Inferno, Purgatório ou Paraíso? Narrativas da morte na mídia digital Renata REZENDE Doutoranda do Programa de Pós-graduação em Comunicação da Universidade Federal Fluminense - UFF, Rio de Janeiro - Brasil [email protected] Resumo: O presente trabalho refere-se ao estudo da morte e suas transformações a partir do surgimento de tecnologias midiáticas. Analisando especificadamente a comunidade virtual de mortos do Orkut1, Profiles de Gente Morta2, objetivamos demonstrar como a Internet, por meio de diversas ferramentas de comunicação, modificou o estatuto do corpo e, na contemporaneidade, apresenta uma outra possibilidade de pensar a morte e os mortos. Em um breve percurso pela “história da morte no ocidente”, nos apropriando do título do livro de Philippe Áries (2003), faremos uma articulação da representação da morte medieval na Divina Comédia, do poeta italiano Dante Alighieri, à morte midiática, tecnológica, das comunidades virtuais, levando em conta os conceitos de narrativa, memória e esquecimento. Palavras-chave: Mídia digital; morte; corpo; narrativa; memória; esquecimento; Toda civilização se define também pela maneira como enterra seus mortos, pelo modo como a morte é vivida, narrada e representada. Os supostos eventos relacionados à morte são historicamente fonte de inspiração para a filosofia, a sociologia e a religião, e uma infinita fonte de temor, angústia e ansiedade para os homens. O poeta florentino Dante Alighieri foi um desses homens fascinados e angustiados por essa temática. Ao erguer a “catedral” da Divina Comédia em torno da memória dos mortos, construiu uma narrativa deixando vestígios de que estava tentando ameaçar o esquecimento. A Comédia é um monumento literário à memória; é um caleidoscópio de lembranças responsável por grande parte das representações da morte no Ocidente. Dante, ao visitar os mortos no Inferno, no Purgatório e no Paraíso, torna-se um dos principais narradores da morte medieval. Em sua peregrinação, o poeta florentino é o 1 O Orkut é uma comunidade virtual criada em janeiro de 2004. Essa comunidade também pode ser chamada de rede social. Disponível em: http://pt.wikipedia.org/wiki/Orkut. 2 No Brasil é a mais antiga comunidade que reúne perfis de pessoas mortas da rede Orkut. Foi criada em dezembro de 2004. Em 5 agosto de 2006, quando começamos nossa pesquisa, a comunidade contava com 31.736 membros. Atualmente esse número já é maior. Disponível em: http://www.orkut.com/Community.aspx?cmm=993780. único vivo com acesso ao além mundo e, desta forma, é o único a carregar a memória dos mortos, para que nós, os vivos, sejamos informados e não esqueçamos “os que um dia já foram como nós”. O objetivo do narrador é projetar a lembrança privada dos mortos num culto público, promovendo um ritual que fortaleça a memória para além da sepultura, estendendo o tempo entre o fato da morte e as ocasiões habituais de uma commemoratio mortuorum. O culto aos mortos, com seus rituais, sacrifícios e ofertas nos túmulos, servem para assegurar aos mortos uma espécie de conforto no Além. Mas, segundo Harald Weinrich (2001, p.49), “os monumentos fúnebres fitam os vivos exortando-os a não esquecerem os seus mortos, e mesmo assim às vezes a esquecê-los um pouco, porque a vida continua”. É nesse sentido que Weinrich afirma que a morte é o mais poderoso agente do esquecimento. O lingüista alemão nos fala antes de uma arte do esquecimento, não de forma onipotente, mas levando mesmo em consideração que desde sempre os homens “ergueram trincheiras de recordação” contra o verbo esquecer. Isso se daria principalmente na morte, em que a finalidade seria a promoção de rastros que nos indicassem a existência de uma memória dos mortos, vestígios que nos fornecessem sinais seguros da existência de uma civilização humana. A Comédia é, dessa forma, um jogo com a memória e com o esquecimento: na medida em que os vivos não cumprem o dever (como cristãos) de praticarem as comemorações mortuárias, havendo o perigo do esquecimento, os mortos enviam ao Aquém um mensageiro, um informante, um “homem da memória” que possa lembrar aos vivos que, mais cedo ou tarde, todos podem ser esquecidos. Dante é esse mensageiro, esse informante com a missão de conhecer o mundo dos mortos e narrar suas histórias a fim de fugir das tentações do esquecimento. É nesse sentido que nos apropriamos da Divina Comédia, buscando no passado, em uma das principais representações da morte do ocidente medieval, a fim de entender uma das narrativas3 da morte contemporânea: a morte digital representada aqui, 3 Narrativa aqui no sentido compreendido por Paul Ricoeur, em que narrar é uma forma de estar no mundo e dessa forma entende-lo, o que o autor denomina de tríplice mimese. RICOEUR, Paul. Tempo e Narrativa. (volumes I, II e III). Campinas, SP: Papirus.