CAPACITAÇÃO para os Mecanismos de Gênero no GOVERNO FEDERAL Secretaria de Políticas para as Mulheres Presidência da República CAPACITAÇÃO para os Mecanismos de Gênero no GOVERNO FEDERAL 1º Edição Brasília, 2014 Dilma Rousseff Presidenta da República Eleonora Menicucci Ministra de Estado Chefe da Secretaria de Políticas para as Mulheres da Presidência da República Lourdes Maria Bandeira Secretária Executiva Aparecida Gonçalves Secretária de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres Tatau Godinho Secretária de Polítcas do Trabalho e Autonomia Econômica das Mulheres Vera Lucia Lemos Soares Secretária de Articulação Institucional e Ações Temáticas Linda Goulart Chefe de Gabinete 2014. Presidência da República. Secretaria de Políticas para as Mulheres Organização, Distribuição e Informações Secretaria de Políticas para as Mulheres da Presidência da República SCES - Trecho 2 - Asa Sul - Brasília/DF Ed. Tancredo Neves - 1º andar CEP: 70.200-002 [email protected] www.spm.gov.br Ligue 180 – Central de Atendimento à Mulher Coordenação Geral: Secretaria Executiva da SPM – PR Organização: Camila Rocha Firmino Carolina Pereira Tokarski Leila Giandoni Ollaik Edição e Revisão: Camila Rocha Firmino C236 Capacitação para os mecanismos de gênero no governo federal / Secretaria de Políticas para as Mulheres. -- Brasília : Presidência da República, 2014. 144 p. : il. Essa publicação constitui um registro do Seminário para Capacitação dos Mecanismos de Gênero no Governo Federal no âmbito da 48a Reunião do Comitê de Articulação e Monitoramento do Plano Nacional de Políticas para as Mulheres. ISBN 978-85-85142-50-6 1. Igualdade de Gênero - Brasil. 2. Mulheres - Brasil. 3. Políticas públicas - Brasil. 4. Políticas sociais - Brasil. I. Brasil. Presidência da República. Secretaria de Políticas para as Mulheres. II. Título. CDD 305.40981 SUMÁRIO SUMÁRIO 7 Apresentação 9 Introdução 12 Por que criar Mecanismos de Gênero nos órgãos governamentais? 29 Institucionalização das políticas públicas para mulheres rurais no Ministério do Desenvolvimento Agrário 38 Políticas sociais e igualdade de gênero: conquistas e desafios 49 Desafios e oportunidades de gêneros no mundo do trabalho 54 A situação das mulheres no Brasil: estatísticas e desafios 76 Igualdade de gênero na prática do governo federal – um olhar a partir de estudo sobre a transversalidade 91 Políticas sociais e gênero como interdisciplinaridade e paradigma 117 Trabalho remunerado e trabalho doméstico – uma tensão permanente 131 Racismo Institucional – definir, identificar e enfrentar 140 Anexo 141 Siglas e acrônimos APRESENTAÇÃO APRESENTAÇÃO É com muita satisfação que trazemos essa publicação que constitui um registro do Seminário para Capacitação dos Mecanismos de Gênero no governo federal no âmbito da 48ª Reunião do Comitê de Articulação e Monitoramento do Plano Nacional de Políticas para as Mulheres. Mais do que um registro, essa publicação traz para as/os servidoras/es das esferas governamentais, que atuarão com o viés de gênero nas políticas públicas contribuições, discussões e reflexões sobre desigualdades de gênero e a estratégia de transversalização das políticas para as mulheres adotada por nossa Secretaria. Entendemos que a sociedade brasileira está historicamente estruturada sobre bases patriarcais e racistas. Essas desigualdades nela entranhadas remetem aos privilégios de certas categorias e grupos hegemônicos em detrimento das categorias e grupos excluídos. Nesse sentido, a transformação em prol da igualdade é uma demanda social e uma tarefa assumida pelo governo federal. A criação da SPM em 2003, como resposta às reivindicações históricas dos movimentos feministas e de mulheres, anuncia o reconhecimento por parte do Estado da necessidade de políticas públicas para as mulheres. Em dez anos de SPM, avançamos no enfrentamento às desigualdades de gênero; entretanto, para que tal enfrentamento seja amplo e irrestrito é necessário que a perspectiva