiosas, que atraíam um público de elite, quanto a sua associação ao círculo
esotérico da Princesa Matilde contribuíram para que ele se tornasse uma figura de
destaque no anedotário da Belle Époque carioca. No que se refere à participação de
Severiano de Rezende na boêmia da Colombo, temos, por exemplo, as bemhumoradas narrativas de Luiz Edmundo sobre as preocupações do Arcebispo do Rio
de Janeiro com essas e outras atividades pouco ortodoxas para um sacerdote
católico.
Pois não foram dizer à Sua Excelência Reverendíssima que o
festejado sacerdote usava cuecas de seda, loções de Aglaia e Coeur
de Jeanette no cabelo, unhas polidas, sendo que era figura
obrigatória nas tardes ímpias da Colombo, onde aparecia de charuto
na boca, entre poetas e boêmios bebedores de whiskey e de Xerez e
onde, não raro se insinuavam senhoras de suspeita virtude ou moral
pouco sã?
[...]
Arco Verde manda-o chamar. E fala-lhe docemente. As suas
crônicas profanas, escritas com frequência nos jornais, desgostam os
doutores da igreja. Numa delas o padre chega a falar em “esbórnias
de jejuns”, frase que o sr. João do Rio explora até em livro! Jornais
facetos da terra andam a publicar-lhe o retrato em charges
desrespeitosas, que refletem na Igreja, rodapés de gazetas sérias
vivem a glosar-lhe os hábitos, aliás bem pouco de acordo com a
dignidade mantida pelo Clero. Há um pasquim, mostra-lho, o Rio Nu,
ignóbil papel, que vai além, muito além... E suas tardes na
“Colombo”, passadas entre libações de todo gênero e boêmios sem
religião, que vivem a cantar a Grécia, Afrodite e outras deusas nuas
do Olimpo? Um verdadeiro escândalo.
129
E o Arcebispo, que não cita nem a metade do que sabe ou do
que lhe contam, acaba por lhe acenar com uma paróquia em Minas,
sem “Colombo”, sem hora de “vermouth”, sem roda de Bilac [...]313
No entanto, essa boêmia não era apenas divertimento e desperdício de
energias como pensavam os escritores ligados aos grupos que defendiam uma
“literatura séria”, mas um espaço favorável para a produção literária. Nos ambientes
de vida boêmia, de acordo com Raimundo Menezes, se traçavam “planos de
grandes revistas de arte, jornais de combate, poemas, romances, projetos jamais
realizados...” e que morriam “no fundo dos copos”. Se os grandes projetos falhavam,
nesses lugares nasciam versos de Bilac, de Severiano de Rezende, de Guimaraens
Passos, assim como crônicas e conferências. Era de lá que, segundo Menezes, se
originavam o melhor da sátira, da literatura bem-humorada e irreverente, indo “do
mais fino esprit gaulois à chalaça, de sal grosso, passando por todas as gamas da
pilhéria”.314
Luiz Edmundo, por sua vez, comentou o sucesso das missas que Severiano
de Rezende celebrava na Catedral Metropolitana.
Quando prega, os seus sermões provocam uma assistência
enorme. São verdadeiros recitais literários, rendez-vous de elegância
e de chic: naves transbordantes de gente, de gente boa, educada e
fina, senhoras de Botafogo, das Laranjeiras, da Tijuca, roçagando
sedas, trescalando perfumes, que vêem mais para ouvir o homem,
diga-se sem mentir, que o sacerdote de Deus. Um sucesso mundano
que impressiona a padralhada que não se barbeia e ainda toma rapé.
E a fila dos coupés, dos phaetons, dos landeaux, em parada, à porta
da igreja, como por uma grande noite de ópera no teatro lírico! 315
Já a postura combatente adotada por José Severiano de Rezende fez muitos
desafetos. A isso se refere Agripino Grieco no livro Evolução da prosa brasileira:
313
EDMUNDO, 1938, v. 2, p. 582 e 652.
MENEZES, 1966, p. 65-66.
315
EDMUNDO, 1938, v. 2, p. 648-649.
314
130
Homem que parecia ter nascido debaixo do signo de
Sagitário, era dos que andam sempre trêmulos de indignação diante
da vida. Sentindo o horror da democracia atéia, os seus rancores de
sacerdote custavam muito a cicatrizar. E por isso que não era
conformista, animal gregário, provocava, de artigo em artigo,
dezenas de desafetos, dado o tom de sarcasmo esfrangalhante com
que redigia esse destemperado d’Artagnan de batina, essa
curiosíssima figura de boêmio do clero, sempre indeciso entre o
sermão e o folhetim.316
Então, devido ao grande número de boatos que circulavam sobre o
comportamento do Padre Severiano, o Arcebispo do Rio tentou convencê-lo a se
enquadrar dentro do modelo de vida sacerdotal aceito pela Igreja Católica ou teria
que ser transferido para o interior de Minas Gerais segundo a narrativa de Luiz
Edmundo. Inconformado, Severiano de Rezende resolveu deixar a batina e se
dedicar ao trabalho jornalístico. Alguns anos depois, mudou-se para Paris.317 A partir
daí, a sua colaboração na imprensa brasileira ocorreu de forma descontínua, tendo
se intensificado em 1922, ano em que viveu novamente no Rio de Janeiro e passou
a escrever artigos para o jornal A Notícia318 com temática também variada, como
havia feito no Correio da Manhã. Severiano de Rezende desenvolveu reflexões
sobre modernização, artes plásticas, teatro, arquitetura, política brasileira e questões
literárias. Entre os textos relacionados à literatura destacam-se os que ele escreveu
sobre Alphonsus de Guimaraens e Lima Barreto.
No momento em que se iniciaram as manifestações simbolistas em Belo
Horizonte, José Severiano de Rezende e Alphonsus de Guimaraens encontravam-se
no interior de Minas. Justamente por adotar uma perspectiva internacionalista,
316
GRIECO, 1947, p. 157. Índice da desconfiança ou da antipatia que os seus textos geravam nos
intelectuais que tinham uma posição dominante no meio literário são as palavras de Joaquim Nabuco
em uma carta a Oliveira Lima. Questionado sobre a sua posição em relação à eleição em que
Severiano de Rezende concorreu, Nabuco declarou que Severiano podia esperar, pois tinha “talento
para subir e muito”, desde que deixasse as polêmicas de lado. Para Nabuco, a polêmica era um um
gênero que a Academia não deveria estimular. NABUCO apud MAGALHÃES JUNIOR, 1981, p. 248.
317
Na maior parte do tempo em que viveu na Europa, José Severiano de Rezende morou na França,
onde, além do trabalho jornalístico que desenvolveu na imprensa francesa, teve um cargo burocrático
no Consulado do Brasil. O seu retorno ao Brasil, em 1922, estava relacionado a processos de
transferência para outros países que foram recusados pelo escritor. Em 1919, o Ministério das
Relações Exteriores queria transferi-lo para Cádiz, na Espanha, e, em 1921, para Yokohama, no
Japão. Apesar de seus esforços para continuar em Paris, em 25 de julho de 1921, foi transferido para
o Consulado Brasileiro de Cardiff, na Grã-Bretanha. Esta estadia em Cardiff durou apenas alguns
meses, pois, em 16 de agosto de 1922, estava novamente no Brasil.
318
No time de colaboradores de A Notícia, merecem ser destacados Medeiros de Albuquerque e João
do Rio. Cf. BROCA, 2005, p. 296.
131
cosmopolita, evidenciada na já referida entrevista a João do Rio,319 Severiano de
Rezende preferiu apenas colaborar nos periódicos simbolistas mais relevantes de
Belo Horizonte. Quanto a Alphonsus, desempenhou um papel de orientador para os
jovens escritores da nova capital de Minas. Eles consideravam a sua poesia um
modelo a seguir. Já Álvaro Viana assumiu o papel de líder do movimento e manteve,
através de Horus, os laços afetivos e literários entre os simbolistas mineiros e
paulistas. A correspondência entre Freitas Valle e Álvaro Viana demonstra a
continuidade de tais laços. Os assuntos principais dessas cartas giravam em torno
da polêmica entre Álvaro Viana e Mendes de Oliveira, da recepção da revista Horus
no exterior e em Belo Horizonte, além das dificuldades encontradas com a edição e
a venda deste periódico.
Em carta de 4 de julho de 1902 a Freitas Valle, que
participava com versos, sugestões e apoio financeiro para a revista,
Álvaro Viana fala de honrosas referências vindas do Porto, em
Portugal, mas se ressente das parcas subscrições, ainda que tenha
chegado uma do longínquo Rio Grande do Sul. Prova, para ele, de
que o público queria ler, mas não se dispunha a pagar. Depois
reclama de O Prego, periódico crítico e humorístico dirigido por um
grupo de estudantes de Direito de Belo Horizonte, que o acusara de
transformar a recém-lançada Horus em “cano de esgoto para
conduzir suas nefelibatices literárias”.320
Freitas Valle e Álvaro Viana também trabalharam juntos na edição, divulgação
e intermediação na venda das obras de Alphonsus de Guimaraens. Essa equipe
funcionava da seguinte forma:
Mesmo longe do cenáculo, Alphonsus de Guimaraens
continuava produzindo, enquanto os amigos tratavam de auxiliá-lo,
promovendo seu trabalho. No dia 6 de maio de 1902 o poeta mineiro
acusava o recebimento de cinqüenta exemplares do livro Setenário
das dores de Nossa Senhora, enviados pela Casa Garraux. E, como
o Ginásio do Estado acabara de adotar a obra por indicação de Valle,
remetia-lhe procuração para tratar da reedição e combinar o preço.
319
320
Ver p. 77.
CAMARGOS, 2001, p. 148.
132
Ao mesmo tempo, Álvaro Viana, que de Belo Horizonte cuidara da
impressão de Kiriale, incumbia-se também da divulgação. Informava
Alphonsus em 21 de outubro daquele ano que encaminhara
exemplares aos jornais do Rio de Janeiro e outros ao caro D’Avray,
para expô-los à venda em São Paulo.321
A importância de Freitas Valle na formação da rede simbolista brasileira foi
muito grande. O mecenas mantinha relações de amizade com os escritores mais
representativos dos grupos do Sul e do Sudeste.
Na corte de Vila Mariana, reinava soberana a figura carismática de
Jacques D’Avray, que incorporava o espírito do simbolismo,
articulando diálogos entre os confrades dispersos. Na Faculdade do
Largo de São Francisco conhecera estudantes que se tornariam
vultos de peso no simbolismo brasileiro, como Emiliano Perneta,
Mário Pederneiras e Venceslau de Queirós. Continuou cultivando
intensa amizade tanto com aqueles que haviam passado por São
Paulo para fazer o curso de Direito – caso de Alphonsus de
Guimaraens e de Severiano de Rezende – quanto com os irmãos
Álvaro Viana e Augusto Viana do Castelo, além de Alberto Ramos,
Adalberto Guerra Duval, Adolfo Araújo (fundador de A Gazeta, de
1906), Ribeiro Couto, Filipe de Oliveira, Homero Prates e Álvaro
Moreyra. Numa atitude de vassalagem a Freitas Valle, eles faziam da
adulação irrestrita demonstração de fidelidade e coesão literária.322
Severiano de Rezende começou a frequentar a casa de Freitas Valle, na Vila
Mariana, em São Paulo, apenas na década de 1910. Para homenagear os que lá
compareciam e o seu amigo Freitas Valle, escreveu um soneto cuja primeira versão
intitulava-se justamente “Villa Kyrial”. Entretanto, o poema foi publicado em Mistérios
com o título “Atenéia”.
Certo, ó clara mansão, dominas, tabernáculo,
Em que a Arte vive sem que a entenebreça o Mal.
321
CAMARGOS, 2001, p. 146. Além disso, Freitas Valle também negociou com Gustavo Figueiredo
uma colaboração remunerada para Alphonsus na revista O Eco. É o que informa a carta do escritor e
mecenas paulista para o amigo mineiro em 16 de setembro de 1916. Cf. VALLE apud BUENO, 2002,
p. 58.
322
CAMARGOS, 2001, p. 136.
133
Em ti reside e atua a Força contra o obstáculo,
Fulge em ti Messidor e resplende Floreal.
O alvo rubro pendão freme-te no pináculo
E sintetiza o nosso ínclito e puro ideal:
Volver para a Beleza intenso o Ser imáculo
Ao palpitar do teu nome augusto e lirial.
Que pois o nosso afã seja sempre pleonástico,
Seja o nosso ademã sóbrio porém patético
E eterno o Amor que dentro em nós arde e transluz.
Porque é mister viver tendo algo de entusiástico
Na alma alheia ao que é rude, errático e frenético,
A fim que ela receba a bênção de Jesus.323
As homenagens poéticas de Severiano de Rezende também foram dirigidas
aos familiares de Freitas Valle. É o que se nota no conjunto de poemas intitulado
“Painéis Zoológicos”.324 Essa adulação era expressão de amizade e, ao mesmo
tempo, um modo de retribuir os favores que costumava pedir a Freitas Valle como
demonstram as suas cartas.325 Alphonsus também utilizou o recurso das
dedicatórias como forma de demonstrar apreço e gratidão. O simbolista mineiro
dedicou a Jacques d’Avray, o “Prince Royal du Symbole et Grand Poète Inconnu”, o
livro Câmara Ardente. Também escreveu o soneto-epitáfio “Pour le tombeau de
Jacques d’Avray” e a dedicatória de “Ocaso”, que faz parte do livro Kiriale. No caso
da relação de Freitas Valle com Álvaro Viana, a grande quantidade de poemas de
Freitas Valle publicados na revista Horus e a foto do poeta que aparece em
destaque cumprem o mesmo objetivo de “vassalagem” ao proprietário da Villa Kyrial.
Outra manifestação de homenagem foi a dedicatória do poema “In excelsis”, em que
Viana repete o epíteto de “Prince du Symbole” que Alphonsus havia dado ao poetamecenas.
Ao mesmo tempo em que Freitas Valle atuava como agitador cultural da
cidade de São Paulo em seu salão, Adolfo Araújo liderava o Simbolismo na área do
323
REZENDE, 1971, p. 118.
O soneto “O cágado” foi dedicado a Cyro de Freitas Valle, “As rãs”, a Leilah de Freitas Valle, “O
Jararacuçu”, a Daphnis de Freitas Valle e “A girafa”, a José de Freitas Valle Filho. Todo o conjunto de
poemas foi dedicado a Freitas Valle, assim como o soneto final, “O hipogrifo”.
325
Sobre esses pedidos de ajuda financeira e de apoio político, ver a biografia de José Severiano de
Rezende na dissertação escrita por Renato de Lima Júnior (2002) e o livro de Márcia Camargos
(2001).
324
134
periodismo. Em 1896, ele fundou, junto com Alberto Ramos, o jornal A Vida de Hoje
e, em 1906, criou e dirigiu A Gazeta. Ambos veiculavam textos dos simbolistas em
São Paulo.
Segundo Alfredo Bosi, as obras de alguns poetas de São Paulo repercutiam a
poesia de Alphonsus de Guimaraens, o que demonstra a estreita ligação do
movimento simbolista mineiro com o paulista.
Ligados aos mineiros desde os anos acadêmicos estão os poetas de
São Paulo: Jacques d’Avray (pseudônimo de Freitas Vale), que
versejava em francês e era chamado por Alphonsus “grand poete
inconnu, Prince Royal du Symbole”; Adolfo Araújo, fundador de A
Gazeta; Júlio César da Silva, irmão de Francisca Júlia e co-autor dos
poemas didático-religiosos desta, Antônio de Godoi..., todos ecoando
a maneira do patriarca de Mariana.326
A participação de Alphonsus de Guimaraens em A Gazeta foi mais
comentada por causa da remuneração oferecida pelo editor do que propriamente
pelos textos que enviou ao jornal.327 No entanto, este órgão de imprensa paulista
desempenhou, juntamente com os periódicos de Belo Horizonte, o Jornal do
Comércio, de Juiz de Fora, e os jornais marianenses O Alfinete e O Germinal, um
importante papel na divulgação da obra em verso e prosa de Alphonsus entre 1906
e 1921. Muitas vezes, Alphonsus enviava o mesmo poema para mais de um jornal.
Por exemplo, os poemas “Foi tua beleza?”, “As ovelhas vão para o aprisco...” e
“Vinha nascendo a aurora como nasce” foram publicados tanto em A Gazeta quanto
no Jornal do Comércio. Vários textos em prosa de Alphonsus de Guimaraens
publicados no livro Mendigos e outros que foram reunidos sob a denominação
“Crônicas de Guy d’Alvim” na Obra completa, de 1960, saíram primeiramente nas
páginas de A Gazeta. Segundo João Alphonsus, as crônicas mostravam que seu pai
acompanhava a vida na Pauliceia pelos jornais que recebia no interior de Minas.
326
BOSI, 1970, p. 318-319.
O ordenado oferecido para que Alphonsus de Guimaraens trabalhasse na redação de A Gazeta foi
de 400 mil-réis, uma grande soma para a época. Cf. BROCA, 2005, p. 286.
327
135
Imbuído da vida ativa da Paulicéia, revivendo-a intensamente
dentro da quietude provinciana através dos jornais paulistanos que
recebia, conhecedor de tipos e vultos que permaneciam no cartaz,
pôde mesmo durante anos manter uma série de crônicas satíricas,
de comentários humorísticos em torno de pessoas e fatos,
notadamente na polêmica mantida entre A Gazeta e o velho Diário
Popular, o “Popularíssimo”.328
Por meio de cartas, Freitas Valle também o mantinha informado sobre as
conferências que promovia na Villa Kyrial onde os jovens escritores, futuros
modernistas, tiveram contato com o trabalho do simbolista mineiro.329
Por outro lado, as colaborações de Alphonsus de Guimaraens no Jornal do
Comércio, de Juiz de Fora, resultaram na sua entrada para a Academia Mineira de
Letras, fundada naquela cidade em 1909. Entre os fundadores da Academia Mineira
de Letras, havia um grupo de escritores com quem Alphonsus mantinha relações de
amizade. Dois deles merecem ser ressaltados: Heitor Guimaraens, o editor do Jornal
do Comércio, e Belmiro Braga. O convite para integrar a academia de Minas
representou um momento importante no processo de inclusão da obra de Alphonsus
de Guimaraens no cânone literário brasileiro.330
O tímido namoro de Alphonsus com a vida literária acadêmica produziu um
acontecimento memorável em 1915. Severiano de Rezende, que havia voltado ao
Brasil com a intenção de resolver assuntos relacionados ao seu cargo no Consulado
em Paris, aproveitou para visitar Belo Horizonte e se encontrar com Alphonsus de
328
ALPHONSUS, 1960, p. 40.
Freitas Valle acolheu os modernistas no seu salão. Segundo Márcia Camargos, ele foi, além de
amigo dos protagonistas da Semana, o “financiador e colaborador do cenáculo simbolista mineiro que
teria como estrela maior Alphonsus de Guimaraens” e um “articulador político cuja atuação legislativa
centrou-se no ensino e no fomento das artes.” CAMARGOS, 2002, p. 65.
330
O movimento de Alphonsus no sentido de fazer parte de instituições literárias fora do eixo Rio-São
Paulo deve ser visto como um modo de divulgação de sua obra em círculos mais afastados dessas
grandes cidades. É o que sugere um curioso fato. Além da Academia Mineira, Alphonsus também se
tornou membro da Academia de Letras do Piauí. Não se sabe como isso ocorreu, mas Alphonsus de
Guimaraens Filho supôs que ele integrou a instituição piauiense na categoria de membrocorrespondente. Em carta ao filho João Alphonsus, o poeta simbolista elogiou a revista da academia
piauiense: “Acabo de receber a revista da academia de letras do Piauí, que é um verdadeiro
mostruário de jóias. Gente talentosa essa do norte!”. GUIMARAENS apud BUENO, 2002, p. 27.
Guimaraens Filho observou muito bem que devia ser um motivo de orgulho para seu pai fazer parte
dessas instituições pois ele colocou na capa do livro Mendigos as seguintes palavras: “páginas de
Alphonsus de Guimarães (sic), da Academia Mineira, da Academia Piauiense”.
329
136
Guimaraens num evento organizado por intelectuais mineiros.331 A maioria desses
intelectuais integravam a Academia Mineira de Letras e o evento celebrava o talento
dos dois poetas, além de marcar a transferência da instituição para Belo
Horizonte.332
A crônica mais significativa desse acontecimento literário foi publicada por
José Osvaldo de Araújo na revista A Vida de Minas, sob o pseudônimo de J.
Menestrel.333 Apesar de seus pendores parnasianos, José Osvaldo de Araújo, ao
editar o Diário de Minas, também deu espaço para a colaboração dos simbolistas e
dos jovens escritores que fariam parte do movimento modernista. Cumpre lembrar
que João Alphonsus e Horácio Guimarães já trabalhavam para o Diário de Minas,
quando, em 1921, Alphonsus de Guimaraens e Carlos Drummond de Andrade
começaram a redigir para este mesmo periódico. Um laço estético e afetivo, uma
rede de amizade e de trocas literárias se formou entre simbolistas e modernistas.334
A admiração que os jovens escritores mineiros tinham pelo Simbolismo,
especialmente pela poesia de Alphonsus de Guimaraens, era muito grande.
331
O Diário de Minas noticiou o evento, considerando-o como a celebração literária mais importante
ocorrida em Belo Horizonte até então: “Sem cair no exagero, poderemos afirmar que jamais em Belo
Horizonte houve tão ampla, tão fina e tão sincera manifestação de apreço a homens de letras, como
a de ontem, promovida por amigos das boas letras.” UMA festa consagradora. Diário de Minas, Belo
Horizonte, 26 set. 1915, p. 1-2.
332
Estiveram presentes na homenagem realizada no Clube Acadêmico: Archangelus de Guimaraens,
Álvaro da Silveira, Nelson de Sena, Abílio Machado, Arduíno Bolívar, Carlos Góis, Mário de Lima,
João Lúcio, Gastão Itabirano, Horácio Guimarães, Osvaldo Freitas, Genesco Murta, Silva Guimarães,
Aldo Delfino, Artur Ragazzi, Mendes de Oliveira, Abílio Barreto, entre outros. O discurso de saudação
aos dois simbolistas foi proferido por Álvaro da Silveira, presidente da Academia Mineira de Letras.
333
Jornalista, professor, político e poeta, José Osvaldo de Araújo (1887-1975) ocupou a cadeira
número 2 da Academia Mineira de Letras. Além disso, foi professor de Literatura Brasileira na
Universidade Federal de Minas Gerais e editor do Diário de Minas. Admirador de Alphonsus, ele foi
até Mariana na década de 1910, acompanhado de outros intelectuais, para entregar ao poeta a coroa
de príncipe dos poetas mineiros. Ao saber do motivo da visita, Alphonsus teria exclamado: “Pobre
Príncipe! Pobre Príncipe!”. GUIMARAENS FILHO, 1995, p. 373.
334
Em Beira Mar, Pedro Nava evocou o grupo de intelectuais que trabalhavam no Diário de Minas no
início da década de 1920: “Eu não fazia parte do jornal mas frequentava-o assiduamente, atraído pela
boa companhia e pelos bondes formidáveis feitos na redação. Sabia encontrar lá José Osvaldo de
Araújo, Horácio Guimarães, Eduardo Barbosa (‘O Bola’), o Carneiro, João Alphonsus, Carlos
Drummond de Andrade. Esses, da casa, fora outros habituês para a palestra como Mário Matos,
Aníbal Machado, Milton Campos, Pedro Aleixo, Abílio Machado. Ninguém se importava com a cor
política do jornal. Acho que nem mesmo os redatores. O essencial era o ponto de conversas...”
NAVA, 2003, p. 182-183. Para termos idéia das ramificações dessa rede, o escritor e jornalista
Horácio Guimarães também se tornou colaborador na revista literária Novela Mineira, fundada por
José Osvaldo de Araújo no início da década de 1920. Era uma publicação de caráter eclético. Entre
seus colaboradores estavam Carlos Drummond de Andrade, Aníbal Matos, Silva Guimarães e Mário
de Lima.
137
Vejamos agora a participação de Severiano nas redes literárias de São Paulo
nesta mesma época. O autor de Mistérios esteve em São Paulo participando da vida
literária nos salões da Villa Kyrial e também da homenagem que os intelectuais
fizeram ao poeta Emílio de Menezes. O soneto “O hipopótamo”, de Severiano de
Rezende, foi publicado em 4 de setembro de 1915 no número especial da revista O
Pirralho, dedicado a Menezes.335
Como se sabe, O Pirralho foi uma revista criada por Oswald de Andrade e
teve uma grande importância no período anterior à Semana de 22. Juntamente com
o número especial dedicado a Emílio de Menezes, Oswald de Andrade também
organizou um festival no salão do Conservatório Dramático e Musical em
homenagem ao poeta. Entre os colaboradores da revista, além de Severiano,
estavam Coelho Neto, Amadeu Amaral, Plínio Barreto, Leal de Sousa, Monteiro
Lobato e Antônio Torres. Talvez tenha sido por meio desta publicação que
ocorreram os primeiros contatos de José Severiano de Rezende com os jovens que
posteriormente fizeram o movimento modernista. Anos depois, outros encontros
entre os modernistas e Severiano aconteceram em Paris.
Ao fim de alguns meses, Severiano de Rezende retornou à Europa e
continuou o seu trabalho no Consulado. Ao mesmo tempo, fazia conferências,
colaborava em periódicos europeus, frequentava salões literários e participava da
boêmia parisiense. A sua obra literária, que começou a ser conhecida na Europa a
partir da primeira edição em português d’O meu flos sanctorum pela editora
Chardron, do Porto, passou a ser mais divulgada por volta do final da década de
1920, após a publicação de algumas traduções para o francês de versos que faziam
parte de Mistérios. Mas antes disso, em 1909, Philéas Lebesgue publicou uma
pequena nota crítica sobre O meu flos sanctorum no Mercure de France,
considerando-o como uma obra inovadora no seu gênero.
O meu flos sanctorum, de José Severiano de Rezende, é, ao
mesmo tempo, um livro de estilo e um livro de fé. O calendário dos
santos desperta interesse à maneira de uma série de poemas, e é
335
Este soneto foi publicado posteriormente no livro Mistérios, mas com dedicatória a Antônio
Parreiras. Cf. REZENDE, 1971, p. 83.
138
admirável como, graças a muita arte, o autor soube renovar seu
tema, sem resvalar na fria banalidade dos manuais religiosos. Uma
elevada filosofia, dotada de todos os seus argumentos de defesa,
ilumina essas convictas variações a respeito da Lenda dourada.
Estes textos em prosa são belos como rosas plantadas no adro da
igreja. [...] É que José Severiano de Rezende, como Louis Le
Cardonnel, é essencialmente poeta.336
Em 1914, esse livro foi traduzido para o tcheco por Antonín Ludvík Stríz,
doutor em Literatura Eclesiástica da Idade Média, e uma editora católica de Praga o
publicou com grande apuro gráfico. A tiragem foi de apenas 380 exemplares, sendo
15 em papel japonês. Essas características indicavam que O meu flos sanctorum
recebera um aval de qualidade.
Philéas Lebesgue foi quem fez a leitura mais profunda da obra poética de
José Severiano de Rezende na França. O primeiro contato dos dois foi por
correspondência. Severiano enviou ao crítico francês alguns de seus versos e o livro
O meu flos sanctorum. Em sua resposta, Lebesgue manifestou o desejo de
conhecer o poeta mineiro pessoalmente e elogiou o seu trabalho.337
336
LEBESGUE, 1909, p. 762, tradução nossa. No original: “Mon Flos Sanctorum, de José Severiano de
Rezende, est également un livre de style en même temps qu’un livre de foi. Ce calendrier des saints
offre l’intérêt d’une suite de poèmes, et c’est miracle comme, à force d’art, l’auteur a su renouveler son
sujet, sans glisser dans la banalité glaciale des manuels de piété. Une haute philosophie, que l’on sent
pourvue de tous ses moyens de défense, illumine ces variations convaincues sur la Légende dorée. Ces
proses sont belles comme des roses semées au parvis du saint lieu. [...] C’est que José Severiano de
Rezende, comme Louis Le Cardonnel, est essentiellement poète."
337
“Caro Senhor, eu lhe sou profundamente agradecido de ter me feito conhecer o poeta potente que
me fazia pressentir o Flos Sanctorum. De ritmos rigorosos e densos pensamentos, os versos admiráveis
que o Senhor compilou para mim de seu próximo livro Mistérios têm um caráter tão pessoal que eles
não lembram nenhuma influência precisa e que se sente brotar diretamente de sua alma. [...] É muito
importante para mim poder entrar em relação com uma alma tal como a sua e por que eu não poderia
conhecê-lo pessoalmente em uma das minhas viagens a Paris? Por enquanto, eu espero que o Senhor
faça o favor de escrever-me ainda algumas vezes em português ou em francês, a sua escolha, já que o
senhor domina tão bem as duas línguas irmãs. Eu gostaria que o senhor me falasse de seu país ao
qual eu votei toda a minha afeição por causa dos espíritos valorosos que o ilustravam e [sobre os quais]
tenho ainda necessidade de ser esclarecido.” LEBESGUE apud DORNAS FILHO, 1972, p. 2, tradução
nossa. No original: “Cher Monsieur, je vous suis profondément reconnaissant de m’avoir [fait] connaître
le poète et (sic) puissant que me faisait (sic) pressentir le Flos Sanctorum. Sévères de rythme et lourds
de pensée, les vers admirables que vous extrayez pour moi de votre prochain recueil Mysterios ont un
accent si personnel qu’ils ne rappellent aucune influence précise et qu’on les sent jaillir à cru de votre
âme.[...] Il m’est précieux de pouvoir entrer en relations avec une âme telle que la vôtre et pourquoi ne
pourrais-je pas faire un jour votre connaissance personnelle à l’un des mes voyages à Paris ? / En
attendant, j’espère que vous voudrez (sic) bien quelques fois m’écrire encore, en portugais, ou en
français à votre choix, puisque vous maniez si bien les deux langues sœurs. J’aurai (sic) besoin que
vous me parliez de votre pays auquel j’ai voué tout mon affection à cause des esprits vaillants qui
l’illustraient et j’ai besoin d’être éclairé encore."
139
Curiosamente, a poesia de Alphonsus já havia sido divulgada na Europa,
muito antes de Severiano se mudar para a França, pelo mesmo crítico. Em 1903,
Philéas Lebesgue publicou um texto intitulado “L’empire latin” na revista Le Beffroi,
de Lille, em que mencionava o autor de Setenário das dores de Nossa Senhora.338
Uma síntese desse artigo foi feita por Pierre Rivas no livro Encontro entre literaturas.
Trata-se ainda do império grego-latino contra a Alemanha,
que acaba por se entender até o Rio. Ele [Lebesgue] esboça um
quadro da poesia do Parnaso ao Simbolismo, de Cruz e Souza – “um
Walt Witman de outro gênero” – até Figueiredo Pimentel, passando
por Nestor Vítor, pelo “fervente ocultista” Dario Veloso, por Pethion
de Vilar, por Xavier Marques, pelo “verlainiano” Alphonsus de
Guimarães (sic), e de quem traduz um soneto e pelos “parnasianos
fáceis” Correia ou Bilac.339
Antes da obra poética de Severiano ter sido reunida e publicada no livro
Mistérios, o simbolista mineiro foi construindo uma carreira jornalística na França, ao
mesmo tempo em que estabelecia relações com alguns escritores e jornalistas
portugueses.
Na França, Severiano colaborou em Le Courrier du Brésil,340 em 1910, com
dois artigos que tratavam de literatura brasileira. O primeiro, “Un poète brésilien à
Paris”, girava em torno da poesia e da figura de Olavo Bilac, representado como um
dândi e um flâneur em uma de suas estadias na capital francesa.341 Neste artigo,
Severiano incluiu um soneto de Bilac, “Maldição”, e a sua tradução em francês. O
338
Entre os colaboradores de Le Beffroi estavam René Ghil, Charles Morice, Émile Verhaeren e
Albert Mockel.
339
RIVAS, 1995, p. 157. O soneto de Alphonsus de Guimaraens traduzido por Lebesgue foi publicado
em Le Beffroi, fasc. 39, nov. 1903.
340
Fundado em 1907, o semanário Le Courrier du Brésil era, nos primeiros anos do século XX, o
principal órgão de informação na França sobre o Brasil. Nele, havia noticiário das efemérides, textos
sobre a economia e a vida social. Além disso, também dava espaço para a literatura. Cf. RIVAS,
1995, p. 138.
341
O artigo sobre Bilac foi publicado um ano após uma noitada de um grupo de boêmios brasileiros
em Paris que parecia ser a continuação da irreverente boêmia carioca no território francês. Entre os
participantes da noitada em Paris estavam Olavo Bilac, Severiano de Rezende e Bernardino Lopes.
Já o envolvimento de Severiano de Rezende com a vida boêmia propriamente parisiense foi relatado
por Gilberto Amado. Segundo este autor, Severiano era um dos poucos brasileiros que costumavam
freqüentar a boêmia de Montparnasse na época áurea das vanguardas artísticas. Cf. AMADO, 1960,
p.97-98 e AMADO, 1956, p. 258.
140
segundo artigo, “Le Brésil littéraire”, constitui um importante exemplo do papel de
mediador cultural desempenhado por Severiano de Rezende na França. Nele, o
escritor buscou apresentar as riquezas intelectuais do Brasil, desenvolvendo a tese
de que a cultura produzida no Brasil era consequência de sua tradição étnica e de
seu afeto pela França. Apesar de reconhecer as influências francesas, Severiano
não considerava haver imitação servil por parte dos artistas e escritores brasileiros.
Ele formulou uma expressão para caracterizar a atitude dos brasileiros em relação
aos elementos de empréstimo: a “assimilação simpática”. Trata-se de uma reflexão
curiosa, antecipando, em muitos anos, as idéias modernistas, especialmente as de
Oswald de Andrade acerca da arte e da literatura criadas por um processo de
incorporação crítica das culturas estrangeiras. A diferença estaria no componente
violento implícito na antropofagia oswaldiana, enquanto, no caso de Severiano, a
expressão “assimilação simpática” sugeriria uma apropriação mais “cordial”.
Nossa língua, nossa literatura, nossa arte revelam a ascendência
da França sobre o nosso espírito. Nós não copiamos. Não existe imitação
impessoal, plágio inconsciente, mimetismo parasitário, mas uma
assimilação simpática que nunca se realiza em detrimento do caráter
próprio da raça brasileira, muito definido e muito distinto. 342
Nesse esforço de divulgação da literatura brasileira no periódico Le Courrier
du Brésil, Severiano mencionou os dois grandes nomes do Simbolismo brasileiro em
um trecho que é bastante revelador da sua posição crítica que consistia em
estabelecer termos de comparação, explicitando semelhanças e empréstimos, com
os autores franceses. O texto menciona o aparecimento de um projeto de uma
literatura autenticamente nacional. Refere-se, então, a José de Alencar como um
dos que tentaram desenvolver essa nacionalização escrevendo narrativas com
temas indígenas, mas que denunciavam uma herança da literatura romântica
francesa. Já Alphonsus de Guimaraens e Cruz e Souza, para Severiano, teriam
342
REZENDE, José Severiano de. Le Brésil littéraire. Le Courrier du Brésil, Paris, 5 mai. 1910, p. 5-6,
tradução nossa. No original : "Notre langue, notre littérature, notre art révèlent l’ascendant de la
France sur notre esprit. Nous ne copions pas, ce n’est pas du calquage impersonnel, du plagiat
inconscient, du mimétisme parasitaire, mais une assimilation sympathique, qui ne s’opère jamais aux
dépens du caractère propre de la race brésilienne, très défini et très tranchant."
141
sabido renovar os feitos heróicos, as experiências bem-sucedidas dos decadentistas
franceses. Uma renovação poética obtida através da mencionada “assimilação
simpática”.343
Façamos agora um preve percurso por alguns elementos que evidenciam a
relação de Severiano de Rezende com o meio cultural português. Enquanto
mantinha contatos com a intelectualidade francesa, José Severiano de Rezende
colaborava em periódicos lusitanos. Assim, publicou, por exemplo, “O poema do
instinto”, “Nomen...numen...lumen” e “O pintor Antonio Parreiras” na revista Atlântida,
de Lisboa, que era editada por João de Barros e João do Rio, com o objetivo de
estreitar os laços entre o Brasil e Portugal. Os editores da revista acreditavam em
uma
comunidade
luso-brasileira
baseada
em
afinidades
de
sentimento,
semelhanças de temperamento e numa mesma origem.344 Ideias semelhantes a
essas foram defendidas por Severiano de Rezende na crônica “O nosso Irmão”,
publicada n’A Notícia, em 1922. É interessante observar a menção elogiosa ao
escritor e editor João de Barros, demonstrando a concordância com as ideias de
Atlântida.
343
"O Naturalismo produziu no nosso país um dos seus mais zolescos representantes na pessoa de
Aluízio Azevedo, o pintor de nossa vida social, e seu estilo nervoso é bem mais apreciado que o de
Machado de Assis, um humorista no gênero americano, cujos contos, todavia, refletem a sutileza e a
elegância gaulesas. Os poetas Alphonsus de Guimaraens e Cruz e Souza renovaram as façanhas
dos decadentistas, enquanto Emílio de Menezes é um Heredia realizando sonetos perfeitos. No
jornalismo, João do Rio é um parisiense errante pelas ruas, de onde ele observa a intensa vida
multiforme e o espírito de Montmartre, que comenta os acontecimentos notórios do cotidiano, brilha
nas gazetas e nas canções. Houve uma época em que foram feitas tentativas de abrasileirar a
literatura: José de Alencar, com todo o seu talento, não conseguiu tornar estimadas suas histórias de
índios e de selvagens, algumas das quais eram escritas, todavia, no estilo de Paulo e Virgínia, de
Atala, dos Natchez.” REZENDE, José Severiano de. Le Brésil littéraire. Le Courrier du Brésil, Paris, 5
mai. 1910, p. 5-6, tradução nossa. No original :"Le naturalisme a produit chez nous un de ses plus
zolaesques représentants, en la personne d’Aluizio Azevedo, le peintre de notre vie sociale, et son
style nerveux est bien plus goûté que celui de Machado de Assis, un humoriste dans le genre
américain, dont quelques contes, néanmoins, relèvent de la finesse et de la grâce gauloise. Les
poètes Alphonsus de Guimaraens et Cruz e Souza ont renouvelé les exploits des décadents, tandis
que Emilio de Menezes est un Heredia exécutant des sonnets parfaits. Dans le journalisme, João de
Rio est un Parisien égaré dans les rues dont il observe l’intense vie multiforme et l’esprit montmartrois,
qui commente au jour le jour les événements notoires, pétille là-bas dans les gazettes et dans les
chansons. Il y a eu un temps ou des tentatives de brésilieniser la littérature furent lancées ; José de
Alencar, avec tout son talent, n’a pu faire goûter ses histoires d’indiens et de sauvages, dont
quelques-unes étaient pourtant écrites dans le genre de Paul et Virginie, d’Atala, des Natchez."
344
Esta publicação pode ser aproximada da proposta editorial que fundamentava o Almanaque de
Lembranças Luso-Brasileiras. De acordo com Eliana de Freitas Dutra (2005, p. 122), o Almanaque
“se esforçou em difundir a idéia de Brasil e Portugal compartilhando uma cultura homogênea. Desta
forma, o encontro entre as duas culturas é pensado como parte de uma continuidade do passado e
do presente.”
142
Portugal e Brasil [...] são irmãos, por um sem número de razões de
toda ordem, que portugueses e brasileiros conhecem e, às vezes,
sentem melhor do que conhecem porque “le coeur a des (sic) raisons
que la raison ne connaît pas”. Somos irmãos no sentido estrito da
palavra e se, por vezes, alguma rusga tenta obumbrar essa
fraternidade, que é ela senão desses arrufos que soem apartar por
um instante os que se amam para melhor unir depois num ardor mais
compreensivo?
[...]
E tu, meu querido João de Barros, tu o personificador disso
tudo, tu o representante desse amor e desses amores de irmãos, tu,
que nos amaste sempre e que sem hesitação tens a certeza do como
e do quanto vos amamos, leva ao teu egrégio Presidente, leva aos
teus galhardos companheiros de missão, o saudar deste teu velho
irmão, que não pôde nunca ver os Estoris e a Torre de Belém e o
Tejo, e Lisboa na colina formosíssima, sem já ir de longe recitando
estrofes de Camões, com os olhos marejados de doces lágrimas
[...]345
A continuidade espiritual entre Portugal e o Brasil também foi tema de textos
escritos por Alphonsus e Horácio Guimarães. A diferença é que Severiano de
Rezende defendia a tese de uma relação fraternal entre os dois países, assim como
a revista Atlântida. Já Alphonsus de Guimaraens escreveu a partir da concepção de
que Portugal era o nosso antepassado,346 enquanto Horácio Guimarães misturou a
ideia de ascendência (“Não é só a afinidade do idioma que nos une: ele é o nosso
avô, o nosso antepassado”) com a de fraternidade (“O português em Minas, como
no resto do Brasil, não é um hóspede. É um irmão. É o nosso bom e querido irmão
d’Além-mar”).347
O texto sobre Antônio Parreiras, publicado em Atlântida, fazia parte do
esforço de divulgação da cultura brasileira realizado por Severiano de Rezende na
Europa. Ele chegou a propor a políticos brasileiros a criação de um centro cultural
em Paris visando a propaganda do Brasil no exterior. Em março de 1918, o poeta
mineiro resumiu a sua proposta em uma carta a Freitas Valle:
345
REZENDE, José Severiano de. O nosso irmão. A Notícia, Rio de Janeiro, 18 set. 1922. Boletim do
Dia: Para matar saudades..., p.2.
346
Sobre este ponto de vista de Alphonsus de Guimaraens, ver capítulo 3.
347
GUIMARÃES, Horácio. Salve Portugal. Diário de Minas, Belo Horizonte, 15 mar. 1901, p. 1.