( 1994, 1995,1996). especificadamente, na comunidade virtual de mortos do Orkut, a Profiles de Gente Morta, nosso objeto de estudo. A comunidade do Orkut Profiles de Gente Morta reúne participantes que agregam os perfis (profiles) de mortos (ou supostamente mortos) da rede, funcionando da seguinte forma: todo usuário precisa de um login e senha para criar e acessar seu profile e circular naquele espaço. (Página Principal da Comunidade) Em seu profile, o usuário disponibiliza perfil pessoal, profissional e outros interesses, além de fotos, vídeos, depoimentos, poesias, e o que mais desejar. Nessa espécie de “diário digital público”, o participante agrega amigos, familiares e outros conhecidos (ou desconhecidos), conforme sua vontade. Também participa de comunidades variadas, criadas por outros usuários, como comunidades de filmes, músicas, celebridades, etc. No entanto, como cada profile no Orkut, geralmente é individual, somente o próprio usuário possui o login e a senha de acesso à comunidade, assim, caso ele morra no espaço real, seu ‘corpo digital’ continua circulando no ciberespaço. Ou seja, mesmo mortas no “mundo real”, essas pessoas continuam recebendo recados, como que se virtualmente pudessem ouvir aos apelos publicados. Pela descrição da comunidade, percebemos a orientação que norteia, pelo menos, inicialmente, a narrativa sobre essa morte digital: Essa comunidade é dedicada a pesquisa de profiles de gente que faleceu. Aqui vemos como, de uma hora para a outra, nossa vida acaba e deixamos tudo para trás, inclusive banalidades como o Orkut, Fotolog, MSN, etc...Banalidades essas que, por sua vez, podemos chamar de “rastros virtuais”. Mas o que são esses rastros? Seriam eles úteis? Um conforto para quem fica? Uma imortalidade virtual? Bom, estamos aí para discutir...Queremos que você poste o profile de algum conhecido seu que tenha morrido ou algum profile que você conhece. Não é permitido brincadeiras de má intenção, bem como falta de respeito com os mortos. Deixo claro também que sou contra qualquer tipo de violência e jamais faço apologia a morte aqui nessa comunidade. Sem mais, desejo que todos descansem em paz...4 Notamos que a morte se dá na cena pública, nos atos dos participantes que constroem juntos uma espécie de cemitério digital e lançam interrogações sobre a morte e o morrer. Entendemos, desta forma, que assim como Dante na Divina Comédia, a comunidade virtual projeta a lembrança privada dos mortos num culto público, promovendo um ritual que fortalece a memória para além da sepultura tradicional. De volta à Idade Média Em seu poema5, Dante propõe uma síntese paisagística, baseada no cristianismo, para explicar o mundo medieval dos mortos. Escrita em italiano, a obra é a narrativa da odisséia do próprio autor pelo Inferno, Purgatório e Paraíso, onde o florentino descreve cada etapa da viagem com detalhes quase visuais. Protagonista da história, Dante é guiado no inferno e no purgatório pelo poeta romano Virgílio, a quem muito admirava, e no paraíso por Beatriz, grande amor de sua vida e musa de suas obras. Em uma breve leitura do Inferno, do Purgatório e do Paraíso, podemos notar que Dante fez uma síntese suprema da morte na cultura medieval, vendo o lugar ilimitado que ocupava o homem no universo, criado, circunscrito e dominado 4 Descrição do criador Guilherme Dorta para a comunidade. A descrição é uma espécie de convite para novos usuários. Fica abaixo do título da comunidade que é o nome como a mesma é conhecida, nesse caso, Profiles de Gente Morta. A descrição, algumas vezes, também é o espaço para orientações sobre o acesso, se há regras, quais são, etc. Disponível em: http://www.orkut.com/Community.aspx?cmm=993780. Acesso em 05 de agosto de 2006. 