de gênero seja adotada por todos os órgãos do governo federal. Uma política para igualdade de gênero só pode ser bem-sucedida se realizada transversalmente. Em outras palavras, trata-se de considerar as experiências e perspectivas das mulheres na elaboração e implementação de todas as políticas governamentais. Nossa expectativa é que essa publicação ajude ecoar o entendimento da urgência do enfrentamento às desigualdades de gênero e raça e contribua para o trabalho cotidiano das e dos agentes responsáveis pela execução das políticas públicas concernentes. Eleonora Menicucci Ministra de Estado Chefe da Secretaria de Políticas para as Mulheres da Presidência da República APRESENTAÇÃO 7 INTRODUÇÃO INTRODUÇÃO Reunimos nessa coletânea de textos o conteúdo das apresentações do Seminário para Capacitação dos Mecanismos de Gênero no governo federal ocorrido nos dias 20 e 21 agosto de 2013, em Brasília, no âmbito da 48ª Reunião do Comitê de Articulação e Monitoramento do Plano Nacional de Políticas para as Mulheres1. Ao organizarmos essa publicação, nossa intenção foi disponibilizar um material formativo para as/os servidoras/es federais, que atuam nos Mecanismos de Gênero, e para agentes públicos, federais ou de outros entes federados, que operacionalizam as políticas para as mulheres. O Seminário contou com a participação de especialistas na temática de gênero em diversas áreas do conhecimento o que redundou em um rico debate sobre a realidade das mulheres no Brasil e as estratégias de intervenção das políticas públicas com vistas à eliminação das desigualdades. Assim, por apresentar importantes dados e discussões sobre gênero e políticas públicas esta publicação firma-se também como insumo para pesquisadoras/es do tema. Em consonância com o PPA, que apresenta os macrodesafios do governo federal para cada quadriênio, por meio do Seminário de Capacitação dos Mecanismos de Gênero do Governo Federal, pretendeu-se contribuir para a efetivação da transversalidade e da multisetorialidade das políticas públicas brasileiras. No que tange às políticas públicas para as mulheres, o evento integra uma ação do Plano Nacional de Políticas para as Mulheres – PNPM 2013- 2015 e está articulado com o PPA 2012-2015, no Programa 2016 – Política para as Mulheres. Os Mecanismos de Gênero são peças fundamentais na transversalização das políticas para as mulheres. São eles os responsáveis por introduzir a perspectiva de gênero nas políticas 1 O Comitê tem por objetivo acompanhar e avaliar periodicamente o cumprimento dos objetivos, metas e ações definidas no Plano Nacional de Políticas para as Mulheres (PNPM); é formado por 33 órgãos governamentais mais três representações do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher e é coordenado pela SPM. Em 2005, o Comitê, era composto por 12 Ministérios (Decreto nº 5.390 de 2005) e três representações do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher. Os Decretos nº 5.446, de 20 de maio de 2005; nº 5.390, de 8 de março de 2005; nº 6.269, de 22 de novembro de 2007 e nº 6.572, de 17 de setembro de 2008, deram nova redação ao inciso IV do Art. 4º do Decreto nº 5.390, acrescentando dez novos membros ao Comitê. Finalmente, o Decreto nº 7.959, de 13 de março de 2013, acrescentou mais onze novos membros, ampliando sua capacidade de articulação e de monitoramento do PNPM. O Comitê passou a ter como membros efetivos 33 órgãos governamentais, além das três representações do CNDM. INTRODUÇÃO 9 dos órgãos governamentais. Uma vez compreendida a situação de desigualdade entre mulheres e homens, bem como as desigualdades étnica, racial, de identidade de gênero, de orientação sexual e de classe entre as mulheres, como estruturantes da sociedade brasileira, é possível pensar desde o interior de cada órgão como suas ações podem contribuir para o enfrentamento dessas desigualdades. O Mecanismo é um espaço de articulação para a formulação de ações ou políticas para a igualdade de