143
Eu sonhava [...] estabelecer um contínuo e vasto estardalhaçar de
coisas brasileiras em Paris. [...] O que eu havia proposto seria com
pouco dinheiro (sublime). Publicação mensal de uma revista: Les
Annales Brésiliennes, inserindo versos, contos, discursos, romances,
feitos e gestos nossos, com acentuada propaganda clarividente de
nossa língua, geralmente incógnita e confundida com a espanhola.
Anexo a essa publicação, escritório de revistas e jornais nossos,
salão de leitura e biblioteca completa, antiga e moderna, de tudo o
que é nosso, biblioteca q. seria constituída com o auxílio dos Estados
e q. se tornaria formidável em pouco tempo. [...] ser-me-ia habilitado
a organizar conferências, matinées, saraus, com exibição de leituras,
audições musicais nossas, exposição de pinturas, tudo isso
constituindo um núcleo brasileiro no centro dos centros, q. é Paris. Já
expus isso a vários estadistas e parlamentares. Ficou tudo no
tinteiro. E a época é propícia, apesar da Guerra! Mas não perdi a
esperança e vamos ver se o governo Rodrigues Alves quererá fazer
isso.348
Apesar do falecimento de Rodrigues Alves antes da posse, Severiano de
Rezende não abandonou seu projeto, voltando a expor seus planos de divulgação
do Brasil em Paris em uma carta ao Presidente Epitácio Pessoa em 1921. No
entanto, não houve nenhum interesse do governo brasileiro por aquelas propostas.
Mesmo sem um espaço oficial, Severiano de Rezende continuou difundindo a
cultura brasileira nos periódicos franceses.
Enquanto isso, no Brasil, a obra de Alphonsus de Guimaraens estava sendo
lida e divulgada no círculo de Freitas Valle. Em 1919, o poeta mineiro havia recebido
a visita do jovem Mário de Andrade em sua casa. O escritor paulista queria conhecer
a arte colonial de Minas e, passando por Mariana, foi conhecer o autor de Câmara
Ardente. Ao retornar à Pauliceia, Mário de Andrade escreveu uma crônica para a
revista A Cigarra sobre a visita ao simbolista mineiro. Este texto é um documento
inequívoco da admiração que um dos frequentadores dos salões de Freitas Valle
tinha pela obra poética de Alphonsus de Guimaraens.
Passaram-me então pela voz grande cópia de versos maravilhosos
que a nossa gente não sonha, nem imagina – fortunas de poesia,
nababescas, sepultadas numa terra de saudade. Versos encantados,
dos mais lindos da língua portuguesa, dos mais comovidos dos
348
REZENDE apud LIMA JÚNIOR, 2002, p. 119.
144
.
nossos dias, dispersos em revistas que os não realçam, fanando
num ineditismo pasmado e burguês.349
Ao final da crônica, Mário de Andrade questionou a falta de edições da obra
de Alphonsus de Guimaraens, considerada por ele um verdadeiro tesouro brasileiro.
Esse reconhecimento do valor literário da obra de Alphonsus associado à
necessidade de edição/reedição da mesma parece o prenúncio do trabalho editorial
e de divulgação que foi realizado anos mais tarde por outros modernistas:
Os versos inéditos de Alphonsus e os esquecidos em revistas e
jornais dariam para dois e mais volumes; as parcas edições do
Setenário, de Dona Mística, da Kirial (sic),350 acabaram-se... Não
haverá no Brasil um editor que lhe agasalhe os poemas, tirando-os
da escuridão? Não existirá a piedade dum novo bandeirante que vá
descobrir nas Minas Gerais essa mina de diamantes castiços e
lapidados, e deslumbre os da nossa raça com os tesoiros que
Alphonsus guarda junto de si? Onde? Quando o abre-te Sésamo
dessa gruta encantada?...351
A admiração que Mário tinha por Alphonsus era tanta que não foi capaz de
dizer ao autor mineiro que também escrevia poesia. Em carta a Alphonsus de
Guimaraens Filho, o poeta paulista rememorou o acontecimento:
Estive com seu Pai ali pela manhã, mais de uma hora,
naquele escritório poento e cheíssimo de papéis e livros [...] E foi
uma hora de êxtase em que eu não disse nem um bocadinho que era
poeta, Deus me livre! [...] Me apresentei apenas como fan e assim
fiquei todo o tempo.
[...] Eu lia em voz alta, dizem que eu leio bem, os versos que
Alphonsus me mostrava. Comentávamos junto as belezas, só se
falou de poesia [...] Pedi pra copiar o “Vaga em redor de ti...” que ele
349
ANDRADE, 1974, p. 70.
Engano ou ato falho ao mencionar Kiriale, a forma “Kirial” aponta para as relações do título do livro
do poeta mineiro e o nome da mansão de Freitas Valle, Villa Kyrial. De acordo com Péricles Eugênio
da Silva Ramos (1979, p. 232), no título do livro Kiriale “reflete-se o da própria Vila Kyrial”.
351
ANDRADE, 1974, p. 72.
350
145
em seguida se prontificou a autografar. Ora eu me lembro que desde
o dia em que li o “Fatum” numa revista, gostei muito.352
Alphonsus ficou bem impressionado com Mário de Andrade, como se pode
perceber na carta que escreveu para o seu filho João Alphonsus contando a história
da visita.
Há cinco dias esteve aqui o Sr. Mário de Morais Andrade, de
S. Paulo, que veio apenas para conhecer-me, conforme disse. É
doutor em ciências filosóficas. Leu e copiou várias de minhas poesias
(principalmente as francesas), e admirou o teu soneto oferecido ao
Belmiro Braga. É um rapaz de alta cultura, sabendo de cor, em
inglês, todo o “Corvo” de Poe.
[...] A verdade é que para quem vive, como eu, isolado – uma
visita dessas deixa profunda impressão.353
Ao contrário do que podia parecer ou do que muitos críticos disseram, o
“isolamento” de Alphonsus de Guimaraens era relativo. O poeta recebia visitas e
mantinha correspondência com outros intelectuais como o jovem Murilo Mendes
que, além de escrever cartas a Alphonsus, recebeu livros e manuscritos do
simbolista.354 De acordo com Martins de Oliveira, Alphonsus se mantinha atualizado
sobre os movimentos literários de vanguarda. Em 1919, Almeida Cousin e Martins
de Oliveira também foram visitá-lo em Mariana. As conversas que mantiveram com o
poeta simbolista foram relatadas por Oliveira da seguinte maneira:
352
ANDRADE, 1974, p. 26. “Fatum” faz parte de Escada de Jacó. Mário se refere aqui ao poema
autógrafo que Alphonsus lhe deu de presente. Este encontro entre Mário e Alphonsus, que serviu de
tema para o belo poema “A visita”, de Carlos Drummond de Andrade, mereceu um interessante
comentário de Eneida Maria de Souza (1991, p. 8) ressaltando os vínculos estéticos de Mário de
Andrade com Alphonsus, o Simbolismo e a religiosidade: “Do contato do autor de Há uma Gota de
Sangue em cada Poema com o Simbolismo mineiro e o Barroco colonial, ficaram registrados artigos
sobre o Aleijadinho e uma crônica relatando o encontro com Alphonsus. Na bagagem traz dois
poemas autografados do poeta, relíquia que guarda em seu arquivo, comprovando um dos vínculos
que o escritor iria manter com a estética simbolista, principalmente no que se refere à religiosidade.”
353
GUIMARAENS apud BUENO, 2002, p. 26. Esta passagem revela a intenção do poeta em divulgar
a poesia de seu filho João Alphonsus e também que a conversa girou em torno de gostos e
afinidades literárias, como podemos notar na menção a Edgar Allan Poe.
354
Cf. AGUIAR, 2003, p. 32.
146
[...] ali, reunidos em torno do mestre, discutiam LAFORGUE,
LAUTRÉAMONT e, acima de tudo, APOLLINAIRE. Era o cubismo
francês objeto de atenta análise. Foi em 1919... O livrinho, com que
HUYSMANS buscava apregoar a Arte Moderna, ficara velho de meio
século. Passava por leituras e releituras. O sentido do novo, do
original, da abertura de caminhos estéticos, tudo ficava no
pensamento de uns pobres rapazes de Ouro Preto que, na sua
grande velhice, entre ruínas, sorria para a juventude irrequieta.355
Em outro trecho de seu depoimento, Martins de Oliveira concluiu que
Alphonsus não foi o iniciador do Modernismo em Minas, mas o seu precursor:
Será, ao que parece, extremamente difícil a fixação de um
nome que tenha tido a responsabilidade de, com primazia, lançar, em
Minas, o movimento de vanguarda. No presente trabalho, em lugar
próprio, foi invocado o testemunho de JOÃO DORNAS FILHO, que
atribui a CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE a glória de
coordenador de forças e elementos que se espalhavam pelo interior.
Em verdade, ALPHONSUS DE GUIMARAENS tivera prenúncio do
movimento, que, instaurado na Europa, não tardaria a contaminar o
Brasil. Fizera alusões claras dos fatos ao poeta ALMEIDA COUSIN e
a um companheiro deste. Rigorosamente, com CARLOS
DRUMMOND DE ANDRADE e seus amigos é que teve começo em
Minas o movimento.356
Exagero ou não, o fato é que Alphonsus foi tomado como modelo de poeta
moderno por jovens escritores antes da “conversão” ao nacionalismo ocorrida no
movimento modernista. As palavras do depoimento de João Alphonsus no livro de
Edgard Cavalheiro, Testamento de uma geração, são bastante eloquentes sobre as
influências simbolistas (incluindo a de seu pai) sobre ele e outros modernistas. Um
dos trechos mais significativos é o que menciona um provável consentimento de
Alphonsus de Guimaraens à sua participação no movimento modernista.
Sem o meu guia literário, sem o meu amigo mais velho,
naquelas horas de entusiasmo sempre me perguntei como é que
355
356
OLIVEIRA, 1963, p. 209-210.
OLIVEIRA,1963, p. 362.
147
meu pai teria recebido a minha adesão a ideais literários, que na voz
dos teóricos do grupo esparso, também visavam a remanescência do
simbolismo [...] Estou certo de que, dentro da sua serenidade, meu
pai teria aprovado essa adesão, se estivesse vivo.357
É possível observar ainda um diálogo dos jovens escritores mineiros com a
obra do poeta de “Ismália”. Melânia Silva de Aguiar, com muita propriedade,
destacou a função de poeta-guia designada pelos modernistas mineiros para
Alphonsus de Guimaraens.358 Ou seja, Alphonsus de Guimaraens foi incorporado
como precursor pela vanguarda literária.
Sobre essa geração, em quase todos, a sombra unificadora de
Alphonsus de Guimaraens, que se entrelê na poesia de Cecília,
Murilo, Emílio, Henriqueta. Alphonsus de Guimaraens, que os
precede de 30 anos, será, pois, o farol simbolista a guiar todos esses
jovens poetas, estreantes aproximadamente em 1930, e é figura
presente na obra dos três, seja por designação e homenagem clara,
seja pela evocação de seus versos ou atmosfera poética.359
A "descoberta" de Alphonsus pelos jovens escritores brasileiros nas décadas
de 1920 e 1930 foi favorecida pelas edições e reedições que foram organizadas por
alguns modernistas. Em 1923, o livro Pastoral aos crentes do amor e da morte foi
publicado pela editora de Monteiro Lobato com organização de João Alphonsus. O
livro teve um grande impacto nos jovens escritores mineiros. Depois, em 1938,
apareceram as Poesias, edição do Ministério da Educação e Saúde. O livro veio
com “Notícia biográfica” e notas de João Alphonsus e contou com a direção e
revisão de Manuel Bandeira.360 Um detalhe importante nessa edição do Ministério da
Educação é que, na época, o Chefe de Gabinete de Gustavo Capanema era Carlos
357
ALPHONSUS, 1944, p. 157.
AGUIAR, 2003, p. 31-32.
359
AGUIAR, 2003, p. 31-32.
360
É importante ressaltar que João Alphonsus e Alphonsus de Guimaraens Filho foram os maiores
propagandistas da obra do pai.
358
148
Drummond de Andrade, um dos maiores admiradores de Alphonsus entre os
modernistas.361
O poder da estética simbolista em Minas no período anterior ao Modernismo,
especialmente da obra alfonsina, fica muito evidente nas seguintes palavras de
Carlos Drummond de Andrade, escritas em 1940:
Muitos de nós nunca pegaram num exemplar de Kiriale ou de Dona
Mística, já então introuvables, mas bastava o estribilho da “Catedral”,
um verso de poema publicado nas rápidas revistas da época, para
sentirmos no espírito toda a voltagem da poesia, incandescendo a
nossa substância. O “lúgubre responso” ressoava em nós. E os
navios negros, as rosas desfolhadas sobre as amadas mortas
(naquele tempo sentíamos previamente as amadas que iam morrer),
a “medonha carruagem” que conduz a alma aos solavancos, o
cinamomo, o lírio, a lua dupla de Ismália tinham para nós um poder
de libertação e afastamento desta matéria poética tão pobre e tão
falsa de 1920. Antes que viesse o Modernismo, já Alphonsus nos
preservava dos males da época. E por muito mórbido que fosse o
seu reino, foi nele que aprendemos a ter saúde e a coragem das
experiências.362
O depoimento de Drummond é bastante eloquente. O Simbolismo
representou, para vários jovens escritores do início do século XX, a idéia de
moderno antes das vanguardas modernistas.
De acordo com Maria Zilda Ferreira Cury, o lançamento do livro Pastoral aos
crentes do amor e da morte, de Alphonsus de Guimaraens, em 1923, provocou um
enorme espanto nos intelectuais mineiros.363 Os jovens escritores destacaram o
aspecto renovador de sua poesia, particularmente a sua recusa ao verso pomposo,
o que o aproximava da dicção modernista.
361
Verificamos que Carlos Drummond de Andrade, em 1971, também buscou divulgar a obra de
Edgard Mata num pequeno artigo para a Gazetinha, do Rio de Janeiro, no qual sugeriu uma edição
de seus dispersos, uma proposta que seria realizada somente em 1978 por Cilene Cunha de Souza.
Drummond traçou ainda um perfil do simbolista mineiro no poema “O destino de Edgard Mata”
utilizando-se de várias alusões e referências à sua obra. Curiosamente, ele destacou as imagens do
“bando de maritacas” e dos “duendes africanos”, dois raros elementos de cor local presentes na
poesia de Edgard Mata, fazendo com que ela adquirisse um aspecto mais próximo gosto modernista.
362
ANDRADE apud DUTRA; CUNHA, 1956, p.80-81.
363
CURY, 1998, p. 101.
149
É importante ressaltar que Oswald de Andrade estava entre os jovens poetas
paulistas que também enxergaram a modernidade da poesia de Alphonsus de
Guimaraens. Em 1921, ele publicou um texto no Jornal do Comércio, de São Paulo,
como homenagem ao poeta mineiro na data de seu falecimento. Oswald de Andrade
o elogiou, destacando-o do conjunto dos poetas brasileiros daquela época:
“Alphonsus de Guimaraens valia sem dúvida todos os poetas juntos da Academia
Brasileira”.364 Para o autor de Memórias sentimentais de João Miramar, Alphonsus
representava uma atitude de vanguarda:
Hoje que uma estuante geração paulista quebra nas mãos a
urupuca de taquara dos versos medidos, a figura de Alphonsus de
Guimaraens assume a sua inteira grandeza no movimento da boa
arte nacional. [...] A reação por ele iniciada contra a incultura e o
atraso dos nossos principais poetas está sendo rigorosamente
continuada.365
O bom relacionamento entre os simbolistas e os modernistas foi relembrado
em várias passagens do livro Beira-mar, de Pedro Nava. Numa delas, o memorialista
mencionou a grande admiração que os jovens escritores mineiros tinham pelos
simbolistas.
Por falar em parentesco literário cabem aqui uns comentários sobre a
posição dos modernistas em relação aos simbolistas. Não vou dizer
que o modernismo tivesse saído dessa escola. Creio, sim, que entre
364
ANDRADE apud GUIMARAENS FILHO, 1995, p.366.
ANDRADE apud GUIMARAENS FILHO, 1995, p. 366-367. Ao que parece, Oswald não chegou a
conhecer os versos humorísticos, os versos de circunstância e os poemas-charadas escritos por
Alphonsus de Guimarães. Se os tivesse conhecido, talvez notasse nesses versos uma formulação
muito parecida com a sua própria poética modernista. A inclusão de Alphonsus e Severiano entre os
renovadores da poesia brasileira também foi defendida por Affonso Ávila (1978, p.78) no livro O poeta
e a consciência crítica: “Alphonsus de Guimaraens e Cruz e Souza se inscreveram ostensivamente
na órbita lírica mallarmeana, embora tenham sido os quase desconhecidos Severiano de Rezende e
Pedro Kilkerry os simbolistas brasileiros que mais avançaram no sentido da elaboração de uma
linguagem nova e da invenção verbal”. Já Henriqueta Lisboa (1971, p.16), depois de apontar
inovações na poesia de Severiano de Rezende, sugeriu a possibilidade de um influxo surrealista no
“Hino ao homem venturo”: “O atropelo das enumerações, a extravagância do vocabulário e o fogo
cruzado das imagens criam atmosfera apocalíptica em que o pensamento se adensa não se sabe se
pela profundidade ou pelo próprio mistério da concepção. Dir-se-ia que o gênio do poeta estava às
raias da loucura; ou enveredara pelas experiências surrealistas da vanguarda européia de então.”
365
150
os dois fenômenos literários não havia pontos de atrito e que ambos
combatiam o inimigo passadista comum. No Brasil nunca vi ataques
dos modernistas a nenhum simbolista. Ao contrário. Mário de
Andrade peregrinou a Mariana para ver, praticar e visitar o nosso
Alphonsus. A Revista deixa escapar três gritos de simpatia pelos
sectários do Manifesto assinado por Moréas a 18 de setembro de
1886 no suplemento literário do Figaro. Realmente, nosso grupo,
além de viver enchendo a boca com os nomes do próprio Moréas, de
Verlaine, Rimbaud, faz aparecer nas páginas de A Revista períodos
sugestivos. Um de Martins de Almeida: “Eis aí o resíduo de
simbolismo que permaneceu em grande parte dos poetas modernos”.
Um artigo não assinado (Carlos? Emílio?) sobre a morte de Pierre
Louys diz textualmente: “O simbolismo foi um admirável agente
purificador – eis o que são forçados a reconhecer mesmo os que
reagiram contra ele. Deixou-nos Laforgue e Rimbaud: que mais lhe
poderíamos exigir?” A Marginália do segundo número traz um longo
louvor a Alphonsus de Guimaraens.366
Numa reunião comemorativa do aniversário de morte de Alphonsus de
Guimaraens em 1936, evento organizado por Henriqueta Lisboa, o escritor Ciro dos
Anjos contou como havia sido o “descobrimento” de Alphonsus pelos jovens
mineiros.
Foi numa tarde dessas que descobrimos o poeta Alphonsus. O
descobrimento de Alphonsus marcou uma época em nossa vida.
Éramos um pouco verdes e hoje vejo que não abarcávamos,
em toda a extensão, o universo de Alphonsus. Só mais tarde
poderíamos sentir toda a alma do seu canto, o acento amargo de sua
poesia, destilada por entre a música, flores fúnebres e pálidos
poentes. Alimentávamo-nos de sua poesia, pelo que nela havia de
música e de singelo lirismo. “Uma nota de flauta, oh! Uma nota de
flauta!”
Para nós, líricos de 1923, Alphonsus era o único poeta
possível. A poesia bilaqueana, apolínea, lógica, arquitetural, não
servia às nossas emoções. Raimundo Correia e outros famosos
também restavam para nós incompreensíveis. Procurávamos na
poesia o simples, o místico, o dorido, o melódico. E só Alphonsus
nos proporcionava os imponderáveis poéticos de que nossa
substância espiritual necessitava. Como crentes do amor,
recolhíamos o pastoral do poeta. A mensagem aos crentes da morte
permanecia, para nós, como um domínio misterioso, hermético, do
pensamento do poeta. Aos dezessete anos não se imagina a morte,
e só mais tarde pudemos compreender o outro lado de Alphonsus.
366
NAVA, 2003, p. 246.
151
Mas a incompreensão parcial não mutilou, em nós, a veneração ao
santo de Mariana.367
No mesmo evento literário, Guilhermino César fez um discurso em que
salientava justamente a atualidade, a contemporaneidade de Alphonsus. Por isso, os
modernistas (“inovadores”) teriam assumido, segundo ele, a responsabilidade de
divulgar a poesia de Alphonsus.
Eu imagino a incompreensão que te cercou nos primeiros anos,
a incerteza que te magoou os primeiros passos. Incompreensão, não
digo, mas o espanto que devera ter causado aquele teu
aparecimento nas velhas páginas da “Revista Brasileira”. Ali era tudo
diferente, em absoluta discordância contigo. A forma tinha seus
mestres peregrinos, que não eram os teus. Só tu te diferençaste e,
entretanto, logo começaste a encontrar ressonância. E abandonaste
os vitoriosos, os que cultivavam o rebuscado da frase rumorosa para
uma emoção imprecisa. Tu, ao contrário, procuravas a emoção
longa, viva, real, e o fazias na linguagem mais singela do tempo.
Foste sempre contemporâneo, atual. Na geografia poética do
Brasil tu serás sempre um acidente único, porque foste o equilíbrio
da nossa terra mediterrânea. Não soubeste gritar. Em ti não se
encontra a caudal, mas a água macia e sonora.
E foi justamente por isso que os inovadores de ontem,
aventurando-se ao largo, nada fizeram de útil senão divulgar a tua
mensagem. Alphonsus múltiplo, Alphonsus numeroso, a quem jamais
deixamos de acender a nossa lâmpada, trazida agora até aqui pelas
mãos gentis de Henriqueta Lisboa.368
A hipótese de que Alphonsus de Guimaraens teria sido uma referência
literária para vários autores modernistas foi reforçada por Eduardo Portela que
buscou justificar a permanência de Alphonsus com o seguinte argumento:
E é esta elaboração artística altamente qualificada que explicará a
permanência de Alphonsus de Guimaraens. E mais do que
permanência, este prolongamento de Alphonsus na admiração dos
367
DESCOBRIMENTO de Alphonsus. Palavras de Cyro dos Anjos evocando a figura do grande
místico. Folha de Minas, Belo Horizonte, 19 jul. 1936, p. 3.
368
ALPHONSUS de Guimaraens e os modernos. Conceitos de Guilhermino César. Folha de Minas,
Belo Horizonte, 19 jul. 1936. p. 3.
152
nossos maiores poetas. Seria um capítulo sedutor e revelador do
nosso ensaísmo literário o que se ocupasse da ressonância da obra
de Alphonsus em poetas do porte de Mário de Andrade que já em
1919 viajara a Mariana para conhecer o autor de Câmara Ardente, de
um Manuel Bandeira, um Oswald de Andrade, Henriqueta Lisboa,
Carlos Drummond de Andrade, Emílio Moura, Murilo Mendes,
Augusto Frederico Schmidt. É uma estima sobretudo surpreendente
nos momentos de rebeldia e de irreverência modernista. Tem sido
ainda uma estima prolongada, crescente; o que se justifica porque
poetas como ele, era o irreverente Oswald de Andrade quem
proclamava, ainda em plena fase polêmica do Modernismo, 25 de
junho de1921, “honram não só uma geração como uma pátria”.369
Já Drummond foi mais além, sugerindo que as ressonâncias de Alphonsus
poderiam ser encontradas não apenas nos modernistas, mas também em autores
posteriores ao Modernismo e tudo compreendido dentro de uma mesma “linhagem
de sensibilidade” que se originava no Romantismo:
Uma coisa havia de sair: a determinação da sutil e
subterrânea influência – ou melhor, afinidade – que liga Alphonsus
solitário de 1921-1922, aos poetas brasileiros do Modernismo e do
que já se vem chamando, sem maior significação, post-modernismo.
Já não me refiro aos poetas de inspiração cristã, como Augusto
Frederico Schmidt ou Murilo Mendes, mas a esses outros, tão
distanciados de Alphonsus na concepção da vida, na temática, na
forma e em tudo e entretanto presos a ele por uma linha de
sensibilidade que vai dar, quem sabe, na galeria dos nossos grandes
românticos.370
Em São Paulo, no momento em que a vanguarda modernista se mostrava
mais aguerrida, Freitas Valle fechou o quinto ciclo de conferências da Villa Kyrial
falando sobre Alphonsus de Guimaraens. Antes disso, no período de gestação do
movimento que daria origem à Semana de 22, havia acontecido a atuação do
escritor mineiro Agenor Barbosa no sentido de valorizar e divulgar a obra de
Alphonsus de Guimaraens nos meios intelectuais de São Paulo. Através dele é que
369
PORTELA, 2001, p. 25.
ANDRADE apud GUIMARAENS, 2001, p. 32.
370
153
as ligações dos simbolistas mineiros com os modernistas podem ser percebidas, de
maneira muito clara, na perspectiva de uma continuidade em forma de rede.
Entre as atividades intelectuais de Agenor Barbosa na capital paulista, deve
ser mencionada a sua participação no segundo ciclo de conferências da Villa Kyrial
em 1921. Assim como Oswald de Andrade, publicou um texto em homenagem a
Alphonsus, mas no Correio Paulistano, com o título “O ritmador do silêncio... (A
Alphonsus de Guimaraens – Elogio para a glória e epitáfio para o seu túmulo,
quando for da sua morte)”. Nesse artigo, Agenor Barboa tratou da vida e da poesia
de Alphonsus, salientando o seu caráter místico. Também escreveu sobre a
perenidade de sua poesia e sobre o aspecto lendário que o poeta assumiu.
Nessa época, segundo Mário da Silva Brito, o grupo modernista já estava
quase totalmente constituído e nele figurava o poeta mineiro Agenor Barbosa.
[...] outros fatos, dignos de registro, ocorrem em 1921, que é
ano rico de acontecimentos. Fatos que aceleram a evolução do
movimento e o levam a culminar na Semana de Arte Moderna.
O grupo modernista já está constituído, por esse tempo, em
sua quase totalidade. Não só praticamente constituído, como
também subdividido de acordo com as vocações de seus diversos
componentes. Poetas são Mário de Andrade, Menotti del Picchia,
Guilherme de Almeida, Agenor Barbosa e Plínio Salgado. Menotti e
Oswald são romancistas.371
Esse grupo, ainda de acordo com Mário da Silva Brito, teria efetivado a
doutrinação reformista de preparação à Semana de Arte Moderna. “Doutrinação que
se encontra explanada numa série de artigos de Oswald de Andrade, de Menotti del
Picchia, de Cândido Mota Filho, de Agenor Barbosa, de Mário de Andrade, que são
os mais ativos polemistas do grupo inovador”.372
Agenor Barbosa foi mencionado em textos de Mário de Andrade e Sérgio
Milliet. Além disso, teve a sua obra analisada e elogiada por Menotti del Picchia e
371
372
BRITO, 1997, p. 308-309.
BRITO, 1997, p. 187.
154
Plínio Salgado. Já Oswald de Andrade o colocou entre os representantes do
Modernismo brasileiro na conferência que pronunciou na Sorbonne em 1923.
Uma mocidade inteira concorre com o seu entusiasmo. Ela é
composta dos poetas Luiz Aranha, Tácito de Almeida, Agenor
Barbosa, Plínio Salgado, do novelista René Thiollier e dos ensaístas
Rubens Moraes, Cândido Mota Filho, Couto de Barros e Sérgio
Buarque de Holanda.373
É interessante observar que Menotti del Picchia elaborou duas imagens para
“descrever” Agenor Barbosa relacionando-o aos elementos da cidade moderna
(“Agenor Barbosa – Uma tristeza mineira numa capa de garoa a sonhar com estrelas
sob arcos voltaicos, entre o estridor argentário dos bondes da Light...”)374 e outra,
fortemente associada ao Decadentismo/Simbolismo, a de um Pierrot melancólico
(Agenor Barbosa – Um pálido Pierrot triste com ares solenes de um senhor cheio de
responsabilidades cívicas.”).375 As comparações servem para refletirmos não apenas
sobre a figura do poeta mineiro, mas também sobre as características de sua obra
que misturava elementos simbolistas e modernistas/futuristas.
Outro simbolista mineiro que se manteve numa postura oscilante em seus
contatos com o movimento modernista foi José Severiano de Rezende. Os seus
diálogos poéticos com o Decadentismo, o Simbolismo e o Parnasianismo
haviam sido publicados no livro Mistérios, pela Aillaud e Bertrand, de Lisboa,
em 1920, isto é, quase às vésperas da Semana de Arte Moderna. Apesar disso,
alguns poemas de Severiano não deixavam de ter um lado experimental,
inovador, vanguardista, como é o caso de “Ódio ao ódio”. Esse conjunto de
poemas talvez possa ser considerado, sob certos aspectos, antecessor da
poesia de Affonso Ávila no que se refere ao arranjo, à disposição dos versos,
combinado a um jogo de repetições e permutações que remetem à
373
ANDRADE, 1972, p. 214.
DEL PICCHIA, 1983, p. 304.
375
DEL PICCHIA, 1983, p. 255.
374
155
musicalidade das litanias e aos textos de origem barroca. 376 Sobre os traços
recorrentes que caracterizam a obra de Severiano de Rezende, a poeta Henriqueta
Lisboa notou a herança barroca e as inovações poéticas que o colocam entre os
precursores do Modernismo.
Poderemos, sem dúvida, classificá-lo como simbolista, em seus
fundamentos. Porém há que examinar-lhe o gosto parnasiano, o
delírio romântico, as marcas do humanismo, os suportes barrocos, a
realidade mística, e ainda as inovações que o credenciam como
vanguardista, antes do modernismo de 22.377
Henriqueta Lisboa afirmou ainda que as misturas de características de várias
escolas literárias presentes na obra de Severiano estavam relacionadas ao
empenho do poeta na elaboração de uma obra com dicção pessoal.
Para atingir sua autenticidade e dar à obra contextura sólida, o poeta
valeu-se de todas as suas características virtualidades, relacionandoas com os recursos de várias escolas ou correntes estéticas e
trabalhando com febril clarividência os seguintes dados: ênfase
verbal, linguagem forte, vocabulário enriquecido de inventos à base
do latim e do grego, paradoxos, oposição de imagens, metáforas
litúrgicas, alegorias religiosas, aliteração em larga escala, choque
agressivo de consoantes, cadência móvel, ritmo impulsivo,
metrificação vária, desde versos bíblicos aos de duas sílabas,
repetição de vocábulos e períodos, adjetivação aumentativa,
enumeração caótica, emprego de advérbios inusitados, criação de
novos verbos, fusão de adjetivos numa só palavra.378
376
Ressonâncias de Alphonsus de Guimaraens também podem ser notadas na poesia de Affonso
Ávila. De acordo com Nilze Paganini (2008, p. 60), Ávila “reconheceu a importância de Alphonsus de
Guimaraens para a sua obra, afirmando que dedicava uma admiração muito grande ao poeta
simbolista. Ávila também relacionou a poesia de Alphonsus e a de Cláudio Manuel da Costa à
tradição barroca que tanto valorizou”. Numa entrevista concedida a Paganini, Affonso Ávila declarou
que poderiam existir ecos da poesia de Alphonsus no seu livro Sonetos da primavera: “é possível
porque a admiração que eu tenho pelo Alphonsus sempre foi muito grande”. ÁVILA apud PAGANINI,
2008, p. 236.
377
LISBOA, 1971, p. 5.
378
LISBOA, 1971, p. 6.
156
Em 1922, de volta ao Brasil, Severiano de Rezende passou a colaborar no
jornal carioca A Notícia. O simbolista refletia geralmente sobre temas brasileiros.
Muitos deles foram retomados posteriormente nos textos que Severiano publicou na
imprensa francesa. Esses textos revelavam os posicionamentos de Severiano em
relação aos debates brasileiros de então. Um dos temas recorrentes era o
nacionalismo. Naquele ano, comemorava-se o Centenário da Independência do
Brasil. Alguns dos títulos das crônicas são bastante claros quanto ao conteúdo:
“Patriotismo”, “A bandeira e o hino” e “O brasismo”. Outros artigos versavam sobre
literatura. Em 30 de dezembro de 1922, publicou o texto mais surpreendente de
todos os que escreveu pois, através dele, dialogava diretamente com o Modernismo
em uma paródia de poema futurista. Intitulado de “O passado e o futuro”, este texto
demonstra que Severiano de Rezende era um escritor bem informado sobre as
propostas estéticas dos futuristas.379
O contato de Severiano de Rezende com os modernistas brasileiros e as suas
obras continuaria em Paris, depois de seu retorno à Europa em 1924. Em 17 de
junho de 1926, por ocasião da primeira exposição individual de Tarsila do Amaral na
Galerie Percier, em Paris, José Severiano de Rezende escreveu uma crítica
intitulada “La peinture brésilienne” para o jornal La Gazette du Brésil. Nesse texto,
mostrou-se conhecedor de Picasso, Foujita e Modigliani em sua análise das pinturas
de Tarsila. O poeta mineiro ficou tão impressionado com a obra da artista que
adquiriu um quadro chamado “Paisagem” (1924), da chamada fase Pau-Brasil.380
[...] Tarsila que aprendeu pintura tão bem ou melhor ainda que os
mestres, compreendeu um dia (o dia mais belo de sua vida) que era
preciso desaprender e com toda a urgência. Mergulhou então na
originalidade inexplorada das inspirações natais. É a aventura de
Picasso. Tábua rasa e em marcha para os renovamentos fecundos.
[...]
Basta examinar os croquis e desenhos expostos para se ficar
convencido de que Tarsila é um mestre e se o seu desenho revela
379
Este texto/poema, dada a sua disposição tipográfica, merece ser visto como apareceu em A
Notícia. Por isso, está reproduzido no Anexo A.
380
Esta informação encontra-se numa lista, escrita por Oswald de Andrade, com os quadros que
faziam parte da exposição e seus respectivos compradores. Nela, o nome de Severiano de Rezende
consta como o comprador da tela. Cf. BOAVENTURA, 1995, p. 126. Segundo Aracy Amaral (1997, p.
28), a tela pertenceu realmente a José Severiano de Rezende, mas, atualmente, encontra-se perdida.
157
um arcabouço sólido, seu colorido que é feito de esplendor na
sobriedade, vibra de uma riqueza de matéria que só se encontra nos
pacientes pesquisadores como Foujita, com suas linhas impecáveis e
lacas opulentas. [...]
O auto-retrato reproduzido na capa do catálogo bastaria para
provar o valor da jovem pintora. É uma simples cabeça, um desenho
muito puro, apenas estilizado, onde vive o ser inteiro. Assim a
cabeça do negro em oração dá todo o movimento da figura. Quando
se chega a obter em pintura essa veracidade do movimento, do
gesto, da maneira de ser (era assim toda a arte de Modigliani) o fim
foi atingido, a perfeição realizada.381
A importância que este texto crítico adquiriu para o Modernismo pode ser
verificada na sua inclusão, em 1929, no catálogo da primeira exposição individual de
Tarsila do Amaral no Brasil, ocorrida no Rio de Janeiro, e no catálogo da exposição
de São Paulo no mesmo ano.382 Tratava-se da mostra que consagrou a artista como
figura de relevo na arte moderna brasileira.383 Um trecho dessa crítica de Severiano
ressaltando o caráter revolucionário da artista foi incorporado ao texto que Oswald
publicou na Revista de Antropofagia sobre a exposição do Rio.384
Outro texto relevante para situar o pensamento de José Severiano de
Rezende sobre os modernistas brasileiros é a crítica “Musique brésilienne”,
publicada na página Le Brésil, do Journal des Nations Américaines, em 7 de julho de
1929. Nela, Severiano de Rezende fez uma análise da obra Amazonas, de VillaLobos, comparando-a a um trecho de Amériques, do compositor francês
naturalizado norte-americano Edgard Varèse, e às obras de Carlos Gomes e Alberto
Nepomuceno. Para Severiano de Rezende, Villa-Lobos era superior aos seus
antecessores brasileiros, tendo feito uma tábua rasa de tudo o que existia antes
dele.
381
REZENDE, 1972, p. 122-124.
O catálogo da exposição do Rio, preparado por Geraldo Ferraz, apresentava ao público brasileiro
os textos das críticas parisienses às exposições de 1926 e 1928 e vários textos que os modernistas
brasileiros escreveram sobre a artista. Mário de Andrade, Manuel Bandeira, Antônio de Alcântara
Machado e Menotti del Picchia foram alguns dos autores incluídos no catálogo. Os mesmos textos
foram repetidos no catálogo da exposição de São Paulo.
383
AMARAL, 1975, p. 284.
384
“José Severiano de Rezende, em artigo excelente que sobre ela [Tarsila] escreveu, disse muito
bem: Realmente, a pintura de Tarsila ‘é uma revelação e uma revolução’.” A EXPOSIÇÃO de Tarsila
do Amaral, no “Palace-Hotel”, do Rio de Janeiro, foi a primeira grande batalha da Antropofagia.
a
Revista de Antropofagia, 2 Dentição. Diário de São Paulo, São Paulo, 1 ago. 1929. In: Revista de
Antropofagia. Reedição da revista literária publicada em São Paulo (Edição fac-similar) – 1a e 2a
“Dentições – 1928-1929. Introdução de Augusto de Campos. São Paulo, 1976.
382
158
E o jovem músico se lançou impetuosamente nos espinheiros da
selva. Foi ver de perto os indígenas, os viu dançar e cantar e trouxe,
de toda essa perigosa e aventurosa peregrinação, alguns conjuntos
de motivos interessantes. Ele podia recolhê-los com certeza sem
arriscar a sua pele tão longe. Mas o Sr. Villa-Lobos era jovem, sabia
bem o que queria e é um fato conhecido que quando alguém
pretende criar uma arte cujas origens devem ser narradas, é
preferível se manifestar com as lendas dos marajós e dos
tupinambás. Há folclore no Brasil. [...] Nós fomos embalados e nós
crescemos ao som melancólico das cantigas e dos contos. O Sr.
Villa-Lobos, como todos nós, teve essa experiência. Porém, ele não
se contentou com isso. Preferiu ir à mata virgem, perder-se nas
lianas, navegar em canoas e se deixar aprisionar por uma dessas
ferozes – a mais feroz, talvez – tribos de selvagens tupis nos confins
amazônicos. Dessa aventura nasceu a partitura Amazonas, que
ouvimos na Salle Gaveau. Essa música, com efeito, faz tábua rasa
de tudo o que existia no Brasil. Carlos Gomes, nosso maior músico,
apesar de seu italianismo intensamente colorido, não admitiu a nova
técnica, nem Alberto Nepomuceno, este wagneriano malogrado
porque wagneriano. Mas, sem dúvida, o Sr. Villa-Lobos fez alguma
coisa que permitirá ampliar os horizontes e ver um pouco mais
claro.385
“Musique brésilienne” deve ser situada no contexto das relações de José
Severiano de Rezende com as instituições culturais dedicadas à América Latina na
França e com a ideologia da “latinidade” difundida naquele período histórico. Na
época em que José Severiano de Rezende envolvia-se nas redes de periódicos
franceses e instituições culturais ligadas à América Latina e à defesa da
385
REZENDE, José Severiano de. Musique brésilienne. Journal des Nations Américaines, Le Brésil,
Paris, 7 juil. 1929, p.3, tradução nossa. No original : "Et le jeune musicien fonça dans les ronces de la
brousse, alla voir de près les indigènes, les entendit danser et chanter et rapporta de toute cette
périlleuse et aventureuse pérégrination quelques gerbes de motifs intéressants. Il pouvait les cueillir
parfaitement sans aller risquer sa peau si loin. Mais M. Villa-Lobos était jeune, il savait bien ce qu’il
voulait et c’est un fait connu que lorsque l’on veut créer un art dont les sources sont à raconter, il est
préférable de venir avec les légendes de chez les marajos et les tupinambas. Du folklore, au Brésil, il
y en a […]. Nous avons été bercés et nous avons grandi au son mélancolique des cantilènes et des
contes. M. Villa-Lobos, comme nous tous, a connu cela. Mais il ne s’en est pas contenté. Il préféra
aller dans la forêt vierge, se perdre dans les lianes, naviguer sur des périssoires et se faire prisonnier
par naturellement une des ces féroces – la plus féroce, peut-être – tribus de sauvages tupis dans les
fins fonds amazoniens. De cette aventure est née la partition Amazonas, que l’on a entendu [à] Salle
Gaveau. Cette musique, en effet, fait table rase de tout ce qui existait au Brésil. Carlos Gomes, notre
plus grand musicien, qui, malgré son italianisme intensément coloré, n’eût pas admis la nouvelle
technique, ni Alberto Nepomuceno, ce wagnérien raté parce que wagnérien. Mais il est hors de doute
que M. Villa-Lobos a fait quelque chose qui permettra d’élargir les horizons et voir un peu plus clair."
159
“latinidade”,386 os seus textos começavam a ser traduzidos e a receber uma
apreciação positiva da crítica francesa. Em 1o de junho 1927, Victor-Émile Michelet
publicou uma tradução do longo poema “À Lúcifer” na Revue de l’Amérique Latine.