5 É importante ressaltar o contexto: a viagem narrada pelo poeta acontece na semana santa do ano de 1300. Naquela época, Dante era um atuante político florentino prestes a ser eleito como um dos governadores da cidade de Florença. Porém, em menos de um ano, Dante foi exilado e expulso da cidade. Assim, a Comédia tem muito da vida do poeta, da política de Florença e das crenças e costumes da Idade Média. In ALIGHIERI, Dante. A Divina Comédia: Inferno, Purgatório e Paraíso. São Paulo: Editora 34, 1998. completamente por Deus. É nesse sentido que a Comédia é um relato moral que sustenta um fantástico arcabouço de imagens simbólicas. Imagens do pensamento abstrato do poeta que ganharam plasticidade e foram materializadas nos últimos 700 anos 6 na fantasia e na memória de obras da literatura, das artes plásticas, da música, do cinema posteriores. Por ser a Comédia essa paisagem de sentidos onde encontramos memória e esquecimento, corpo e alma, vida e morte, articulamos essa monumental obra-prima à nossa análise sobre a narrativa da morte midiática contemporânea das comunidades virtuais, a fim de compreender melhor a temática por meio de fragmentos, vestígios, restos, traços, do passado, configurados no presente. Notamos atualmente, de uma maneira geral, que o conceito de morte no Ocidente relaciona-se a uma ruptura, ancorada no modelo de vida que se projeta através da negação da idéia de impermanência. Esse conceito pode ser visto, por exemplo, pela terminologia do termo léxico em que morte significa: o fim da vida, fim, grande pesar (HOUAISS, 2001; 303). Mas como falar de impermanência e de finitude quando as novas tecnologias da comunicação, como as comunidades virtuais, ‘recortam os corpos mortos’, estabelecendo um novo tipo de formalização da morte social, que implica uma outra dimensão da realidade? Como falar da morte como ausência do corpo, quando o corpo digital traz à tona sua presença em qualquer lugar, a qualquer hora, bastando uma conexão à web? 7 Nesse sentido, a Comédia cristã de Dante parece ter antecipado o que hoje indica ser a proposta das novas tecnologias da comunicação e da informação: reconfigurar as representações da morte e do morrer na sociedade contemporânea, uma sociedade cada vez mais mobilizada pela mídia e interconectada pela nova aparelhagem digital. 6 Para citar alguns exemplos, pintores como Gustave Doré, Sandro Botticelli, Salvador Dali, Michelangelo e William Blake estão entre os ilustradores de sua obra. Os compositores Robert Schumann e Gioacchino Rossini traduziram partes de seu poema em música e o compositor húngaro Franz Liszt usou a Comédia como tema de um de seus poemas sinfônicos. O escultor Auguste Rodin usou a narrativa como inspiração para suas principais obras, entre elas, O Pensador, que representa o próprio florentino, O Beijo, inspirada no drama de Paolo e Francesca (Inferno, Canto V) e Ugolino e seus filhos, que retrata a tragédia do Conde Ugolino (narrada no Canto XXXIII). Todas compõem a Porta do Inferno, representação de Rodin para o Inferno de Dante. 7 A partir de um cadastro simples, basta conectar um computador à Internet, em qualquer parte do mundo ou a qualquer hora, para acessar aos ‘corpos mortos’ nas comunidades virtuais. É claro que essa apropriação do ‘corpo morto’ de que falamos é simbólica. Ser imagem (signo icônico) significa tornar-se interpretante vivo, segundo Sodré, significa tornar-se “medium” (SODRÉ, 2002; 38). Experiências que utilizam o ‘corpo morto’ na Internet, como as comunidades virtuais de mortos do Orkut, indicam, a nosso ver, as transformações no comportamento humano diante de uma presença de morte, a partir das tendências articuladas pelas tecnologias digitais sob o império das imagens8. A digitalização do ‘corpo morto’ tornase manutenção de um laço de interatividade, presença e lembrança de um sujeito então ausente. A morte no Ocidente Ah! Que a tarefa de narrar é dura Essa selva selvagem, rude e forte, Que volve o medo à mente que a figura. (Inferno, Canto I) Philippe Ariès, em sua História da Morte no Ocidente9, mostra que a atitude do homem diante da morte mudou muito ao longo dos séculos. Para traçar um panorama dessas mudanças desde a Idade Média, o historiador francês se baseou em textos literários, inscrições em túmulos, obras de arte e diários pessoais. Segundo Ariès (2003), no início da Idade Média, havia uma familiaridade com a morte, que era um acontecimento público. O homem das sociedades tradicionais, não apenas o da primeira fase da Idade Média, mas também o de todas as culturas populares e orais resignava-se sem grande dificuldade à idéia de sermos todos mortais. É o que ele denomina como morte domada. Essa “morte domesticada” da Alta Idade Média, esperada e vivida em público, foi aos poucos substituída, nos séculos XII e XIII, por um olhar mais dramático, sendo pensada, a partir de então, como uma separação instantânea do corpo e da alma. Estudos sobre o imaginário medieval, em particular sobre o “nascimento do Purgatório” no final do século XII, e situado por Jacques Le Goff (2003), tendem a confirmar tal mudança com a definição de um terceiro lugar do Além, que implicou na avaliação da conduta de cada homem a partir da morte, sinalizando um processo de individualização. 