Michelet era um poeta esotérico que frequentava os grandes nomes do ocultismo
(Papus, por exemplo) e da literatura simbolista (Mallarmé,Villiers de l’Isle Adam e
Maeterlink). Alguns dias depois, em 18 de junho, foi a vez de Philéas Lebesgue
publicar o melhor estudo sobre a obra de Severiano na França nas páginas da
prestigiosa Revue Bleue, acompanhado de alguns poemas traduzidos pelo poeta
mineiro e pelo autor do estudo. Lebesgue apresentou a sua versão de “A rã”,
“Inferno interior”, “Verlaine” e a versão do próprio Severiano de Rezende para o
poema “Cântico à vida”. Dois anos depois, apareceram as traduções de “O cego386
A ideologia da “latinidade” surgiu no século XIX quando houve uma mudança no imaginário do
sistema mundial colonial/moderno. Para Walter Mignolo, o “momento da virada ocorreu em 1898,
quando a guerra EUA-Espanha foi justificada, na perspectiva dos EUA, pela superioridade da ‘raça
branca anglo-saxônica’, cujo destino era civilizar o mundo, sobre os ‘brancos cristãos católicos e
latinos’”. MIGNOLO, 2003, p. 59. Ainda para este autor, a “latinidade” teria sido elaborada por certos
intelectuais e membros do governo francês que traçaram fronteiras, tanto na Europa quanto nas
Américas, entre anglo-saxônicos e latinos, para conquistar uma liderança no grupo dos países de
origem latina. As ex-colônias ibéricas forjaram a sua identidade pós-independência e se situaram na
nova ordem colonial moderna e global justamente através dessa ideologia. Sobre o pensamento de
Walter Mignolo a respeito deste tema, ver PAGANINI, 2008, p. 181-182. A comparação da obra de
Varèse com a de Villa-Lobos estava relacionada à contraposição que José Severiano de Rezende
costumava fazer entre o espírito norte-americano e o espírito latino. As palavras empregadas por
Severiano para analisar a obra de Varèse eram carregadas de conotação negativa: "O Sr. Edgard
Varèse, desde que sua música contenha algum símbolo, não está longe de transformar os ideais do
pan-americanismo em um tipo de pandemônio barulhento. Alguém imaginaria uma noite de
Walpurgis, um sabat como o de Macbeth, um juízo final ou uma revolução social musicada por
Gargântua compositor.” REZENDE, José Severiano de. Musique brésilienne. Journal des Nations
Américaines, Le Brésil, Paris, 7 juil. 1929, p.3, tradução nossa. No original: “M. Edgard Varèse, pour
peu que sa musique recèle quelque symbole, n’est pas loin de transformer les idéals de
panaméricanisme en une sorte de tintamarresque pandémonium. On rêverait d’une nuit de Walpurgis,
d’un sabbat macbethique, d’un jugement dernier ou d’un grand soir mis en musique par Gargantua
compositeur." Uma forma de participação do escritor mineiro na cena pública francesa foi proferindo
conferências. Em 1924, ele realizou a conferência “L’esprit latin” como acompanhamento da
exposição de arte latino-americana no Musée Gallièra, evento organizado pela Maison de l’Amérique
Latine e pela Académie Internationale de Beaux-Arts. Também fazia parte do programa, um concerto
com peças de compositores latino-americanos. Uma delas era a música “Polichinelo”, de Villa-Lobos.
No mesmo ano, ele foi encarregado da apresentação de um filme sobre o Brasil na Semaine de
l’Amérique Latine. Em 1925, proferiu outra conferência sobre o Brasil transmitida pela Rádio Paris.
Outro modo de participação foi como correspondente no VI Congrès de Presse Latine, realizado em
Bucareste. Sua análise do evento foi registrada em uma crônica publicada na Revue de l’Amérique
Latine, no número de 1o de outubro de 1927. Segundo Renato de Lima Júnior, o poeta mineiro teria
recebido também um convite do embaixador Souza Dantas para representar o Brasil no centenário de
nascimento de Fréderic Mistral. Cf. LIMA JÚNIOR, 2002, p. 139. Como se sabe, Fréderic Mistral
estava envolvido com a formulação da unidade dos países de origem latina, que consistia numa
reação contra as idéias de uma inferioridade dos povos latinos divulgada por autores de língua alemã
e pelos anglo-saxões. Severiano se filiava à tradição da “posteridade latina” de Fréderic Mistral e o
fato de ter publicado inicialmente os seus poemas em português consistia numa forma de criar a
diferenciação de sua personalidade artística e de valorização da tradição luso-brasileira no conjunto
da “latinidade”.
160
surdo-mudo” e “Treno”, realizadas por Severiano, na Revue Bleue. Em 1930, um
excerto do “Hino ao homem venturo”, traduzido por Lebesgue e Severiano, também
foi publicado na Revue Bleue. Esta obra havia sido publicada integralmente em 1922
sob a forma de opúsculo pela editora H. Gaulon, de Paris. A parceria de Severiano
com Lebesgue deve ser vista como sinal da alta consideração que um nutria pelo
outro. Quando Lebesgue publicou a sua tradução do romance Iracema, de José de
Alencar, convidou Severiano de Rezende para ser o prefaciador do livro. O prefácio
de Severiano terminava com um elogio à tradução de Lebesgue, a qual classificou
de “delicada” e “poderosa”.387 Um elogio que seria ampliado no artigo “Une
traduction et un traducteur", que escreveu para página Le Brésil, do Journal des
Nations Américaines, em 15 de setembro de 1929.388 No momento em que se
discutia uma política de tradução de obras literárias brasileiras para o francês,
Severiano propunha o nome de Lebesgue para traduzir O Guarani, de José de
Alencar, devido à sua bem-sucedida versão francesa de Iracema.
Todas
essas
publicações
apontam
para
as
práticas
de
tradução
desenvolvidas por alguns dos simbolistas mineiros. Carlos Raposo traduziu “O
verso”, do decadentista D’Annunzio. Horácio Guimarães verteu dois poemas do
romântico espanhol José de Espronceda. Ernesto Cerqueira traduziu alguns sonetos
de Stecchetti, autor que também foi trasladado para o português por Alphonsus de
Guimaraens.389 Não sabemos ao certo o motivo da escolha de Espronceda e
Stecchetti pelos simbolistas mineiros. No entanto, poderíamos pensar numa
afinidade com a sensibilidade romântica byroniana de Espronceda e com os poemas
de Stecchetti que tratavam do binômio amor/morte, ou seja, com os poemas que
giravam em torno da temática básica da lírica de Alphonsus e de seus discípulos.
Essas traduções deveriam ser vistas como as que Alphonsus de Guimaraens fez de
387
REZENDE, 1928, p. 12.
REZENDE, José Severiano de. Une traduction et un traducteur, Journal des Nations Américaines,
Le Brésil, Paris, n. 37, 15 sept. 1929, p. 3.
389
ESPRONCEDA, José de. A Guardia. Tradução de Horácio Guimarães. Diário de Minas, Belo
Horizonte, 25 fev. 1901, p. 1; ESPRONCEDA, José de. A Cativa. Tradução de Horácio Guimarães.
Diário de Minas, Belo Horizonte, p. 1, 19 mar 1901, p. 1; STECCHETTI, L. Soneto (Eu não quero
saber o que existia). Tradução de Ernesto Cerqueira. Diário de Minas, Belo Horizonte, 5 fev 1901;
STECCHETTI, L. LXXXIII. Tradução de Ernesto Cerqueira. Diário de Minas, Belo Horizonte, p. 1, 7
mar. 1901, p. 1; STECCHETTI, L.. LXVII. Tradução de Ernesto Cerqueira. Diário de Minas, Belo
Horizonte, 22 mar. 1901, p. 1; STECCHETTI, L. Resurrexit. Tradução de Ernesto Cerqueira. Diário de
Minas, Belo Horizonte,13 abr. 1901, p. 1.
388
161
poemas de Verlaine e Mallarmé. Isto é, como recriação e reinvenção dos modelos a
partir de um filtro pessoal.
No final dos anos de 1920, as traduções de alguns poemas de Severiano de
Rezende para o francês e a sua publicação em periódicos de grande renome como
a Revue Bleue, o seu trabalho como principal redator da página Le Brésil, no Journal
des Nations Américaines e o início de sua colaboração no Mercure de France
escrevendo a coluna “Lettres brésiliennes” marcavam o começo de uma outra fase
nas suas relações com os meios intelectuais franceses. Nessa época, a sua obra
estava recebendo uma atenção especial da crítica. Philéas Lebesgue, por exemplo,
dedicou a ela, em 1927, o ensaio “Un grand lyrique brésilien: J. Severiano de
Rezende”, publicado nas páginas da Revue Bleue. Para Lebesgue, Severiano era
um dos escritores mais importantes da literatura brasileira.390 No ano seguinte, o
poeta, romancista e jornalista André Delacour falou sobre o simbolista mineiro,
ecoando o ensaio de Lebesgue no Journal Parlé, da rádio parisiense T.S.F.
(Téléphonie Sans Fil) e Philéas Lebesgue proferiu uma conferência sobre ele numa
reunião do salão literário do poeta Joseph Mélon.391
Em 1931, pouco depois de dar início à colaboração no Mercure de France,
um dos periódicos mais importantes do movimento simbolista francês, José
Severiano de Rezende faleceu. Sua participação foi curta, apenas dois textos que
davam provas de sua capacidade e de seu talento crítico.392
Passemos agora ao estudo dos simbolistas mineiros em relação a um mundo
que experimentava transformações cada vez mais aceleradas, marcado por
turbulências e desintegrações.
390
Para o crítico francês, a obra de Severiano seria "uma das mais profundas que surgiram na
América depois da conquista” (“l’une des plus profondes qui aient éclos en Amérique depuis la
conquête” ) e comparável em importância à de Graça Aranha. Lebesgue achava que os dois teriam
se tornado “um na prosa, o outro na poesia, dois ápices intelectuais de sua raça” (“l’un en prose,
l’autre en vers, deux sommets intellectuels de leur race"). LEBESGUE, Philéas. Un grand lyrique
brésilien: J. Severiano de Rezende. Revue Bleue, Paris, n.12, 18 juin. 1927, p. 353.
391
LIMA JÚNIOR, 2002, p. 144.
392
Sobre a colaboração de Severiano de Rezende no Mercure de France, ver AMARAL, 2000, p. 153.
162
MUNDO EM EXPANSÃO E MUDANÇA
“A bandeira tremula na paisagem imunda, e nossa gíria abafa o
tambor.
“Nos centros alimentaremos a mais cínica prostituição.
Massacraremos as revoltas lógicas.
“Aos países inundados e que cheiram a pimenta! – a serviço
das mais monstruosas explorações industriais e militares.
“Adeus aqui, não importa onde. Recrutas da boa vontade,
teremos a filosofia feroz; ignorantes para com a ciência, extenuados
para o conforto: e que este mundo rebente! É a verdadeira marcha.
Para a frente, a caminho!”
Iluminações, Rimbaud
Não penso mais na vida transitória,
Fora da minha aldeia e do meu lar
“Se eu te contasse...”, Mamede de Oliveira
164
MODERNIZAÇÃO E DESENRAIZAMENTO
A
história da modernidade é a história da constituição do que Walter
Mignolo chamou de sistema mundial/colonial moderno.393 A origem
desse processo pode ser localizada no final do século XV, a partir da
“descoberta” da América e do estabelecimento do circuito comercial e financeiro do
Atlântico, o que deu início à ocidentalização do mundo. Contrapondo-se aos teóricos
que localizam o início da modernidade no século XVIII, relacionando-a ao conjunto
de modificações políticas, econômicas e sociais decorrentes do Iluminismo, da
Revolução Francesa e da Revolução Industrial Inglesa, Walter Mignolo considerou
que essas mudanças eram, na verdade, o princípio de outra fase histórica do
sistema mundial moderno, caracterizada pela hegemonia inglesa e francesa e pela
expansão imperialista em direção à África e à Ásia.394
Do século XIX em diante, as mudanças dos padrões epistemológicos,
políticos e econômicos intensificaram-se nos países da América antes dominados
por Portugal e Espanha. Esses países, depois de adquirida a sua “independência”,
passaram a adotar modelos importados da Inglaterra e da França, as novas nações
hegemônicas, e, mais tarde, também dos Estados Unidos.395
Na segunda metade do século XIX, os países mais desenvolvidos da Europa
experimentaram uma mudança radical no plano econômico que ficou conhecida
393
MIGNOLO, 2003, p. 49.
Walter Mignolo compartilha com Enrique Dussel a idéia de que existem dois conceitos de
modernidade. Para Dussel, o primeiro é o que coloca a modernidade como o resultado de um
desenvolvimento histórico interno da Europa e entendido na perspectiva da emancipação e
esclarecimento humanos. Nesta perspectiva, há uma continuidade entre o Renascimento italiano, a
Reforma, o Iluminismo e a Revolução Francesa. Dussel (2000, p.469-470) considera “esta
perspectiva ‘eurocêntrica’ porque ela indica fenômenos internos da Europa como ponto de partida da
modernidade e explica seu desenvolvimento posterior sem recorrer a nada fora da Europa” (no
original: “this perspective “Eurocentric”, for it indicates intra-European phenomena as the starting point
of modernity and explains its later development without making recourse to anything outside of
Europe” ). Já o segundo conceito de modernidade é o que adota uma perspectiva mundial. Segundo
Dussel, o início do sistema mundial (“world-system”) encontra-se no século XV com a “descoberta” da
América. Antes disso, os sistemas culturais ou impérios coexistiam. A partir desse movimento de
expansão portuguesa e espanhola é que todo o espaço do planeta começa a existir em uma única
história mundial.
395
MIGNOLO, 2003, p. 87.
394
165
como a Segunda Revolução Industrial. A criação de novas tecnologias, aliada a
outros fatores, resultou num crescimento extraordinário da produção industrial.
Nesses países, a produção tornou-se maior do que o consumo, provocando uma
instabilidade no sistema e uma pressão para a ampliação do mercado consumidor
de produtos industriais. O aumento da industrialização significava também um
crescimento da demanda por matérias-primas que, em grande parte, foram
buscadas em outros continentes. É interessante a maneira como Nicolau Sevcenko
descreveu esse processo:
Em ambos os casos, o crescimento da produção e o da
demanda abriram caminho para o desdobramento espacial do
sistema capitalista, que, baseado no implemento das técnicas de
comunicação e transporte, estendeu sua ação por todo o mundo,
minando e destruindo os impérios fechados e as economias pré ou
não capitalistas à sua passagem.396
A expansão do Ocidente sobre os territórios de sociedades tradicionais,
baseadas em outros modos de produção, teve um enorme impacto sobre os
recursos naturais e os seres humanos, que passavam a ser considerados como
meras mercadorias. A modernização consumia e desagregava a vida e os valores
dessas sociedades, substituindo-os por novas formas, mais adequadas aos
interesses dos países imperialistas. A modernização pode ser vista como um
processo de longa duração, marcado por constantes choques culturais, lutas,
contradições,
ambiguidades
e
angústias
provocadas
por
vários
tipos
de
desestabilizações sociais e individuais. Para Marshall Berman, a modernidade impôs
a lógica da incessante transformação do mundo, substituindo os ideais de solidez e
fixidez pelos de mudança em todos os aspectos da vida.397 Já Hardman enfatizou o
“deslocamento perene, o corte de raízes, as peripécias da retina, a navegação à
deriva” vivenciados em escala mundial.398
396
SEVCENKO, 2003, p. 60.
BERMAN, 1986, p.11-12.
398
HARDMAN, 2005, p.27.
397
166
Duas maneiras principais de considerar os processos de modernização foram
se configurando com o tempo. De um lado, eles foram vistos como abertura para um
futuro melhor e, de outro, como caminhos de destruição e decadência, gerando o
pavor da desintegração das identidades comunitárias e individuais. Tais percepções
estiveram presentes, muitas vezes sutilmente, nos textos dos simbolistas mineiros.
Antenados com o “espírito moderno”, revelaram sensibilidade para as mudanças
presentes nos variados ritmos dos processos da modernidade.
Antes de analisarmos os textos dos simbolistas mineiros que nos revelam os
conflitos vivenciados pelos sujeitos na modernidade, consideraremos brevemente a
situação brasileira para que o nosso entendimento se amplie e se ancore num
contexto com especificidades próprias.
Até os anos de 1800, o Brasil apresentava uma economia agrária voltada
basicamente para a exportação e somente no final do século XIX essa estrutura
começou a ser modificada. As transformações ocorridas estavam relacionadas à
necessidade
de
adaptação
das
regiões
colonizadas
desenvolvimento econômico dos países ocidentais.
399
às
demandas
do
No período da Belle Epoque,
de acordo com Nicolau Sevcenko, a teoria das raças foi uma justificativa ideológica
utilizada pelo imperialismo para as suas políticas nacionalistas no plano interno e
para o seu expansionismo no plano externo.
A corrida imperialista para a conquista de amplos mercados capazes
de alimentar a Europa da Segunda Revolução Industrial encontrou
na teoria das raças uma justificação digna e suficiente para o seu
vandalismo nas regiões “bárbaras” do globo. Tratava-se de levar os
benefícios da civilização para os povos “atrasados”. Ora, civilização,
nesse sentido, era sinônimo de modo de vida dos europeus da Belle
Époque.400
399
400
SEVCENKO, 2003, p. 61.
SEVCENKO, 2003, p.146.
167
Os fundamentos ideológicos desse processo de modernização no contexto
brasileiro provinham das teorias formuladas nas metrópoles européias em torno das
noções de ciência, raça e civilização.401
As modificações na economia durante o reinado de Pedro II desencadearam
transformações também no plano social e político, abalando os esquemas
tradicionais de suporte do poder monárquico. A agricultura deixava de ser o único
empreendimento possível e os investimentos começavam a ser feitos em outros
setores. Assim, a construção de estradas de ferro, a criação de instituições
financeiras e o desenvolvimento de alguns empreendimentos industriais são
indicativos desse princípio de diversificação da economia. No plano externo, as
novas condições de produção geradas pela Segunda Revolução Industrial foram
colocando em crise o sistema escravista.
No campo, as zonas agrícolas tradicionais assistiam progressivamente a sua
produção diminuir e entravam em decadência. Já as regiões nas quais as fazendas
utilizavam métodos mais aperfeiçoados de produção e substituíam o trabalho
escravo pelo trabalho dos imigrantes, compunham a parte mais dinâmica das
atividades econômicas rurais.
Os antagonismos entre os grupos iam se acentuando paulatinamente e
acarretavam o surgimento de numerosos conflitos. Os setores mais integrados às
novas exigências do sistema mundial moderno reivindicavam um aumento dos
estímulos e a implementação de políticas voltadas para o desenvolvimento
econômico e tecnológico do país.
A modernização socioeconômica se revelava, assim, por meio de uma série
de fenômenos: a transição do trabalho escravo para o trabalho livre, a vinda de
imigrantes em levas significativas, o aumento do número de escolas e da taxa de
alfabetização, o início de uma rede de meios de comunicação por meio do telégrafo
e do telefone, o desenvolvimento da imprensa, o início de um processo de
industrialização no sentido da substituição de importações e da ampliação do
mercado interno, a instalação de uma rede ferroviária, a iluminação urbana, a
melhoria do saneamento básico, a generalização do uso do navio a vapor, a reforma
401
SEVCENKO, 2003, p. 147.
168
dos portos e o aumento da exportação de produtos agrícolas como o café, a
borracha e o cacau. Esses fenômenos contribuíram para o desenvolvimento da
urbanização, principalmente dos centros exportadores. Devido a tal concentração,
as mudanças ocorriam de forma mais lenta ou praticamente inexistiam nas regiões
mais distantes desses locais.
Na segunda metade do século XIX, os setores descontentes em relação à
monarquia passaram a disseminar as idéias republicanas no Brasil. O regime
monárquico era associado, no discurso republicano, ao sistema colonial que se
queria superar. Entretanto, o golpe militar de 1889 não representou uma ruptura no
processo histórico brasileiro. A modernização preservou os interesses dominantes,
fazendo com que se mantivessem o caráter colonial da economia e a dependência
externa. De fato, grande parte das ações políticas tinha um sentido conservador.
Antes de tudo, devemos ter em mente que os traumas do desenraizamento, que
haviam tido início com a escravização dos indígenas e dos africanos, continuaram
sob outras formas durante todo o período posterior à Independência. Assim, talvez
fosse melhor considerarmos as crises relativas aos processos de modernização
como atos de um drama em que as ações aconteciam visando não alterar
profundamente a ordem das coisas. Uma repetição do mesmo sob nova roupagem.
Na modernidade, o desenraizamento pode ocorrer de várias formas e em
relação a vários aspectos da existência. Dentre a pluralidade de processos
envolvidos na produção de desenraizamento, podemos mencionar: a migração; a
imigração; o contato com a cultura letrada; as mudanças tecnológicas; a substituição
dos modelos tradicionais, a expansão econômica do mercado internacional, assim
como a urbanização.
A cidade tornou-se o cenário privilegiado para exibir, de maneira paroxística,
o drama do desenraizamento. A urbanização, orientada pelos interesses do capital e
seguindo a lógica da inovação, alterava os espaços, reduzindo a intimidade dos
habitantes com os lugares. Além disso, o caráter excludente das políticas
governamentais, a enorme exploração dos trabalhadores e a pobreza de grande
parcela da população urbana favoreciam o surgimento de conflitos de classe, de
agitações e de sublevações. Para controlar essas manifestações sociais e
169
conseguirem administrar as cidades, os governantes desenvolveram reformas
urbanísticas. Entre o final do século XIX e o início do século XX, a modernização das
cidades encontrava justificativas em concepções da ciência e da filosofia positivista
daquela época. Os planejamentos visavam dar ordem e racionalidade ao espaço
urbano, promover o progresso e manter as relações sociais sob controle. Além
disso, também existia a preocupação com a higienização dos espaços urbanos.
Uma higienização que implicava tanto a melhoria da saúde pública quanto o
disciplinamento da conduta dos habitantes.
Segundo Angel Rama, no final do século XIX, os habitantes de certas cidades
latino-americanas experimentaram uma sensação de aceleração do tempo
provocada pelas mudanças vertiginosas no espaço urbano semelhante àquela
vivenciada pela população de Paris no período da reforma Haussmann. Ainda de
acordo com Rama, a “cidade física, que objetivava a permanência do indivíduo
dentro de seu contorno, transformava-se ou se dissolvia, desarraigando-o da
realidade que era um de seus constituintes psíquicos”.402 As cidades que
concentravam os processos econômicos começaram a atrair migrantes e imigrantes
gerando uma crise urbana, já que elas não estavam preparadas para abrigar a todos
convenientemente.
Nesse contexto de modernização latino-americana no período da Belle
Époque, a escritura adquiriu, de acordo com Rama, a importante função de criar
novas raízes para os sujeitos que vivenciavam o desarraigamento. A busca de
raízes propiciava o aparecimento de livros que narravam como a cidade era antes
da modernização, com sua paisagem urbana e seus costumes.403 Ao mesmo tempo,
outro tipo de narrativa era produzido, apontando para o que desaparecia nas áreas
rurais. Narrativas estas marcadas pela nostalgia em relação ao passado précapitalista, contrastando com a temporalidade dominante nas cidades modernas.
Segundo Hardman, isso pode ser observado
nas primeiras narrativas de Monteiro Lobato (Urupês, 1918; Cidades
mortas, 1919), assim como na bonita novela de Godofredo Rangel,
402
403
RAMA, 1985, p. 96-97.
RAMA, 1985, p. 98.
170
Vida ociosa (1920), cujo ritmo intencionalmente lento funciona como
anticlímax da velocidade inerente à sociedade urbana mecanizada,
tecendo-se o elogio de uma vida já meio irreal no campo, onde, não
obstante a passagem de horas aparentemente mortas e paradas, era
ainda possível dar vazão ao diálogo e à solidariedade orgânica, ao
fluxo espontâneo da experiência narrada. Todos esses sinais de
“resistência” ao tempo avassalador da modernidade, entretanto,
comparecem num ambiente melancólico rodeado de ruínas.404
Nesta passagem, percebemos facilmente uma das perspectivas que os
escritores brasileiros podiam adotar em relação à modernidade, mas não era a
única. Segundo Francisco Foot Hardman, as diversas concepções da modernidade
poderiam ser reunidas em dois polos antagônicos. De um lado, o polo “eufóricodiurno-iluminista”, apresentando uma perspectiva otimista da modernidade e dos
processos modernizadores. De acordo com as suas palavras, esse era o “lugar da
adesão plena e incontida aos valores próprios da civilização técnica industrial”,
“responsável pela produção, em alguns casos, de certas utopias tecnológicas
futuristas”. De outro lado, o polo “melancólico-noturno-romântico” que rejeitava
criticamente a modernidade, “às vezes sob o signo da revolta”.405 Essas duas visões
sobre a modernidade podiam também se combinar ou haver uma oscilação entre
atitudes negativas e apologéticas. Para os otimistas em relação à modernidade, o
ideal a ser cumprido era o de acompanhar a todo custo o progresso, o que
significava, de acordo com Nicolau Sevcenko, “somente uma coisa: alinhar-se com
os padrões e o ritmo de desdobramento da economia européia”. A “obsessão
coletiva da nova burguesia” era justamente o progresso – “versão prática do
conceito homólogo de civilização”.406
Assim, a partir do final do século XIX, ou, mais especificamente, depois da
instituição da República, o que se viu no Brasil foi o desejo de ser como os
europeus, principalmente como os franceses.
404
HARDMAN, 1992, p. 294. Sobre esta temática na obra dos simbolistas mineiros, ver o capítulo 4.
HARDMAN, 1992, p. 292.
406
SEVCENKO, 2003, p. 42.
405
171
O advento da República proclama sonoramente a vitória do
cosmopolitismo no Rio de Janeiro. O importante, na área central da
cidade, era estar em dia com os menores detalhes do cotidiano do
Velho Mundo. E os navios europeus, principalmente franceses, não
traziam apenas os figurinos, o mobiliário e as roupas, mas também
as notícias sobre peças e livros mais em voga, as escolas filosóficas
predominantes, o comportamento, o lazer, as estéticas e até as
doenças, tudo enfim que fosse consumível por uma sociedade
altamente urbanizada e sedenta de modelos de prestígio.407
Como o modelo a seguir se encontrava distante da realidade brasileira, os
intelectuais se sentiam deslocados em seu próprio país. Tal despaisamento é bem
evidente em Joaquim Nabuco que se via como espectador da civilização distante:
“Sou antes um espectador do meu século do que de meu país; a peça é para mim a
civilização, e se está representando em todos os teatros da humanidade, ligados
hoje pelo telégrafo”.408 Ao analisar este trecho de Nabuco, Silviano Santiago mostrou
que havia uma oposição entre país de origem e século. Nabuco preferia a crise da
modernidade européia do que a realidade brasileira. De maneira eurocêntrica, ele
equacionava “Política com maiúscula à História, história da civilização ocidental, no
caso história da Europa na sua expansão geográfica, econômica e social” e
considerava a “política com minúscula, a nacional, como inferior, setorizada e
dominada por estruturas arcaicas e sentimentos baixos”.409 Em Nabuco, o
sentimento de duplo exílio do intelectual brasileiro tornava-se evidente: “De um lado
do mar, sente-se a ausência do mundo; do outro, a ausência do país”.410
Em Minas, o aparecimento da ideologia do progresso na cena pública em fins
do século XIX, correlacionada aos movimentos sociais e políticos daquele período,
deram mais força a essa sensação de desarmonia em relação à modernidade.
Diante de uma realidade que lembrava o passado colonial e uma cultura tão distinta
do modelo europeu moderno, certos intelectuais mineiros começaram a acreditar na
necessidade de uma atualização dessa imagem, um salto “desenvolvimentista”. Aqui
podemos entrever o bovarismo dos intelectuais brasileiros daquela época. Isto é, o
desejo que eles tinham de serem como os europeus, sobretudo como os franceses.
407
SEVCENKO, 2003, p. 51.
NABUCO apud SANTIAGO, 2004, p. 12.
409
SANTIAGO, 2004, p. 13.
410
NABUCO apud SANTIAGO, 2004, p. 19.
408
172
Havia um desconforto por parte desses intelectuais em não serem como os seus
modelos europeus, mas de pertencerem a uma cultura mestiça, tropical. O
bovarismo era um sentir-se estrangeiro no seu próprio país, uma cultura do
desencanto em relação a si mesmo. Por não suportarem a realidade, os intelectuais
criaram para si uma imagem de um Brasil branco e europeizado, ao invés de um
país de negros, de mulatos e de sujeitos incultos. Percebendo-se numa situação de
descompasso com a modernidade, esses intelectuais experimentavam uma
permanente desilusão com a realidade brasileira.411
Este anseio dos intelectuais de serem como os europeus persistiu até a
década de 1920. Antes de se converterem ao nacionalismo, os modernistas mineiros
viviam
voltados
para
Paris.
Silviano
Santiago,
em
um
ensaio
sobre
a
correspondência entre Carlos Drummond de Andrade e Mário de Andrade, analisou
muito bem como o jovem escritor mineiro se posicionava no início de sua carreira:
“Na segunda carta de Carlos, veremos como seu espírito cosmopolita e tristonho se
encontra conformado, de um lado, pelo cinismo finissecular de Anatole France e, do
outro, pela tristeza e o pessimismo de Joaquim Nabuco.”
412
O poeta mineiro definia-
se como um “francês no Brasil”: “Sou hereditariamente europeu, ou antes: francês.
Amo a França como um ambiente propício, etc.” Drummond dizia que renunciar à
tradição francesa, a “única tradição verdadeiramente respeitável”, e se resignar a
“ser indígena entre os indígenas” era um grande sacrifício para ele.413 Em Minas
Gerais e nas outras regiões do Brasil, ser moderno, antes do Modernismo, era ser
cosmopolita e isso era quase sinônimo de assemelhar-se a um francês.414
A realidade econômica daquela época é que Minas Gerais era menos
produtora do que consumidora de mercadorias industrializadas. Assim, nos últimos
anos do século XIX e primeiros do século XX, a economia mineira ainda tinha um
caráter basicamente agrícola. Em geral, as indústrias mineiras produziam alimentos,
mercadorias têxteis (colchas, cobertores), ou então, cerâmicas, chapéus, cervejas,
vinhos, licores, cigarros, material de construção, artigos de cera e couro. A siderurgia
411
Sobre o bovarismo dos intelectuais brasileiros, Cf. HOLANDA, 1987, p. 124-125.
SANTIAGO, 2006, p. 73.
413
ANDRADE apud SANTIAGO, 2006, p. 73.
414
Mario de Andrade, percebendo o artificialismo de tal atitude, em resposta a esta carta, criticou o
excessivo “anatolismo” que perpassava a visão que o poeta mineiro tinha do Brasil e o aconselhou a
se abrasileirar.
412
173
só começaria no ano de 1919 com a criação da Companhia Siderúrgica Mineira,
posteriormente comprada por empresários europeus e transformada em BelgoMineira.415 Inúmeras e pequenas, as fábricas que foram se constituindo raramente
exportavam a sua produção. Rio de Janeiro e São Paulo contavam com maiores
vantagens em termos de infraestrutura e localização no processo competitivo. Isso
teria sido um dos fatores que explicariam a lentidão do desenvolvimento econômico
de Minas naquela época.416
A modernização em Minas também ocorreu através do uso de novas
tecnologias e de produtos industriais resultantes da aplicação das mesmas. No
campo da arquitetura, por exemplo, houve o desenvolvimento de técnicas
construtivas com a utilização de produtos industrializados geralmente criados nos
países centrais. Já a imigração européia permitiu o aparecimento de uma mão-deobra especializada nas cidades, capaz de executar diferentes trabalhos de
construção e ornamentação das novas edificações urbanas.
No plano da educação, as primeiras escolas superiores e técnicas também
produziram uma mudança significativa no panorama cultural mineiro, gerando um
um contingente de estudantes e de profissionais formados para ler o mundo
segundo novas teorias científicas, filosóficas e estéticas.417
Outros aspectos da modernização estavam ligados ao desenvolvimento do
próprio ambiente cultural e à democratização do acesso a formas de impressão, o
que possibilitou o surgimento de um grande número de periódicos que se tornaram
espaços de profissionalização para os escritores.
O processo de modernização em Minas Gerais foi acirrado com a construção
da nova capital, Belo Horizonte. É importante ressaltar que as primeiras ações no
415
IGLÉSIAS, 1982, p. 126.
No século XIX, as elites mineiras desenhavam um panorama pessimista da economia regional.
Segundo Otávio Dulci (2005, p.115), a impressão geral era a da estagnação ou da decadência
econômica de Minas. Tais idéias apareciam por contraste “com a imagem de um passado de riqueza
e prestígio, correspondente ao ciclo da mineração do ouro. Mas derivava igualmente de comparações
desfavoráveis com o avanço econômico de outras áreas do país, particularmente São Paulo. O
diagnóstico era talvez demasiado sombrio, pois, embora em ritmo lento, a economia mineira cresceu
durante o século XIX.”
417
Sobre as escolas frequentadas pelos simbolistas mineiros e as suas orientações ideológicas, ver
capítulo 2.
416
174
sentido de fazer surgir uma moderna capital no antigo arraial de Curral del Rei foram
medidas produtoras de desenraizamento.
O processo de instalação da nova cidade caracterizou-se
inicialmente pela destruição física do arraial. A demolição de casas e
o desaparecimento de ruas produziam um desenraizamento
associado à destruição da própria memória. Foi como se os
construtores buscassem gestar outra memória, adequada à cidade
que nascia.418
Belo Horizonte representava, para esses defensores do progresso, um
monumento de modernidade em oposição a Ouro Preto, símbolo do passado que
cumpria ser superado. Contudo, nos seus primeiros anos, a nova capial se
mostrava, ao mesmo tempo, provinciana e cosmopolita. De um lado, as famílias
originárias do interior do estado. De outro, os imigrantes estrangeiros que eram
atraídos pelos empregos gerados pela construção da nova capital. Foi nesse
contexto que se desenvolveu o Simbolismo mineiro, cujos representantes
encenaram o drama da modernidade, como podemos observar em seus textos.
SUJEITOS EM TRÂNSITO E DESESTABILIZAÇÕES
No século XIX, o aumento da população mundial foi expressivo. A migração
decorrente das transformações econômicas e tecnológicas iria concorrer para o
aumento da população urbana, principalmente nas cidades situadas em regiões
estratégicas e nos centros de maior dinamismo e capacidade de produzir riqueza.
Ao chegar às cidades, os migrantes sentiam a perda de todos os seus referenciais
anteriores e se viam jogados em uma condição de marginalidade. Sua maneira de
viver e seu modo de falar eram considerados inferiores. Nas cidades modernas,
muitos desses migrantes se tornariam desempregados e subempregados, vivendo
418
ALMEIDA, 1997, p. 73.
175
em condições cada vez piores. A miséria da maioria da população urbana
engendrava, por seu turno, o aumento da criminalidade e da delinquência. Já os
migrantes incorporados ao trabalho nas indústrias sofriam o desenraizamento
causado pela mecanização e pela produção em série. O novo ritmo do trabalho
impunha a esses sujeitos uma percepção fragmentada da realidade.
No final do século XIX, também ocorreu o fenômeno da imigração,
relacionado ao crescimento demográfico em certos países e à necessidade de mão
de obra em outros. O superpovoamento da Europa e o aumento da mecanização
tiveram como consequências o desemprego crônico, a baixa dos salários e o
empobrecimento de boa parte da população que se viu obrigada a buscar trabalho
em outros continentes. Os imigrantes europeus tentavam implantar os costumes,
crenças e técnicas nos locais de destino, constituindo outra modalidade do processo
de ocidentalização. Na América Latina, segundo Angel Rama, os imigrantes
europeus, juntamente com os migrantes rurais, ao se incorporarem às populações
das cidades, viviam como se observassem uma paisagem com a qual não se
identificavam. Assim, o comportamento desses sujeitos em trânsito se daria a partir
de um olhar desarraigado sobre esse novo cenário.419
O ritmo mais acelerado da vida urbana, o contato com um grande número de
desconhecidos e a imprevisibilidade do futuro geravam nos habitantes das cidades
submetidas a esses processos modernizadores um sentimento de perda do
passado, de estranhamento e de instabilidade.420
Em alguns textos dos simbolistas mineiros, percebemos que tais questões
aparecem, em geral, transfiguradas, como era de se esperar, e representadas de
modo sutil. Mas também havia os que refletiam sobre as mudanças sociais de forma
mais direta, como J. Camelo em “Carta aberta”.
Endereçada a Edgard Mata, “Carta aberta” foi publicada no jornal O Norte, em
1901, e revela uma concepção de arte, leia-se literatura, bem diversa daquela
expressa por Alfredo de Sarandy Raposo na “Epístola ao Auto de Sá”.421 Ao
contrário de Sarandy Raposo que se colocava contra as massas, J. Camelo via uma
419
RAMA, 1985, p. 97.
RAMA, 1985, p. 97.
421
Cf. a análise desse texto de Alfredo de Sarandy Raposo no capítulo “Os jardineiros dos símbolos”.
420
176
função social para a arte: “Parece-me que o fim da arte é todo social e que a
perfeição é seu escopo”.422
Camelo afirmava que a literatura havia desempenhado um papel no
desenvolvimento de outras nações revelando “o [seu] estado presente” e lhes dando
“novas perspectivas e horizontes”. Também questionava se o mesmo não poderia
acontecer no Brasil. O que preocupava J. Camelo e havia desencadeado todas
essas ideias era o êxodo rural, fenômeno analisado nestes termos: “Atualmente, a
nação sente os efeitos do abandono em que deixaram seu solo feracíssimo. As
populações acossadas nas cidades pela miséria da falta de produção increpam os
governos por seus males”.423 A situação do país era descrita como crítica,
necessitando de soluções rápidas.
Ora, é impossível que nós tenhamos nascido só para viver a
vida artificial e mórbida das cidades. É louco pensar que os nossos
campos devem jazer abandonados e entregues à incúria ou à rotina
o pouco que já fizeram neles. Assim, urge achar um remédio para o
mal, que, sendo do país inteiro, é principalmente do nosso Estado,
cuja parte setentrional tem o maior quinhão de amarguras.424
Para J. Camelo, a solução dessa crise seria fazer retornar para o campo a
população que havia partido para as cidades. Enfrentando a possibilidade de ser
acusado de defender o retrocesso, o escritor mineiro acreditava que a arte poderia
atuar no sentido de dar um direcionamento para o processo do desenvolvimento
nacional.
Os artistas, com a sua perfeita intuição das coisas e das
necessidades da vida, estão destinados a facilitar o problema,
concorrendo para o que pareça impossível.
A arte, com o seu poder de solução a que ninguém foge,
começará por chamar e prender a atenção ao que for copiado da
natureza; e o campo [...] convidará como um lugar de calma e paz, e,
422
CAMELO, J. Carta Aberta. O Norte, Belo Horizonte, 29 jun. 1901, p.3.
CAMELO, J. Carta Aberta. O Norte, Belo Horizonte, 29 jun. 1901, p.3.
424
CAMELO, J. Carta Aberta. O Norte, Belo Horizonte, 29 jun. 1901, p.3.
423
177
afinal, ter-se-á conseguido enveredar para caminho de grandeza a
pátria estremecida.425
Se os artistas (isto é, os escritores) representassem em suas obras o solo
cultivado e fértil, os campos bem administrados e preenchidos por fábricas “pejando
os ares com a fumaça de centenares de chaminés”, os migrantes iriam voltar “suas
energias para regiões mais fecundas”, buscando construir o bem estar de todos na
vida rural.426 Por estas palavras, podemos notar como J. Camelo acreditava num
papel missionário do escritor e no poder transformador da literatura. Para ele, o
escritor seria capaz de alterar os processos sociais através de suas obras. Sendo
assim, as formulações estéticas deveriam estar subordinadas aos objetivos
educativos ou formativos. A ingenuidade desta posição é evidente. Mesmo que a
literatura tivesse esse poder, é difícil explicar como os migrantes poderiam ser
direcionados pela escritura já que eram majoritariamente analfabetos.
Em “Carta aberta”, J. Camelo afirmou ter conversado sobre suas ideias com
Edgard Mata, parecendo sugerir que o êxodo rural também preocupava a este
último. Curiosamente, Edgard Mata compôs dois poemas alegóricos com o tema da
mudança, do trânsito, da passagem, porém, ao invés da migração rural, preferiu
falar do fenômeno da emigração/imigração. Diferentemente da perspectiva social
pregada por J. Camelo, os poemas de Edgard Mata tratam a questão de um ponto
de vista mais subjetivo, psicológico. Além disso, o estilo de Edgard Mata evidencia
que ele não concordava com a subalternidade do estético ao social na elaboração
literária. No poema intitulado “Migração”, o eu poético se coloca na posição do
sujeito emigrante, dramatizando transfiguradamente a situação de crise anterior à
partida.
O inverno triste, nebuloso,
Avassalou minha alma. Agora
Não rompe mais a luz da aurora,
Não vejo mais o sol radioso.
425
426
CAMELO, J. Carta Aberta. O Norte, Belo Horizonte, 29 jun. 1901, p.3.
CAMELO, J. Carta Aberta. O Norte, Belo Horizonte, 29 jun. 1901, p.3.
178
O norte passa sibilando,
Frio que corta como espadas,
A neve cai pelas estradas,
Curvam-se as árvores chorando.
Não há mais flores nas campinas,
Não há mais flores nos jardins:
Jazem fanados os jasmins,
Estiolaram-se as boninas.
A luz albente do luar
À noite beija a grande serra,
Treme de frio toda terra,
E há um frêmito no mar.
Parti, parti, minhas Quimeras,
Que é frio e gela este Janeiro,
Parti, num vôo aventureiro,
Buscando o sol das primaveras.427
Sublinhemos, aqui, o cenário europeu apresentado no período invernal, com
referências ao mês de janeiro e ao vento frio vindo do norte, cortante como uma
espada e que instala um período de trevas. A isto se contrapõe, na última estrofe, a
ideia de uma esperança de nova vida, identificada como a busca aventurosa de um
espaço de pouso para os sonhos, como a partida para um lugar onde prevaleceria a
primavera. A emigração é, neste caso, representada como uma possibilidade de
realização dos ideais. A situação inicial, toda tingida pela melancolia, é traçada
através de uma série de imagens de desestabilização e de morte. Tal situação de
instabilidade se concentra especialmente nos versos: “Treme de frio toda terra, / E
há um frêmito no mar.” Assim, o poema sugere a coexistência de duas perspectivas
aparentemente contraditórias no sujeito que deixa o país de origem: o pessimismo
em relação às suas condições de vida no presente e a esperança de um futuro
melhor. É importante lembrar que uma das imagens do Brasil compartilhada pela
maioria dos estrangeiros era a da terra promissora, capaz de salvá-los da pobreza e
do desemprego vividos na sua pátria.428
427
428
MATA apud SOUZA, 1978, p. 97.
Cf. CURY, 2006, p. 27.
179
Já no poema “As andorinhas”, há um paralelismo entre as aves migratórias e
as “almas desoladas”. Em destaque, o sofrimento da travessia e da mudança em
direção a outro país.
Logo que chega o inverno, as andorinhas
Vão se reunindo à beira dos telhados,
Olhando as amplas vastidões marinhas.
Têm que deixar os ninhos seus amados,
Que o inverno triste, o inverno nebuloso
Já desnudou as árvores dos prados.
E, atravessando o mar tempestuoso,
As emigrantes tímidas, aladas,
Vão noutras terras procurar um pouso.
Assim também as almas desoladas,
Se o inverno chega e mata as ilusões
Nos peitos seus há muito acalentadas,
Vão procurar ignotas regiões,
Fugindo à noite gélida da sorte,
Aves que emigram para as solidões
Desse país desconhecido – a Morte.429
O interessante no poema “As andorinhas” é a apresentação do tema
emigração/imigração de um ponto de vista diverso do habitual. Podemos distinguir
três partes no poema: 1) o período anterior à partida; 2) a viagem; 3) e a homologia
com a morte. Nas duas primeiras estrofes, são apresentadas a chegada do inverno
e a necessidade de se deixar os “ninhos amados”. Já nas duas últimas, o poeta
estabelece uma comparação entre o inverno que faz com que as andorinhas
enfrentem o desconhecido em busca de pouso e as desilusões que impelem as
“almas desoladas” em direção à morte (“país desconhecido”). Cria-se, então, uma
correspondência entre (re)pouso e morte. A desestabilização e a instabilidade
estariam no período anterior à viagem, no trânsito e na própria vida. As condições
hostis não estariam no ponto de chegada (desconhecido, estranho), mas no ponto
de partida (conhecido, familiar), apesar do amor pelo local de nascimento. Desse
429
MATA apud SOUZA, 1978, p. 90.
180
modo, Edgard Mata distingue-se de outros autores em relação à questão da
imigração.
Na sua interpretação dos processos sociais, J. Camelo fez desaparecer toda
a insegurança e as difíceis condições de vida nas áreas rurais brasileiras,
expressando claramente seu objetivo de produzir uma utopia da conciliação do
mundo moderno com o tradicional, uma utopia da pacificação do mundo urbano e do
mundo rural. Já Edgard Mata, ao escolher o tema da imigração, abordado da
perspectiva da necessidade de sobrevivência, e ao evidenciar a crise do local de
origem, estabelece um contraste crítico em relação às formulações ideológicas
ingênuas de J. Camelo.
Consideremos, agora, uma das crônicas de Guy d’Alvim (pseudônimo de
Alphonsus de Guimaraens) que tocava na questão das mudanças culturais
causadas pela influência estrangeira no Brasil. Publicada pela primeira vez no jornal
O Conceição do Serro, em 1904, e depois nas Obras completas, de 1960, a crônica
abordava o tema das tradições culturais a partir de um olhar que oscilava entre a
valorização da memória e do esquecimento. O cronista constatava que os usos e
costumes brasileiros estavam sendo “adulterados” sob o impacto da imigração e do
cosmopolitismo, entendido como sinônimo de modernização.
Hoje que o cosmopolitismo invadiu as nossas grandes
cidades, e a grande e franca imigração de estrangeiros
adulterou as antigas usanças, só nas cidades do interior se
repetem os folguedos que eram o consolo e a alegria dos
nossos avós.430
As tradições foram representadas de forma ambígua pelo cronista. De um
lado, demonstrava satisfação pela continuidade dos costumes antigos, mas, de
outro, afirmava que algumas dessas tradições poderiam ser ligeiramente
modificadas ou nem serem preservadas, referindo-se, por exemplo, à prática cultural
da “Serração da velha”, que ocorria no meio da Quaresma. Dependendo da forma
430
GUIMARAENS, 1960, p. 595.
181
como era realizada, a “Serração da velha”, imitação caricatural dos mais velhos, se
transformava numa prática desrespeitosa em relação aos idosos. Além disso, ao ser
praticada à noite, “quando tranquilamente descansamos a viajar pelo reino
silencioso de Morfeu”, causaria irritação nas pessoas e deveria ser evitada. 431
O cronista acreditava que os costumes também poderiam ser selecionados e
a escolha recair nos mais adequados do ponto de vista social como várias
manifestações populares da cidade de Conceição do Serro. Todas as práticas
indicadas como adequadas se vinculavam ao campo religioso e misturavam
elementos africanos e ibéricos.
Surge o ano novo, depois que S. Silvestre fecha a sete chaves
o ano velho, e o efêmero Reinado do Rosário aparece, com
caxambus, piperuis (sic), danças e contradanças, rei e rainha; vêm
os Reis Magos, e os mais circunspectos pais de família do lugar
(entre os quais estou), saem cantando loas em seu louvor.432
A inclusão do cronista nesse contexto cultural mostra o seu posicionamento
em relação à identidade brasileira.
De Portugal e África viemos, com grande mistura do sangue
selvagem das hordas indígenas: depois outras raças se nos uniram,
e daí veio a coleção variadíssima de tipos que entre nós se nota.
Eu, que aqui estou, brasileiro como ninguém, sou moçárabe:
mouro, godo e luso...433
Neste texto, o cronista se mostra como um brasileiro resultante da
mestiçagem ibérica. Já no poema “Meus pais”, Alphonsus de Guimaraens adota
431
GUIMARAENS, 1960, p. 595-596.
GUIMARAENS, 1960, p. 595.
433
GUIMARAENS, 1960, p. 595.
432
182
uma outra perspectiva e o eu lírico menciona a sua origem branca ao descrever sua
mãe: “Ela era branca, ela era esbelta, / Olhos marinhos, fronte ideal de celta”.434
Em
“Meus
pais”,
Alphonsus
de
Guimaraens
não
apresenta
a
emigração/imigração de forma conflituosa nem na partida, nem na chegada,
produzindo um efeito de continuidade entre o além e o aquém-mar”.
Nascera ao pé de Fafe. Ermos algares,
Altas escarpas de Entre-Doiro-e-Minho:
Das iberas regiões peninsulares
Toda a luz, sob um céu de seda e linho.
Ele era alegre e forte. Em seus cismares,
Em meio às eiras, nos trigais, de ancinho,
Sabendo de outra pátria além dos mares,
Veio para o Brasil ainda mocinho.435
Em “Jardim da Europa”, o país do genitor do poeta apresenta-se
simultaneamente como jardim e cemitério, local onde o eu poético gostaria de
repousar. Este Portugal é também o “Velho Reyno”. Através da alegoria do “pobre
velhinho”, sentimos a presença do fantasma do “Velho do Restelo”, personagem
camoniano que se manifestou contrariamente ao embarque dos navegantes
portugueses em direção à Índia,436 viagem que deu início à história do sistema
mundial moderno.
Horto de estrelas para quem padece!
Ai! doce terra de meu pai, jazigo
De tudo quanto nobre foi! pudesse
Dormir Alphonsus no teu seio amigo...
Como um pobre velhinho, as mãos em prece,
Olhando as vinhas e oscilar do trigo,
É assim que o Velho Reyno me aparece,
E em noites brancas vem sonhar comigo.
434
GUIMARAENS, 2001, p.368.
GUIMARAENS, 2001, p. 368.
436
Além da referência ao episódio do Velho do Restelo, outra passagem dos Lusíadas é aqui
lembrada. Trata-se do conhecido episódio de Inês de Castro
435
183
E à beira-mar, a sós, longe de escolhos,
Ficamos como dois pobres enfermos,
Nossa alma, como Inês, posta em sossego...
Toda a tristeza que anda nos meus olhos
Veio de ti, meu pai, que pelos ermos
Choraste olhando as águas do Mondego.437
Neste soneto que dialoga com Camões, seja pela menção ao Mondego no
último verso, seja pela alusão ao Velho do Restelo ou pela referência a Inês de
Castro, o sujeito poético se representa como herdeiro da melancolia portuguesa e da
voz crítica ao projeto colonialista de Portugal. É bem revelador o título do poema,
“Jardim da Europa”, remetendo a um Portugal que seria, ao mesmo tempo, a origem
da Europa moderna (jardim/horto) e o fim da era medieval, “jazigo de tudo o que
nobre foi” (cemitério).
Retornemos à crônica de Guy d’Alvim/Alphonsus de Guimaraens sobre as
tradições brasileiras. De acordo com o cronista, os costumes antigos teriam a sua
preservação garantida nas cidades do interior, especialmente nas de Minas Gerais.
Minas estaria “fadada a guardar no Brasil a herança dos seus avoengos de alémmar”.438 A substituição de costumes, práticas, idéias e crenças de origem portuguesa
pelos provenientes de outros países europeus causariam um “abalo” nas “antigas
usanças”. Já os elementos culturais das etnias indígenas e africanas deveriam estar
presentes apenas sob uma forma dependente. Desde que existissem como
“assimilações cordiais”, as formas de miscigenação, de mestiçagem, de sincretismo
não eram vistas como ameaçadoras. No Brasil, conforme Silviano Santiago, “o
problema do índio e do negro, antes de ser a questão do silêncio, é a da
hierarquização de valores”.439 Nem tudo pode ser dito. Nem tudo é dito. Assim, a
alteridade só pode existir, só pode se manifestar, se permanece subalterna,
dependente.
Uma hipótese a ser desenvolvida em estudos futuros é a de que esses
pensamentos de Alphonsus de Guimaraens dialogavam com as teorias formuladas
437
GUIMARAENS, 2001, p. 369.
GUIMARAENS, 1960, p. 595.
439
SANTIAGO, 1982, p.17.
438
184
pelos membros do IHGB e herdeiras da teoria de Von Martius sobre as três raças
formadoras coexistindo em ordem e respeitando as hierarquias e desigualdades
biológicas. Na época de Alphonsus de Guimaraens, as ideias de Von Martius
sobreviviam em linhas gerais no pensamento de Silvio Romero. Apesar do processo
de miscigenação, o branco representaria, para esses autores, o elemento civilizador
na formação nacional. Um indício neste sentido seria a crônica de Alphonsus
publicada n’O Mercantil cujo tema era um sarau no Instituto Histórico de São Paulo,
no qual, além de terem sido apresentadas palestras de literatura no sentido estrito,
também foram feitos discursos sobre temas históricos. Os intelectuais do IHGB eram
literatos, misto de escritores e historiadores. O contato com essas teorias também
poderia ter ocorrido através dos artigos que esses intelectuais do IHGB publicavam
nos periódicos daquela época. Lembramos que um dos periódicos em que
Alphonsus de Guimaraens colaborou, a Revista Brasileira, também publicava artigos
de caráter científico sobre história do Brasil, sociologia, antropologia, etc.
Alphonsus de Guimaraens se colocava entre dois mundos: o de seu pai
português (Guimarães) e o de sua mãe brasileira (Alvim). Esta posição fica muito
clara numa carta a Belmiro Braga. Nela, o escritor mineiro explicava assim o uso do
pseudônimo Guy d’Alvim:
É um pseudônimo que usei muito em São Paulo, e que é o
nome da minha família materna. Minha mãe, sobrinha de Bernardo
Guimarães, era filha de J. I. de Faria Alvim, tio de Cesário Alvim.
Quanto a meu pai, era, como o seu, português, e também
Guimarães. São tão comuns os Bragas e Guimarães no avoengo exreino!440
Neste trecho, o emprego do termo “avoengo” nos faz pensar em como os
textos articulam uma cadeia de signos relacionando a tradição aos velhos. Uma
série de associações podem ser feitas começando pelos avós, passando pela figura
do “Velho Reyno”, pelo “Velho do Restelo,” e chegando aos idosos ridicularizados na
prática da “Serração da velha”. Sublinhemos, aqui, o fato de uma das formas como
440
GUIMARAENS apud BUENO, 2002, p. 24.
185
acontecia a brincadeira (foliões que serravam uma tábua como se fosse uma velha,
em meio a gritos e lamentos) simbolizar um assassinato. O cronista projetou na
brincadeira tradicional a imagem do desrespeito pelo “avoengo”. A isto opunha a
imagem dos pais de família circunspectos cantando na festa de Reis. Ao invés da
tradição desrespeitosa, a tradição circunspecta, merecedora de continuidade e
selecionada por uma criteriosa reflexão. O respeito à tradição não significava a sua
pura e simples repetição. Envolvia um exame, uma análise de seu valor. Na referida
crônica sobre as tradições, duas formas de modernização em relação aos costumes
eram
distinguidas.
A
primeira,
acontecendo
sob
a
forma
da
adulteração/esquecimento, provocada pela adoção de valores e hábitos dos
imigrantes, e a segunda sob a forma de seleção/esquecimento de certas práticas
culturais vigentes no país. Para o cronista, Minas se tornaria o lugar de
arquivamento de duas linhagens de tradição: a moçárabe, produto da miscigenação
dos povos ibéricos, e a brasileira, resultado da mistura da herança portuguesa com a
africana e a indígena.
Na mesma época em que foram escritos os textos de Alphonsus de
Guimaraens, de Edgard Mata e de J. Camelo, Belo Horizonte estava sendo
construída. A necessidade de mão-de-obra, principalmente a especializada, atraiu
para os canteiros de obras um grande contingente de técnicos, engenheiros,
arquitetos, artistas plásticos, artesãos e operários de várias nacionalidades.
Alemães, austríacos, suíços e portugueses trabalharam na construção da nova
capital. Porém, a grande maioria dos imigrantes era de origem italiana.441 Muitos
desses profissionais foram convidados, mas outros métodos de arregimentação de
trabalhadores também foram utilizados, como, por exemplo, os anúncios em
periódicos internacionais de arquitetura. Segundo Heliana Angotti Salgueiro, houve
até mesmo a participação de uma agência, localizada em Gênova, com a missão de
atrair mão-de-obra, desenvolver relações comerciais e importar materiais.442 Vários
documentos comprovam, além disso, que a construção da cidade envolveu relações
comerciais e de trabalho com a França, a Alemanha e a Bélgica.443 A nova capital
nasceu cosmopolita, mas também provinciana. Paradoxos da modernidade na
periferia do sistema mundial.
441
ALMEIDA, 1997, p. 79.
SALGUEIRO, 1997, p. 19.
443
SALGUEIRO, 1997, p. 20.
442
186
Se, como muito bem ressaltou Salgueiro, os imigrantes participaram
inicialmente da vida social de Belo Horizonte através das atividades artísticas e da
construção civil,444 isto não representou, de fato, a sua integração plena. O
planejamento da cidade não favorecia, antes dificultava, a interação dos imigrantes
pobres com os outros grupos sociais. A zona central da cidade era destinada aos
membros da elite do estado e aos detentores do poder. Para as camadas populares,
só restava a periferia.
A perspectiva política adotada no projeto e depois na
administração da cidade era segregacionista e autoritária. Tal concepção urbanística
continuou prevalecendo na cidade ainda na década de 1920. Como apontou Maria
Zilda Ferreira Cury, as medidas adotadas pelos governantes visavam “impedir a
intromissão da cidade real no espaço da cidade espetáculo”,445 imaginada como uma
Paris nos Trópicos.
Um fato narrado por Augusto de Lima Júnior envolvendo seu pai e um
imigrante italiano na época da construção de Belo Horizonte é bem revelador da
visão de mundo de um membro da elite mineira daquele tempo. O que sublinhamos
na narrativa é justamente o espanto com a descoberta de que poderiam existir, entre
os imigrantes, “figuras de alta cultura que haviam abandonado sua pátria por
motivos morais misteriosos e que disfarçavam a sua tristeza perene” com uma
“cortesia discreta”.446 O imigrante
[...] surpreendeu meu pai quando a envernizar umas estantes em
nossa casa, discorreu sobre literatura clássica e sobre música com
erudição espantosa. Revelou algum tempo depois o seu segredo a
meu pai. Jovem maestro da Lombardia, matara a esposa por
adúltera. Agora envernizava móveis e regia a Banda Italiana. Seu pai
fora 1o violino no Scala de Milão.447
No imaginário daquela época, a erudição seria um atributo dos membros da
elite brasileira. O fim da escravidão era muito recente e o trabalho manual era
444
SALGUEIRO, 1997, p. 20.
CURY, 1998, p. 42.
446
LIMA JÚNIOR, 1960, p. 344.
447
LIMA JÚNIOR, 1960, p. 344-345.
445
187
desvalorizado, visto pelo viés de uma sociedade escravocrata.448 A surpresa estava
em encontrar um trabalhador que não se enquadrava no estereótipo do sujeito
iletrado e rude ou em se deparar com um sujeito de formação requintada que, por
circunstâncias da vida, via-se obrigado a executar trabalhos manuais. Os imigrantes
apareciam na cena pública desestabilizando os preconceitos. Eles não se
enquadravam nos esquemas de ordenação social baseados nos laços de
parentesco e seu passado era pouco ou totalmente desconhecido. Uma das
características do processo de modernização urbana é justamente a substituição de
relações sociais baseadas no conhecimento pessoal pelas relações de aspecto mais
impessoal com estranhos. Nas grandes metrópoles modernas, a convivência entre
grupos sociais de diversas origens, apesar de ser conflituosa, é regida por ideais de
maior tolerância em relação às diferenças e de maior liberdade individual.449
Os imigrantes que participaram da construção de Belo Horizonte provocaram
uma crise no quadro de referências que davam aos sujeitos uma impressão de
estabilidade no mundo social. Os mineiros que habitavam a nova capital viam-se
obrigados a repensar a própria identidade cultural quando confrontados com os
estrangeiros. O que era familiar tornava-se questionável pela presença da
alteridade.450
Os
estrangeiros
eram
estigmatizados
como
aventureiros
e
desordeiros.451 Nos anos iniciais da nova capital, os imigrantes eram todos
colocados sob suspeição e o controle social exercido pela polícia visava, sobretudo,
a punição dos crimes e desvios praticados por esse grupo, sendo que a principal
questão policial naquela época era a “desordem”, seguida pela embriaguez e a
vadiagem.452 O jogo, o ócio, a vadiagem, a mendicância e a prostituição eram vistos
como ameaças à cidade-cenário, à cidade-espetáculo. A higienização dos espaços
urbanos exigia um combate sem tréguas a tudo que parecesse deteriorar a imagem
idealizada da nova capital mineira. Além do mais, os setores dominantes da
448
De acordo com Francisco Foot Hardman (2005, p.108), as elites brasileiras eram praticamente
incapazes de diferenciar os imigrantes dos escravos.
449
ANDRADE, 1997, p. 192-193.
450
Segundo CURY (2006, p. 12), o “imigrante – o estrangeiro, o outro, o ‘de fora’ – coloca-nos diante
de uma ‘estranheza identitária’, que é, simultaneamente, estranheza de nós mesmos”. Já KRISTEVA
(1994, p.21) afirma que viver com o estrangeiro “confronta-nos com a possibilidade ou não de ser um
outro. Não se trata simplesmente, no sentido humanista, de nossa aptidão em aceitar o outro, mas de
estar em seu lugar – o que equivale a pensar sobre si e a se fazer outro para si mesmo”.
451
ANDRADE, 1997, p. 192.
452
ANDRADE, 1997, p. 197.
188
sociedade belo-horizontina desejavam manter os imigrantes sob a forma de um
exército de mão-de-obra sempre disponível e dócil.
Se a justificativa para a presença do imigrante em Belo Horizonte era o
trabalho, aqueles que estavam desempregados ou não estavam em período
laborativo eram os mais visados pelo controle policial. Neste sentido, o combate à
vadiagem e à ociosidade muitas vezes implicava numa extrapolação autoritária. Um
exemplo disso foi registrado pelo jornal O Operário na edição do dia 19 de agosto de
1900. A notícia nos mostra que até mesmo o lazer dos imigrantes era objeto da
repressão policial:
No dia 15 do corrente mês, em uma venda da Lagoinha, alguns
italianos jogavam pacificamente umas garrafas de cerveja marca
barbante do inocente jogo de bola que mais que um jogo é um
verdadeiro exercício ginástico. De repente aparece um tal de Malta
com dois soldados e manda prender os jogadores.453
Em 15 de maio de 1900, uma crônica do jornal Lotus, trazia um flagrante do
cotidiano belo-horizontino. A crônica, intitulada de “Urbe et orbe”,
apontava um
exemplo de injustiça social vivenciada por um imigrante em Belo Horizonte e, ao
mesmo tempo, revelava a posição de um intelectual simbolista diante da mesma.
Quando caminhava pela Avenida Afonso Pena pensando num tema para o seu texto
do jornal, o narrador-cronista ouviu, de repente, “três bizarros militares” discutindo
sobre a qualidade de uma modinha popular. Toda a cena foi descrita com um tom
irônico. Antes mesmo de reconstituir os fragmentos das frases ditas pelos policiais, o
enunciador já criticava o seu modo de falar, tão distante do padrão literário da língua
portuguesa. O cronista buscou reproduzir a fala dos policiais e os seus desvios da
língua padrão. Um dos policiais achava que o fato de ser uma modinha muito
cantada até pelos “vadios” fazia com que ela parecesse não ser bela.
453
O Operário apud SANTOS, 1997, p.166.
189
– Assim, essa modinha, Bem sei mulher, bem conheço, é um
fenômeno! Se não parece, é porque anda aí repetida a toda a hora
por esses vadios ... (ipsis verbis).
– Sim senhor, não há dúvida nenhuma.454
Então a ironia do cronista foi dirigida para a capacidade de julgamento
estético dos personagens policiais:
Podem os críticos berrar aos quatro ventos que a obra de
Dante é estupenda; que Homero traçou na Ilíada a imagem
palpitante da vida grega com a sua divina palheta; que à memória do
Cisne de Mântua ainda se curva em homenagem a geração
contemporânea. São uns pretensiosos que não sabem o que dizem.
Não há, na verdade, obra alguma que se possa comparar ao
Bem sei mulher... Entretanto, se me fosse concedido exibir a minha
opinião, eu diria que acho mais genial, ainda mais extraordinário, o
Vem cá Bitu. Belo, estupendamente belo, apesar de estar
extraordinariamente divulgado.455
Nesse momento, os policiais cometeram um atentado ao direito de ir e vir de
um pobre estrangeiro, constituindo o fait divers para o cronista.
Estavam as minhas reflexões nesse ponto, quando chegaram
aos meus ouvidos as célebres palavras: “Esteje preso!” – temível
espada de dois gumes, que corta a gramática e também dá golpes
na liberdade.
Um pobre italiano, agarrado pelos três amantes das Musas, ia
passar a noite no Posto Policial, enquanto eu voltava para casa a
saborear o meu chá, contente por ter o que contar aos meus poucos
leitores do terceiro número do Lotus.456
É importante salientar que a figura do escritor simbolista como um sujeito
exilado, como um desterrado melancólico num mundo regido pela banalidade e
454
ÊXUL. Urbe et orbe. Lotus, Belo Horizonte, 15 maio 1900, p. 2.
ÊXUL. Urbe et orbe. Lotus, Belo Horizonte, 15 maio 1900, p. 2.
456
ÊXUL. Urbe et orbe. Lotus, Belo Horizonte, 15 maio 1900, p. 2.
455
190
pelos interesses materiais era bem comum no fim do século XIX e primeiros anos do
século XX. No Simbolismo mineiro, isso aparece claramente em dois sonetos
escritos para homenagear Cruz e Souza. O primeiro, justamente intitulado “Poetas
exilados”, foi escrito por Alphonsus de Guimaraens e o segundo, “Esteta”, por
Edgard Mata. Essa figuração já aparecia em Baudelaire, especialmente num de
seus poemas em prosa chamado “O estrangeiro”.457 O poeta desempenhava o papel
do sujeito sonhador, ligado às coisas etéreas, afirmando uma posição de exílio ou de
extrema solidão no espaço social e a incomunicabilidade da poesia.458 O autor de
“Urbe et orbe” também adotava essa imagem, indicada pelo uso do pseudônimo
Êxul. Crítico da ruptura das normas linguísticas (a fala dos policiais), crítico da
cultura de massas (a modinha muito difundida), crítico da ação autoritária da polícia
(prisão sem motivo de um estrangeiro), o cronista só se declarava interessado, de
fato, pelo texto que teria que escrever para o jornal, simulando uma indiferença e
uma superioridade diante de todas essas coisas. A postura do cronista aproximavase da máscara de indiferença adotada pelo poeta-dândi em relação à trivialidade e à
mentalidade burguesa459 e, ao mesmo tempo, da máscara de indiferença adotada
pelo estrangeiro. Para Julia Kristeva, a imagem de autonomia que o estrangeiro
projeta é uma máscara de defesa. A indiferença “é a carapaça do estrangeiro:
insensível, distante, no fundo ele parece fora do alcance das agressões que,
contudo, sente com a vulnerabilidade de uma medusa”.460 Assim como o
estrangeiro, o cronista também era sensível e reagia fazendo da ironia uma arma
para produzir um leve estranhamento, um suave distanciamento crítico de seu
mundo.
Passemos a outra crônica. Em “Literaturas da reportagem”, de 1908,
Alphonsus de Guimaraens narrou um caso policial envolvendo um italiano, moço
457
“O cisne”, um dos poemas mais célebres de Baudelaire, como bem observou Jean Starobinski
(1989, p.56) é o poema do exílio e dos exilados. O próprio sujeito poético se vê como um exilado em
uma Paris que passava por um processo de reforma urbana. STAROBINSKI, 1989, p. 77. Em “O
cisne”, há uma enumeração de figuras homólogas, dentre as quais destacam-se a de Andrômaca e a
da negra deslocada num novo ambiente, sonhando com a África natal: “E penso nessa negra,
enferma e emagrecida,/ Pés sob a lama, procurando, o olhar febril,/ Os velhos coqueirais de uma
África esquecida/Por detrás das muralhas do nevoeiro hostil”. BAUDELAIRE, 1985, p. 329, tradução
de Ivan Junqueira. No original: “Je pense à la négresse, amaigrie et phthisique,/Piétinant dans la
boue, et cherchant, l’oeil hagard,/ Les cocotiers absents de la superbe Afrique/ Derrière la muraille
immense du brouillard”.
458
BERTRAND; DURAND, 2006, p. 106.
459
FAVARDIN; BOUËXIÈRE, 1988, p. 89.
460
KRISTEVA, 1994, p. 15.
191
“cheio de nostalgia e romantismo”. Quando Dellacqua, assim era seu nome,
passeava pela rua, parecia “alheio a tudo que o cercava”. Seus pensamentos não
estavam, entretanto, nem na sua pátria, nem na sua noiva, mas nas garrafas de
vinho “moscato” que havia visto sobre a mesa central de um restaurante perto da
estação de trem. Mesmo sem dinheiro, o italiano entrou no restaurante e pediu uma
garrafa de vinho movido por um desejo irrefreável. Depois de beber todo o vinho,
tentou ir embora sem pagar a conta. Contudo, o empregado do restaurante o
impediu de sair e aplicou-lhe uma chicotada em uma das orelhas.
Dellacqua acordou do sonho dourado em que o deixaram por
instantes as ondas capitosas do moscato, confessou que não tinha
dinheiro, que fora impelido a entrar no restaurante por uma força
misteriosa e irresistível, mais enérgica do que a própria vontade...461
O italiano acabou na delegacia. Após o interrogatório, a “autoridade policial”
resolveu prender o empregado do restaurante e liberar o italiano. Ao sair, Dellacqua
trocou olhares apaixonados com uma brasileira que havia sido agredida por um
homem e que também havia ido parar na delegacia.
E como toda a desgraça desse mundo é compensada por
alguns instantes de ventura, a dama e o italiano, que eram tão
galantes, uma vez na rua, olharam-se demoradamente, com uma
grande ternura apaixonada. E lá seguiram eles juntos, como se
fossem velhos conhecidos, desaparecendo, como o soneto do poeta,
na extrema curva do caminho extremo...462
461
GUIMARAENS, 1960, p. 626.
GUIMARAENS, 1960, p. 626. A última frase da crônica é a retomada do último verso do soneto
“Nel mezzo del camin”, de Olavo Bilac, que aborda o encontro e a separação de um casal. O título do
soneto, por sua vez, cita o primeiro verso do “Inferno”, de Dante. Diferentemente de Bilac, o
simbolista mineiro ressaltou apenas a fase feliz do enamoramento dos personagens.
462
192
Podemos perceber a simpatia com que o cronista olhava o imigrante italiano.
O seu delito era justificável e o seu sofrimento merecia compensação. No final da
crônica, foi convertido em herói romântico.
Alphonsus de Guimaraens indicava, com esta narrativa, duas possibilidades
de superação do desenraizamento do imigrante. Em primeiro lugar, através da
fantasia. Ao beber o vinho, o imigrante restabelecia momentaneamente os elos com
suas origens. O vinho tornava-se, assim, um signo de sua pátria. Ele era a sua terra
natal imediatamente alcançável. Como um objeto mágico, tornava próximo o
distante. Em segundo lugar, a criação de novas raízes e a superação da exclusão
social se dariam de forma permanente através da relação amorosa e do casamento
entre o estrangeiro e a brasileira.463 Uma idéia de transformação dos vínculos com
as origens através da substituição dos afetos.
Outro seria o modo como José Severiano de Rezende via a imigração. Em
seus textos, a questão do desenraizamento do imigrante no Brasil não aparecia,
apesar de ter abordado o tema em relação aos artistas estrangeiros em Paris no
artigo “O pintor Antonio Parreiras”.464 Em 1924, La Gazette du Brésil, periódico
parisiense, noticiou que o simbolista mineiro abordou o tema da imigração para o
Brasil em sua palestra na Semaine de l’Amérique Latine.465 Em outra conferência na
Rádio Paris, da Compagnie Française de Radiophonie, no início do ano de 1925,
traçou um panorama do processo de modernização do Brasil e disse que o país
ofertava as melhores condições para os trabalhadores estrangeiros. A conferência
teria obtido um grande sucesso tanto na França quanto na Bélgica e o poeta mineiro
teria recebido várias cartas de ouvintes de diferentes localidades cumprimentando-o
e pedindo mais informações sobre o Brasil. Naquele mesmo ano, ele publicou um
artigo no periódico La Vie Latine, intitulado “Le Brésil d’aujourd’hui”, no qual
463
Júlia Kristeva (1994, p.16) também pensa que o amor pode ser um caminho para criar novas
raízes. Para ela, “a partir do momento em que os estrangeiros têm uma atitude ou uma paixão, eles
fixam raízes”.
464
Sobre este texto, ver capítulo 4, “Drama e pathos dramático”.
465
“O Sr. Severiano de Rezende, o distinto poeta brasileiro, estava encarregado de apresentar o filme
de seu país. Ele cumpriu esta missão com uma palestra preliminar muito brilhante e o auditório atento
pôde inteirar-se da grande diversidade da produção do Brasil e da importância que toma nesse país a
questão da imigração.” LA SEMAINE de l’Amérique Latine. La Gazette du Brésil, Paris, 15 mai 1924,
p. 2, tradução nossa. No original: "M. Severiano de Rezende, le distingué poète brésilien, était chargé
de présenter le film de son pays. Il s’est acquitté de cette mission dans ume causerie préliminaire fort
spirituelle et l’auditoire attentif a pu se rendre compte de la grande diversité de la production du Brésil
et de l’importance que prend dans ce pays la question de l’immigration".
193
veiculava uma imagem do país como uma fabulosa “terra prometida” que clamava
pela contribuição dos imigrantes no processo de desenvolvimento econômico. Para
Severiano de Rezende, o imigrante podia enriquecer no Brasil e, quando isso
acontecia, o país enriquecia com o imigrante. Nesse artigo, o intelectual mineiro
mencionou casos de imigrantes que se tornaram ricos comerciantes ou industriais
em poucos anos no país. Uma grande vantagem do Brasil seria o fato do imigrante
não sofrer por ser estrangeiro. Ele seria incluído, assimilado e tratado como um
cidadão brasileiro: “O imigrante recebido pelo Brasil não é um pária. É, ao contrário,
um cidadão que encontra uma nova pátria, onde a sua condição de estrangeiro
nunca lhe é lembrada.” 466
Em 1929, nos seus artigos para o caderno Le Brésil, do Journal des Nations
Américaines, publicado em Paris, José Severiano de Rezende apresentava os
imigrantes de maneira muito positiva.467 O escritor simbolista queria mostrar o Brasil
como um país que se modernizava, como uma terra acolhedora e de futuro para o
imigrante que desejasse se abrasileirar, trabalhar e melhorar as suas condições de
vida.
Este país que tem necessidade de trabalhar, trabalha. E encoraja o
imigrante organizando a exploração da terra e dando a esse
estrangeiro, impelido por uma esperança de remuneração, todos os
hectares que ele deseja afim de, pelo trabalho, tornar-se proprietário
independente e se abrasileirar. Esses braços que labutam e
constroem preparam um futuro esplêndido. O Brasil é o país que
procura alcançar hoje o máximo de suas possibilidades irrefutáveis
[...] é uma pátria acolhedora.468
466
REZENDE, José Severiano de. Le Brésil d’aujourd’hui. La Vie Latine, Paris, Paris, n.8, avr.-mai
1925, p. 18-19, tradução nossa. No original : “L’immigrant reçu au Brésil n’est pas un paria. Il est au
contraire un citoyen qui trouve une nouvelle patrie, où sa qualité d’étranger ne lui est jamais
rappelée".
467
O Journal des Nations Américaines foi um órgão oficial do Comité France-Amérique. Veiculava
notícias políticas, econômicas e culturais dos países americanos e abordava as relações desses
países com a França. José Severiano de Rezende foi o principal redator do caderno Le Brésil,
desempenhando explicitamente o papel de propagandista do país.
468
REZENDE, José Severiano de. Le Brésil, pays du travail. Journal des Nations Américaines, Le
Brésil, Paris, n. 31, 4 août 1929, p.3, tradução nossa. No original : “Ce pays qui a besoin de travailler,
travaille. Et il encourage l’immigrant en organisant l’exploitation de la terre et en donnant à cet
étranger, qu’un espoir rémunérateur incite, tous les hectares qu’il désire afin de par le travail devenir
propriétaire, devenir indépendant et rester Brésilien. Ces bras qui labourent et construisent préparent
un avenir splendide. Le Brésil est le pays qui procure aujourd’hui le plus de ses possibilités
irréfutables […] c’est une patrie accueillante.”
194
Para Severiano de Rezende, o Brasil precisava de um governante que se
preocupasse em criar as condições favoráveis para a vinda dos imigrantes por meio
da modernização da infraestrutura do país. O governo deveria fazer a sua parte para
permitir a ação modernizadora dos imigantes.
É necessário ao Brasil um chefe que dê continuidade a uma política
de braços, de imigração, de estradas. O estrangeiro que chega às
praias brasileiras, vindo de longe, gostaria de ir ainda mais longe. É
preciso que o automóvel rompa as lianas das florestas com seu
focinho roncador e que ele suba ao alto das cordilheiras. O ‘sertão’
não pode permanecer eternamente o ‘sertão’. O pneu, sobre
estradas em inumeráveis ziguezagues, irá buscar a borracha e o rio,
469
que embala as pirogas, exige o abraço das pontes.
Em outro texto para o Journal des Nations Américaines, o intelectual mineiro
apresentou a história “autêntica e maravilhosa” de um imigrante japonês que, depois
de muito trabalho, economia e bons investimentos, enriqueceu em Mato Grosso. O
objetivo era o de estimular a imigração européia para o Brasil. Para provar que não
era um caso isolado, Severiano de Rezende referiu-se a vários exemplos de
imigrantes bem-sucedidos.
A longa lista daqueles que, de simples trabalhadores, de simples
agricultores, lá se transformaram simplesmente em milionários,
contém nomes hoje conhecidos pela extensão de seus negócios, de
suas empresas comerciais ou industriais. Todo mundo sabe a
história dos Martinelli, dos Mattarazzo, dos Siciliano, dos Cresta, dos
Schimidt, e tutti quanti, sem falar dos inúmeros portugueses que
desembarcaram calçando tamancos, os franceses enriquecidos com
a importação e a representação comercial, e as formidáveis colônias
469
REZENDE, José Severiano de. Le Brésil, pays du travail. Journal des Nations Américaines, Le
Brésil, Paris, n. 31, 4 août 1929, p.3, tradução nossa. No original: “Il faut au Brésil un chef qui
poursuive la continuité d’une politique de bras, d’immigration, de routes. L’étranger qui aborde aux
plages brésiliennes, venant de loin, voudrait aller encore plus loin. Il faut que l’auto perce les lianes
des forêts de son museau vrombissant et qu’il grimpe à l’escalade des cordillères. Le « sertão » ne
peut rester éternellement le « sertão ». Le pneu, sur des lacets sans nombre, ira chercher les
caoutchouc et le fleuve, qui berce les pirogues, exige l’accolade des ponts.”
195
sírias que se multiplicam por todo lado com
incessantemente aumentadas. 470
as fortunas
Apesar da propaganda a favor do Brasil realizada por Severiano de Rezende,
a verdade é que tanto os imigrantes quanto os migrantes rurais sofriam processos
desestabilizadores, ao mesmo tempo que vida arraigada às tradições culturais dos
habitantes locais era abalada pelos fluxos populacionais. As identidades individuais
e coletivas, estabelecidas e imaginadas como estáveis, se dissolviam. Nesse
contexto, os imigrantes e os migrantes rurais oscilavam entre um desejo de
manutenção de sua identidade cultural de origem e a necessidade de se adaptar ao
novo ambiente.
Essas figurações dos sujeitos em trânsito e do desenraizamento são algumas
das cenas do drama da modernidade encenado pelos simbolistas mineiros. No
capítulo seguinte, veremos os cenários, os personagens e outras cenas do drama.
470
REZENDE, José Severiano de. Le Brésil enrichit : histoire authentique et merveilleuse de Guenka
Kikichi, immigrant japonais. Journal des Nations Américaines, Le Brésil, Paris, n. 36, 8 sept. 1929, p.
3, tradução nossa. No original : "La longue liste de ceux qui, de simples travailleurs, de simples
agriculteurs, y sont devenus tout bonnement millionnaires, renferme des noms aujourd’hui connus par
l’extension de leurs affaires, de leurs entreprises commerciales ou industrielles. Tout le monde sait
l’histoire des Martinelli, des Mattarazzo, des Siciliano, des Cresta, des Schimidt, et tutti quanti, sans
parler des innombrables Portugais débarqués en sabots, des Français enrichis dans l’importation et la
représentation, et des formidables colonies syriennes qui pullulent partout avec des fortunes
incessamment accrues."
196
DRAMA E PATHOS DRAMÁTICO
197
A nossa vida é um túrbido penhasco,
Onde se vai quebrar o peito humano,
Tragédia em cujo epílogo um carrasco,
Soprando a luz, manda baixar o pano.
“Criança morta”, José Severiano de Rezende
Veste-me o manto trágico de Hamleto,
Sigo as curvas de um árido caminho...
“Das ‘Visões do outono’”, Edgard Mata
E do Transe e da Morte inquieta e estranha musa,
Tens, de tanto estudar a humana e eterna dor,
A máscara imortal da intangível Medusa.
“A uma atriz”, José Severiano de Rezende
198
DA CIDADE MORTA À CIDADE TENTACULAR
E
m 1903, escrevendo uma crônica para o Correio da Manhã, do Rio
de Janeiro, José Severiano de Rezende lançava o seu olhar sobre o
espaço urbano da antiga capital do Brasil. Nessa crônica,
manifestava um grande descontentamento com o “embelezamento”
do centro da cidade, um do símbolos da modernização da Primeira República,
realizado pelo prefeito Pereira Passos. Intitulado “O fúnebre reinado”, o texto
atacava a administração republicana e aquilo que Severiano considerava como uma
política higienista absurda.
Enquanto isso, o presidente da República, sonolentamente, faz, com
os seus fleumáticos secretários, pachorrentas conferências sobre os
melhoramentos do porto e a Prefeitura arquitetonicamente emoldura,
numa cantaria perfeita, o excrementício asfaltite que nos aterroriza
com a alcunha de canal do Mangue [...]471
Na pequena descrição de parte do espaço urbano, notamos o uso de um
vocabulário ornamental, simultaneamente ocultando e revelando o tom agressivo de
sua argumentação. Ao utilizar o verbo “emoldurar”, Severiano de Rezende aludia a
objetos passíveis de serem postos em moldura, como fotografias, gravuras ou
pinturas. Assim como uma moldura serve de ornamento e delimitação de certos
objetos culturais, as reformas urbanas nesse lugar do Rio eram consideradas como
maquiagem/enfeite e demarcação do espaço para os dejetos. O argumento implícito
do cronista era o de que o esgoto transformava-se em “canal do Mangue” por meio
de uma intervenção urbanística e de uma manipulação semântica.
A abordagem de Severiano de Rezende nesse texto talvez seja comparável
àquela de certos escritores modernos que, de acordo com Michel Collot, se
471
REZENDE, Jose Severiano de. O fúnebre reinado. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 15 abr.
1903, p. 1.
199
posicionavam criticamente em relação à paisagem, denunciando o seu aspecto
artificial e considerando-a tanto como uma ilusão romântica (com pretensões
metafísicas) quanto naturalista (com ambições científicas).472 Para Severiano de
Rezende,
a nova imagem
da cidade
do Rio
de Janeiro, representada
metonimicamente pelo Canal do Mangue e marcada pela pretensão paisagística da
reforma de Pereira Passos, era também dotada de um caráter de artificialidade. A
“cantaria perfeita” não podia esconder o esgoto que ia dar no mar. Entretanto,
diferentemente dos escritores mencionados por Collot, Severiano de Rezende não
adotava uma posição contrária ao ilusionismo da paisagem com frequência. De fato,
como veremos, era justamente uma idealização da paisagem do Rio de Janeiro
antigo que ele elaborava em seus escritos.473
Na primeira crônica de Severiano de Rezende para o jornal carioca A Notícia,
em 1922, o tema era a paisagem da Guanabara vista do mar. “Desembarcando”
comentava a chegada do cronista ao Rio e a “má impressão causada a ele e aos
demais passageiros pela abordagem desordenada dos catraieiros em meio à
fascinante iluminação solar da Guanabara através da névoa das 5 horas da tarde”.474
Temos aqui dois elementos caros aos simbolistas: névoa e crepúsculo. Contudo, tal
paisagem marinha, que poderia ser sublime, apresentava um quê de grotesco,
conferido pela falta de organização dos barqueiros.