8 Para Fredric Jameson, a produção de imagens deixou de ser um efeito de duplicação e representação, para tornar-se um processo de construção e simulação. Essa autonomia imagética, como conjunto de traços à procura de significação, é possível de ser facilmente localizada na sociedade ocidental contemporânea, uma sociedade marcada pela aceleração do tempo e pelo conseqüente esvaziamento de suas formas sociais (JAMESON, 2000; 13). 9 ARIÈS, Philippe. História da Morte no Ocidente. Tradução: Priscila Viana de Siqueira. Rio de Janeiro: Ediouro, 2003. Desta forma, a transformação das atitudes ocidentais diante da morte manifestaria uma lenta emergência do “indivíduo”, cujo início é situado ora entre os séculos XII e XIII, ora entre o período medieval e o Renascimento. Dante ao fazer uso desse terceiro lugar do Além na Comédia demonstrou que no ocidente medieval havia uma prática estreita ligada à morte que figurava nos costumes de evocar, de comemorar os defuntos. Com o passar do tempo, no século XVIII, o homem ocidental tende a dar a morte um sentido outro: exalta-a, dramatiza-a, deseja-a arrebatadora, ao mesmo tempo em que já se ocupa menos de sua própria morte, e, assim, a morte romântica, como classifica Ariès, é, antes, a morte do outro – o outro cuja saudade e lembrança inspiram, a partir do século XIX, o culto dos túmulos e dos cemitérios10. Os lugares (simbólicos) construídos para os mortos ajudaram a constituir as práticas para a “reprodução social do morrer”; a morte se inscrevia no interior das redes de relações e de trocas, de estruturas de poder e de sistemas de significados. Sentidos esses que, hoje, percebemos configurados também na mídia digital. Temas como a presença dos mortos entre os vivos, o culto dos ancestrais, a referência da morte, são explorados por Dante e, naquela época, estavam no centro do cristianismo, através de da injunção eucarística relacionada ao corpo simbólico: ‘este é meu corpo que vos é dado; fazei isto em minha memória’ (Lucas, 22,19). É nesse sentido que o cristianismo da Idade Média transforma a repartição da memória coletiva em uma memória litúrgica, desenvolvida principalmente a partir da memória dos mortos, contribuindo para o aparecimento dos tratados de memória (artes memoriae). A Idade Média criou a própria palavra central, memoire, surgida desde os primeiros monumentos da língua, no século XI (LE GOFF, p.455) e tempos mais tarde, mesmo com toda a transformação dos séculos XIX e XX o conceito continuou sendo caro aos homens. Em relação à morte, por exemplo, a Europa do século XX escolheu a cremação como o ‘meio mais radical de se livrar dos mortos’. Ariès (2003), no entanto, afirma 10 No século XIX, o catolicismo retoma expressões sentimentais e comoventes das quais havia se afastado no século XVIII. No entanto, é preciso destacar que o caráter exaltado e comovente do culto dos mortos não é de origem cristã, mas de origem positivista. Ariès afirma que os católicos filiaram-se a esse caráter posteriormente, tendo-o assimilado com tanta perfeição que logo acreditaram-no que nasceu com o catolicismo (ARIÈS, 2003; 73). que tal estratégia não funcionou e que o enterro continuou sendo a prática mais corrente de maneira geral. O historiador acredita que isso ocorreu porque, segundo ele, numa sociedade marcada pelo cristianismo, o túmulo se tornou uma espécie de casa, onde a família encontraria os vestígios, os rastros de memória. Assim, a memória tornava os mortos presentes pela articulação de palavras e manipulação de objetos, que podiam ser tumbas, monumentos funerários, mas também troféus, objetos associados a personalidades dos defuntos ou mesmo relíquias, sagradas ou profanas. Gérard Vincent (1992) explica, a partir de Thomas, que os ‘despojos’ são fundamentais: “Nada pior do que um cadáver ausente [...]. O que é um cadáver? Uma presença que manifesta uma ausência” (VINCENT, 1992;349). A partir dessa perspectiva começa-se a pensar o que fazer para conservar a presença (memória) do falecido, “esquecendo que ele não passa de um esqueleto em vias de mineralização”. Thomas (citado por VINCENT, 1992), afirma que a fotografia, o filme, a fita gravada e os processos de armazenagem de informação são recursos que podemos recorrer para “guardar as lembranças do morto”. E vislumbra: [...] Imaginar uma espécie de mnemoteca dos tempos futuros, como existem bibliotecas, em que as pessoas poderiam consultar à vontade os traços dos desaparecidos[...]Assim, guardaríamos aquilo sem o que ninguém e nenhum grupo pode viver: uma memória e um