Também no livro Mistérios, o escritor escreveu sobre sua ida ao Rio, mas por
terra. O poema “Volta do Sertão” foi elaborado como um diálogo com o mar.475 Nele,
a cidade aparece de maneira indireta. O procedimento pode ser comparado às
experimentações poéticas de Baudelaire que, como afirmou Walter Benjamin,
geralmente não descrevia os seus temas mais importantes.476
472
COLLOT, 2005, p. 79-81.
A intelectualidade brasileira do período se dividiu entre aqueles que louvavam as reformas
urbanas como sinal de que finalmente o Brasil acertava o passo com a Europa e civilizava-se (Bilac,
por exemplo) e os que adotavam posição mais crítica, denunciando o caráter autoritário e elitista da
cirurgia que se impunha ao espaço da capital da República, como Lima Barreto.
474
LIMA JÚNIOR, 2002, p. 135.
475
REZENDE, 1971, p. 119-120.
476
Segundo Benjamin, “Baudelaire não descreve nem a população, nem a cidade. Ao abrir mão de
tais descrições colocou-se em condições de evocar uma na imagem da outra. Sua multidão é sempre
a da cidade grande; a sua Paris é invariavelmente superpovoada.” BENJAMIN, 1989, p. 116.
473
200
Em “Volta do Sertão”, há somente um indício de que o sujeito poético se
refere à cidade do Rio de Janeiro: a palavra “Guanabara”. E o porto é a única
menção a um espaço construído, a um elemento de paisagem urbana. Novamente,
percebemos o procedimento de tomar uma parte, um lugar (o porto, a baía), pelo
todo (a cidade do Rio). A perspectiva adotada pelo sujeito poético é a de alguém que
chega a um centro cultural, depois de passar um longo período no interior do país:
Quanto tempo eu andei pelas incultas terras,
Triste, longe de ti,
Sangrando o coração nas brenhas e nas serras
Em vez de estar aqui!477
Neste poema, a paisagem da antiga capital do Brasil é formada pela
combinação dos traços dos lugares retrabalhados pela imaginação e pela escritura.
Assim, a cidade se torna uma “terra de oiro e azul” na segunda estrofe, uma “terra
do amor” na sexta, e uma “estância de luz” na quinta.478 A imagem da cidade do Rio,
a partir da perspectiva da luz, da claridade, também é repetida na oitava estrofe:
Só tu permites, tu, ó doce Guanabara,
Ao forasteiro ter
Na tua enseada enorme, escancarada e clara,
A glória de viver.479
Em outra estrofe, a Guanabara surge iluminada pelo luar: “Com que encanto
revejo, ó Mar! sobre o teu seio/ Dormir quieto o luar”.480 Neste último verso e em
outros do poema, percebemos uma forte associação entre o porto e o mar da
477
REZENDE, 1971, p. 120.
REZENDE, 1971, p. 119.
479
REZENDE, 1971, p. 120.
480
REZENDE, 1971, p. 119.
478
201
Guanabara e a idéia de pacificação e de aconchego. Logo, o mesmo processo entre
a cidade do Rio de Janeiro e a idéia de bem-estar.
Só tu, sereno porto e alvissareiro abrigo,
Ao nauta errante dás,
Abrindo-lhe o teu átrio universal e amigo,
A sensação da paz.481
O escritor também mostrou a imagem do Rio de Janeiro, sob o ponto de vista
de sua iluminação, numa das narrativas irreverentes do livro O meu flos sanctorum.
Nela, a cidade é descrita numa cena noturna da festa do seu santo padroeiro.
A cidade heróica de Estácio de Sá tem neste dia o regozijo de
festejar o seu padroeiro. Verdade é que não se festeja mais, como
outrora se festejava, o predileto Mártir, e a casaria difusa desse
ruidoso empório magno já não se enfestona, luminariando-se, como
nos tempos de antanho, para adular o seu protetor. Raro, uma casa
avulsa arrisca umas lamparinas trêmulas, e a iluminação, que dantes
afogueava toda a Sebastianópolis, hoje apenas tremeluz nos redutos
oficiais: os conventos acendem, nos píncaros, as suas almenaras
estrelejantes, as ordens terceiras fazem flamejar as suas gambiarras
clássicas e no palácio arquiepiscopal, ao vento neutro de Guanabara,
ardem tíbias ardentias.482
O cronista buscava investir de certa sacralidade um espaço urbano que já não
existia mais por meio da alusão ao nome antigo do Rio de Janeiro, transformado em
“Sebastianópolis”, e pela descrição de sua iluminação festiva feita com lamparinas e
almenaras. Ao mesmo tempo, lamentava a perda da importância da festa sacra na
cidade transformada em “ruidoso empório magno”, criando um efeito nostálgico.
O Rio, apresentado como cidade rumorosa e agitada, ressurgiu num texto
sobre o Natal, também do livro O meu flos sanctorum. A associação da cidade à
481
482
REZENDE, 1971, p.120.
REZENDE, 1970, p. 23.
202
multidão (“coortes notâmbulas”, “turbamulta”) é bem recorrente em José Severiano
de Rezende e pode ser considerada uma das ressonâncias baudelairianas em sua
obra.
A noite do Natal é ruidosa e tumultuosa no Rio de Janeiro, a cidade
do ruído e do tumulto: os cânticos dos anjos são substituídos pelas
serenatas em que esgoelam ao Menino Deus melopéias alcoólicas;
os veículos, pejados, carregam barulhentas coortes notâmbulas e a
missa da meia-noite é um pretexto para se aglomerar, em torno ao
berço de Jesus, uma turbamulta como aquela que o levou de
Herodes a Pilatos, e a tradição, conservadora dos ritos, não é neste
caso senão uma profanadora inconsciente desta alvorada bonançosa
de mansuetude e amor...483
Neste trecho, a dessacralização do espaço urbano é encenada por meio de
um jogo de contrastes entre o festejo natalino, que relembra o quadro pastoral do
nascimento de Jesus, a cena do seu julgamento por Pilatos, os cânticos religiosos e
as serenatas de bêbados. O cronista figurava a sensação de agitação da cidade
destacando o trânsito de veículos e a multidão presente nas ruas. Dessa forma,
tornava evidente a perda das tradições na modernidade, a desilusão por não poder
recuperar o que foi perdido e o sentimento de desconforto em relação à
modernização.
Se as transformações sofridas pela cidade com o processo de modernização
eram apenas aludidas nessas duas narrativas de O meu flos sanctorum, na crônica
“Notre civilisation”, publicada em 1929 no periódico parisiense Journal des Nations
Américaines, essas mudanças eram, ao contrário, enfatizadas e criticadas. Os
estímulos para as reflexões do cronista eram fotografias mostrando os primeiros
arranha-céus do Rio e um projeto de reforma urbana para a cidade, desenvolvido
pelo urbanista Agache.484 Vista de longe, através de mediações técnicas (as
fotografias), a cidade do Rio de Janeiro era pensada em comparação com Paris e
483
REZENDE, 1970, p. 243.
Donat-Alfred Agache (1875-1959) foi um urbanista francês influenciado pelo positivismo de Le
Play. No início do século XX, ele elaborou um plano de reforma urbana para o Rio de Janeiro.
Segundo Vincent Berdoulay, em sua concepção de urbanismo, “o espaço público estaria paralisado
num papel passivo, onde o habitante seria mais citadino do que cidadão”. BERDOULAY, 2003, p.123132.
484
203
Nova York. Nesse texto, estruturado a partir da oposição modernidade versus
tradição, o cronista denunciava os erros da tentativa de se criar uma cultura da
cópia, da imitação, reagindo contra a destruição de uma cidade que teria nascido e
se desenvolvido de acordo com o temperamento “latino” do povo brasileiro. Para
Severiano, as mudanças na paisagem do Rio de Janeiro indicavam a formação de
uma “civilização de empréstimo, imitada e factícia, como se nós estivéssemos no
último grau de falta de personalidade.” 485
Compreensivelmente, o escritor tendia a descrever mais detalhadamente o
espaço urbano nos seus textos em prosa. Em “Notre civilisation”, esse lado
descritivo apareceu com mais força, sendo que a paisagem era traçada a partir dos
elementos que vinham à sua memória em Paris.
Quando avistei, em 1922, achatado sobre a colina da “Glória”,
dela fazendo, ó sacrilégio, seu pedestal, o hotel que também usurpou
o nome da mesma, eu me perguntei, ao mesmo tempo, o que tinha
sido feito do Pão de Açúcar. O hotel Glória, grande e pesado
semiarranha-céu, simplesmente o escondia da minha vista. A
melancólica e tradicional colina, até recentemente toda rodeada de
belas casinhas e sobre a qual, perto da velha igreja, as palmeiras
agitavam docemente suas umbelas, [estava] desaparecida ou quase,
sob o peso desse quadrilátero absurdo.486
O
processo
de
transformação
urbana
foi
considerado
como
uma
descaracterização do Rio e associado a um sacrilégio. Os elementos escolhidos
para compor a paisagem que estava em vias de desaparecer parecem ter sido
retirados de páginas de livros e/ou quadros com um referente tropical: uma colina
485
REZENDE, José Severiano de. Notre civilisation. Journal des Nations Américaines, Le Brésil, Paris,
n. 33, 11 août 1929, p. 3, tradução nossa. No original : “civilisation d’emprunt, contrefaite et factice,
comme si nous étions à l’ultime degré de l’impersonnalité”.
486
REZENDE, José Severiano de. Notre civilisation. Journal des Nations Américaines, Le Brésil,
Paris, 11 août 1929, p. 3, tradução nossa. No original : “Lorsque j’ai, en 1922, aperçu, aplati sur la
colline de la “Gloria”, en en faisant, ô sacrilège, son piédestal, l’auberge qui en a usurpé aussi le nom,
je me demandais, en même temps, ce que l’on avait fait du Pain de Sucre. L’hôtel Gloria, large et
lourd demi-gratte-ciel, le cachait tout simplement à ma vue. La mélancolique et traditionnelle colline
toute encerclée naguère de jolies petites maisonnettes et sur laquelle, près de la vieille église, les
palmiers doucement agitaient leurs ombelles, disparue ou presque, sous la pesanteur de ce
quadrilatère absurde.”
204
com casinhas em volta, uma velha igreja e palmeiras. Nesta crônica, Severiano de
Rezende se afastava dos escritores que denunciavam o ilusionismo da paisagem
por ter o objetivo claro de construir uma imagem da cidade do Rio de Janeiro que
pudesse se contrapor ao modelo da metrópole norte-americana com seus altos
edifícios modernos. A edificação de arranha-céus no Rio era avaliada como um erro
de orientação em direção a uma pretensa modernidade e os próprios edifícios eram
identificados a uma “vanguarda titânica sem estética.487 Para Severiano de Rezende,
nem toda a paisagem urbana era artificial, mas apenas aquela projetada pelos
arquitetos modernos para o Rio.
O estrangeiro que os transatlânticos embalam sobre as ondas
guanabarinas talvez vá se surpreender ao se encontrar diante de um
símile da cidade ianque, mas, uma vez nos bairros e nos subúrbios
do Rio, notará que o resto não é semelhante a isso e que a
população dessa encantadora cidade havia preferido as casas de
campo, os chalés, as deliciosas moradias que contornam as colinas,
que sobem buscando conquistá-las e que cercam poeticamente a
praia de Botafogo.488
A crítica à imitação de modelos que não corresponderiam ao caráter “latino” da
população foi repetida várias vezes na crônica. Inicialmente, tal reprovação
apareceu sob a forma de uma pergunta retórica.
Estamos, sob o nome de progresso – nome tantas vezes ilusório e
enganoso, a ponto de nos tornarmos megalômanos, de querer criar
487
REZENDE, José Severiano de. Notre civilisation. Journal des Nations Américaines, Le Brésil,
Paris, n. 33, 11 août 1929, p. 3, tradução nossa. No original : “ avant-garde titanesque sans
esthétique ”.
488
REZENDE, José Severiano de. Notre civilisation. Journal des Nations Américaines, Le Brésil,
Paris, 11 août 1929, p. 3, tradução nossa. No original: “L’étranger que les transatlantiques bercent sur
le flot guanabarien sera peut-être étonné de se trouver devant un simili de la cité yankee, mais, une
fois dans les bourgs et les faubourgs de Rio, il constatera que le reste n’est pas à l’avenant et que la
population de cette charmante ville avait préféré les villas, les chalets, les délicieuses demeures qui
contournent les collines, qui montent à leur assaut et qui bordent poétiquement le rivage de Botafogo.”
205
um novo ambiente em desacordo com nosso temperamento de povo
489
tropical, indolente, calmo, meditativo, sonhador?
Depois, o cronista apresentou os motivos para essa tendência à cópia: um
descontentamento com o que seria característico da cultura brasileira e a tentativa
de se abreviar etapas históricas pela construção de edifícios que produziriam a
fantasia do Brasil desenvolvido. Segundo o cronista, destruir o Rio antigo significava
negar o que seria próprio, “espontâneo” e “original” da cidade.
Destruir esse Rio é destruir tudo o que essa inigualável capital tem
de característico, de original, de espontâneo, de livre, de vivo. Não
criamos uma cidade. A cidade se cria conosco, por nós e para nós
lentamente. O Rio é grande e tem muito espaço para a sua
população. Não é necessário concentrá-la nos espaços à beira-mar e
espremer esses edifícios gigantescos feitos para o enclausuramento
de pigmeus. Não existem pigmeus e nem gigantes no Brasil.
Tampouco escravos. Nós só temos que manter o meio-termo.
Conservemo-nos moderados e façamos o nosso trabalho com
alegria. E, sobretudo, não imitemos ninguém. Copiar é o que existe
de mais desonroso, principalmente quando podemos ser nós
mesmos. 490
Escrita numa época em que José Severiano de Rezende se voltava para a
defesa da “latinidade”, a paisagem do Rio de Janeiro apresentada no texto “Notre
Civilisation” deve ser situada num contexto mais amplo: o da disputa geopolítica
entre a França e os Estados Unidos da América por áreas de influência.
489
REZENDE, José Severiano de. Notre civilisation. Journal des Nations Américaines, Le Brésil,
Paris, 11 août 1929, p. 3, tradução nossa. No original : “Sommes-nous, sous le nom de progrès – nom
tant de fois illusoire et décevant, en passe de devenir mégalomanes, au point de vouloir créer un
nouvel habitat en désaccord avec notre tempérament de peuple tropical, nonchalant, calme, méditatif,
rêveur? ”
490
REZENDE, José Severiano de. Notre civilisation. Journal des Nations Américaines, Le Brésil,
Paris, 11 août 1929, p. 3, tradução nossa. No original : “Détruire ce Rio-là c’est détruire tout ce que
cette inégalable capitale a de caractéristique, d’original, de spontané, de libre, de vivant. On ne crée
pas une ville. La ville se crée avec nous, par nous et pour nous, tout doucement. Rio est vaste et a
grandement de la place pour sa population. Il n’est pas besoin de [la] concentrer dans les endroits
riverains, et de les accouder les unes aux autres, ces bâtisses gigantesques pour le claquemurage de
pigmées. Il n’y en a pas chez nous, de pigmées, des géants non plus. D’esclaves non plus. Nous
n’avons qu’à garder le juste milieu. Restons moyens et faisons notre besogne en gaîté. Et surtout,
n’imitons personne. Copier, c’est ce qu’il y a de plus déshonorant, surtout quand on peut être soimême.”
206
Os projetos urbanísticos modernos eram, para o cronista, uma negação do
processo luso-brasileiro de urbanização. Podemos aproximar tal concepção àquela
apresentada por Sérgio Buarque de Holanda em Raízes do Brasil. Segundo o
historiador, o planejamento e o rigor na construção não foram características da
urbanização luso-brasileira, marcada por uma maior liberdade e espontaneidade. A
“cidade que os portugueses construíram na América não é produto mental, não
chega a contradizer o quadro da natureza, e sua silhueta se enlaça na linha da
paisagem”. 491
Se a urbanização modernizadora era condenada por Severiano de Rezende,
as fotografias dos monumentos tornaram-se registros da vaidade humana, ao
mesmo tempo em que expressavam a caducidade dos lugares. A partir dessas
fotografias, o cronista projetava a sua melancolia sobre os elementos da paisagem
(“A melancólica e tradicional colina cercada de belas casinhas”),492 visando produzir
certo sublime urbano.
Já a arquitetura e o urbanismo de Nova York eram vistos por José Severiano
de Rezende como dessacralizadores do espaço urbano. Em “Notre civilisation”, a
cidade norte-americana era deformada até parecer cenário de pesadelo, lugar
repleto de edifícios semelhantes aos manicômios, às penitenciárias ou aos ninhos
de cupins. Para o cronista, o crescimento vertiginoso da cidade e seus arranha-céus
indicavam uma “pretensão babélica”.
O arranha-céu com pretensão babélica anuncia o congestionamento
dos caminhos, dos cruzamentos, das avenidas, por um povo trivial
que tem necessidade de se elevar vertiginosamente às nuvens pois
ele é uma multidão inquieta, que não pode se fixar nos lugares de
491
HOLANDA, 1987, p.76. Ao contrário dos portugueses, os espanhóis planejaram as cidades que
criaram na América: “o próprio traçado dos centros urbanos na América Espanhola denuncia o
esforço determinado de vencer e retificar a fantasia caprichosa da paisagem agreste: é um ato
definido da vontade humana.” (HOLANDA, 1987, p. 62). Para Angel Rama (1985, p. 26), as cidades
construídas pelos espanhóis eram “regidas por uma razão ordenadora”. Desse modo, antes “de ser
uma realidade de ruas, casas e praças, que só podem existir e ainda assim gradualmente, no
transcurso do tempo histórico, as cidades emergiam já completas por um parto da inteligência nas
normas que as teorizavam, nos atos fundacionais que as estatuíam, nos planos que as desenhavam
idealmente, com essa regularidade fatal que espreita aos sonhos da razão”. (RAMA, 1985, p. 32).
492
REZENDE, José Severiano de. Notre civilisation. Journal des Nations Américaines, Le Brésil,
Paris, n. 33, 11 août 1929, p. 3, tradução nossa. No original: “La mélancolique et traditionnelle colline
toute encerclée naguère de jolies petites maisonnettes”.
207
repouso e, já que não há espaço ao rés do chão, encaixemos essas
pessoas que não têm sono em compartimentos para que, pelo
menos, possam dormir. Dormir? Não é bem assim. Não dormimos
mesmo nos arranha-céus. Essas casas são construções para
negócios, cupinzeiros, casas de loucos, de condenados, que lá vivem
como pigmeus, moradias de desconhecidos nibelungos.493
Ao final de seu texto, Severiano de Rezende estabeleceu a cidade de Paris
como o seu termo de comparação, como o seu modelo de urbanismo. Contudo, ele
o fez obliterando parte da história do próprio modelo. A capital do país que o escritor
mineiro pensava ser o maior centro difusor da tradição da “latinidade” também havia
destruído muito de seu passado arquitetônico na reforma de Haussmann.494
Assim como em “Volta do Sertão”, de Severiano de Rezende, era recorrente
nos textos de Alphonsus de Guimaraens uma oposição entre o Rio de Janeiro
(metrópole associada à luz, à civilização) e o interior do país (figurado como sertão
inculto). Nas cartas que Alphonsus escreveu para Mário de Alencar, as “Alterosas
Montanhas”, ou seja, o interior de Minas, era caracterizado como um “centro
primitivo”: “Que serias tu, se em vez de viver nesse centro de luz, entre espíritos de
eleição, arrastasses a vida que levo, só, completamente só, nestes míseros sertões
mineiros!”495 As cidades do interior mineiro, que inicialmente haviam sido
classificadas como “sertões” ou “centros primitivos”, se tingiram de um colorido
sombrio e melancólico numa carta endereçada a Alencar em 2 de maio de 1913:
“Envio-te alguns versos, esperando que, lendo-os, penses um pouco neste velho
poeta que por aqui vive a contemplar o deserto das cidades mortas”.496
Foi exatamente a partir dessas figurações que os simbolistas mineiros
construíram a sua prosa e sua poesia sobre as cidades. De um lado, a decadência e
493
REZENDE, José Severiano de. Notre civilisation. Journal des Nations Américaines, Le Brésil,
Paris, 11 août 1929, p. 3, tradução nossa. No original: “Le gratte-ciel, à prétention babélique, annonce
l’engorgement des sentiers, des carrefours, des avenues, par un peuple terre-à-terre qui a besoin de
se hausser vertigineusement aux nues, car il est multitude grouillante, infixable dans les lieux de
repos et, puisqu’il n’y a d’espace en bas, qu’on les case dans des casiers pour qu’ils puissent au
moins dormir, ces gens qui n’ont plus de sommeil. Dormir ? Je t’en fiche ! On ne dort même pas dans
les buildings. Ces maisons sont des maisons pour les business, des maisons de termites, de
forcenés, de condamnés, qui vivent là comme des pygmées, d’on ne sait pas quels nibelungen.”
494
BENJAMIN, 1989, p. 84.
495
GUIMARAENS apud BUENO, 2002, p. 10.
496
GUIMARAENS apud BUENO, 2002, p. 15.
208
a estagnação projetadas sobre as cidades históricas, as aldeias, os arraiais ligados
às tradições e ao passado. As cidades mortas. Do outro, as expansões urbanas, as
grandes metrópoles, as cidades que se modernizavam vistas ora sob um aspecto
positivo, ora sob um aspecto negativo. As cidades tentaculares. Duas imagens
desenvolvidas como ressonâncias das obras dos simbolistas belgas Georges
Rodenbach e Émile Verhaeren, lidos não apenas pelos simbolistas, mas também
pelos modernistas brasileiros.497
Tanto em Bruges-a-Morta, de Rodenbach, como em Cidades tentaculares, de
Verhaeren, a idéia de morte está sempre presente. As “cidades tentaculares”, as
cidades que cresciam e se modernizavam, também eram, no fundo, “cidades
mortas” ou cidades de morte. A morte percorre todo o livro de Verhaeren. Ela está
sempre presente, circulando em todas as partes das cidades, associada à revolta, à
miséria das multidões, às falências econômicas, às doenças, aos esgotos, à
poluição, às destruições, ou ao próprio avanço das áreas urbanas sobre o campo.
No livro de Verhaeren, os temas giram em torno da brutalidade do crescimento
urbano sem considerar as necessidades humanas dos operários, a sobreviência em
sórdidos subúrbios, as mazelas sociais e as movimentações febris dos portos,
fábricas e ferrovias.498
A associação da existência na urbs moderna com a morte não era uma
novidade em literatura. No poema “Cidade”, de Rimbaud, a metrópole moderna
aparece como um lugar repleto de espectros:
497
No ensaio “Maeterlinck, Rodenbach, Verhaeren au Brésil: quelques pistes”, Anne Quataert
investigou as ressonâncias das obras desses escritores na literatura brasileira do início do século XX,
uma presença que teve força até mesmo no princípio do movimento modernista. Manuel Bandeira,
por exemplo, no poema “Bélgica”, de 1924, mencionou estes autores e a temática da cidade morta.
Segundo Quataert, as referências e alusões a Rodenbach ocorriam principalmente ligadas à imagem
de uma Bruges envelhecida e morta. Os modernistas mostravam mais afinidade com a representação
dos espaços urbanos de Verhaeren. QUATAERT, 2001/3, p. 466. Verhaeren fazia parte das leituras
de Alphonsus de Guimaraens, segundo informação de seu filho João Alphonsus: “Quando surgiu o
movimento que veio a se chamar modernista, eu era um sujeito preparado para todas as revoluções,
já tendo fabricado algumas bombas particulares através de imitações de Verhaeren, cujos livros já
estavam entre os de meu pai [...]” ALPHONSUS, 1944, p. 137. Sobre a presença de Verhaeren na
obra de Mário de Andrade, Cf. LOPES, 2007, p. 35-37.
498
Cf. VERHAEREN, 1999. Especialmente o poema “A morte”, p. 115-123.
209
[...] de minha janela, vejo espectros novos rolando através da
espessa e eterna fumaça de carvão –, nossa sombra nos bosques,
nossa noite de verão! – Erínias novas diante da casa de campo que
é minha pátria e todo o meu coração uma vez que tudo aqui se
assemelha a isto –, a Morte sem prantos, nossa ativa filha e criada,
um Amor desesperado e um belo Crime choramingando na lama da
rua.499
O tema também havia sido desenvolvido por todo o livro As flores do mal, sob
a forma de múltiplas associações, e por Paul Verlaine no "Nocturne parisien", o mais
baudelairiano dos Poèmes saturniens.500 Vejamos, no caso de Baudelaire, os
seguintes versos de “Os sete velhos”, a título de exemplo: “Cidade a fervilhar, cheia
de sonhos, onde/ O espectro, em pleno dia, agarra-se ao passante!” 501
Na obra poética dos simbolistas mineiros, a morte também está disseminada
amplamente. Um tema que se mostra na poesia de alguns desses poetas é o da
cidade como necrópole e metonímia do mundo.502 Em Archangelus de Guimaraens,
a cidade morta é mencionada na terceira estrofe do poema En revenant:
Morria o som da última quadrilha...
E ela pousou sobre o seu busto leve
A peliça azulada da mantilha,
Como uma flor que receasse a neve...
E essa ave morena de Sevilha,
Essa faïence graciosa e breve
Em pouco voar para o aconchego deve
Do seu ninho de rendas e escumilha..
499
RIMBAUD, 1982, p. 101, tradução de Lêdo Ivo. Um autor que estudou este aspecto da obra de
Rimbaud foi Pierre Brunel, para quem a cidade “é um espaço da morte, onde toda vida só pode ser
efêmera, onde a proliferação tem como avesso uma diminuição muito considerável do curso da vida,
onde rapidamente a paisagem urbana é invadida por ‘espectros novos’, ‘erínias novas’ um sinistro
trio.” BRUNEL, 1983, p. 168, tradução nossa. No original: “est une cité de la mort, où toute vie ne
peut être qu’éphémère, où la prolifération a pour revers une diminution très considérable du cours de
la vie, où très vite le paysage urbain est envahi par ‘des spectres nouveaux’, des ‘Erinyes nouvelles,
un sinistre trio." Sobre este tema em Rimbaud, ver também BRUNEL, 1980, p. 15-23.
500
“Segue, segue o teu fluxo indolente, triste Sena. – / Sob tuas pontes que uma exalação malsã
envenena, / Passaram muitos corpos mortos, horríveis, podres / Cujas almas tinham Paris por
assassina.” (tradução livre nossa). No original: “Roule, roule ton flot indolent, morne Seine. –/ Sous
tes ponts qu’environne une vapeur malsaine/ Bien des corps ont passé, morts, horribles, pourris,/
Dont les âmes avaient pour meurtrier Paris”. VERLAINE, 1867, p. 117.
501
BAUDELAIRE, 1985, p. 330-331, tradução de Ivan Junqueira. No original: “Fourmillante cité, cité
pleine de rêves,/ Où le spectre, em plein jour, raccroche le passant!"
502
Uma temática que também faz parte da obra do poeta Augusto dos Anjos.
210
Entrou – e agora está deserta a rua.
E não sei quê de lânguido flutua
Por sob a névoa da cidade morta.
Ainda erra pela noite o seu perfume,
E o silêncio acompanha o meu ciúme,
Como um Otelo, a lhe rondar a porta!503
Num trecho do poema “Vila do Carmo”, do livro Pastoral aos Crentes do Amor
e da Morte, de Alphonsus de Guimaraens, as cidades coloniais são chamadas
“cidades mortas” e as suas edificações comparadas às da antiga Jerusalém:
Noites de luar nas cidades mortas,
Casas que lembram Jerusalém...
(Passam por mim, tristes e remotas,
Essas visões de amor que o céu contém.)504
Já o poema “Serenada” foi elaborado todo ele com uma atmosfera mórbida e
fúnebre. Na sexta estrofe, a cidade se apresenta, para o sujeio lírico, com uma
feição de cemitério:
Da noite pelos ermos
Choram violões.
São como enfermos
Corações.
Dorme a cidade inteira
Em agonia...
A lua é uma caveira
Que nos espia.
Todo o céu se recama
De argêntea luz...
Uma voz clama
Por Jesus.
503
504
GUIMARAENS apud MURICI, 1951, p.156.
GUIMARAENS, 2001, p. 322.
211
A quietude morta
Do luar se espalma...
E ao luar, em cada porta,
Expira uma alma.
Passam tremendo os velhos...
Ide em paz,
Ó evangelhos,
Do Aqui-Jaz!
Toda a triste cidade
É um cemitério...
Há um rumor de saudade
E de mistério.
A nuvem guarda o pranto
Que em si contém...
Do rio o canto
Chora além.
De sul a norte passa,
Como um segredo,
Um hausto de desgraça:
É a voz do medo...
Há pela paz noturna
Um celestial
Silêncio de urna
Funeral...
Pela infinita mágoa
Que em tudo existe,
Ouço o marulho da água,
Sereno e triste.
Da noite pelos ermos
Choram violões...
São como enfermos
Corações.
E em meio da cidade
O rio corre,
Conduzindo a saudade
De alguém que morre...505
Algumas variantes das cidades mortas nos textos de Alphonsus de
Guimaraens são as cidades alagadas pelo mar do passado ou as cidades históricas
transfiguradas em velhinhas. O poema “Evocações”, de Pastoral aos crentes do
505
GUIMARAENS, 2001, p.300.
212
amor e da morte, alude a um período de decadência que essas cidades estariam
vivenciando. Para Arline Anglade-Aurand, os ecos da obra de Georges Rodenbach,
Bruges-la-Morte, são muito evidentes nesses dois quartetos, o que explicaria o título
do poema.506
O passado são flores mortas
Atiradas pelos caminhos,
Visões que batem às nossas portas
E que nos vêm coroar de espinhos.
Mar do passado, que vento incerto
Anda gemendo nas tuas vagas?
Ninguém sabe o número certo
Das cidades ermas que alagas.507
Estes versos inscrevem-se na linha de uma poética das ruínas que se
desenvolveu no Brasil entre 1890 e 1920, período em que se forjava uma
modernização de vários setores da vida política, social e econômica. Assim, ao
mesmo tempo em que se elaborava uma literatura da temporalidade urbana, da
vivência dos choques modernos, expressão da ideologia do progresso e do
exibicionismo burguês, havia também a busca do registro de uma outra
temporalidade ligada aos costumes tradicionais.
A variante da cidade histórica comparada a uma velha pode ser notada em
uma crônica publicada em 6 de agosto de 1907. Nela, Alphonsus denominou
Mariana de “pobre avozinha das cidades mineiras” e comparou as suas casas a
“velhinhas tristes”. A cidade, que passava por uma reforma para a consagração do
Arcebispo Dom Silvério Gomes Pimenta, foi rodeada magicamente por uma auréola:
Casas havia como se fossem, Santo Deus! velhinhas tristes que
tivessem deixado cair sobre as rugas e sulcos das faces a poeira
secular das horas mortas; outras tremiam de frio, desagasalhadas
por todos os desamparos, isoladas por todas as tristezas.
506
507
AURAND, 1970, p. 239.
GUIMARAENS, 2001, p. 297.
213
Um halo amplíssimo de luz veio envolver-nos resplendorosamente.
E tudo foi renovado, relativamente aos tristes tempos que correm,
pelos particulares.508
Neste trecho e nos poemas que elegem como temática o Ribeirão do Carmo,
é um Alphonsus paisagista que se manifesta, convertendo a cidade e seus espaços
em motivo para uma reflexão sobre o tempo e a existência. Este procedimento
literário é semelhante ao utilizado por Afonso Arinos em suas narrativas.509 A figura
da mulher idosa e o tema da cidade em decadência fazem parte do conto “A
velhinha”, de Afonso Arinos, que começa assim: “Passeava numa tarde por uma rua
solitária de pequena cidade em ruínas.”510 O narrador, ao notar um instrumento
musical centenário numa casa que lhe despertara a atenção, formulou então um
pensamento que serve como chave de leitura para o conto: “Restos de uma
grandeza extinta!”511
Para Silviano Santiago, neste conto e no intitulado “A cadeirinha”, Arinos
aborda “de modo apocalíptico a história da humanidade, ou seja: o futuro de
homens, animais e objetos tomados pelo turbilhão do tempo e da modernização”.512
Do ponto de vista da técnica literária, ele utilizou um procedimento comum entre os
escritores da Belle Époque para lidar com a interferência do “horizonte técnico” no
“modo de produção e reprodução cultural no país”: o deslocamento.513 Como
apontou Flora Süssekind, o emprego do deslocamento contrastava, de modo
indireto, com os processos de modernização, podendo ocorrer ora sob a forma
espacial, ora sob a forma temporal.
Quanto ao deslocamento, encontra campo fértil, por exemplo,
na obra de Afonso Arinos. E opera fundamentalmente em três
508
GUIMARAENS, 1960, p. 614-615.
Como vimos no primeiro capítulo, Alphonsus de Guimaraens estudou na Faculdade de Direito de
Ouro Preto no período em que Afonso Arinos era professor. Algum tempo depois, em sua passagem
pela cidade de Conceição do Serro, Afonso Arinos encontrou-se com Alphonsus que o acompanhou
em um passeio e um almoço. O poeta registrou o acontecimento em seu jornal e, ao se referir ao
escritor, o chamou de “impecável estilista”. Cf. GUIMARAENS FILHO, 1995, p. 130-131.
510
ARINOS, [19 - -], p. 135.
511
ARINOS, [19 - -], p. 136.
512
SANTIAGO, 2004, p. 102.
513
SÜSSEKIND,1987, p. 90.
509
214
direções. No sentido de privilegiar como personagens ou objetos de
narração figuras (como uma cadeirinha do século XVIII, um buriti
perdido numa campina, uma velhinha que lembra o passado), tipos
(o jagunço, o imperador, o contratador) ou sentimentos (nostalgia,
lágrima) de algum modo fora de contexto. 514
Alphonsus de Guimaraens, ao comparar as casas de Mariana a velhinhas,
fazia uso do antigo recurso de representar cidades como mulheres
515
e, ao produzir
a imagem de um alagamento das cidades pelo mar do passado, aludia muito
sutilmente à cidade belga de Bruges e a seus canais. Quando juntamos as duas
imagens, o resultado é algo parecido ao da “ofelização” de Bruges no romance de
Georges Rodenbach.516
Ao contrário dos realistas e naturalistas que gostavam de descrições dos
espaços externos, das paisagens, os simbolistas preferiam os interiores das casas,
os lugares fechados que favoreciam a concencentração do sujeito sobre si mesmo
ou que produziam a sensação de seu enclausuramento. O mundo exterior existia
para os simbolistas apenas como suporte para as projeções de seus estados d’alma.
As paisagens eram convertidas em paisagens subjetivas. Assim também acontecia
na poesia de Alphonsus de Guimaraens, o que levou Milton Campos a cunhar a
expressão “cidade interior” para se referir ao modo como “os sonhos e as visões do
artista” se projetavam sobre a cidade.517
Como se sabe, a representação dos espaços urbanos sob a perspectiva dos
sentimentos foi um procedimento amplamente utilizado pelo simbolista belga
Georges Rodenbach. No romance Bruges-a-Morta, de Rodenbach, o luto vivenciado
pelo personagem Huges exigia a transfiguração de Bruges em uma cidade morta.
Primeiro, acontecia o processo de identificação da falecida esposa com a
514
SÜSSEKIND, 1987, p. 91.
Christophe Imbert, analisando as representações alegóricas da antiga Roma, mostrou que a
cidade foi associada à imagem de uma mulher velha e que, na Idade Média, a cidade aparecia como
“uma velha que não rejuvenesce mais, que foi traída e que chora pela glória de sua juventude.
IMBERT, 2004, p. 32, tradução nossa. No original: “une vieille qui ne rajeunit plus, qu’on a trahie, et
qui pleure sur la gloire de sa jeunesse”.
516
Sobre a importância da figura de Ofélia para a poesia de Alphonsus, ver o capítulo “Os jardineiros
dos símbolos”, na parte intitulada “Espaços efêmeros, desejos de permanência”, p.61.
517
CAMPOS, 1972, p. 29.
515
215
personagem Ofélia, de Shakespeare. Depois, as duas eram associadas à cidade de
Bruges.518
Na obra dos simbolistas mineiros, principalmente na poesia dos discípulos de
Alphonsus de Guimaraens, as ruínas e as cidades mortas estavam relacionadas a
uma técnica literária que dialogava com o art nouveau no sentido de um predomínio
do vazio sobre o cheio,519 da valorização das lacunas, dos implícitos, do silenciado
sobre o dito. Nessa escrita, há uma ênfase no elíptico. Isso também estaria
relacionado à uma leitura que o simbolista mineiro fez da fala de Mallarmé, na
famosa entrevista a Jules Huret, defendendo uma concepção de poesia como
sugestão e encobrimento do objeto. Ao comentar essa fala, Alphonsus delineou um
aspecto central de sua poesia:
Evocar um rosto que se viu em sonho, por meio de frases, alusões a
sensações de dolorosa melancolia que sentimos, deixar quem nos lê
se lembrar na meia sombra de um período crepusculejado pelo
mistério do Lá-Em Cima, poder exprimir a saudade que todos temos
de um mundo que nunca vivemos, de uma mulher que nunca
amamos...520
Evocar e sugerir eram palavras de ordem para tranformar o mundo externo a
partir de recursos metafóricos, metonímicos e elípticos. Ao invés de descrições
518
Este trecho do romance de Rodenbach é um bom exemplo: “Na atmosfera de águas silenciosas e
ruas inanimadas, Hugues tinha sentido menos o sofrimento de seu coração e pensado de maneira
mais leve na morta. Ele a tinha revisto com maior nitidez, escutado melhor, reencontrando sobre os
canais o seu rosto de Ofélia em evasiva, ouvindo sua voz na canção aguda e distante dos carrilhões.
/ A cidade, ela também, outrora amada e bela, encarnava assim suas saudades. Bruges era a sua
morta. E a sua morta era Bruges. Tudo se unificava em um destino semelhante. Era Bruges-a-Morta.
Ela mesma sepultada na tumba dos seus cais de pedra, com as artérias resfriadas de seus canais,
logo que lá havia cessado de bater a grande pulsação do mar.” RODENBACH, 1904, p. 19-20,
tradução nossa. No original: “Dans l’atmosphère muette des eaux et des rues inanimées, Hugues
avait moins senti la souffrance de son cœur, il avait pensé plus doucement à la morte. Il l’avait mieux
revue, mieux entendue, retrouvant au fil des canaux son visage d’Ophélie en allée, écoutant sa voix
dans la chanson grêle et lointaine des carillons. / La ville, elle aussi, aimée et belle jadis, incarnait de
la sorte ses regrets. Bruges était sa morte. Et sa morte était Bruges. Tout s’unifiait en une destinée
pareille. C’était Bruges-la-Morte, elle même mise au tombeau de ses quais de pierre, avec les artères
froidies de ses canaux, quand avait cessé d’y battre la grand pulsation de la mer."
519
Valemo-nos aqui de um insight de Walter Benjamin nas suas Passagens: “Dentre os elementos
estilísticos da construção em ferro e da construção técnica assimilados pelo Jugendstil, um dos mais
importantes é a predominância do vide sobre o plein, do vazio sobre o cheio.” BENJAMIN, 2007, p.
593.
520
ALPHONSUS apud BUENO, 2002, p. 6.
216
minuciosas, uma rede de signos aludia ao todo que tendia ao desaparecimento, ao
arruinamento, em poemas que constantemente mencionavam a perda, a extinção, a
morte. Então, as cidades e todo o mundo externo se tornavam etéreos, espectrais,
projeções do fantasmático. Talvez seja por isso que Carlos Drummond de Andrade,
em um texto publicado no Correio da Manhã em 1960 sobre o lançamento da Obra
completa de Alphonsus de Guimaraens, analisou o cenário onde o poeta localizava
as suas criações e movimentava os seus personagens como “fantástico, entre
romântico e expressionista”.521 A crônica “Carnaval”, um dos textos de Mendigos, é
bastante ilustrativa dessa tendência de projeção de um imaginário fantástico sobre o
mundo externo na obra de Alphonsus. Nela, os personagens das festividades
momescas nas grandes cidades brasileiras aparecem num jogo de esconde-revela
marcado pelo grotesco e pela expressão dos desejos inconscientes, ou “loucura”, de
acordo com as palavras do autor.
A licença ampla que há para tudo no tríduo consagrado a
Momo
pelos
seculares
costumes mundanos,(sic)
alegra
superabundantemente a todos os indivíduos que são obrigados a
conservar-se sérios durante os outros intermináveis dias do ano, ou
por temperamento, ou em razão dos cargos que ocupam.
Nas cidades grandes (ao contrário do que sucede nestas
pobres cidades mineiras onde tenho vivido) (sic) a multidão
carnavalesca se recruta em todas as camadas sociais; ninguém se
espantará ao saber que naquele pachola que ali vai, com ares de
alfacinha aperaltado, todo polvilhado e cheio de perfumes
parisienses, se oculta a sanchesca pança burocrática de um alto
funcionário público, financista emérito, que, deixando de parte a
Caixa de Conversão, o Convênio e o mais, deseja desumorar-se
diabolicamente como um Mefistófeles de arribação, em companhia
de farsolas desconhecidos, tufuis (sic) anônimos que nem sem
máscaras reconheceria.
Podem dar os mortais, nessa tríade funambulesca de dias
nefastos e vesânicos, a mais ampla e impune expansão às nevroses
que trazem incubadas em si.
Como que se escancaram de par em par as portas dos
hospícios, dos manicômios, das casas de saúde; a epilepsia e a
histeria surgem, fantasiadas, em cada canto de rua: a nevropatia
reina e impera em deusa e rainha absoluta, e por debaixo das
máscaras postiças quantos olhos se arregalam ansiosos, quantas
faces se congestionam, quantos lábios tremem de frio, quantas
gargantas desesperadamente se cerram e se constringem...522
521
522
ANDRADE apud RICIERI, 1996, v. 2, p. 59.