passado (Thomas citado por VINCENT, 1992; 350). Assim como Dante, que ergueu um monumento de palavras à memória dos mortos, a Internet, hoje, pode ser essa espécie de mnemoteca da qual Thomas se refere. A digitalização da morte, nos parece, passa a estabelecer uma espécie de diálogo de forma mais efetiva e interativa entre os grupos estabelecidos em torno do morto. Isso ocorre porque, numa realidade marcada pela midiatização das relações socioculturais, a morte não escapa à formatação midiática de sua performance: é necessário eternizar esse corpo, mesmo morto, e ativar relações comunicativas a seu redor a fim de conservar a presença do falecido. Por meio das comunidades virtuais, a Internet constrói outra representação da morte, desenvolvendo uma espécie de cerimônia mortuária tecnológica. A morte celebrada nas comunidades virtuais da Internet publicizam, através de imagens fotográficas e textuais, a celebração do ‘corpo morto’, de famosos ou de anônimos, numa espécie de cortejo “eterno”. A memória e o esquecimento dos mortos A memória está longe de apenas representar o encontro com o passado. Santo Agostinho explica que ela é a primeira faculdade mental dos homens, reflexo da Trindade Divina. Essa Trindade, que Dante utilizou em seu poema por meio da métrica11, consiste em uma unidade: “eu compreendo que compreendo, que quero e que me lembro. Eu quero compreender, me lembrar e querer. E eu me lembro que compreendi, quis e me lembrei”. Grande parte das referências da memória medieval que encontramos na Comédia de Dante está relacionada a Santo Agostinho. Para ele, o Cristianismo medieval é uma versão da trilogia antiga dos três poderes da alma: memória, inteligência e providência (vontade). Nesta perspectiva, há um sistema de relações complexas entre o mundo dos vivos e o Além dos defuntos, em que a noção de trespasse, ou rito de passagem, se tornou insuficiente para entender a morte no ocidente medieval. Os costumes funerários, cuja principal função era preservar a lembrança, tecendo elos entre o mundo terreno e o Além, passaram a ser compreendidos em termos de intercâmbio entre vivos e mortos. A Comédia nos fornece essa leitura, na medida em que Dante, o único vivo com acesso a esse outro mundo carrega todo o peso da lembrança desses mortos, para que nós, os vivos, sejamos informados. Os espaços que Dante atravessa em sua jornada na Comédia formam uma paisagem cósmica do Além, na qual as almas dos mortos são distribuídas em seus respectivos locais: O Inferno, um funil – espécie de “anfiteatro” no centro da Terra; o Purgatório, cume de uma montanha, correspondendo ao formato do funil infernal e o Paraíso, que se arqueia sobre o mundo terreno em cristalinas esferas concêntricas. Em cada um desses locais, ele conversa com os mortos, partilha de seus destinos, guarda na memória suas histórias e forma, assim, uma narrativa memorável da morte, deixando aos leitores, os versos de seu grande poema que contempla diversas alegorias de sua imaginação ao Além. 11 Todo poema foi construído em um esquema métrico em que o número de cantos corresponde a um múltiplo de três. Esse esquema simboliza a trindade cristã, Pai-Filho-Espírito Santo. In ALIGHIERI, Dante. A Divina Comédia: Inferno, Purgatório e Paraíso. São Paulo: Editora 34, 1998. Para Weinrich (2001, p.51), “o princípio fundamental dessa mnemotécnica é que todos os conteúdos da memória são concebidos como ‘imagens’ que o narrador tem de colocar em determinados ‘lugares’ de uma paisagem de memória previamente escolhida”. O percurso da narrativa consiste em seguir os locais de memória em seqüência, a fim de invocar, também em seqüência, as imagens de memória lá postadas e, nesse sentido, temos na Comédia uma ilustração literária da antiga arte da memória (ars memoriae). Para Dante, as almas dos mortos no Além são inúmeras imagens mnemônicas que ele assimila em locais de memória “específicos”, para quando escrever o seu poema, no retorno ao mundo dos vivos, poder chamar todos da memória segundo a ordem de seus encontros12. Em nosso objeto de estudo, na comunidade Profiles de Gente Morta, o primeiro narrador, Guilherme Dorta, criador da comunidade, convoca os participantes da rede de relacionamentos a reunirem links de acesso às páginas do perfil (o profile) de pessoas que já morreram, convocando assim esses mesmos participantes ao encontro, onde a tranqüilidade do leito é substituída pela expiação quase que constante do morto. Isso porque no Orkut a página pessoal (homepage) do então falecido não é bloqueada, pelo menos imediatamente.13 Segundo Dorta14, cerca de cinco novos profiles de mortos são publicados diariamente. Acessando esses links é possível desvendar toda a história que está por trás da morte de cada pessoa. Algumas trágicas como suicídios, estupros e acidentes de 12 Dante criou a sua memória artificial, repetindo Simônides, que teria sido o inventor do sistema dos auxílios mnemônicos. O mito responsável pela origem é o banquete oferecido por um nobre da Tessália, onde Simônides era o poeta. Depois de uma discussão sobre quem pagaria o poeta pelo seus préstimos, Simônides sai do salão e, enquanto estava lá fora, o teto desaba sobre os convidados, cujos cadáveres ficaram irreconhecíveis. Simônides, lembrando-se da ordem em que estavam sentados, identificou-os, e, assim, os corpos puderam ser enviados aos familiares. Desta maneira, ele propôs que a memória pode ter um princípio de organização imagética e espacial. Utilizando tal princípio, a Divina Comédia seria uma obra de arte da memória. In WEINRICH, Harald. Lete: arte e crítica do esquecimento. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001. 13 Até o início de 2007, o Orkut mantinha os perfis inativos “circulando” na rede, ou seja, mesmo que os proprietários dos perfis morressem no espaço real, seu ‘corpo digital’ continuava circulando no ciberespaço. Atualmente, segundo nossa pesquisa, o sistema começou a eliminar alguns usuários inativos (principalmente páginas de suicidas) quando passados mais de doze meses. Cientes de tal medida, as pessoas que costumam freqüentar as páginas dos mortos começam a copiar o conteúdo (como fotos, vídeos, declarações, etc) e criar novas páginas em que possuam o login e a senha. Assim os “corpos mortos” continuam circulando na rede. Para algumas pessoas é uma forma de prestar homenagem aos mortos, para outros, para manter os vínculos na rede e há também aqueles que criam tais perfis apenas como “brincadeira”. 14 Informação obtida na comunidade Profiles de Gente Morta no dia 21 de maio de 2006. carros. De mensagem em mensagem, ou como na linguagem do Orkut, de “scrap em scrap”, pode-se acompanhar a evolução de uma doença ou a história de jovens combinando uma viagem que terminou em um acidente. Observamos nos links dos “mortos virtuais” que há diferentes tipos de mensagens, como orações, poemas, frases saudosistas e até recados que deixam entender que o participante desconhecia a morte do amigo ou do parente e soube por meio da comunidade15. (Exemplo de mensagem) Forma-se uma espécie de caleidoscópio da morte, em que as biografias dos mortos são constituídas não apenas pelos fragmentos deixados pelo usuário dessa rede quando vivo (os perfis que são montados nas comunidades pelo próprio usuário), mas também por relatos construídos pelos participantes da rede em forma de lembranças e 15 Além desses recados, há os chamados spans, mensagens, geralmente publicitárias, que determinada pessoa envia para toda lista de sua homepage e, os ‘corpos mortos’, como fazem parte dessa lista, acabam recebendo. Há ainda outras observações: a primeira delas está relacionada aos anúncios de morte, como as notas de falecimento, que na modernidade pertenciam aos meios impressos. No ambiente digital, esses anúncios ganham nova dimensão. Por meio das comunidades virtuais, as notas de falecimento, convocações para missas, enterros e velórios tornaram-se conclames funerários com um poder de circulação (ainda) de finitude desconhecida, possibilitando a participação ampliada dos usuários na cerimônia mortuária. Anunciar a morte, torná-la pública é uma prática nas comunidades virtuais que privilegiam essa temática. acontecimentos em que o indivíduo, um dia, participou. Através das diversas mensagens deixadas em cada profile, os participantes podem traçar uma biografia do morto e ajudar na construção dessa prática discursiva, atuando na manutenção (e invenção) desse ‘corpo morto’. Os usuários dessa rede de relacionamentos têm a possibilidade de participar de cortejos e velórios diariamente, de certa forma evitando o sepultamento final do ‘corpo morto’. Para muitos historiadores medievalistas, a aproximação entre o espaço dos vivos e dos mortos constituiu uma das grandes transformações ocorridas durante a Idade Media. Segundo o modelo tradicional, os vivos deviam cuidar de seus defuntos, dos membros com quem mantinham laços familiares. Os herdeiros deviam “administrar a memória” daqueles de quem haviam recebido um nome e uma condição (bens ou terras), como forma de compensar a herança recebida. Desta forma, os cuidados com os mortos contribuíram para modelar uma vasta comunidade espiritual