GUIMARAENS, 1960, p. 476.
217
No trecho seguinte, o grotesco é mais enfatizado ainda quando a alegria
carnavalesca se transforma em um soturno pesadelo, em uma “representação ao
vivo de tudo quanto sentimos às ocultas dentro de nós”:
Há também no carnaval alguma coisa do sabbat medievo:
esses (sic) máscaras que passam travestidos em leopardos e
crocodilos, em onças e leões, em sapos e bodes, fazem-nos pensar
instintivamente nessa noite satânica de pesadelos que cobriu de
horror e luto toda a Idade Média, quando, depois das nove horas de
qualquer dia da semana (nunca aos domingos, pois este é o dia do
Senhor, e ninguém poderia dar-se a ele e ao diabo a mesmo tempo)
com o cair das sombras, se reuniam bruxos e feiticeiras, na adoração
infiel do Espírito do Mal...523
Através deste texto, podemos perceber que, apesar da descrição ser reduzida
na poesia de Alphonsus, ela podia ser mais desenvolvida em sua prosa. Em
“Carnaval”, o autor sugeriu o caótico da festividade por meio de uma enumeração ou
acumulação de imagens. Além disso, as relações entre sexualidade, loucura e
máscaras sociais, a idéia do carnaval como inversão da ordem e a menção à Idade
Média nos fazem pensar na teoria do grotesco de Bakhtin.524 Já a idéia da alegria
como máscara satânica nos remete ao grotesco na concepção de Kayser.525
Continuando a descrever os sabás no texto sobre o carnaval brasileiro,
Alphonsus de Guimaraens, além de associar os foliões aos monstros e às figuras
espectrais, também identificava as danças carnavalescas às danças macabras,
completando, assim, a transfiguração das cidades grandes em cidades mortas.
Larvas e vampiros, íncubos e súcubos, espalmam pelo ar as
suas asas negras; dançam macabramente, amam sacrilegamente,
523
GUIMARAENS, 1960, p. 476.
BAKHTIN, 2008.
525
Para Kayser, o grotesco tem um lado negativo, demoníaco, muito próximo do fantástico, capaz de
gerar um sentimento de espanto diante de uma realidade que deixa de ser familiar.
524
218
até que o canto do galo, com um clarim guerreiro, lhes anuncia a
vinda triunfante do dia.526
Outro exemplo de figuração da cidade em ruína encontra-se no conto “O
manto”, de Alphonsus. Narrado em primeira pessoa, “O manto” envolve Ouro Preto
num clima macabro e decadente.
Com os passos incertos de quem atravessa o primeiro período
da convalescença, eu segui vagarosamente para o alto do Morro da
Forca, lugar sombrio e deserto, onde as lendas parecem passar
sacudindo cabeças sangrentas.
Vila Rica, olhada daquele ponto, era um monte de ruínas. Só
as igrejas, abençoando a velha capital da poderosa capitania,
triunfavam no meio daquelas ruas íngremes, onde as casas
cambaleavam.527
No poema “Crepúsculo macabro”, de José Severiano de Rezende, um clima
satânico e funesto abarca todos os espaços: “Ah! como é triste o Campo e é lúgubre
a Cidade/ Na hora em que o sino plange o toque a Ave-Marias...” Até nas roseiras
ou árvores podadas se manifestam seres que sofrem: “E de cada roseira ou roble
que se poda/ Gemem as vozes ermas da Floresta”.528
Já Edgard Mata, embora tenha vivido grande parte de sua vida entre o Rio de
Janeiro, Belo Horizonte e São Paulo, pouco se referiu ao universo urbano em sua
obra. Uma exceção é o poema “Signo escorpião”. Nele, Ouro Preto apresenta-se
amortalhada. A imagem fantasiosa e soturna da cidade, elaborada pelo sujeito lírico
na distância temporal e espacial, é gerada com parcos elementos advindos de
histórias contadas.
Foi numa triste madrugada, em Vila Rica,
Eu não me lembro, que a Lembrança ainda fica
526
GUIMARAENS, 1960, p. 476.
GUIMARAENS, 1960, p. 400.
528
REZENDE, 1971, p. 148-150.
527
219
Aquém daqueles velhos dias afastados...
Mas esses fatos sei, porque os ouvi contados.
Foi numa triste madrugada; e então nascia
Este poeta desolado, da Agonia,
Numa casinha lá da rua São José.
(Creio que já não tem o mesmo nome até!)
Era o minguante. E uma Lua muito fina
Aparecia, com um perfil mau de assassina,
Por entre os serros, onde a leve bruma espalha
Longos sudários, um burel e uma mortalha!529
E, ao anoitecer, a cidade da infância do sujeito lírico tornava-se semelhante a
um cemitério com seus ciprestes:
Morria o Sol! Era o mais rico dos enterros:
Estavam de opa de verdura os próprios serros.
E até parece que dobravam por finados
As causuarinas530 e os ciprestes encurvados...531
Apesar de a cidade morta ter sido um tema central para os simbolistas
mineiros, alguns deles também refletiram e escreveram sobre o mundo que se
modernizava, sobre a vida nas grandes metrópoles, sobre a transformação dos
espaços urbanos em cidades tentaculares. Havia um posicionamento crítico dos
simbolistas mineiros em relação ao sistema de valores cientificistas, positivistas e
naturalistas que fundamentava os processos de modernização das cidades. Assim,
a produção literária desses escritores dialogava simultaneamente com a utopia
moderna simbolizada por Belo Horizonte e com a ideia de uma decadência das
cidades históricas mineiras. Lembramos mais uma vez que o contexto histórico no
qual a obra dos simbolistas mineiros foi sendo gestada era o da construção da nova
capital de Minas. Polêmicas acaloradas a respeito da mudança do centro
administrativo do estado envolveram vários intelectuais. Entre os defensores da
mudança da capital estavam alguns dos professores da Faculdade de Direito de
529
MATA apud SOUZA, 1978, p. 73.
Parece ter havido um erro tipográfico nesta edição do livro de Edgard Mata, pois o nome correto
da árvore é “casuarina”.
531
MATA apud SOUZA, 1978, p. 75.
530
220
Ouro Preto onde estudaram Alphonsus de Guimaraens e Archangelus de
Guimaraens. Nessas contendas, um grupo de resistentes pregava a modernização
de Ouro Preto e outro defendia a sua conservação como símbolo da nacionalidade.
Escrita em 1911, quando Belo Horizonte já havia se tornado a capital dos mineiros,
uma crônica de Alphonsus/Guy d’Alvim, publicada n’O Germinal, mostrou o
posicionamento do cronista em relação a este assunto:
As nossas velhas cidades, que olham religiosamente para o
passado, de onde lhes vem o fulgor imorredouro de toda a sua glória,
são as mais puras relíquias da nossa nacionalidade.
Elas nos falam, na mudez das vetustas casarias e desses
casarões coloniais, de toda uma história de triunfos e sofrimentos, de
heroísmo e suplícios.
Quem se não comoverá ao vê-las assim abandonadas, elas
que foram a fonte de onde emanou em surtos de força e vida, no
lento decorrer das épocas, o povo que se tem dignificado perante o
universo por tantas conquistas liberais? 532
Depois de traçar um pequeno panorama histórico, o cronista buscou,
semelhantemente ao que fez Severiano em relação ao Rio antigo, sacralizar essas
cidades:
E as nossas velhas cidades guardam no sacrário dos seus
edifícios toda a história desses séculos rutilantes, tão abandonadas e
pobres depois de haver sustentado a mais faustosa corte do mundo;
o ouro que lhes foi tomado nunca mais voltará aos seios exauridos:
no entanto elas esperam alguma coisa do futuro, e vestem-se de
galas para festejar a sua ancianidade.
E razão têm para isso as velhas cidades: são como algumas
avozinhas que a morte vai poupando, deixando-as gozar
indefinidamente a paz do lar onde abriram os olhos à luz do dia e
tiveram os primeiros anseios de noivas e as alegrias primeiras de
mães. 533
532
533
GUIMARAENS, 1960, p. 638.
GUIMARAENS, 1960, p. 639.
221
Nos trechos destacados, a ideia de abandono é repetida duas vezes,
correspondendo à questão do arruinamento, pois, ao serem abandonadas, as
cidades se desmancham em ruínas. Através da comparação das “velhas cidades”
com as avozinhas de “seios exauridos”, o narrador quer nos fazer lembrar dos
“restos de uma grandeza extinta”, como no conto de Afonso Arinos.
Outra caracterização utilizada pelos simbolistas para os espaços urbanos é a
da cidade como local de tédio e melancolia. Uma crônica de Horácio Guimarães,
publicada no Diário de Minas sob o pseudônimo Pierrot, desenvolve um argumento
paradoxal: “Se quereis alegria, não é na Urbs que a deveis procurar; toda a alegria
de hoje fugiu para os cemitérios”.534 A inversão das expectativas visava a crítica
social.
[...] notei mais vida naquela mansão da morte, do que cá baixo, na
cidade; e que os campos santos, longe agora de sugerirem tristezas
e levarem a gente a trágicas filosofias hamléticas, estão ficando os
lugares mais alegres da urbs!
A tristeza e o tédio moram agora nas cidades: não procurem
mais nos cemitérios, entre os salgueiros, este par macabro e
desgrenhado: é em torno das mesas dos cafés e nos bancos do
Parque que ele se senta, à hora melancólica dos crepúsculos e ao
sol causticante dos meios-dias.535
Oásis de paz no meio do torvelinho urbano, o cemitério também é
apresentado pelo cronista como tendo uma melhor qualidade ambiental do que os
os bairros pobres.
Ó tantos que tendes a infelicidade de morar em acanhados
bairros pobres, sem árvores, sem ar fresco, sem águas cantantes e
grazinadas de pássaros, ide, ide ao cemitério... A cidade não vos
534
PIERROT (Pseudônimo de Horácio Guimarães). Entre dois chopes. Diário de Minas, Belo
Horizonte, 1 jul. 1901, p. 1.
535
PIERROT (Pseudônimo de Horácio Guimarães). Entre dois chopes. Diário de Minas, Belo
Horizonte, 1 jul. 1901, p. 1.
222
pode dar a tranquilidade de espírito tão necessária aos que lutam
pela vida [...] 536
Esta crônica deve ser lida em confronto com outras publicadas na mesma
coluna por Horácio Guimarães, abordando a temática urbana. De um lado, alguns
textos se valiam de uma idealização da vida nas aldeias, fantasiadas como espaços
bucólicos. De outro, chamavam a atenção para a conspurcação desses pequenos
núcleos urbanos e até mesmo a sua destruição. Em 25 de março de 1901, o cronista
afirmava que “a simplicidade desapareceu há muito dos campos e com ela o doce
encanto da vida rural: tudo se transformou com o progresso” e advertia o leitor para
a falsa noção de que os pequenos aglomerados seriam locais de paz.
Almas ingênuas, acostumadas a ver a vida [na] aldeia através
das páginas mentirosas dos romances;537 se quiserdes passar pela
mais cruel das decepções, ide, ide visitar uma de nossas aldeias: se
de lá não voltardes completamente desiludidos, como eu voltei há
dias, corrido, entediado, envergonhado, é porque então sois fortes
demais.
Supões acaso, leitor, que ali estás a salvo dos botes da inveja,
da intriga, do Tédio, das paixões, dos mil inimigos que nos assaltam
nos centros tumultuosos? – Esperança vã! Estulta pretensão! Não há
mais lugarejo onde não haja penetrado hoje a civilização com todo o
seu cortejo de males: a política, a moda, e até, ó horror! o piano, o
maior, sem dúvida, dos flagelos citados...538
O interessante é que estas críticas eram feitas em um meio de comunicação
que o cronista incluía entre os responsáveis pelas mudanças.
536
PIERROT (Pseudônimo de Horácio Guimarães). Entre dois chopes. Diário de Minas, Belo
Horizonte, 1 jul. 1901, p. 1.
537
A crônica inicia-se precisamente comentando as páginas “docemente emotivas” escritas por
Camilo Castelo Branco e Fialho de Almeida sobre a “vida rústica” nas aldeias.
538
PIERROT (Pseudônimo de Horácio Guimarães). Entre dois chopes. Diário de Minas, Belo
Horizonte, 25 mar. 1901, p. 1.
223
[...] O aldeão fez-se desconfiado: e se ele vos fala, por acaso, é
duma questão de águas com um vizinho, de política, de crise, de
coisas que exatamente quereis vos esquecer, e que lhe chegaram ali
no jornal (oh! o jornal já entrou na aldeia!)539
Assim como Baudelaire se valeu da figura de um cisne exilado no meio das
ruínas da antiga Paris para compor uma alegoria da modernidade, Horácio
Guimaraens utilizou um antigo cruzeiro do arraial de Curral del-Rei como elemento
para abordar o tema da modernização numa crônica de 21 de janeiro de 1901.
[...] mal acordavam, as moças e os rapazes da aldeia voltavam-se
reverentes, como a pedir-lhe a bênção e verificar se ele [o cruzeiro]
continuava lá no lugar que o colocaram seus avós, a velar como uma
sentinela muda, pelo sossego de todos.
E constatavam todas as manhãs, com alegria e comovidos, que
ele lá estava, que ele continuava a proteger os habitantes do Curral
del-Rei contra as ciladas do Diabo e as dos homens, piores ainda
que as do Tinhoso.540
No trecho seguinte, o cronista apresentou os instrumentos e os agentes
envolvidos na construção da nova capital como contraponto ao símbolo religioso e
às tradições locais:
Daí, ele viu chegar um dia um exército de demolidores: de
engenheiros, de operários armados de picaretas, de pás e de
enxadas. E ele disse lá consigo: aí vem o homem civilizado [...] – aí
vêm os bárbaros! Chegaram! Nada escapou à fúria demolidora das
picaretas. Tudo foi a raso: casas velhas e pomares, bosques e
jardins. Só restaram [...] como vestígios do velho Curral del-Rei a
velha igreja denegrida e uma ou outra casa velha. Mas ele, o Santo
Cruzeiro [...] ia suportando incólume os martírios dos ímpios e o
suplício dos maus.541
539
PIERROT (Pseudônimo de Horácio Guimarães). Entre dois chopes. Diário de Minas, Belo
Horizonte, 25 mar. 1901, p. 1.
540
PIERROT (Pseudônimo de Horácio Guimarães). Entre dois chopes. Diário de Minas, Belo
Horizonte, 25 mar. 1901, p. 1.
541
PIERROT (Pseudônimo de Horácio Guimarães). Entre dois chopes. Diário de Minas, Belo
Horizonte, 21 jan. 1901, p. 1.
224
Depois de ter suportado por muito tempo o “martírio dos ímpios”, o cruzeiro,
vestígio do antigo arraial, acabou derrubado a golpes de machado, fato que motivou
mais uma crítica do cronista ao furor dos que pretendiam a modernização do lugar.
O que, porém, não viram mais os olhos dos habitantes do Curral delRei, entre pasmos e indignados, ao voltarem-se, numa bela manhã,
para o morro da Caixa d’Água, foi o seu rico Cruzeiro, que não
estava mais no lugar em que os seus avós o haviam colocado.542
Depois de mencionar “a maldade dos homens” e, de modo irônico, os
“benefícios da civilização”, o cronista relacionou a derrubada do Cruzeiro a outros
atos destruidores “do homem civilizado”:
Oh! a crueldade dos homens!... Não satisfeito de devastar as
árvores, de despovoar as florestas, um machado sacrílego foi lá [...]
um dia e abateu o velho Cruzeiro, rachou-o [...] e reduziu-o a achas
de lenha.543
É interessante notar que a imagem da cidade morta, que, no princípio, era
usada apenas para as cidades coloniais, acabou servindo também para a nova
capital mineira numa crônica publicada no jornal A Épocha em 1905.544
Nestes dias pardos e pesadamente tristonhos de Novembro,
Belo Horizonte, pela admosfera muda das ruas e largas avenidas,
assemelha-se a uma cidade morta. Do céu alto, parece desdobrar-se
542
PIERROT (Pseudônimo de Horácio Guimarães). Entre dois chopes. Diário de Minas, Belo
Horizonte, 21 jan. 1901, p. 1.
543
PIERROT (Pseudônimo de Horácio Guimarães). Entre dois chopes. Diário de Minas, Belo
Horizonte, 21 jan. 1901, p. 1.
544
Não conseguimos identificar o autor da crônica, assinada sob o pseudônimo de Lúcio dos Alpes.
Porém, A Épocha foi um periódico que contou com colaboradores simbolistas. Ver capítulo “Os
jardineiros dos símbolos”, p. 62.
225
sobre ela um vasto manto de melancolia e de silêncio, identificando
todas as coisas na mesma Tristeza. E esta Senhora entanguida, como
uma velha de longo capote aos ombros, vai pousando a mão
encarquilhada sobre as comprometedoras alegrias, que desaparecem
como um não sei que de indizivelmente lábil e fugaz.
Pelas ruas estendem-se as duas alas fúnebres de árvores,
farfalhando, agitadas pelo vento.
E sempre o mesmo silêncio, o fatal silêncio acabrunhador, que
nos pesa n’alma tediosamente...545
Neste texto, era a tristeza dominante em Belo Horizonte que tinha o aspecto
de uma velha. Uma tristeza que fazia com que a nova capital se assemelhasse a
uma cidade já decrépita. Belo Horizonte foi comparada ainda à Bruges do romance
de Rodenbach.
E uma influência dolente e vaga exerce-se soberanamente
sobre nós como a de Bruges-la-Morte sobre o personagem de
Rodenbach que, vagando pela cidade, recebia uma lição de silêncio
vinda dos canais imóveis; exemplo de resignação pelos cais
taciturnos; conselho sobretudo de piedade e de austeridade caindo
dos altos campanários das igrejas de Bruges.
Com a chuva a escorrer de um céu negro, vão transcorrendo
os dias e as noites na infindável solidão desta cidade.
[...]Lá fora a chuva tamborila na janela e uma impressão mortuária
emana das largas avenidas silenciosas.546
O aparecimento do romance Bruges-la-Morte aconteceu numa situação de
declínio econômico da cidade belga. Seu porto havia tido uma importância
comparável à de Veneza. Porém, um acontecimento natural fez com que o mar se
afastasse, causando uma crise. A cidade entrou, então, num período de letargia. De
acordo
com
Patrick
McGuinness,
a
Bruges
de
Rodenbach
se
opunha
simbolicamente a Paris. No romance, Bruges tinha um aspecto de lago estagnado,
545
546
ALPES, Lúcio dos. A cidade morta. A Épocha, Belo Horizonte, 5 nov. 1905, p. 2.
ALPES, Lúcio dos. A cidade morta. A Épocha, Belo Horizonte, 5 nov. 1905, p. 2.
226
onde as coisas continuavam como estavam no passado, estáticas.547 Já Paris era o
lugar das frenéticas transformações, lugar da agitação e do movimento.548
Para os simbolistas mineiros, as cidades coloniais, as aldeias ou arraiais
passaram a ter uma função idêntica à de Bruges de Rodenbach. É bastante
sintomática a figuração desses espaços urbanos, ou protourbanos, ora como lugares
melancólicos, decrépitos, abandonados, ora como lugares bucólicos, idealizados.
Uma ilustração de Archangelus de Guimaraens para o poema “Lua-nova”, de
Alphonsus de Guimaraens, é um excelente exemplo visual desses espaços urbanos
que entrevemos na escrita dos simbolistas mineiros.549 No cenário brumoso, a lua se
destaca acima de uma igreja. Em primeiro plano, alguns traços sugerem as cruzes
de um cemitério. Trata-se de uma espécie de síntese visual do ponto de vista
adotado pelos simbolistas mineiros para dizer o urbano.
547
Para McGuinness, “A Bruges de Rodenbach é, ao mesmo tempo, relíquia e relicário, tumba e
cadáver.” (tradução nossa). No original: “Rodenbach’s Bruges is both relic and reliquary, tomb and
stricken corpse”. Uma síntese histórica do momento em que esta obra surgiu na Europa feita por
McGuinness também destaca a proximidade do romance de Rodenbach com o teatro estático de
Maeterlinck: “Bruges, a Morta surgiu no mesmo ano que Pelléas et Mélisande, de Maeterlinck, e
ambas as obras vieram a representar os pontos altos do Simbolismo. Eles são tão evocativos de sua
época como os poemas de Mallarmé, a música de Debussy e as pinturas de Khnopff. Maeterlinck
especializou-se em um teatro da inação – ‘teatro estático’, como ele o chamava – e é interessante
pensar em suas peças, assim como nos romances e poemas de Rodenbach, como ilhas de estase
[stásis] e reflexão em uma era de tumulto: a primeira metade da década de 1890 foi um período de
atentados anarquistas com bombas, de estado de paranóia e de crise financeira.” MCGUINNESS,
Patrick. Bruges, Paris and the spectres of Symbolism. The Times Literary Supplement, Times Online,
20 dec. 2006, tradução nossa. The Times Literary Supplement, Times Online, 20 dec. 2006.
Disponível em: <http://tls.timesonline.co.uk/article/0,,25338-2512863,00.html>. Acesso em: 12 jun.
2008, tradução nossa. No original: “Bruges-la-Morte came out in the same year as Maeterlinck’s
Pelléas et Mélisande, and both works have come to represent the high points of Symbolism. They are
as redolent of their period as Mallarmé’s poems, Debussy’s music and Khnopff’s paintings.
Maeterlinck specialized in a theatre of inaction – “static theatre”, he called it – and it is interesting to
think of his plays, like Rodenbach’s novels and poems, as islands of stasis and reflection in an age of
tumult: the early to mid-1890s was a period of anarchist bombing campaigns, state paranoia and
financial crisis.”
548
MCGUINNESS, Patrick. Bruges, Paris and the spectres of Symbolism. The Times Literary
Supplement, Times Online, 20 dec. 2006.
549
Archangelus de Guimaraens, além de poeta, foi pintor e ilustrador. Ele dedicou-se principalmente à
pintura de paisagens que ficaram conhecidas entre seus amigos e familiares. José Severiano de
Rezende chegou a lhe encomendar um quadro. De acordo com Alphonsus Guimaraens Filho (1955,
p.16), restaram poucas dessas obras. O pendor de Archangelus de Guimaraens para as artes visuais
aparece na capa do manuscrito de Dona Mística, de Alphonsus de Guimaraens, e em ilustrações de
poemas de Alphonsus e de Jacques d’Avray. Apesar das obras pictóricas e gráficas de Archangelus
terem sido consideradas como atividades de juventude por Guimaraens Filho, suas ilustrações
tiveram uma apreciação positiva no catálogo da exposição Do Simbolismo aos antecedentes de 22,
realizada no Rio de Janeiro pela Fundação Casa Rui Barbosa, em 1982: “As ilustrações de
Archangelus de Guimaraens participam de forma especial da linguagem simbolista dos textos,
explorando a fusão de linguagens, instaurando o requinte de apresentação, em particular na
ilustração ao texto ‘Lua nova’.” DO SIMBOLISMO AOS ANTECEDENTES DE 22, 1982, p.12. Ver
desenhos de Archangelus de Guimaraens no Anexo B.
227
Na poesia dos simbolistas mineiros, geralmente os elementos que evocam os
espaços urbanos são religiosos (igrejas, conventos, claustros, ermidas etc.). As
características desses cenários simbolistas se assemelham às das formas
elementares do espaço urbano mineiro cujo centro era a capela. De acordo com
Sérgio da Mata, nesses pequenos núcleos populacionais, “o espaço do cemitério
frequentemente se confundia com a capela. A casa de Deus era, simultaneamente,
casa dos mortos”.550 Além disso, é recorrente na obra dos simbolistas mineiros a
fusão de dois espaços: o jardim e o cemitério, como na primeira estrofe do poema
“Campas em flor”, de Archangelus de Guimaraens.
Que cemitério tão florido!
Covas em flor como um canteiro!
E o cavador das sepulturas
Parece mais um jardineiro.551
Podemos observar algo parecido em “S. Bom Jesus de Matozinhos”, um dos
poemas de Kiriale. Nele, Alphonsus de Guimaraens tomou como tema uma festa
religiosa em torno da capela que aparece rodeada pela vegetação. Depois de
mencionar a existência de flores silvestres no adro, o sujeito lírico dirige o olhar para
os fundos da igreja, onde se encontra o cemitério, e utiliza o verbo “florescer” para
se referir aos túmulos: “E atrás da Igreja o cemitério/ Floresce cheio de jazigos”.552
No soneto “Campa em flor”, da Pastoral aos crentes do amor e da morte, a
associação do cemitério ao jardim é indicada, além do próprio título, pela menção às
“flores que plantamos nos jazigos”.553 Já em “Descantes”, de José Severiano de
Rezende, o campo santo é um lugar florido e enluarado.
Se ao cemitério tu fores
E o meu jazigo encontrares
550
MATA, 2002, p. 156.
GUIMARAENS, 1955, p. 138.
552
GUIMARAENS, 2001, p. 146.
553
GUIMARAENS, 2001, p. 343.
551
228
Deixa-o quieto em meio às flores,
Beijado pelos luares.554
Em O meu flos sanctorum, Severiano de Rezende traçou a paisagem do
cemitério com as características de um jardim melancólico e poético:
Ah! o campo-santo é poético, com os seus marmóreos
monumentos, as suas filas de lacrimais ciprestes, as suas flores, a
sua capela, o seu silêncio, entrecortado apenas de lamentosos
dobres, a sua vastidão de dormitório da eternidade...555
As flores estão sempre presentes nos cenários simbolistas. Um poema de
Archangelus de Guimaraens nos mostra, por exemplo, sinos que, ao tocarem “pelos
finados”, criam um ambiente sonoro associado sinestesicamente a pétalas de flores
caindo em uma paisagem de ermidas e catedrais ao crepúsculo: “Os sinos tocam,
derramam flores/ Rosas tão brancas como o luar.”556 Em outro poema de
Archangelus, as ermidas que evocam o espaço urbano encontram-se entre flores:
Ermidas brancas, feitas de luares...
Como as adoro nessa solidão!
Sob os seus pés florescem nenúfares...
Ermidas brancas, feitas de luares,
Quem, contemplando-as, não será cristão?
Adormeceis tranqüilas, sossegadas,
Sob a piedosa luz crepuscular...
Bem alto, nas montanhas azuladas,
Adormeceis tranqüilas, sossegadas
Por entre rosas a desabrochar.557
554
REZENDE, 1971, p. 137.
REZENDE, 1970, p. 210. A temática dos jardins-cemitérios ou dos cemitérios-jardins foi bastante
importante na literatura de Chateaubriand, escritor apreciado por Severiano de Rezende e Alphonsus
de Guimaraens. É relevante o fato deste último possuir várias obras do romântico francês em sua
biblioteca. Do mesmo modo que em Chateaubriand, o jardim dos simbolistas mineiros evocava os
mortos e se relacionava ao tema das ruínas. Sobre esses aspectos da obra de Chateaubriand, Cf.
RICHIER, 2006, p. 175-187.
556
GUIMARAENS, 1955, p. 49.
557
GUIMARAENS, 1955, p. 71.
555
229
Mamede de Oliveira também empregou temas florais em suas paisagens,
como no poema “O luar da minha aldeia”, que ressalta o aspecto espiritual da
ambientação.
Na minha Aldeia o luar é de veludo
E triste como os fúnebres desterros;
Surge de tarde, bem detrás dos serros
E traz lembranças de um passado rudo.
Na hora vesperal de luz discreta
Em que tombavam flores descoradas;
O luar subia, ciliciado asceta,
Colhendo lírios nas azuis estradas.
Silêncio espiritual das horas místicas
Na agonia das rosas vesperais;
[...]
O luar da minha Aldeia tem carinhos
Como as asas liriais das pombas mansas;
Surge de tarde, a adormecer os ninhos
A abrir a flor astral das esperanças.558
A profusão de flores nas artes visuais, nos objetos decorativos e na arqutetura
também foi um procedimento adotado pelos artistas e artífices art nouveau. Eles
cobriam de ornamentos, muitas vezes relacionados a uma temática vegetal, os
espaços urbanos e os objetos industrializados. O objetivo disso era o de aproximar
tais coisas dos objetos artesanais ou artísticos.
Nos livros dos simbolistas mineiros, pode-se notar a utilização de enorme
quantidade de vinhetas com guirlandas florais, ramos e lianas no estilo art nouveau
para decorar as suas páginas.559 Além disso, o diálogo com outras artes, comum
entre os simbolistas, ocorria através de uma correspondência com os procedimentos
do campo das artes visuais. Assim como as edificações, os objetos utilitários, os
cartazes, os livros e os periódicos, a própria escrita literária se tornava
558
559
OLIVEIRA, 1957, p. 47-48.
Ver capas e vinhetas das revistas e livros simbolistas no Anexo D.
230
ornamentada.560 Este uso da imagem das flores na poesia dos simbolistas mineiros
servia para artificializar a paisagem – procedimento semelhante à busca
decadentista de recriação da natureza/paisagem na escrita como um espaço de
evasão ou uma pseudonatureza superior à natureza.561 Assim, esses motivos florais
tinham, paradoxalmente, um valor antinaturalista.
Voltemos ao poema de Mamede de Oliveira. É importante notar que
sentimentos – ora disfóricos, ora eufóricos – são projetados sobre a paisagem. Na
primeira estrofe do poema, o luar é “triste como os fúnebres desterros”; já na última,
adquire aspecto positivo de “flor astral das esperanças”. Desse modo, a aldeia oscila
entre duas imagens antagônicas, sendo que o mal-estar gerado pelas “lembranças
de um passado rudo” impede que a aldeia se transforme num refúgio bucólico. Há
uma tensão dialética entre passado e futuro que se dilui quando aparece a
possibilidade de redenção do sujeito no lugar de origem. Isto significa uma
desassociação da idéia de futuro ao universo da cidade grande. É importante
salientar ainda que o ponto de vista do sujeito lírico é o de alguém que vive distante
daquele lugar. Já no soneto “Livro de Job”, Mamede de Oliveira associou o primeito
impulso do sujeito poético para a escrita de poesia aos sofrimentos causados pela
distância da aldeia:
Doces amigos, fiz-me poeta, um dia
Quando me vi sozinho, abandonado,
Longe da minha Aldeia, onde vivia,
Entre os meus bons patrícios, descuidado.
Deixei meus pais naquele ninho amado
560
Para Flora Süssekind, a ênfase na idéia de artesanato literário, presente na escrita ornamental da
Belle Époque, teatralizava “uma oposição à ‘padronização’ industrial, que teria na oratória do período,
na poesia parnasiana, na prosa simbolista, em grande parte na obra de Coelho Neto algumas de
suas manifestações”. SÜSSEKIND, 1987, p. 91.
561
“Sobre o tema da antinatureza e a estética do artifício na literatura decadentista, ver PEYLET
(1986) e PEYLET (1994). Os escritores e estetas decadentistas viraram as costas para o mundo
fenomênico e buscaram expressar, de preferência, o irreal, o ideal, o artificial e o imaginário.
Contemporânea da Revolução Industrial e dos avanços tecnológicos, sofrendo o influxo da poesia
urbana de Baudelaire, com a qual partilhava a mesma admiração pelo artificial, a literatura
decadentista preferia representar de modo detalhista os interiores das residências dos estetas do que
descrever a Natureza. Os decadentistas inspiraram-se nas estufas que surgiam na Europa para
desenvolver metáforas relacionadas às plantas artificiais que rivalizavam em beleza com as flores
“naturais”. Apesar dessa ênfase nos espaços internos, houve também um Simbolismo ligado à
representação dos ambientes externos como paisagens subjetivas, paisagens d’alma.
231
Que a pobreza feliz enflorescia;
E fui amando sempre desamado,
E ainda moço, velhinho parecia.
Sonhando vim... Destes meus olhos ermos,
Uma saudade se abeirou [...] 562
Neste caso, a realidade cruel do presente, combinada com a representação
da casa paterna como um lugar de aconchego, desencadeava o sentimento de
saudade e a visão utópica da aldeia.
Geralmente associada à vida nas grandes cidades, a temática do surgimento
das novas tecnologias também aparece nos textos dos simbolistas mineiros. Por
exemplo, J. Camelo fez uma homenagem a Santos Dumont no poema “Ao vencedor
do ar”563 e, no texto “Viação”, abordou as questões envolvendo o desenvolvimento
do sistema de transporte ferroviário.564 Já Alphonsus de Guimaraens mencionou
aparelhos e máquinas modernas em várias crônicas: o telefone, no poema
“Palestras”, III;
565
a fotografia, no conto “Espectro”;
566
os automóveis, aeroplanos e
trens de ferro, na crônica “Fúnebre inauguração”567 e o fonógrafo, em “Idéia
genial”.568 Já no soneto “Ela vem ou não vem?”, Alphonsus dramatizou as dúvidas
dos habitantes de uma cidade do interior a respeito da chegada do trem e as
possíveis mudanças no seu modo de vida. 569
“Não sei se ela virá!” geme o Dandico.
“Que ela vem digo-te eu!” logo murmuro.
Mais calado ele fica do que um muro.
Muito mais mudo do que um muro eu fico.
“Ela virá?” torna ele, e cala o bico.
562
OLIVEIRA, 1957, p. 13.
CAMELO, J. Ao vencedor do ar. Evolução, Belo Horizonte, 21 set. 1903, p. 2.
564
CAMELO, J. Viação. Diário de Minas, Belo Horizonte, 10 jul. 1902, p. 1.
565
GUIMARAENS, 1960, p. 563.
566
GUIMARAENS, 1960, p. 446-448.
567
GUIMARAENS, 1960, p. 472-473.
568
GUIMARAENS, 1960, p. 641-642.
569
Nesse poema, o escritor se utilizou de uma pergunta que o comerciante Dandico, de Mariana,
repetia todos os dias aos seus fregueses depois de saber que a cidade seria ligada à malha
ferroviária brasileira. Cf. GUIMARAENS FILHO, 1995, p. 279.
563
232
“Ela vem”, digo então um esconjuro.
E a paciência perdendo: “que o futuro
A Deus pertence.” E nada mais lhe aplico.
Três horas, quatro, cinco, seis e sete
Batem na Sé, enquanto, em voz sumida,
“Se ela vier, isto muda!” ele repete.
Batem as nove. As ruas estão mortas.
Despeço-me. E ele diz na despedida:
“Não sei se ela virá!”, fechando as portas.570
Lugar monótono, sem a agitação das grandes cidades, a cidade delineada no
poema é uma realidade em vias de desaparecer pela modernização tecnológica.571
Já no “Soneto-Telegrama”, além do próprio título do poema que remete a um
moderno meio de comunicação, Alphonsus fez referência a uma máquina veloz
(“nau possante”) capaz de transportar rapidamente, da capital à cidade do interior, o
personagem a quem era dirigida a mensagem.
Soares amigo! Peço-lhe que venha
Por um momento só, um só instante,
Na nossa Capital não se detenha.
A coisa é grave, urgente, palpitante.
Você não tem um coração de penha:
Tem ao contrário um coração amante.
Não se demore, pois! Dou-lhe uma senha:
Voar pelo espaço numa nau possante!
A goela dele já está toda seca.
E a língua se torna mais que peca,
Por não mais ser regada com bom vinho.
Venha trazer-lhe a paz de um bom conforto.
– Santos Óleos e a Unção do Excelso “Porto”,
570
GUIMARAENS, 1960, p. 578. É importante lembrar que o trem de ferro ocupa um papel importante
no imaginário moderno como emblema do deslocamento, da rapidez, da circulação das pessoas e
ideias.
571
Por sua vez, Severiano de Rezende figurou Mariana como uma cidade contrária ao progresso e no
limite da incivilidade em uma crônica publicada no jornal D. Viçoso, em 1899: “Mariana retrógrada. Se
é que ela pode ir mais para trás no estado deplorável em que a deixa uma câmara municipal que
dorme. [...] O largo da Independência é um curral público. A Rua Direita é uma esterqueira nojenta.
As outras ruas, povoadas de carneiros, cabras, cabritos, bodes, burros, vacas, porcos, cães, galinhas
et universa pecora, estão narrando as obras da câmara e o zelo do fiscal.” REZENDE apud LIMA
JÚNIOR, 2002, p. 53.
233
Senão encontra morto o João Bertinho!572
Este texto mostra a mentalidade moderna já se manifestando na cidade do
interior. O sujeito lírico tem uma consciência do tempo marcado pelo instante, pelo
movimento veloz, diferentemente do tempo arrastado, repleto de “horas mortas”, do
soneto “Ela vem ou não vem?”. Quanto à técnica literária, trata-se de uma tentativa
de incorporar a pressa do cotidiano moderno à escrita. A conciliação do soneto –
gênero privilegiado pelos escritores e pela crítica brasileira finissecular – com as
mensagens transmitidas pelo telégrafo, demonstra bem a tensão entre tradição e
modernidade que percorre as obras de Alphonsus de Guimaraens.
O poeta também escreveu narrativas que recriavam notícias anedóticas e
crônicas policiais lidas em periódicos internacionais573 ou transmitidas pelo telégrafo
para os jornais brasileiros. Eram histórias situadas em localidades de outros
continentes. Exemplo disso é “O humorismo dos ‘bifes’”, texto de 1910, cuja
narrativa se passa em Londres, num local próximo ao rio Tâmisa.574
Por uma tarde nublada, garoenta e triste, como são todas as
tardes de Londres, John Breech passeava lentamente, em
companhia de seu amigo John Farting, a contemplarem os dois as
águas quietas do Tâmisa.575
Sem dinheiro e sem nada para fazer, os dois personagens marginalizados
decidem ler os anúncios publicitários encontrados ali por perto:
572
GUIMARAENS, 1960, p. 584.
Segundo Arline Anglade Aurand (1970, p. 345), essas anedotas eram geralmente encontradas em
jornais belgas, holandeses, ingleses e franceses.
574
Na prosa de Alphonsus de Guimaraens, existem narrativas situadas em Bruxelas, Cintra, Tóquio, na
Alemanha, Russia, Holanda e China, entre outros lugares. Uma indicação da origem dessas histórias
vem inserida numa dessas narrativas: “Em Tóquio, dizem os telegramas, indescritível foi o entusiasmo
do povo amarelo quando à capital do Japão chegaram os troféus [...]”. GUIMARAENS, 1960, p. 603.
Várias dessas narrativas tinham ingleses como personagens e algumas eram situadas em Londres.
575
GUIMARAENS, 1960, p. 628. Deve-se notar que logo no primeiro parágrafo do texto fica evidente a
atitude zombeteira do cronista. Ela aparece nos nomes dos personagens. O termo inglês “breech”
significa “bunda”, “nádegas” e “to fart” quer dizer “peidar”. Além disso, a palavra “fart” também pode ser
usada para designar uma pessoa estúpida e desprezível.
573
234
Leram tudo o que se passou diante dos olhos, desde as
melhores pílulas para o fígado até o mais saboroso e estomacal oldtom. As novidades teatrais e literárias tomaram-lhes um bom quarto
de hora de estática contemplação; decoraram nomes e nomes de
poetas, prosadores, maestros e atores.
E sérios, impávidos, caminharam lentamente, indo de um lado
para outro, sem tréguas, sem descanso.576
O que importa ressaltar aqui é a imagem da metrópole europeia associada a
uma paisagem de cartazes, isto é, paisagem composta por objetos da era da
reprodutibilidade técnica, da cultura de massa – mundo-imagem, mundofantasmagoria no qual a literatura encontra-se incluída enquanto mercadoria à venda
–, e a presença de personagens semelhantes aos personagens-charge transitando
lentamente nesse meio.
Já Severiano de Rezende preferia abordar o tema das “cidades de luz”,
metrópoles cosmopolitas, sofisticadas e irradiadoras de “civilização” como Paris.577
No texto crítico “O pintor Antonio Parreiras”, publicado na revista Atlântida, José
Severiano de Rezende fez uma análise da metrópole francesa do ponto de vista de
seu significado cultural. Nesse processo, Dante (latino) e Wagner (germânico) se
transformavam em personagens capazes de colocar em relevo o papel central de
Paris. O primeiro associado ao espaço urbano da antiga Paris e o segundo à Paris
haussmanniana. Além disso, ao mencionar Lutécia ao invés de Paris no caso de
Dante, Severiano aludia ao papel de centro da latinidade que a capital da França
teria herdado de Roma.
Paris é o supremo afinador de harmonias, e o contato de Paris
produz no eleito a consciência e a afirmação da individualidade. Ao
passo que no seio da Lutecia, em que vivera e meditara o Dante,578 o
medíocre derrete e funde numa destruição lenta, mas categórica,
576
GUIMARAENS, 1960, p. 628.
Outra cidade pela qual Severiano de Rezende tinha admiração era Vichy.
578
Segundo alguns autores, entre eles Boccaccio, Dante teria estado em Paris para estudar filosofia e
teologia.
577
235
nesse esfarelamento contínuo e fatal que nenhum esforço consegue
suster, desagregamento gelatinal que é a diluição imprescritível do
nada nirvanático, os valores reais ao contrário tonalizam-se e
corporificam-se na sua vitalidade total: vires acquirit eundo. Por isso
é que o gênio, seja de que raça for e surja em que abstrusos
recessos surgir, tem necessidade ingênita de pisar este asfalto, que
lhe firma os pés, de beber estes ares, que lhe desanuviam a fronte. É
o que se pode chamar o encantamento de Paris, e o Tannhaüser
vaiado não impedirá ao gigante de Bayreuth a compreensão de que
aqui somente e não alhures era preciso ter vindo para que nunca
mais deixasse de crer no mundo novo e maravilhoso que ele trazia
dentro de si. “Paris, la seule ville qui a compris mon génie!” 579
De acordo com Severiano, Paris teria um esplendor e uma força inexplicáveis.
A metrópole, por ser o centro cultural do Ocidente, atrairia artistas originários de
muitos lugares, mas somente os mais talentosos sobreviveriam ao seu processo de
seleção. Além disso, ele também mencionou a dificuldade da “parisianização” de
muitos artistas.