e, nesse sentido, o clero se tornou o especialista da memória na época. Segundo Michel Lauwers (2006) em meados do século VIII, as práticas de comemoração informais foram de certa maneira “institucionalizadas”: formaram-se então as primeiras associações, reunindo bispos e abades, cujos membros comprometiam-se a, no momento da morte de um deles, celebrar a memória do defunto, com recitação de saltérios e convocação de missas especiais em intenção ao falecimento. A associação entre a morte e a memória adquire rapidamente uma enorme difusão no cristianismo que a desenvolveu com base do culto pagão dos antepassados e dos mortos. As comunidades religiosas mais importantes trocavam entre si listas de nomes de seus membros, onde vivos e mortos estavam misturados. Procedimento semelhante ao que encontramos nas comunidades digitais da contemporaneidade. (Exemplo de fórum: cada linha corresponde a uma lista de discussão) As igrejas e as aldeias há tempos se fixaram em locais onde sepultava os mortos, em torno de pontos de enraizamento e concentração que eram os cemitérios, onde repousavam os ancestrais e formava-se a memória dos grupos. Mas além de se tornarem lugares de refúgio e asilo, os cemitérios eram lugares onde se fazia justiça, onde se concluía acordos, onde estavam os mercados. Formaram-se estabelecimentos religiosos que se transformaram em verdadeiros conservatórios das memórias familiares, aperfeiçoando as práticas de comemoração. A memória não era uma atividade passiva, mas ativa: ela selecionava, corrigia e reinterpretava constantemente o passado em função das necessidades do presente. As comunidades religiosas construíram, portanto, a memória dos mortos, mas também o poder de desfazê-la, por meio da exclusão dos necrológios e da recusa ao cemitério, por exemplo. Desta forma, o culto dos mortos participou da reprodução dos poderes, da distribuição dos bens, da manutenção das classes dominantes da sociedade medieval. A memória dos mortos foi responsável por constituir um sistema na Idade Média. De marca agostiniana, a teologia da memória de Dante, por exemplo, vê no Inferno um lugar de esquecimento permanente e no Purgatório um lugar de esquecimento temporário, enquanto ambos, na medida em que pertencem à paisagem da memória na outra vida, são partes da memória real de Deus. O Purgatório é o “inferno temporário”, a parte mais humana do Além, segundo Le Goff (2003), pois as almas não tiveram seus destinos decididos. Mas essas almas não podem decidir nada pois já estão mortas. Só os vivos podem agir em favor dos penitentes no Purgatório, conseguindo um abreviamento de seus castigos temporários, apressando sua ida para o céu. Em contrapartida, Weinrich (2001) nos lembra que na Comédia há o paralelo entre os rios Lete e Eunoe. Segundo Weinrich, o Lete é o rio do esquecimento, que tem a capacidade de retirar dos mortos, depois de sua passagem para o reino da morte, a lembrança da vida terrena: as “águas tiram as lembranças de nossos pecados”. Segue daí que em todo o Inferno, bem como na maior parte do Purgatório até o Paraíso, no fim da segunda parte da Divina Comédia, todas as almas que Dante encontra não foram submetidas ao esquecimento. Já o Eunoe é o rio da memória, que significa “boa disposição” ou “boa memória”. É o rio gêmeo que nas almas bem-aventuradas têm o poder de agir como antídoto do esquecimento do Lete e fortalecer as lembranças das boas ações que realizaram em vida para poder entrar no céu com boa memória. A Comédia é, dessa forma, esse jogo com a memória e com o esquecimento. Dante é esse homem da memória que luta em sua narrativa contra o esquecimento. Não posso retratar todos em pleno; Assim, quando me impele o tema ingente, Vezes o fato eu do relato alieno. (Inferno, Canto IV) O poema dessa forma é uma espécie de missão de memória, de mostrar aos vivos, que seus mortos pedem para ser lembrados. Do final do século XVII até o fim do século XVIII, enquanto os vivos podem dispor de uma memória técnica, científica e intelectual cada vez mais rica, a memória parece afastar-se dos mortos. A comemoração dos defuntos entra em declínio. Os túmulos, incluindo os dos reis, tornam-se mais simples. As sepulturas são abandonadas à natureza e os cemitérios tornam-se desertos e mal cuidados. Para Vovelle (1974), parece que na Idade das Luzes o desejo é pela eliminação dos mortos. Mas em seguida a Revolução Francesa, assiste-se um retorno da memória dos mortos na França, como nos outros países da Europa. A época dos grandes cemitérios começa com novos tipos de monumentos, inscrições funerárias e ritos. O