Quem desvendará um dia esse mistério da cidade única, que aclara
o que deve ser aclarado e mergulha na treva irremediável o que à
treva convém ser devolvido? Paris, que tem visto enxurradas, os
ouropéis e os fogos fátuos, é a fonte d’água viva, é o ouro puro no
crisol, é o foco de luz e calor. Somente Paris não se revela tal qual é
se não àqueles que vivem, que sentem com profundeza, e para o
indiferente e o superficial, permanecerá superficial e indiferente. O
vivedor e o festardo podiam ter-se divertido em Montmartre, mas até
quando teriam ignorado os eflúvios de que o tremendo mons
martyrum é o depositário? Muitos passaram por Paris e julgaram
conhecê-lo. Paris ignorou-os. Muitos pensaram possuir de um modo
qualquer Paris. Paris, entretanto, não os possuiu de modo algum.
Paris não se vende nem se compra, não se violenta nem se
conquista, não se anula nem se intimida. Paris é um dom, dá-se e
entrega-se àqueles que o merecem. A parisianização é um fenômeno
acima das psicologias, e muito sequanense há que nunca se
parisianizou, malgrado o registro civil.580
Para Severiano, a moderna metrópole francesa era o cenário do drama dos
artistas que para lá acorriam em busca de aperfeiçoamento e de reconhecimento.
579
580
REZENDE, [1918?], p. 363.
REZENDE, [1918?], p. 363-364.
236
Os artistas medíocres, após experimentarem sofrimentos na tentativa de vencer em
Paris, eram “eliminados” como réprobos lançados no báratro/inferno.
Um destino imperscrutável, que eu constato e que eu quereria
explicar, faz de Paris uma babilônia quermesse, em que se
entrechocam e resfolegam massas heterogêneas, e ao mesmo
tempo uma cidadela santa, em que só recebem o ósculo que
predestina os que são portadores do que quer que seja de belo, de
nobre, de grande, isto é, de eterno. Os outros, Paris vomita-os na
primeira ocasião, elimina-os mais tarde ou mais cedo por uma
incoercível força imutável, a mesma talvez que precipita os réprobos
sem surto ascensional no báratro primeiro que os absorve e devora
irrevogável e definitivamente. Se me é lícito espanar uma velha
metáfora, lamentarei as fúteis mariposas que vêm consumir as
antenas frágeis em torno desse braseiro que aquece e ilumina o
mundo.581
A superioridade de Paris, como mostramos anteriormente, era percebida em
confronto com Nova York. Para José Severiano de Rezende, Nova York era a
realização da cidade tentacular com seus arranha-céus “babélicos” e suas
muldidões em constante movimento e sem repouso. Paris teria, para Severiano de
Rezende, um lado “babilônico”,582 mas também um lado “santo”.583 Assim, Severiano
percebia a capital francesa a partir de um dualismo que percorre a tradição judaicocristã: Jerusalém, a “cidade santa”, versus Babilônia, a “cidade do pecado”. No
mesmo processo, auxiliado pela etimologia de “Montmartre”, o simbolista mineiro
descobria, soterrado no bairro dos artistas, lugar de vida festiva e cosmopolita, o
antigo espaço de suplícios e o velho cemitério. Assim como Jerusalém e Roma,
outra “cidade santa” para os cristãos, Paris também havia tido um local de martírio.
A memória do trauma, da perda, do sofrimento, quebrando o aspecto superficial da
paisagem (e, por isso, o afastamento do descritivo), recuperava a dimensão da
profundidade desse espaço urbano, conferindo-lhe um caráter sublime. Apenas
desse modo é que se poderia atingir a verdadeira cidade de Paris (“Paris não se
revela tal qual é se não àqueles que vivem, que sentem em profundeza”). A
581
REZENDE, [1918?], p. 364.
Além de indicar “desordem, confusão e tumulto”, “babilônia” pode significar também uma “cidade
grande com ruas emaranhadas”.
583
Sobre os procedimentos de mitificação das cidades, Cf. CABANTOUS, 2004, p. 11.
582
237
recordação do drama cristão (no qual os mártires europeus evocavam a figura
martirizada de Jesus) fazia emergir outra Paris, diferente da cidade moderna da
Belle Époque.
Cidades mortas, cidades tentaculares, cemitérios e jardins são alguns dos
cenários que aparecem na obra dos simbolistas mineiros. Conscientes da fragilidade
da condição humana e dos sofrimentos decorrentes da vida moderna, esses
escritores mostravam os seus questionamentos existenciais sob a forma de
situações caracterizadas por uma extrema teatralidade, com personagens
exagerando os seus sentimentos até atingir o patético. Isto é o que veremos a
seguir.
ENTRE REAL E IDEAL, CORPO E ESPÍRITO
A presença do teatro e da teatralidade no Simbolismo mineiro ocorre em um
duplo movimento. No primeiro, há a absorção do drama pela poesia. No segundo, o
mundo/a vida se torna drama.
A absorção do drama pela poesia pode ser notada na experiência de
Alphonsus como dramaturgo, um aspecto de sua literatura ainda não estudado.
Apesar de Mendigos ser composto, na sua maior parte, por crônicas, nele também
estão contos, poemas em prosa e um trecho do drama “Voz do céu”, que ficou
inacabado. O projeto do drama foi mencionado em uma carta de Alphonsus a Mário
de Alencar.
Mando-te um trecho da Voz do Céu, drama que ideei há muito, mas
que tem ficado no rol das coisas possíveis, ou, antes, impossíveis.
Falta-me paciência, além de sossego e tranquilidade de espírito. Não
sei se poderei levar avante o tal drama. É a luta entre o amor
humano e o amor místico.584
584
GUIMARAENS apud BUENO, 2002, p. 11.
238
Os dramas simbolistas, recusando-se à representação de histórias triviais,
prosaicas, apresentavam uma dimensão abstrata, tendendo ao hermetismo e ao
antinaturalismo. Os personagens desses dramas frequentemente vivenciavam
conflitos metafísicos entre o ideal e o real, o espiritual e o carnal. Algo semelhante
ao que o escritor mineiro planejava desenvolver. De acordo Arline Anglade Aurand,
a peça de Alphonsus dialogava com Axel, de Villiers de l’Isle Adam, e Camille et
Perdican, de Musset, mas em um estilo de prosa poética que misturaria Péladan
com um pouco de Maeterlinck.585
Em “Voz do céu”, são mais valorizados o excesso discursivo e a reflexividade
lírica do que a ação, como geralmente ocorria no teatro simbolista. Para Luiz
Francisco Rebello, uma das consequências da recusa à ação como elemento
integrante da fenomenologia dramática era a inexistência de caracteres. Os
personagens do teatro simbolista costumavam ser meros suportes de ideias,
enquanto os diálogos mostravam um afastamento do discurso quotidiano, expressão
das “paixões vulgares”. De acordo com Rebello, as falas se apresentavam ora
“como uma espessa tapeçaria, rutilante de imagens preciosas ou enigmáticas, ora
como um frágil tecido de palavras balbuciadas, revestindo grandes muros de
silêncio”.586
Havia uma busca de efeitos sentimentalistas em “Voz do céu”, aproximando
esta peça dos dramalhões. O personagem Álvaro, vivendo sob o signo de Saturno,
diz frases que evidenciam uma concepção da existência como sofrimento, marcada
pela presença da morte. Em uma de suas falas, afirma que nunca houve “primavera”
em sua vida e, em outra, que a tristeza da morte permaneceu na sua alma, “como
uma sombra que não mais se esvai”.587
Dois temas importantes da poética de Alphonsus encontram-se conjugados
na personagem Celina, de “Voz do céu”: o da busca do ideal/irreal e o da mulher
morta,
585
também
presentes
AURAND, 1970, p. 343.
REBELLO, 1979, p.12.
587
GUIMARAENS, 1960, p. 432.
586
no
conhecido
poema
“Ismália”.
Celina
é
um
239
espectro/fantasma da amada de Álvaro e, assim como Ismália, debateu-se entre o
mundo da matéria e o mundo do espírito, escolhendo o segundo.
Celina – Extasiada pelo luar, pendi-me para o lago naquela noite
inicial que tanta mágoa te causa, porque separou os nossos destinos
humanos na terra; ao ver-me refletida na tranquilidade da água, onde
a lua também se mirava, foi como se visse a minha alma que do meu
corpo se arrancara. Sorri-lhe; uma nuvem negra, velando a lua, a fez
desaparecer. Deixa que eu veja a minha alma dentro dos teus olhos,
como eu a vi no lago, não sejas, por Deus, a nuvem negra que
afugentou a minha alma!588
O espelhamento de Celina no lago é semelhante ao de Narciso. No final, há
morte e transmutação. Narciso é transformado em flor e Celina, como seu nome
sugere, se torna uma figura celeste. Narciso é uma das figuras mitológicas mais
importantes do imaginário simbolista. Nele se juntam o elemento aquático que
compõe o cenário de muitas paisagens simbolistas e o motivo do espelho. Ambos
remetem a uma literatura introspectiva, tratando de questões ligadas à consciência
de si, à identidade e às manifestações do inconsciente.
Bem diferente dessa imagem feminina é o que podemos observar em “Devil
fish”, de Ciro Arno, publicado em Lótus.589 O texto tem a estrutura de uma fábula e
principia com uma citação em francês: “Les morts, les pauvres morts, / ont de
grandes douleurs.”590 Esta epígrafe não vem acompanhada do nome de seu autor,
mas são versos do poema “C”, “La servante au grand coeur dont vous étiez jalouse”
(“À ama bondosa de quem tinhas tanto ciúme”), que faz parte dos “Tableaux
parisiens” (“Quadros parisienses”), de Charles Baudelaire. Logo após esta citação,
há uma cena em que aparece um pescador cortando as amarras de seu barco e
saindo para pescar. A esta cena se segue um comentário do narrador sobre
Baudelaire (“Quão profunda é a expressão do impecável poeta satânico!”) e outra
588
GUIMARAENS, 1960, p. 430.
Ver Anexo C.
590
“Os mortos, pobres mortos, sofrem grandes dores”. BAUDELAIRE, 1985, p. 363, tradução de Ivan
Junqueira.
589
240
citação de Baudelaire extraída do poema “L’homme et la mer” (“O homem e o mar”),
que faz parte de “Spleen et idéal” (“Spleen e ideal”):
Homem liberto, hás de estar sempre aos pés do mar!
O mar é o teu espelho; a tua alma aprecias
No infinito ir e vir de suas ondas frias,
E nem teu ser é menos acre ao se abismar.591
A paisagem foi, então, descrita por meio de um vocabulário originário do
campo religioso.
No imaculado azul do céu nenhuma nuvem e lá ao longe, na
interseção do imenso espelho azulado com a abóbada infinita, a
hóstia sacratíssima do sol imerge serenamente no Oceano, num
resplendor de setas douradas, numa apoteose eucarística de luz, de
calor, de vida...592
O pescador, que em meio ao mar cantava tristemente, foi inesperadamente
capturado por um monstro marinho descrito assim pelo narrador: “É o terrível Devil
fish, o peixe diabo, o demônio marítimo que parece evocado do horripilante inferno
de Dante. Mais horrível, mais horroroso, mais hediondo que o espectro da própria
morte”.593
Na cena seguinte, o narrador apresentou a destruição do pescador:
E empolgando o mísero pescador nos formidáveis tentáculos, vai a
pouco e pouco sugando-o pelas quatrocentas ventosas, triturandolhe os ossos, esmoendo-lhe os músculos, penetrando-se (sic), num
591
BAUDELAIRE, 1985, p. 139, tradução de Ivan Junqueira. No original: “Homme libre, toujours tu
chériras la mer!/ La mer est ton miroir; tu contemples ton âme/ Dans le déroulement infini de sa lame,/
Et ton esprit n’est pas un gouffre moins amer.”
592
ARNO, Ciro. Devil fish. Lótus, Belo Horizonte, 8 jul. 1900, p. 2.
593
ARNO, Ciro. Devil fish. Lótus, Belo Horizonte, 8 jul. 1900, p. 2.
241
amplexo satânico, confundindo-se a tal ponto com a vítima que “a
hidra se incorpora no homem e o homem se amalgama na hidra”!! 594
Na conclusão, o narrador comparou a morte do pescador ao fim de seu amor:
“Foi assim que morreu o meu inditoso coração, despedaçado nos tentáculos
crudelíssimos de um monstro insaciável”.595
Em “Devil fish”, percebemos uma oposição entre liberdade (“homme libre”) e
servidão (“la servante au grand coeur”). A própria imagem do monstro reforça esta
ideia, já que os tentáculos podem representar algo do qual não podemos nos
libertar, uma dominação tirânica. Além disso, o espelho, elemento importante na
poética de Baudelaire, traz para a cena uma identificação entre homem e mar. No
poema, há um jogo no nível fônico entre mar (“mer”) e mãe (“mère”) que merece ser
considerado ao lermos a frase: “La mer est ton miroir” (“O mar é o teu espelho”).596
Apesar de não citado em “Devil fish”, o verso “Tu te plais à plonger au sein de ton
image” (“Apraz-te mergulhar bem fundo em tua imagem”), do poema “O homem e o
mar”,597 está subentendido. O que nos remete à questão narcísica associada ao
feminino.
Passemos a outro trecho da narrativa no qual se encontra a citação “a hidra
se incorpora no homem e o homem se amalgama na hidra”. Trata-se de uma frase
do livro Os trabalhadores do mar, de Victor Hugo, extraída da parte intitulada “O
monstro”. Neste trecho, a criatura é comparada a seres míticos como a Hidra, a
Medusa e a Esfinge. É deste texto que provém a idéia do enredo construído por Ciro
Arno.
594
ARNO, Ciro. Devil fish. Lótus, Belo Horizonte, 8 jul. 1900, p. 2.
ARNO, Ciro. Devil fish. Lotus, Belo Horizonte, 8 jul. 1900, p. 2.
596
A figura materna aparece associada à “ama bondosa” na segunda estrofe do poema “La servante
au grand coeur dont vous étiez jalouse”: “et venant du fond de son lit éternel/ Couver l’enfant grandi
de son oeil maternel” (“vinda do fundo de seu leito eterno/ envolver-me na lã de seu olhar materno”).
BAUDELAIRE, 1985, p. 363, tradução de Ivan Junqueira. Neste último verso, o termo “couver”, de um
lado, potencializa o sentido de um cuidado protetor materno, já que em francês “couver quelqu’un”
significa “superproteger”. Outros significados podem ser “incubar”, “chocar” ou “alimentar” (cuidados
tradicionalmente associados à figura materna). Por outro lado, a expressão “Couver des yeux" pode
significar tanto "regarder avec tendresse” (“olhar com ternura”) quanto “regarder avec convoitise"
(“devorar com os olhos”, “comer com os olhos”, “olhar com cobiça”, “olhar com concupiscência”).
597
BAUDELAIRE, 1985, p. 139.
595
242
Ser compósito, a Hidra é uma representação tradicional dos vícios múltiplos,
ou daquilo que corrompe e se corrompe. Seu nome remete ao elemento água, o que
deve ser relacionado aos significantes “mer” e “mère”. Ou seja, o próprio monstro é
reflexo no espelho do mar/mãe. Por sua vez, a Medusa é uma das três Górgonas e
também tem origem marinha. Seus pais, Fórcis e Ceto, são divindades do mar. Na
narrativa mítica, Perseu, não podendo olhar diretamente para ela, pois, se o fizesse,
seria transformado em pedra, usou seu escudo de bronze para fazer refletir a
cabeça da Medusa e assim poder cortá-la. Outra vez o espelhamento e a questão
do olhar. A Medusa é uma condensação de beleza e horror. Como a Hidra, sua
cabeça é múltipla, pois são serpentes os seus cabelos. Já a Esfinge, mulher-leão
alada, é uma figura mitológica que desempenha uma função semelhante à de outros
mitos raptores e sedutores como as Harpias e as Sereias. Do mesmo modo que as
Sereias, a Esfinge canta para seduzir os homens.598 Assim, esses seres
demoníacos, ávidos de sangue e prazer erótico, são considerados como
representações da feminilidade pervertida.
O título do texto de Ciro Arno também nos remete ao mundo aquático e
mítico. Em inglês, devil fish pode ser tanto uma arraia quanto um cefalópode (lula ou
polvo). O nome devil fish (peixe-diabo) nos faz lembrar novamente da figura híbrida
da Sereia: metade mulher, metade peixe. Curiosamente, o nome polvo não aparece
no texto de Ciro Arno, mas no livro de Victor Hugo há um trecho em que o monstro é
nomeado como “pieuvre” (“polvo”) e como blood-sucker.
Este monstro é aquele que os marinheiros chamam polvo, que
a ciência chama cefalópode, e a que a legenda chama kraken. Os
marinheiros ingleses chamam-no devil-fish, o peixe diabo. Chamamno também blood-sucker, chupador de sangue. Nas ilhas da Mancha
chamam-na pieuvre.599
598
Analisando o mito da Sereia, Sila Consoli afirmou que a mulher “[...] acha-se [...] do lado desses
seres duplos e anfíbios, que são as focas e os polvos, como se ela fosse uma espécie de harpia ou
de sereia-pássaro, de esfinge, de eríneas, equidnas e nereidas. Todos esses seres são, ao mesmo
tempo, criaturas ambíguas: uma parte de sua natureza os aproxima da terra e do mundo humano;
outra parte os enraíza num universo de forças aéreas, aquáticas ou subterrâneas, universo misterioso
e perigoso, estranho e hostil ao homem, reino de forças demoníacas, de espíritos e de mortos”.
CONSOLI apud SANT’ANNA, 1985, p.95.
599
HUGO, 1961, p. 250, tradução de Machado de Assis.
243
O trecho da fábula de Ciro Arno que narra a destruição do pescador pelo
monstro é justamente uma recriação do seguinte trecho do livro de Victor Hugo:
A garra não iguala a ventosa. A garra é o animal que entra na carne;
a ventosa é o homem que entra no bicho. Incham-se os músculos,
torcem-se as fibras, rebenta a pele, debaixo de um peso imundo,
jorra o sangue, e mistura-se horrivelmente à linfa do molusco. O
bicho sobrepõe-se ao homem por mil bocas infames; a hidra
incorpora-se ao homem; o homem amalgama-se à hidra. Ficam
sendo um só. Pesa aquele sonho. O tigre pode apenas devorar; o
polvo (horror!) aspira. Puxa o homem a si, atado, enviscado,
impotente, o homem sente-se lentamente esvaziado naquele terrível
saco, que é um monstro.
Além do terrível, que é ser comido vivo, há o inexprimível, que
é ser bebido vivo.600
O pescador da fábula de Ciro Arno que, num primeiro momento, parece
corresponder ao “homem livre/liberto” dos versos de Baudelaire, ao final, é a presa
do monstro. Ao invés de capturar, é capturado e destruído. A fragmentação do corpo
do pescador, anunciada pelo seu canto, é representada metonimicamente pelo
“coração despedaçado”. Num primeiro nível de leitura, a fábula exprime uma
ambivalência em relação ao ser amado. A aspiração de gozar numa fusão com o
outro é, ao mesmo tempo, vivenciada como medo de aniquilação. O ser desejado
torna-se temido como um monstro assassino. O objetivo, então, seria de alertar para
os perigos de um amor destrutivo.
No imaginário finissecular, de acordo com Mireille Dottin-Orsini, a mulher fatal
podia assumir a forma de um polvo ou lula monstruosa, devoradora insaciável,
capaz de sugar todas as energias vitais do homem. Dottin-Orsini afirmou que o
modelo dessa imagem que se desenvolveu no Decadentismo é hugoano, derivado
justamente do capítulo “O monstro”, de Os trabalhadores do mar, que ela chamou de
“poema sobre a sucção vampiresca e o arrepio”.601 Segundo esta estudiosa, o texto
de Hugo representaria o “perigo feminino, ou melhor, as formas do pavor que ele
600
601
HUGO, 1961, p. 252, tradução de Machado de Assis.
DOTTIN-ORSINI, 1996, p. 208.
244
inspira”.602 A aranha e o polvo relacionam-se metaforicamente com o sexo feminino.
No Decadentismo, as mulheres fatais mais repulsivas eram descritas como seres
dotados de traços semelhantes a tentáculos e ventosas.603 Podemos notar uma
ênfase na impotência masculina diante do monstro na fábula de Ciro Arno. O
homem é a “vítima”. Neste ponto, foi conservada uma idéia claramente expressa por
Hugo, para quem a figura monstruosa, “aracnídea pela forma, e camaleão pelo
colorido”, puxa “o homem a si, atado, enviscado, impotente”.604
“Devil fish” exprime uma revolta contra a perda de um ideal. Ao associar o
feminino às imagens da Medusa, da Esfinge, do animalesco, a fábula pretende
desvelar o diabólico que se esconde na mulher. Abaixo da superfície do mar, há um
abismo profundo, lugar de forças incontroláveis e malignas. Sob a aparência da
mulher ideal (a santa e pura mãe) existem mistérios insondáveis e um lado
demoníaco oculto. O real é uma desilusão. Através de um laço amoroso, o feminino
revivido é o de uma mãe fálica e cruel. Simultaneamente promessa total de
satisfação do desejo, coisa indizível e ameaça de dissolução.
O texto de Ciro Arno deve ser relacionado a determinados fatos e processos
históricos como a emergência do feminismo, o trabalho das mulheres fora do lar e a
modificação das relações entre o feminino e o masculino decorrentes do processo
de modernização. Talvez ele seja uma alegorização da crise de identidade
produzida pela emergência das mulheres na esfera pública moderna, sentida como
ameaça ao patriarcado e interpretada como catástrofe histórica ou decadência. No
século XIX e início do século XX, a literatura e as outras artes expressaram
frequentemente reações misóginas. Segundo Jean Pierrot, a misoginia finissecular
produzia imagens idealizadas e negativas da mulher sob um duplo aspecto:
[...] um duplo mito traduz a imagem que se faz da mulher e a atitude
que se adota em relação a ela: ora se insiste sobre a futilidade
fundamental do ser feminino, a vulgaridade de suas preocupações
habituais, seu aspecto puramente sensual e animal, sua profunda
incapacidade de penetrar no universo espiritual e artístico. A mulher
é, nesse caso, o grilhão que impede o artista de escapar da
602
DOTTIN-ORSINI, 1996, p. 209.
DOTTIN-ORSINI, 1996, p. 208.
604
HUGO, 1961, p. 249 e 251, tradução de Machado de Assis.
603
245
trivialidade do universo cotidiano. Ora, ao contrário, se sublinha o
caráter destruidor da paixão, os aspectos perigosos de um amor que
entrega o homem de pés e mãos atados a um ser não somente fútil,
mas fundamentalmente imoral, cruel e perverso: é, então, o mito,
destinado a um enorme desenvolvimento, da Mulher-Fatal.605
Como se sabe, a partir da segunda metade do século XIX, a Europa viveu
uma radical transformação, marcada pelo sentimento de instabilidade. A
desintegração das certezas e dos sistemas elaborados até aquele momento gerou
um impacto sobre a política, a moral e a estética. Comportamentos tradicionais eram
contestados e o mundo moderno só reiterava um sentimento de desordem e caos na
consciência européia. A modernidade, com seus traumas e choques, gerou novas
formas de pensar. No Brasil, havia ressonâncias dessas transformações. Os artistas
e escritores brasileiros não manifestavam em suas obras apenas uma reação ao
processo de modernização interno, mas também agiam considerando os modelos
europeus.
Publicados no terceiro número de Lótus, dois textos sobre a emergência do
feminismo no contexto mineiro deixaram indícios para a interpretação da fábula de
Ciro Arno. Um deles, colocado na primeira página, anunciava o aniversário do jornal
feminista Esperança, de Diamantina, desejando que o periódico suavizasse a sua
maneira de abordar os conteúdos.
A 11 do corrente, completou o seu primeiro aniversário este
interessante periódico que vê a luz em Diamantina, sob a direção de
esperançosas senhoritas.
PIERROT, 1977, p. 160, tradução nossa. No original: “[...] un double mythe traduit l’image que l’on
se fait de la femme et l’attitude que l’on adopte à son égard : tantôt on insiste sur la futilité
fondamentale de l’être feminin, la vulgarité de ses préoccupations habituelles, son aspect purement
sensuel e animal, son incapacité profonde à accéder à l’univers spirituel et artistique. La Femme est
alors le boulet qui empêche l’artiste de s’évader de la trivialité de l’univers quotidien. Tantôt au
contraire on met l’accent sur le caractère destructeur de la passion, les aspects dangereux d’un
amour qui livre l’homme pieds et poings liés à un être non seulement futile, mais fondamentalement
immoral, cruel et pervers : c’est alors le mythe, voué à un si vaste développement, de la Femme
Fatale."
605
246
À Esperança desejamos uma longa vida e menor ardor na
discussão da importantíssima questão social do feminismo, para
onde se abalançou a sua colega a Voz Feminina.606
No outro texto, em meio à lista dos jornais mineiros recebidos pela redação de
Lotus, surgiu uma crítica ao conteúdo veiculado no jornal Voz Feminina e às
aspirações de suas editoras que deveriam se contentar com os tradicionais papéis
sociais designados às mulheres.
Visitou-nos também a Voz Feminina, órgão dos direitos da
mulher, literário e noticioso, que se publica quinzenalmente em
Diamantina sob a redação das gentis senhoritas Clélia Correia
Rabello, Zélia Correia Rabello e Nícia Correia Rabello. Longas e
inúmeras prosperidades desejamos às inteligentes propugnadoras da
emancipação da mulher, embora julguemos que o círculo de
aspirações da donzela cristã deve limitar-se aos misteres
honrosíssimos do lar doméstico, como esposa, como mãe e como
filha.607
Esperança e Voz Feminina não foram os primeiros jornais feministas
mineiros. O periodismo feminista teve início em 1873, na cidade de Campanha, com
O Sexo Feminino. Fundado por Francisca Senhorinha da Motta Diniz, O Sexo
Feminino também foi o pioneiro no Brasil na defesa da emancipação da mulher.
Redigido pela fundadora e por suas filhas, tinha a tiragem de 800 exemplares, sendo
vendido por assinaturas em Minas Gerais, São Paulo e Rio de Janeiro.608 O
periódico trazia para os seus leitores a discussão sobre a educação das mulheres e
o acesso às profissões prestigiosas e aos cargos públicos.609 Publicava ainda
conteúdos para o divertimento de seus/suas leitores/leitoras como jogos, folhetins,
artigos e notícias variados, mas não dava destaque à moda. Quando tal assunto
aparecia nas páginas de O Sexo Feminino, era associado a uma crítica à grande
valorização social da aparência da mulher ao invés de sua inteligência.610 Afastava606
ESPERANÇA. Lotus, Belo Horizonte, 15 maio 1900, p. 1.
IMPRENSA. Lotus, Belo Horizonte, 15 maio 1900, p. 4.
608
NASCIMENTO, 2006, p. 55.
609
NASCIMENTO, 2006, p. 56.
610
NASCIMENTO, 2006, p. 56-57.
607
247
se, assim, da maioria da imprensa da época que considerava a beleza e a moda
como os únicos interesses femininos e tratava a mulher de um modo infantilizado.611
Os textos deste periódico diziam que, ao se interessar apenas por assuntos frívolos,
a mulher se transformava em alvo dos que a consideravam inferior.612
Em 1899, Maria Mercedes Corrêa de Oliveira Mourão fundou e redigiu,
juntamente com Mariana Higina, Maria Josefina de Medeiros, Clélia Rabello, Heloisa
e Djanira Passos, o jornal Esperança. E, no ano seguinte, surgiu, também em
Diamantina, o jornal Voz Feminina.
Clélia Correia Rabello, Zélia Correia Rabello e Nícia Correia Rabello, as
responsáveis pelo jornal Voz Feminina, eram da elite diamantinense. Além de
redigir, também faziam a diagramação e a impressão do jornal quinzenal de apenas
quatro páginas. Sua venda era feita por assinaturas e seus assunto eram variados:
política internacional, questões brasileiras, literatura, receitas e artigos de cunho
feminista. As autoras desses artigos questionavam a ideologia dominante da
inferioridade feminina e defendiam o direito das mulheres à educação e ao voto. Os
textos argumentavam que, para haver uma democracia de fato no Brasil, as
mulheres também deveriam ter o direito ao voto.613 Esses artigos revelavam o
caráter autoritário e excludente da República que se implantava naquela época.
Para o jornal Voz Feminina, a mulher emancipada não renegava os deveres
domésticos, devendo combinar os papéis de esposa e mãe com os de trabalhadora
e participante da vida política.614 Apesar de não ousar se contrapor radicalmente à
imagem da mulher como “rainha do lar”, esses textos questionavam o lugar
destinado à mulher na sociedade patriarcal.
Vejamos como alguns dos simbolistas mineiros se posicionavam em relação
ao feminismo. O parágrafo inicial da crônica “A primeira mulher”, de Alphonsus de
Guimaraens, não deixa dúvidas de que as idéias feministas estavam no horizonte
das reflexões dos simbolistas mineiros.
611
NASCIMENTO, 2006, p. 57.
NASCIMENTO, 2006, p. 58-59.
613
NASCIMENTO, 2006, p. 127.
614
NASCIMENTO, 2006, p. 127-128.
612
248
Ao ler as graves questões sociais que perturbam o cérebro dos (sic)
feministas e as encantadoras (algumas) cabeças femininas, vem-me
o desejo, talvez fútil, mas decerto digno de atenção, de recapitular e
glosar em crônica inofensiva as questões empíricas que, a respeito
da origem da primeira mulher, tanto ocuparam e preocuparam os
nossos simples e bondosos ancestres.615
Ao invés de “inofensiva”, trata-se de uma crônica em que Alphonsus atacou o
feminismo, empregando uma fina ironia e argumentos retirados das Escrituras.
A Escritura não diz que a mulher fosse criada por Deus: ele não
a criou: formou-a.
Tal asserção não é, decerto, muito lisonjeira para as mulheres
feministas, que, no seu orgulho de entes independentes, não
poderão olhar com bons olhos essa dependência ab initio... 616
José Severiano de Rezende também se pronunciou sobre o movimento
feminista em uma crônica publicada no jornal carioca A Notícia no dia 26 de outubro
de 1922. O tema da crônica era o voto feminino, contra o qual Severiano se
manifestou. Para o escritor, a mulher brasileira já tinha “todos os direitos” e não
estava “sujeita a nenhuma escravidão”.617
No princípio da crônica, a feminista era mostrada como uma senhora inglesa
“corpulenta e algo matronal” que corria “esbaforida” para chegar ao posto eleitoral
antes do fechamento das urnas. O “contristador espetáculo” terminava com a morte
da “cidadã votante” na escadaria do local de votação.618
615
GUIMARAENS, 1960, p. 413.
GUIMARAENS, 1960, p. 414.
617
REZENDE, José Severiano de. O Voto Feminino. A Notícia, Rio de Janeiro, 26 out. 1922. Boletim
do Dia: Para matar saudades..., p.2.
618
REZENDE, José Severiano de. O Voto Feminino. A Notícia, Rio de Janeiro, 26 out. 1922. Boletim
do Dia: Para matar saudades..., p.2.
616
249
[...] não tive pena daquela desditosa suffragette e cheguei a achá-la
grotesca. Correr, botando a alma pela boca (se a expressão me é
lícita) para ir votar, já era ridículo. Correr e cair, ridiculíssimo. Morrer,
grotesco.619
Para o cronista, a mulher não deveria entrar no jogo sujo da política e nem na
farsa ou “ficção” democrática. A organização das mulheres para lutar por seus
direitos não era bem vista.
A própria mulher deseja que a deixem tranqüila. Cada qual quer
seguir a sua vocação em paz. Atriz, poetisa, romancista, jornalista,
escultora, pintora, costureira, funcionária – ela pode ser e tem sido
tudo isso, sem arregimentação.620
À feminista (definida como “avançada incoerente” e “anjo do bizarro”),
Severiano contrapôs a mulher sublime (“a flor, o perfume, o anjo do lar”). Tratava-se
do modelo feminino que estava sendo elaborado pelo catolicismo daquela época,
associado ao culto da Virgem Maria. Para José Severiano de Rezende, defensor da
doutrina católica tradicionalista, o mundo seria redimido por intermédio da mãe de
Jesus que teria a missão de consertar o erro de Eva. Esta ideia aparece no texto “A
natividade de Maria” que faz parte do livro O meu flos sanctorum.
Pela mulher, o mundo baqueara; pela mulher, ele havia de se
reerguer. Essa cabeça altanada e rábida a dardejar trilingue a
peçonha do Pecado nas gerações deveria ser acaçapada pelo
delicado e pequenino pé de uma excepcional mulher.621
619
REZENDE, José Severiano de. O Voto Feminino. A Notícia, Rio de Janeiro, 26 out. 1922. Boletim
do Dia: Para matar saudades..., p.2.
620
REZENDE, José Severiano de. O Voto Feminino. A Notícia, Rio de Janeiro, 26 out. 1922. Boletim
do Dia: Para matar saudades..., p.2.
621
REZENDE, 1970, p. 155.
250
Já no poema “Anátema”, a Virgem Maria tem o papel de salvar as
descendentes de Eva por meio da purificação violenta do corpo feminino e do
controle e sua sexualidade.
Eleita e pura,
Santa e bendita,
Olhai lá da altura
A raça precita:
Ao femíneo rebanho
Jorrai graças de antanho:
Os passos desviai da treva
Às miseras Filhas de Eva:
Dai-lhes o pranto para os olhos,
Rasgai-lhes do âmago os refolhos,
Tosqueai as tranças negras ou fulvas,
Sanai os ubres, saneai as vulvas.
E que enfim a Mulher,
Esparso mal-me-quer,
Seja simples, serena e compassiva e bela,
Sob a cerúlea umbela! 622
Maria simbolizava a mulher ideal e perfeita para o escritor mineiro:
Ela seria a Mulher por excelência e, em torno ao seu berço, toda uma
alvorada alvoroçada e alvissareira ia enfim brilhar, claríssima. Essa
criatura seria a obra-prima da criação: a mulher em tudo mais do que
nenhuma outra perfeita [...] 623
Assim como José Severiano de Rezende, a imprensa mineira do final do
século XIX e primeiros anos do século XX também depreciava as feministas. Os
jornalistas e editores dos periódicos entendiam que as ideias feministas eram causa
da desvirtuação dos costumes e da decadência da sociedade.624 Para combaterem
essa nova mulher, os jornalistas valorizavam e divulgavam outro modelo feminino. É
o que também podemos ver no jornal A Violeta que projetava a imagem de uma
622
REZENDE, 1971, p. 105.
REZENDE, 1970, p. 156.
624
NASCIMENTO, 2006, p. 126.
623
251
mulher fútil e interessada somente em assuntos que supostamente não ameaçariam
o domínio masculino como moda e beleza. No texto dedicado à moda, publicado em
A Violeta, a mulher de elite era representada como alguém que, para poder exibir-se
e ser admirada nos eventos sociais, deveria dedicar-se principalmente aos cuidados
com a aparência. A função desse tipo de textos era a definição do lugar social das
mulheres. A mulher ideal burguesa deveria restringir-se ao papel de personagemfigurino no espaço público.
No terceiro número de Lótus, apareceram comentários indiretos ao empenho
das feministas na transformação da realidade social. Trata-se de “Casa dos mortos”,
outra fábula de Ciro Arno. A última frase desse texto é a inscrição que aparece no
portal do inferno de Dante: “Lasciate ogne speranza, voi ch’entrate” (“Deixai toda
esperança, ó vós que entrais”).625 Não resta dúvida de que esta advertência está
vinculada ao texto que vem logo abaixo na mesma coluna, chamado “Esperança”,
justamente a notícia do aniversário do jornal feminista de Diamantina. Já em
“Páginas de um triste”, outro texto publicado no mesmo número de Lótus, o tema é o
do sujeito desiludido e vencido pelo real.
E quando os triunfos sonhados se convertem em desilusões e
derrotas, quando os vôos icários se repetem e o suplício lendário de
Sísifo se apresenta em sua realidade fatigante, há um aniquilamento
fatal de espírito e de corpo, uma desesperança completa de vitórias
que é o gérmen perigoso da abulia dos vencidos. E a alma
miseranda segue na peregrinação dolente pela terra – beduíno
perdido nos desertos, calcando a esmo os areais candentes, sob a
maldição tremenda da canícula.626
Há uma flagrante oposição entre a desesperança desses textos, baseados
numa concepção pessimista da existência, e as propostas das feministas que
acreditavam na modificação do papel social das mulheres e no aperfeiçoamento do
mundo.
625
626
ALIGHIERI, 1998, p.37, tradução de Italo Eugenio Mauro.
E.[pseudônimo]. Páginas de um triste. Lotus, Belo Horizonte, 15 maio 1900, p. 3.
252
Para os simbolistas em questão, enquanto as feministas eram uma ameaça
no plano político, as mulheres prostituídas representavam um perigo de
desvirtuamento dos comportamentos.627 A fábula “Devil fish” também estaria
relacionada a esse último perigo pois a mulher-polvo era uma representação da
prostituta no Decadentismo francês. Como lembra Sílvia Alexim Nunes, para manter
a esposa como mãe-santa, os homens precisavam da mulher pecadora na rua, um
mal necessário, mas a prostituição devia ser controlada para não afetar as famílias
estabelecidas.628
Contra o feminismo, os intelectuais mineiros ligados ao Simbolismo reagiam
fabricando uma imagem de mulher ideal.629 Em “Crônica azul”, publicada no jornal
Lotus, as festividades do quarto centenário da chegada dos portugueses à América
se tornaram um motivo para a filantropia de certas senhoritas da elite da cidade.
Eram moças bem diferentes das mulheres fatais ou das feministas:
Deliciosas as recordações que nos ficaram desses quatro dias
festivos, em que houve música, fogos, flores... e especialmente flores
vivas, as gárrulas senhoritas formosas, a nos oferecerem,
sorridentes, pequenos objetos, delicados nadas, em benefício da
Santa Casa, que elas, piedosas e meigas, querem socorrer...630
627
Nos primeiros anos de vida da nova capital mineira, as prostitutas que andavam pelas ruas da
cidade eram vistas como ameaçadoras da ordem social. É o que demonstra um texto publicado no
jornal Bello Horizonte, o primeiro da cidade, abordando o grande “número de mulheres vadias que
aos grupos vagam pelas ruas, pelos negócios e se reúnem em sinagogas em completa devassidão.”
O jornal também pregava uma ação enérgica da polícia e a instituição de normas de conduta para
essas mulheres. SANTOS, 1997, p. 164.
628
“No espaço doméstico deve reinar uma espécie de assepsia sexual, o que coloca a prostituição
como necessária ao escoamento do excesso espermático de cada homem em particular e do corpo
social de um modo geral. Por outro lado, o corpo da prostituta é interpretado como agente de
doenças, como um corpo que cheira mal, ligado à idéia de morte e de esterilidade. Essa
representação do corpo da prostituta torna-a um objeto privilegiado de uma estratégia de higiene
pública que vai procurar isolar, circunscrever, ocultar e estabelecer uma intensa e contínua vigilância
sanitária sobre essas mulheres. A separação entre a mulher maternal assexuada e a prostituta
aparece aqui acentuando uma imagem do corpo sexuado feminino como impuro, um “resto” a ser
desprezado. A prostituta seria a representação por excelência da mulher que perdeu sua aura de
beleza, de uma desfiguração do corpo feminino idealizado como belo e puro. O corpo da prostituta
seria o negativo ameaçador do corpo da mãe. Constrói-se então um modelo de visão do homem em
relação ao sexo feminino onde fica difícil articular a mulher como objeto de amor e erotismo
simultaneamente.” NUNES, 2000, p. 83-34.
629
Cumpre salientar que o antifeminismo era um posicionamento comum entre os intelectuais da
Belle Époque. Lima Barreto, por exemplo, embora assumisse o ponto de vista das camadas mais
humildes da população e defendesse a mulher operária, também antipatizava com as feministas. Cf.
CURY, 1981.
630
E. C. Crônica azul. Lotus, Belo Horizonte, 15 maio 1900, p. 1.
253
Assim, às “flores do mal” eram contrapostas as “flores do bem”. A piedade e a
meiguice exaltadas em contraste com a “devassidão”, a concorrência no mercado de
trabalho e a disputa pelo poder. As figuras virtuosas trilhando um caminho oposto ao
das que percorriam a via da “decadência”.
Apesar de cultivarem as “flores ideais”, os simbolistas mineiros sentiam uma
enorme fascinação pelas mulheres satânicas, fatais. No caso de Severiano de
Rezende, a primeira parte do livro Mistérios, chamada “Poema do instinto”, é
ocupada por versos girando em torno desse tipo de figura feminina, como em
“Impéria”, “Satânia” e “Juventa”. O diálogo com Baudelaire é evidente desde a
epígrafe extraída do soneto “L’ennemi” (“O inimigo”): “Ma jeunesse ne fut qu’un
ténébreux orage” (“A juventude não foi mais que um temporal”).631
Em “Impéria”, o poeta nos apresenta uma mulher ao mesmo tempo bela e
monstruosa, um ser que condensa em si as figuras do polvo, da vampira e da
bacante.
Esta, que as outras vence em formosura
E é soberba e é tirana e é assassina,
Portentosa mulher, mas tão impura,
Que em cada beijo um tóxico propina
Esta, que as almas juvenis clausura
Numa férvida alcova peregrina,
Onde uma ardente carne ressupina
Outra carne frenética procura,
Esta é a que as minhas noites apavora,
Tentacular vampírica bacante,
Que lentamente as veias me devora...
Ai de ti, se a seguires um instante!
Ela abandona-te, ao raiar da aurora,
Pálido, exausto, trêmulo, ofegante...632
631
632
BAUDELAIRE, 1985, p. 130-131, tradução Ivan Junqueira.
REZENDE, 1971, p. 55.
254
Aproximam-se bastante dessas figurações do feminino elaboradas por
Severiano de Rezende as presentes nos poemas de Salmos da noite, de Alphonsus
de Guimarães, classificados pelo próprio autor como de sua fase “satânica”. Os
seguintes versos representam bem o tema da mulher demoníaca em Alphonsus:
Proserpina do mal, dá-me o veneno, dá-me
A delícia que escorre em teu seio de neve...