túmulo, agora separado da Igreja, voltou a ser centro da lembrança. O romantismo acentua a atração do cemitério ligado à memória. O século XIX vê, não mais tanto na ordem do saber como o século VXIII, mas na ordem dos sentimentos e, também da educação, uma explosão do espírito comemorativo. A fotografia revoluciona a memória a partir da invenção dos álbuns de família e o desenvolvimento da memória no século XX constitui uma revolução: a memória torna-se uma das três operações fundamentais realizadas por um computador: escrita, memória e leitura. Nas comunidades digitais, o fluxo constante de mensagens, as cerimônias interferem diretamente no cotidiano dos usuários, lançando-os em outro registro de experiência. Como só possuímos a experiência da morte através de outros sujeitos, a Internet passou a possibilitar de maneira mais efetiva essa vivência, já que nas comunidades digitais é possível, além de trazer à tona o corpo então ausente, escrever, remanejar, inserir fotos, vídeos, copiar e colar fragmentos de vida a partir da morte. Ao mesmo tempo em que alimentam o desejo de esquecimento da morte de si, os meios de comunicação são a via principal de contato com a morte do outro. A morte, que é sempre a do outro, é algo que, agora se encontra mais próxima, no “click do teclado”. Se a morte domada, como denominou Áries (2003), é uma cerimônia pública, familiar e até esperada no leito do moribundo, podemos supor, em alguns aspectos, que ela é retomada16 a partir da ‘morte digital’. Retomada na medida em que é celebrada, percebida, pensada, em outra dimensão da realidade: o ciberespaço. Nas comunidades virtuais dos mortos, notamos que a morte é, de certa forma, mais tolerada. Por outro lado, não podemos deixar de perceber que a morte romântica, a morte moderna, é atenuada, o que não significa que as pessoas deixaram de sofrer pela perda, mas o sofrimento, nos parece, tornou-se menos solitário e discreto, menos secreto, nessas comunidades. Os modos de se pensar a memória ao longo dos tempos são alterados, mas a memória na qual cresce a história, que por sua vez a alimenta, continua na “missão incansável” de salvar o passado para servir ao presente e ao futuro, sempre na tentativa de “desviar” o seu binômio: o esquecimento. Resta-nos descobrir onde estamos agora: no inferno, no purgatório ou no paraíso? Referências bibliográficas 16 Há uma espécie de retomada da morte domada, mas com diferenças significativas. Apesar da familiaridade com a morte, Áries, afirma que os antigos temiam a proximidade dos mortos. Segundo ele, os antigos honravam as sepulturas e promoviam cultos funerários para impedir que os defuntos voltassem para perturbar os vivos (ARIÉS, 2003; 36). AGOSTINHO, Santo. Confissões. São Paulo: Martin Claret, 2002. ALIGHIERI, Dante. A Divina Comédia: Inferno, Purgatório e Paraíso. São Paulo: Editora 34, 1998. ARIÈS, Philippe. História da Morte no Ocidente; tradução: Priscila Viana de Siqueira – Rio de Janeiro, Ediouro, 2003. HOUAISS, A. e VILLAR, M.S. Dicionário Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001. JAMENSON, Fredric. Pós-modernismo :a lógica cultural do capitalismo tardio. 2. ed. São Paulo: Ática, 2000. LAUWERS, Michel. Morte e Mortos. In LE GOFF & SCHMITT, Dicionário Temático do Ocidente Medieval. São Paulo: Edusc, 2006. LE GOFF, Jacques. História e Memória. 5.ed. Campinas, Editora da Unicamp, 2003. ORKUT. Comunidade Virtual [on line]. Disponível http://pt.wikipedia.org/wiki/Orkut. [Capturado em 02 de junho de 2006]. em: PROFILES DE GENTE MORTA. Comunidade Virtual [on line]. Disponível em: http://www.orkut.com/Community.aspx?cmm=993780 [capturado em 05 de agosto de 2006] RIBEIRO, Renata Rezende. Cemitério Digital: uma narrativa da morte contemporânea. Artigo publicado nos Anais do II CONECO – Congresso de Estudantes de PósGraduação em Comunicação. RJ: PUC, 2007. RICOEUR, Paul. Tempo e Narrativa. (volumes I, II e III). Campinas, SP: Papirus (1994, 1995,1996). RICOEUR, Paul. La memória, la historia, el olvido. Editorial Trotta, Madri, 2003. SODRÉ, Muniz. Antropológica do Espelho: uma teoria da comunicação linear e em rede. Petrópolis: Vozes, 2002. VINCENT, Gerard. Uma história do segredo? O corpo e o enigma sexual. In: PROST, Antoine e VINCENT, Gerard (orgs.). História da Vida Privada 5: Da Primeira Guerra a nossos dias. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. VOVELLE, M. (org.). Mourir autrefois. Attitudes collectives devant la mort. Paris: Gallimard, 1974. WEINRICH, Harald. Lete: arte e crítica do esquecimento. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001.