Para que ainda eu te ame,
Abre o rio do beijo ensanguentado e leve,
O Letes que me faz esquecer que és infame.
Eu sonho que o teu leito é a barca de Caronte,
Que desce pelo mar brumoso das orgias;
E fronte unida à fronte,
E fronde unida à fronde,
Vamos nós, eu e tu, tu e eu, noites e dias,
Sem ar no peito, sem clarões pelo horizonte.
Abre o seio infernal, abre o olhar negro e terno,
Onde geme o calor, onde soluça o frio.
Tu que és filha do inferno,
Podes abrir no peito um sepulcro sombrio,
Onde a minh’alma durma um sono mau e eterno.
Filha de Satã, que o meu olhar absorto
Pouse nos olhos teus, pego medonho e atro
Onde paira o conforto,
E a dor, como as visões de um tenebroso teatro,
Onde um palhaço canta, onde repousa um morto.
Beijo talhado em carne, abismo eternamente
Sombrio e mau, por onde espio e me debruço,
Abre o seio dormente,
Chora o teu pranto falso, e que em cada soluço
Do teu peito, eu escute a voz de uma serpente.633
Não se trata de uma figuração do feminino que teria ocorrido apenas na
juventude de Alphonsus. Em “Succube”, de Pauvre lyre, o sujeito lírico satisfaz seus
desejos sexuais com um ser demoníaco:
633
GUIMARAENS, 2001, p. 536-537.
255
Avec les lèvres qui se pâmaient, je la touche
Partout: chair et cheveux, sur les yeux, – âme et corps.
Un rire de printemps dans la bouche farouche.
Elle était tout en neige, elle était tout en or! 634
Apesar de uma tendência à espiritualização e à sublimação dos desejos na
maturidade da poesia alfonsina, também há a sutil presença de um erotismo
transgressor, pouco observado pelos críticos. O soneto “Succube” foi publicado três
vezes: em março de 1902, em Minas Artística, em feveiro de 1912, no Jornal do
Comércio e em 1921, no livro Pauvre lyre. Isso demonstra que, mesmo buscando se
afastar de Baudelaire, Alphonsus de Guimaraens continuou, de certo modo,
baudelairiano.
Algo semelhante também ocorre na poesia de Mamede de Oliveira. Em Dona
Graça, as mulheres angélicas e santas predominam, mas o soneto “Satânia”
apresenta um contraponto na figura de uma mulher fatal que seduz pela dança.
Perversa e bela como uma deusa, essa personagem nos remete a um dos mitos
simbolistas mais importantes: Salomé.
Curvei-me ao teu olhar magnético e selvagem
Que se empenhou talvez em render-me, de instante,
No delírio de ver-te, em senhoril desplante
Bailando, em febre estranha, os cabelos à aragem.
Meu olhar te seguiu qual solícito pagem...
Uma luz infernal brilhava em teu semblante;
E teu corpo vibrava a música estonteante
Do sangue efervescente através da roupagem.
Entre risos cantaste uma canção ardente
Do meio dia; e o olhar, bem negro, incandescente,
Era a fonte eternal de volúpia e maldade.
Inda te admiro! seja enlodada e perversa
A essência que te anima! Anima-te áurea, tersa,
A forma escultural das deusas de outra idade.635
634
“Com os lábios maravilhados, eu a toco/ Em toda parte: olhos, pele e cabelos – corpo e alma./ Um
sorriso primaveril na boca selvagem./ Ela parecia inocente, estava perfeita!”. GUIMARAENS, 2001, p.
460, tradução livre nossa.
635
OLIVEIRA, 1957, p. 73.
256
A sedução pela dança também aparece em “A degolação de S. João Batista”,
de José Severiano de Rezende, narrativa que faz parte do livro O meu flos
sanctorum e na qual podemos notar uma relação intertextual com a Salomé de
Huysmans.
Uma noite, o palácio freme de inusitada alegria. Herodes dá
uma festa. Toda uma corte, imbuída em vícios brilhantes, inebria-se.
O festim tem a pompa suntuária das orgias orientais. A filha de
Herodíades, Salomé, surge sobre um tapete, na desenvolta e
capitosa exuberância da sua franca puberdade e, num frenesi
coreográfico, cheio de arte e de volúpia, sacudindo o perfume rubro
da sua carne em flor, entontece Herodes.636
Entre o final do século XIX e primeiros anos do século XX, o mito de Salomé
adquiriu o aspecto de uma verdadeira obsessão coletiva. Salomé encarnava a
mulher fatal absoluta, reunindo em si todas as características do feminino perigoso.
Na obra de Flaubert e nas ilustrações de Beardsley para a peça de Oscar Wilde,
Salomé adquiriu o caráter ambíguo e indeterminado da androginia.637 Em Às
avessas, de Huysmans, Salomé aparece segurando uma flor de lótus como um cetro
e é, ela mesma, chamada de “flor venérea”. A simbologia sexual da flor de lótus
condensa-se na figura de Salomé: simultaneamente feminina e masculina (vulva e
falo).638 A sexualidade de Salomé, escondida e revelada na dança dos véus, era
turva e difusa,639 produzindo horror ao ser vista.640
A figura do andrógino, muito cultuada pelo Decadentismo, dramatizava um
esforço de fusão dos contrários, mas, ao mesmo tempo, provocava a sua cisão,
636
REZENDE, 1970, p. 144.
MORAES, 2002, p. 31.
638
Em Às avessas, é descrita a percepção que o protagonista Des Esseintes tem em relação a uma
tela de Gustave Moreau, destacando o fato de o pintor ter colocado na mão de Salomé, personagem
do quadro, “a flor sagrada do Egito e da Índia, o grande lótus”. HUYSMANS, 1987, p. 86. Em várias
mitologias do Oriente, a flor tinha significados sexuais. No Egito antigo, a flor de lótus era considerada
como “vulva arquetípica” e, na China, a expressão “Lótus de Ouro” servia para nomear uma cortesã.
Além disso, a haste do lótus podia ser uma representação do falo. Cf. CHEVALIER; GHEERBRANT,
2003, p. 558-559.
639
MORAES, 2002, p. 31.
640
MORAES, 2002, p. 36.
637
257
apontando para uma fratura na moral ocidental-cristã.641 A partir do momento em que
Salomé tornou-se uma personagem com características também masculinas,
inverteram-se as expectativas de uma mulher frágil e masoquista e de um homem
poderoso e dominador, imagens que a Igreja Católica, os legisladores e os
cientistas, principalmente os médicos, vinham elaborando durante o século XIX.642 A
feminilidade maligna de Salomé era frequentemente associada ao mito de Lilith, a
primeira companheira de Adão, pelo fato desta ser uma mulher insubmissa e
questionadora do domínio masculino.643
Nas situações apresentadas pelos simbolistas mineiros em suas obras, os
sujeitos encenavam uma existência agônica, tensionada entre interior-exterior, idealreal e espiritualidade-materialidade. A escritura simbolista tranformava as angústias
e dúvidas existenciais em patético, sendo que esse patético podia oscilar do trágico
ao cômico, do terror à derrisão, do sofrimento à ironia. A teatralidade, tendendo para
o cômico, surge em “Reminiscência de um dramalhão antigo”, soneto em que
Alphonsus combina o tema macabro com um toque de humor, indicado pelo título. É
justamente o termo “dramalhão” que faz com que o poema seja lido como um texto
humorístico.
Senhora! espero visitar-te um dia,
Por uma tarde pálida de março.
Não mais dirás, a escarnecer-me fria:
– “O meu amor bem longe vaga esparso!”
A vingança do morto, eis a sombria
Peça: diante do teu olhar tão garço,
Alongarei – fantasma em agonia –
Fêmur e tíbia, tarso e metatarso...
Um passo de minuete, extraordinário:
E surgirei como talhado em neve,
Despindo-me da capa, o meu sudário.
641
SANT’ANNA, 1985, p. 191.
Cf. NUNES, 2000, p. 77-80 e também RAGO, 1987, p. 61-95.
643
Segundo GRAUBY, Lilith representava um conjunto de temores dos homens numa cultura
patriarcal: “Reconhece-se na lista de seus crimes o leque dos temores masculinos: a perda da
virilidade, a perda da mulher como companheira e sustentáculo, a perda da descendência”. GRAUBY,
1994, p. 103, tradução nossa. No original: “On retrouve dans le catalogue de ses crimes l’éventail des
peurs masculines: la perte de la virilité, la perte de la femme comme compagne et soutien, la perte de
la descendance.”
642
258
– “Espectro vil!” dirás, no extremo arranco.
Mas hás de amar-me, num lampejo breve,
Vendo-me assim tão gentil, todo de branco...644
Em geral, o aspecto teatral da obra dos simbolistas mineiros é composto por
cenas envolvendo a idéia de martirizações. Poderíamos chamá-las, então, de
dramas de suplícios ou dramas de martírios. Essas cenas se constituem em torno de
situações dramáticas marcadas pela presença da morte e pela consciência da
finitude.
O exílio, um desses dramas, estava relacionado à situação dos sujeitos em
trânsito, mas também apresentava outras conotações existenciais na obra dos
simbolistas mineiros. O pathos dramático do exílio podia assumir a forma da
condição humana após a queda do Éden como nestes versos de Alphonsus “A ti, a ti
brado eu, mísero filho de Eva./ Perdido pelo horror deste exílio de treva”.
645
É neste
mesmo sentido que surge em um soneto de Mamede de Oliveira: “Alma, gemente
nesse atroz exílio,/ Errando em busca do radioso trilho,/ Para fugir da miseranda
terra!...”.646 Em outros casos, o exílio está associado ao isolamento do poeta no
mundo moderno, leitmotiv dos textos do primeiro número da revista Minas Artística
em que Cruz e Souza é visto como um símbolo dessa solidão. Edgard Mata figurou
o poeta/esteta como um “Triunfador exilado”.647 Já Alfredo de Sarandy Raposo
transformou o “artista” num sujeito em retiro, vivendo apenas para a sua arte: “Ele é
um Só em a cela de estudo:/ a sonhar e a sofrer as torturas horríveis/ Dos que
passam no Mundo alheiados a tudo”.648 No soneto “Paz suprema”, J. Camelo
abordou a ascensão da alma de Cruz e Souza para um lugar situado entre “os
astros de ouro”, após uma existência de sofrimentos: “Em desesperos, agonia e
travos/ Torcicolaste nos infernos flavos/ Do fervedouro trágico do mundo”.649 É
importante lembrar que a figuração da existência como algo infernal está relacionada
à concepção cristã da vida humana como exílio do Éden.
644
GUIMARAENS, 2001, p. 437.
GUIMARAENS apud RICIERI, 1996, v. 2, 218.
646
OLIVEIRA, 1957, p. 15.
647
MATA, Edgard. Esteta. Minas Artística, Belo Horizonte, n. 1, 19 mar. 1091, p. 3.
648
RAPOSO, Alfredo de Sarandy. Artista. Minas Artística, Belo Horizonte, n. 1, 19 mar. 1901, p. 3.
649
CAMELO, J. Paz suprema. Minas Artística, Belo Horizonte, n. 1, 19 mar. 1901, p. 4.
645
259
O martírio do poeta foi ainda mais ressaltado nos textos que Horácio
Guimaraens e Ernesto Cerqueira escreveram para Minas Artística. O nome do texto
de Cerqueira, “Martírio luminoso”, é bastante ilustrativo deste tipo de dramatização.
Cruz e Souza havia sido, para Cerqueira, um “esbofeteado da sorte, um perseguido
da turbamulta, um apedrejado da Inveja torva” e sua arte, uma reação ao martírio
sofrido: “o Artista das Evocações viveu do Sofrimento, nele se inspirou para a luta,
cristalizando no Verso imperecível a Dor que o atormentava...”.650 Já Horácio
Guimarães relacionou o martírio do poeta catarinense à incompreensão dos
burgueses materialistas e da multidão:
Cruz – ele foi bem uma cruz onde uma Alma padeceu, se estorceu,
crucificada, agoniada, rebelada. É necessário que os Artistas
extáticos sofram e sangrem: as bolsas dos homens da matéria riemse dessas Almas, como os brilhantes QUE TÊM NOS ANÉIS E NAS
CAMISAS APUPAM A LUZ DOS ASTROS...
[...] Voltado para o Além e para o Mistério, emparedado dentro do
seu Sonho – era como um flagelado Cenobita da Dor, arrastando
estoicamente um Sambenito de torturas por entre as multidões que o
apedrejavam e apupavam.651
Alphonsus de Guimaraens, além de ter versado sobre a condição do poeta
moderno no soneto que dedicou a Cruz e Souza, também abordou o sofrimento do
esteta no poema “Velha anedota”, publicado em 1909 na revista Fon-Fon. O poeta
adotou uma perspectiva bem diversa neste soneto, transformando ironicamente os
smarts, os elegantes, em mártires do luxo.652
Encontraram-se um dia na Avenida
Uns quatro smarts, mártires do luxo.
Sorridentes, levavam boa vida,
Vazio tendo embora sempre o bucho.
Um deles, de lapela florescida,
650
CERQUEIRA, Ernesto. Martírio luminoso. Minas Artística, Belo Horizonte, n. 1, 19 mar. 1901, p.4.
GUIMARÃES, Horácio. Um “poète maudit”. Minas Artística, Belo Horizonte, n. 1, 19 mar. 1901, p.1.
652
O smartismo foi um fenômeno que ocorreu no início do século XX. Nicolau Sevcenko relacionou o
aparecimento do smartismo ao período que se seguiu à inauguração da Avenida Central no Rio de
Janeiro. Cf. SEVCENKO, 2003, p.54-58.
651
260
Disse: – Um discurso da garganta eu puxo
Para saudar a veste alva e luzida
Do Heitor, que está mais belo que um gaúcho!
Quem ta fez, meu amigo, com tal corte,
Que tens altiva a fronte, altivo o porte,
Como se um rei tu foras! quem ta fez?
– Gomes, Sampaio, Leite e Companhia.
– Admira-me, disse o outro, que sorria,
Tantos credores criares de uma só vez! 653
O poema teatralizava o grande interesse dos smarts/dândis na busca do
sublime pessoal, uma preocupação que estava acima de qualquer questão prática
ou necessidade vital. Caracterizados por uma elegância exagerada, pelo espírito
brilhante e extravagante, combinado com alguma arrogância, humor e autocrítica
irônica, os dândis viviam como se estivessem permanentemente diante do espelho,
desejando atingir, a todo custo, a perfeição de seu estilo, encenando, assim, uma
rebelião contra a trivialidade. É importante lembrar que, para Baudelaire, o dandismo
era uma maneira de distinguir o homem e não uma postura superficial. Do ponto de
vista moral, o autor de As flores do mal acreditava que as atitudes do dândi tinham
algo de estóico, o que o aproximava do herói e do santo.654
Além do martírio do esteta/poeta que passou a ter de vender o seu trabalho e
fazer concessões ao gosto dos burgueses e das massas, o drama podia ainda tomar
a forma de uma violência produzida pela industrialização à arte. Após escrever sobre
os martírios de São Sebastião em O meu flos sanctorum, Severiano mencionou o
suplício estético causado pela produção massificada de imagens do santo.
Este santo tem sido, depois de morto, mártir também dos
fabricantes de oleografias e estatuetas pias, e é, a cada instante,
massacrado e torturado pela imaginária sacra: no frontespício da
sebastianapolitana catedral há um S. Sebastião mártir menos do
Imperador Diocleciano que da inconsciência artística da nossa
época. Em geral, representam-no moço e imberbe. Um mosaico,
653
654
GUIMARAENS, 1960, p. 587-588.
Cf. JUNQUEIRA, 1985, p. 56.
261
porém, antiquíssimo, que se vê na Igreja de S. Pedro ad-Vincula, em
Roma, exibe-o barbibranco e austero.
Mas quem é que poderá, reconstituindo a iconografia conforme
os monumentos da razão, destruir o S. Sebastião inerte, criado pelo
anonimato industrial, que fez do culto dos santos um comércio franco
de monstrengos de arte? 655
Outro tipo de exílio que aparece na obra dos simbolistas mineiros é a situação
de isolamento buscada pelo próprio sujeito, como ocorre com os eremitas, monges e
freiras. Assim, Edgard Mata adaptou a ânsia de evasão presente nos modelos
literários europeus e brasileiros utilizando em sua obra o repertório de símbolos
religiosos compartilhado pelos simbolistas mineiros. Este tipo de drama foi abordado
no soneto “Tebaida”:
Na Tebaida sem fim do meu desgosto,
Ando vagando, como à noite vaga
Nas solidões azuis da etérea plaga
Essa Lua tristíssima de Agosto.
Como a Lua, também levo no rosto
Esse estigma da Dor que tudo estraga;
E procuro remédios para a chaga
Na Tebaida sem fim do meu desgosto...
Quero a Trapa de calmas e descansos
Onde possam, pacíficos e mansos,
Escoarem-se os dias, docemente.
Quero a Paz dos desertos e dos ermos,
O Silêncio dos páramos sem termos,
Os refúgios ascéticos do Crente...656
Este isolamento do monge traduzia um desejo de fuga da sociedade, de
afastamento do mundo real, que se manifestava tanto na literatura decadentista
655
REZENDE, 1970, p. 25.
MATA apud SOUZA, 1978, p. 27. Uma variação desta imagem encontra-se no poema “Memória
II”: “Fui viver num mosteiro./ E podereis talvez ver o Prior do Desgosto”. MATA apud SOUZA, 1978, p.
46. Carlos Drummond de Andrade associou esse tipo de dramatização existencial ao perfil do próprio
Edgard Mata: “O poeta é notoriamente Prior do Desgosto,/ mora na Trapa da Tristeza,/ que é também
castelo assombrado/ desde a Idade Média ou desde Vila Rica.” ANDRADE, 2006, p. 1299.
656
262
quanto na simbolista. Muitos personagens buscavam uma clausura onde pudessem
viver distantes da passagem do tempo e das normas (sem casa, sem cônjuge e sem
filhos). Essa vida em refúgio era uma reação à padronização existencial, uma
afirmação de diferença.
Já em “Místico”, Edgad Mata condensou as imagens da noiva morta e da
santa (especialmente uma lembrança da Virgem Maria) na monja enclausurada. A
beleza desta figura feminina se relacionava à sublimação dos apelos do corpo,
indicada no poema pelas imagens ligadas ao frio.
Alma de gelos árticos, polares,
Divinizada pelas grandes dores...
A contemplar a luz dos teus olhares
Nascem-me nalma místicos amores!
Branca como és, da palidez dos lírios,
Vens me lembrar a Virgem dos Mistérios,
A Santa Virgem triste e amargurada.
Tens a beleza sepulcral e fria
De aparições extremas da agonia –
Ah! minha pobre monja enclausurada!657
A monja, por ser noiva de um espírito, só pode ter um amor espiritualizado,
sublimado, pois o amor humano lhe é impossível. Por outro lado, a auratização da
figura feminina, associada às dores, tem como referência a figura de Maria, a Mater
Dolorosa, cujo sofrimento refletia o de Jesus, ambos dramatizados por Alphonsus de
Guimaraens no Setenário das dores de Nossa Senhora. Um exemplo desse
espelhamento pode ser observado no quarto poema que compõe a “Primeira Dor”,
do Setenário. O sujeito lírico, ao comentar uma profecia feita a Maria sobre os
sofrimentos de Jesuz, diz: “Sim! Pois vê-Lo sofrer era por certo/ Ter em meio do
peito a lança em riste,/ E em chaga viva o coração aberto”.658 No soneto “VII”, que
faz parte da “Quinta dor”, esse processo fica mais evidente, o martírio do filho é o
martírio da mãe:
657
658
MATA apud SOUZA, 1978, p. 44.
GUIMARAENS, 2001, p. 218.
263
Vê-Lo não vos bastava, doce Dama,
Longe dos vossos maternais carinhos;
Sentir que a plebe vil, que ruge e clama,
Viesse em fúria assaltá-Lo nos caminhos:
Escarros que tombavam como lama
Sobre Quem é mais alvo que os arminhos:
E a Fronte real, em radiações de flama,
Cingida pelas pontas dos Espinhos:
Açoites, bofetadas, Cravos, Chagas,
E a Esponja, e a Lança e o Fel, e a Sede estranha,
E o Sangue santo que corria em bagas:
Tudo era pouco para as vossas Dores...
Que ainda havíeis de vê-Lo na Montanha,
Expirando entre dois salteadores!659
Na poesia dos simbolistas mineiros, os sujeitos líricos se purificam ao se
voltarem para as mulheres identificadas com a dor e o sacrifício, se santificam ao
amar mulheres impossíveis como as moribundas, as mortas e as fantasmas. Sob a
forma espectral, “desrealizadas”, as mulheres se tornam onipresentes e trazem
incessantemente à tona as lembranças do passado.
Para Affonso Romano de Sant’anna, existe uma correlação entre as figuras
femininas dos textos simbolistas. A noiva morta, a princesa encastelada, a bela
adormecida, Ofélia e a monja em sua cela formam “um sistema de representação
onde a invariante é o fechamento do indivíduo num espaço aprisionador do desejo.
Tânatos é o carcereiro de Eros, que definha em sua cela, olhando o mundo de
dentro de seu escuro exílio”.660
Os simbolistas entendiam a existência como dor e decadência. O desejo
estava associado ao sofrimento. Por isso, Affonso Romano de Sant’anna observou
que “o artista tem de se esforçar por construir sua vida como um desesperado, mas,
sobretudo como um santo. Um santo que sabe que o corpo, o tempo atual, o próprio
659
660
GUIMARAENS, 2001, p. 235.
SANT’ANNA, 1985, p. 187.
264
amor são prisões, cadeias e encarceramentos provisórios”.661 Uma das maneiras de
solucionar esses dramas de martírio, vivenciados por personagens inseridos em
cidades mortas ou em cidades tentaculares, era a morte. Fim para o corpo, a morte
seria, no entanto, o início de uma libertação do espírito.
661
SANT’ANNA, 1985, p. 186.
265
CONSIDERAÇÕES FINAIS
266
Q
uando se pesquisa a literatura mineira no período da Belle Epoque, uma
das constatações a que logo se chega é que muitos estudiosos
desconhecem grande parte da produção dos escritores ligados ao
Decadentismo e ao Simbolismo. Sendo desconhecida, também é mal avaliada pelos
críticos. As obras dos simbolistas mineiros chegaram a ser mencionadas em livros
de história da literatura, dicionários de literatura brasileira e alguns ensaios críticos.
Contudo, essas formas de divulgação não foram suficientes para tornar bem
conhecidos os escritos da maioria dos membros do grupo. Excetuando os estudos
sobre Alphonsus de Guimaraens, poeta já estabelecido no cânone, e poucos
ensaios sobre a obra de José Severiano de Rezende, a bibliografia sobre o
Simbolismo em Minas Gerais ainda não está à altura do seu significado cultural. Os
estudos existentes abordam geralmente a produção individual destes dois autores.
Até o presente, uma investigação academica sobre o grupo dos simbolistas mineiros
e as suas atividades culturais ainda não havia sido realizada. Nosso trabalho
procurou preencher essa lacuna e abrir caminhos para novas pesquisas acerca da
literatura simbolista brasileira. Ele se desenvolveu em uma nova perspectiva de
leitura: a da relação dos simbolistas mineiros com a modernidade e os processos de
modernização. Esta perspectiva exigia que o trabalho ocorresse em uma dimensão
histórica e em uma dimensão crítica, tarefas extremamente complexas pois as
informações biográficas desses escritores são escassas e as suas obras ainda não
foram devidamente estudadas. Buscando superar estas limitações, investigamos a
história e a produção cultural do movimento simbolista de Minas, as relações dos
seus membros com as instâncias de poder político e literário, alguns aspectos da
recepção crítica e das ressonâncias percebidas em suas obras. Também
analisamos o sistema de valores do grupo e o imaginário literário mobilizado em
seus textos. Para atingirmos os nossos objetivos, tivemos que nos desfazer de
algumas ideias que estão associadas ao Simbolismo e que se encontram implícitas
em boa parte da fortuna crítica de Alphonsus de Guimaraens. Uma delas é a
representação dos simbolistas como escritores isolados em uma torre de marfim,
indiferentes ao cotidiano e aos problemas de seu tempo – imagem que se explica,
em parte, por ter sido fabricada a partir de seus textos literários. Contudo, em nossa
pesquisa, descobrimos que eles estiveram envolvidos na reflexão a respeito de
vários problemas sociais e em lutas políticas, chegando ao engajamento partidário.
Além disso, procuramos considerar as condições de trabalho intelectual daquela
267
época, a relação da literatura simbolista com o desenvolvimento tecnológico e a
oposição dos simbolistas mineiros aos discursos cientificistas/positivistas.
No decorrer de nossa pesquisa, vimos que as manifestações simbolistas em
Minas duraram até os anos de 1920, sendo que inicialmente não se distinguiam
claramente das parnasianas. Houve, no entanto, a busca de uma diferenciação em
determinada época, quando os simbolistas, já mais organizados, se confrontaram
com os representantes do Parnasianismo e combateram a ideologia positivista em
suas várias tendências. Após essa época, o Simbolismo continuou nas obras dos
seguidores sob uma forma diluída e mesclada com outras correntes. Através das
diluições e misturas, adaptações e recriações, essa literatura foi se distanciando de
seus modelos. Os textos simbolistas foram divulgados em periódicos efêmeros da
capital mineira e do interior do estado. Alguns dos simbolistas mineiros colaboraram
em publicações importantes de outros estados do país e dois deles, José Severiano
de Rezende e Alphonsus de Guimaraens, tiveram algumas obras traduzidas e
divulgadas na Europa. Além disso, Severiano de Rezende chegou a colaborar, por
breve tempo, no Mercure de France, uma das revistas mais importantes do
Simbolismo.
Os simbolistas mineiros participaram de várias redes intelectuais. Como a
visão de mundo e os interesses das instâncias oficiais de reconhecimento colidiam
frequentemente com os interesses e a mundividência dos simbolistas, estes
escritores
foram
levados
inicialmente
a
bucar
maneiras
alternativas
de
reconhecimento em redes semi-institucionalizadas e em redes informais. Aos
poucos, estabeleceram-se laços entre os simbolistas mineiros e escritores de outras
regiões do país, segundo uma lógica da solidariedade baseada em aspectos
geracionais, posicionais e ideológicos, principalmente no ambiente da boêmia e dos
periódicos. Além dos contatos com simbolistas de outros estados, também houve,
por meio de referências, citações, ressonâncias, visitas e correspondências, uma
relação entre modernistas e membros do grupo dos simbolistas mineiros. Em nosso
estudo, ressaltamos a interação dos simbolistas de Minas com os de São Paulo e o
protagonismo de Alphonsus de Guimaraens e Severiano de Rezende em ambos os
grupos. Também analisamos a transformação de Alphonsus de Guimaraens e de
Severiano de Rezende em precursores de uma vanguarda constituída por escritores
268
modernistas, o diálogo que os modernistas mineiros mantiveram com a poética
simbolista em suas primeiras obras e o caso de Agenor Barbosa que transitou do
Simbolismo para o Modernismo, tendo sido um dos mais atuantes no grupo que
realizou a Semana de Arte Moderna de 1922.
A colaboração em diferentes periódicos estaduais e nacionais, a edição de
revistas com repercussão nacional, a comunicação estabelecida com escritores de
outros estados e o seu trânsito em outras esferas públicas demonstram que uma
das grandes preocupações dos simbolistas mineiros era a sua iserção na vida
cultural e política do país.
Os simbolistas mineiros oscilaram entre defender a autonomia da literatura e
se submeter às condições de trabalho intelectual existentes. Confrontados com
essas condições, sentiram-se impelidos a ampliar os limites de sua produção, como
também acontecia com os poetas parnasianos. Escreveram, então, crônicas, artigos
e poemas humorísticos visando satisfazer o gosto do público ou atuaram como
redatores de publicidade e como celebridades garantidoras da qualidade dos
produtos anunciados. Eles buscaram conciliar a tradição e a modernidade
desenvolvendo, nessa linha, práticas de tradução como forma de aprendizado e
recriação/reinvenção dos modelos literários a partir de um filtro pessoal.
Considerando a modernidade ora da perspectiva local, ora da global, esses
escritores se referiam às transformações sociais, tecnológicas, políticas e
econômicas apenas de maneira metafórica na lírica, mas, em suas crônicas, artigos
e poesia de circunstância, tais mudanças podiam ser mencionadas de forma direta.
Já a reflexão sobre a tradição ocorria nas seguintes vertentes: a da defesa da
latinidade e de uma comunidade luso-brasileira ou a do diálogo com as ciências
ocultas, o catolicismo e os escritores canônicos. À primeira vista, a obra literária dos
simbolistas não apresentaria ligações com a política, a economia e as
transformações vistas entre o final do século XIX e o começo do século XX.
Entretanto, uma leitura mais apurada das entrelinhas ou mesmo do que estava
explícito nos textos desses escritores nos revelou as angústias e preocupações
vivenciadas por eles em relação aos processos de modernização. Por outro lado,
entendemos que o próprio Simbolismo de Minas desempenhou um papel
modernizador no plano estético-literário, sendo que o processo de seleção,
269
apropriação e incorporação dos elementos novos estava relacionado às condições
de produção das obras e às necessidades expressivas dos autores.
Devido às limitações de tempo, deixamos algumas possibilidades de análise,
que começamos a realizar ou a apontar neste trabalho, para serem desenvolvidas
em futuras pesquisas como, por exemplo, a questão da “paisagem técnica” na obra
dos simbolistas mineiros; as relações desses escritores com a cultura de massa e o
diálogo que os simbolistas mineiros mantiveram com outras artes (música, artes
plásticas, arquitetura, teatro, cinema).
Nos
textos
dos
simbolistas
mineiros,
observamos
uma
constante
dramatização existencial associada ao posicionamento que adotavam em relação a
certas questões da modernidade, fazendo do mundo um cenário para personagens
em conflito entre o espiritual e o corporal, o ideal e o real. Além do drama dos
emigrantes/imigrantes e migrantes, esses autores teatralizaram o isolamento do
artista em um mundo voltado para os valores materialistas, o sofrimento dos smarts
em busca do sublime pessoal, o suplício estético causado pela produção de
imagens massificadas ou o enclausuramento do sujeito visando uma pacificação,
uma purificação ou santificação. A nossa pesquisa revelou que o aparecimento das
mulheres na esfera pública foi sentida como ameaçadora e também encenada como
um drama pelos simbolistas mineiros. As reações desses escritores consistiram
tanto na formulação de uma imagem de mulher ideal, como na elaboração do
modelo feminino negativo. Os simbolistas mineiros produziram tipos diferentes de
mulher ideal. O primeiro tipo era o da jovem bondosa, mas fútil e superficial; o
segundo, era o da santa esposa e mãe, realizando-se através dos filhos e fazendo
sacrifícios para a família e o terceiro era o da religiosa que se dedicaria apenas às
questões do espírito. A elas se opunham as mulheres que reivindicavam seus
direitos, as prostitutas e as devassas.
Estas mulheres eram vistas como uma
ameaça no plano político e um perigo de desvirtuamento moral. Às “flores do mal”
eram contrapostas as “flores do bem”. Na poesia dos simbolistas mineiros, o
erotismo se articulava em duas direções: interdição e transgressão. Ao lado da
tendência à sublimação dos desejos, também existia um erotismo transgressor,
frequentemente obliterado, por exemplo, pela recepção crítica de Alphonsus de
Guimaraens. Apesar de cultivarem as “flores do bem”, os simbolistas sentiam uma
270
enorme fascinação pela mulheres fatais, dominadoras. Juntamente com a
valorização da castidade e da bondade, os simbolistas mineiros atacavam os
comportamentos considerados ilicítos. Seus textos tratavam obsessivamente de
Eros vinculado a Tânatos. De acordo com esse tipo de pensamento de origem cristã,
foi o primeiro pecado, o “pecado original”, que uniu amor e morte, obrigando a
humanidade a vivenciar sua sexualidade sempre com o sentimento de culpa dessa
transgressão inicial e exilada em um mundo de sofrimentos.
Em relação aos sujeitos em trânsito, os simbolistas mineiros refletiram sobre
os sofrimentos causados pelo desenraizamento. Na poesia, as mudanças foram
transfiguradas e recriadas, por exemplo, sob a figura das aves migratórias e também
através do estabelecimento de uma relação intertextual (personagens camonianas),
que potencializavam a sua crítica da modernidade. Na prosa, criaram narrativas em
que os emigrantes/imigrantes eram representados seja como personagens
esfolados pela pobreza, pelos preconceitos, pela exclusão social, pela injustiça e
pelo sentimento de perda, seja como sujeitos bem-sucedidos. Em outros textos, a
chegada dos imigrantes ao Brasil foi associada a uma ruptura das tradições locais.
Já nos textos argumentativos, entre a literatura engajada de J. Camelo ou a
propaganda de José Severiano de Rezende, os sujeitos em trânsito foram
mostrados ora como parte dos problemas sociais do país (despovoamento dos
campos e inchaço das áreas urbanas), ora como a sua solução (desenvolvimento
econômico). Vistos do exterior e pela ótica da propaganda patriótica, o imigrante não
tinha sofrimentos. Vistos do interior do país, os migrantes e imigrantes eram sujeitos
em crise, personagens vivenciando conflitos nas novas condições.
Projeções dos estados d’alma dos escritores, os cenários simbolistas podiam
ser tanto as cidades mortas e pequenos núcleos urbanos decadentes, estagnados,
ligados ao passado e às tradições, como também as metrópoles e as cidades que se
modernizavam. Para os simbolistas mineiros, as cidades coloniais e aldeias
desempenhavam um papel semelhante ao de Bruges na obra de Rodenbach, isto é,
lugares onde a agitação, o movimento e as frenéticas mudanças não ocorriam. Ao
invés de descritas minuciosamente, essas paisagens urbanas eram frequentemente
sugeridas por meio de signos referentes aos espaços religiosos.
271
Na abordagem da modernidade, perspetivas diferentes foram adotadas pelos
simbolistas mineiros. Uma visão cosmopolita de um sujeito situado no exterior do
país, uma visão de um sujeito observando o mundo moderno a partir do interior
mineiro e uma visão de um sujeito situado entre o universo urbano e o rural. A
primeira aparece na poesia e prosa de Severiano sobre a cidade do Rio de Janeiro e
o Brasil. A segunda pode ser encontrada no sujeito lírico e no narrador alfonsino. Já
a terceira pode ser percebida, por exemplo, na poesia de Edgard Mata e Mamede de
Oliveira.
Os textos que Severiano de Rezende escreveu sobre o Rio de Janeiro
apresentavam uma leitura da paisagem urbana feita por contraposições. De um
lado, havia o processo de dessacralização da cidade (as reformas urbanísticas e os
modernos arranha-céus). De outro, a tentativa de conferir-lhe um caráter sagrado (a
mudança de seu nome para “Sebastianópolis”, a presença de construções religiosas
nos cenários descritos e a idealização dos espaços urbanos). Em “Notre Civilisation”,
o processo de dessacralização foi intensificado pelas fotografias de um dos
primeiros arranha-céus do Rio de Janeiro. O movimento oposto à dessacralização
do espaço urbano se deu por meio da própria escrita da crônica, que passou a
arquivar o apagamento dos monumentos e da tradição, funcionando, assim, como
compensação para a perda de um passado que nunca mais poderia voltar. O
mesmo procedimento de contrapor imagens foi empregado na análise que
Severiano de Rezende fez de Paris em confronto com Nova York. Para Severiano,
enquanto Nova York era o exemplo perfeito da cidade tentacular/babélica, Paris
combinava um lado babilônico a um lado santo, o que a tornava superior à rival
norte-americana.
É importante salientar que os simbolistas mineiros preferiram lidar mais com
as cidades mortas do que com as cidades tentaculares. Era um modo indireto de
contrastar os processos de modernização e seus fundamentos positivistas. Embora
Alphonsus de Guimaraens tenha escrito mais sobre as cidades mortas, também
apresentou pequenos instantâneos da vida nas grandes cidades ora com um tom
melancólico, ora com um acento humorístico, sendo que as cenas podiam
acontecer, por exemplo, diante da vitrine de uma loja em São Paulo ou em um lugar
repleto de cartazes à beira do Tâmisa.
272
Toda essa complexidade literária aponta para a inegável importância cultural
do grupo simbolista mineiro. Acreditamos que nosso trabalho abre novas
possibilidades de leitura de suas obras. Como são raras as pesquisas sobre a
literatura simbolista de Minas Gerais, ainda há muito a ser feito em termos de estudo
de manuscritos e dispersos em periódicos. Além disso, os livros simbolistas
precisariam ser reeditados e divulgados para que esses escritores pudessem ser
melhor avaliados e ocupar o lugar de destaque que merecem ter.
273
REFERÊNCIAS
274
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rev. e atual. Rio de Janeiro: Editora FGV; CPDOC, 2001. 5 v.
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Boletim do Dia: Para matar saudades..., p.2.
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ANEXOS
ANEXO A – O PASSADO E O FUTURO662
662
REZENDE, José Severiano de. O passado e o futuro. A Notícia, Rio de Janeiro, 30 dez. 1922, p. 2.
(Acervo da Fundação Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro)
ANEXO B – DESENHOS DE ARCHANGELUS DE GUIMARAENS
Ilustração para o poema “Lua-nova”, de Alphonsus de Guimaraens663
Ilustração para o Soneto “Danse macabre”, de Jacques d’Avray664
663
Fonte: DO SIMBOLISMO AOS ANTECEDENTES DE 22, 1982, Rio de Janeiro: Fundação de Rui
Barbosa; Curitiba: Secretaria de Estado da Cultura e do Esporte do Paraná, Universidade Federal do
Paraná, 1982. Catálogo de exposição. p. 42.
664
Fonte: CAMARGOS, Márcia. Villa Kyrial: crônica da Belle Époque paulistana. 2.ed. São Paulo:
Editora SENAC São Paulo, 2001. p. 145.
ANEXO C – DEVIL FISH665
665
ARNO, Ciro. Devil fish. Lótus, Belo Horizonte, 8 jul. 1900, p. 2. (Coleção Linhares, Biblioteca
Central da UFMG, Belo Horizonte, MG)
DEVIL FISH
“Les morts, les pauvres morts, ont de grandes douleurs!...”
... – Destro, ágil, o pescador corta a amarra e a sua barquinha lá vai, mar em fora, a
vagar, a vagar na cerulínea (sic) amplidão das águas.
Quão profunda é a expressão do poeta satânico!
Homme libre, toujours tu chériras la mer !
La mer est ton miroir ; tu contemples ton âme
Dans le déroulement infini de sa lame,
Et ton esprit n’est pas un gouffre moins amer.
No imaculado azul do céu, nenhuma nuvem e lá ao longe, na interseção do
imenso espelho azulado com a abóbada infinita, a hóstia sacratíssima do sol imerge
serenamente no Oceano, num resplendor de setas douradas, numa apoteose
eucarística de luz, de calor, de vida...
E dentro da sua barquinha lá vai o pescador, cantando, deslizando
serenamente. Sobe aos ares uma canção sonora, uma dessas baladas, tristes como
o soluçar do tufão e profundas como os vagalhões do mar...
É o grito lancinante de um coração ferido, é a aspiração ardente de uma alma
ou a sacrossanta blasfêmia do amor ludibriado?!...
E a barca vai seguindo, cortando, singrando; e, inesperadamente, com o céu
claro e o mar tranquilo, ela volta-se, como sacudida por um furacão e o desditoso
marinheiro é apanhado por um monstro.
É o terrível Devil fish, o peixe diabo, o demônio marítimo que aparece
evocado do horripilante inferno do Dante. Mais horrível, mais horroroso, mais
hediondo que o espectro da própria morte.
E empolgando o mísero pescador nos formidáveis tentáculos, vai pouco e
pouco, sugando-o pelas quatrocentas ventosas, triturando-lhe os ossos, esmoendolhe os músculos, penetrando-se (sic), num amplexo satânico, confundindo-se a tal
ponto com a vítima que “a hidra se incorpora no homem e o homem se amalgama
na hidra”!!!
Ah! é horrível!!!
_____
Foi assim que morreu o meu inditoso coração. Despedaçado nos tentáculos
crudelíssimos de um monstro insaciável...
Ciro Arno
Minas, julho de 900
ANEXO D – CAPAS E VINHETAS ART NOUVEAU DOS LIVROS E
REVISTAS SIMBOLISTAS
Capa e vinheta da primeira edição de Pauvre lyre, de Alphonsus de Guimaraens666
Vinhetas da primeira edição do livro Mendigos, de Alphonsus de Guimaraens667
666
GUIMARAENS, Alphonsus de. Pauvre lyre. Ouro Preto: Paulo Brandão & Cia., 1921. (Acervo da
Biblioteca Estadual Luís de Bessa, Belo Horizonte, MG.)
667
GUIMARAENS, Alphonsus de. Mendigos. Ouro Preto: Tip. da Casa Mendes, 1920. (Acervo da
Biblioteca Estadual Luís de Bessa, Belo Horizonte, MG.)
Vinheta da primeira edição do livro Para quê?, de Álvaro Viana668
Capa do primeiro número da revista Horus669
668
VIANA, Álvaro. Para quê? Belo Horizonte: Tip. Beltrão & C., 1906. (Acervo da Biblioteca do
Instituto Cultural Amilcar Martins, Belo Horizonte, MG.)
669
Horus, 1902. (Coleção Linhares, Biblioteca Central da UFMG, Belo Horizonte, MG).
Página de rosto e ilustração da edição tcheca de O meu flos sanctorum670
Vinhetas da revista Vita e da revista Vida de Minas671
670
REZENDE, José Severiano de. Muj flos sanctorum. Trad. Antonín Ludvík Stríz. Praga: K. Schnetz,
1914. (Acervo da Bibliothèque Nationale de France François-Mitterrand, Paris).
671
Vita (dez.1913/jan.1914) e Vida de Minas (maio 1915). (Coleção Linhares, Biblioteca Central da
UFMG, Belo Horizonte, MG).
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