gênero. Atualmente, existem 15 Mecanismos no governo federal. A relação dos Mecanismos bem como seus respectivos status de institucionalização encontram-se no Anexo I. A Secretaria de Políticas para as Mulheres por meio da atuação do Comitê de Articulação e Monitoramento do Plano Nacional de Políticas paras as Mulheres - Comitê PNPM tem trabalhado para ampliar o número de Mecanismos. Difundir o debate sobre o papel das políticas públicas no enfrentamento às desigualdades de gênero e raça é parte desse esforço e um dos objetivos do Seminário. Organizado pela Secretaria Executiva da SPM, o Seminário foi uma demanda do Comitê frente à necessidade de formação na temática de igualdade de gênero das/os servidoras/ es integrantes (atuais e/ou futuros) dos Mecanismos. A programação buscou dar conta de conceitos iniciais necessários para a compreensão do tema, da proposta de política transversal de gênero, da relação entre movimentos feministas e demandas por políticas públicas, de dados estatísticos e qualitativos sobre a realidade das mulheres no Brasil e da questão racial. O primeiro texto, “Por que criar Mecanismos de Gênero nos órgãos governamentais”, traz a fala da Secretária Executiva da SPM Lourdes Bandeira que apresenta o conceito de gênero, de transversalidade e aborda a importância estratégica do Mecanismo de Gênero. Os três textos seguintes expõe as experiências do MDA, MDS e MTE na institucionalização da temática de gênero nesses Ministérios. São eles: “Institucionalização das políticas públicas para mulheres rurais no ministério do desenvolvimento agrário” por Renata Leite, “Políticas sociais e igualdade de gênero: conquistas e desafios” por Teresa Sacchet e “Desafios e oportunidades de Gêneros no mundo do 10 INTRODUÇÃO trabalho” por Adriana dos Santos e Esther Alvim. Um panorama das pesquisas e indicadores de gênero apurados pelo IBGE é apresentado por Ana Saboia no texto “A situação das mulheres no Brasil: estatísticas e desafios”. O texto de Fernanda Papa “Igualdade de gênero na prática do governo federal – um olhar a partir de estudo sobre a transversalidade” contribui à reflexão sobre transversalidade e políticas para as mulheres a partir da prática no governo federal. O texto de Lia Zanotta, “Políticas sociais e gênero como interdisciplinaridade e Paradigma” nos remete à história do movimento feminista e seus desdobramentos no campo político e teórico quais sejam a reivindicação das mulheres como sujeitos de direito e o conceito de gênero engendrado no bojo da teoria feminista que nos possibilita pensar as múltiplas possibilidades de existência e de identidades para além da categoria mulher. O texto “Trabalho remunerado e trabalho doméstico – uma tensão permanente”, de Maíra Saruê e Verônica Ferreira, expõe os resultados do estudo realizado sobre o cotidiano doméstico de mulheres trabalhadoras e discute a desvalorização e sobrecarga de trabalho imposto às mulheres pelo processo de socialização patriarcal. Essa sobrecarga é ainda maior quando tomado o recorte de classe. E considerando que as desigualdades de gênero estão imbricadas nas desigualdades raciais tal debate se coloca como imprescindível no ciclo das políticas sociais. Assim, o texto de Nina Madsen e Nilza Iraci, “Racismo Institucional – definir, identificar e enfrentar”, apresenta uma síntese dos documentos “Guia de Enfrentamento ao Racismo Institucional” e “Racismo Institucional: uma abordagem conceitual” cujo objetivo é fornecer subsídios para a elaboração de indicadores de racismo institucional. Por fim, partindo do pressuposto de que não existe neutralidade nas políticas públicas, ressaltamos nossa expectativa de que essa publicação alcance o maior número possível de servidoras/es dos poderes públicos pois estas/estes, na formulação e implementação das políticas, têm a oportunidade de incidir no processo de transformação social rumo à igualdade de gênero e raça. INTRODUÇÃO 11 POR QUE CRIAR MECANISMOS DE GÊNERO NOS ÓRGÃOS GOVERNAMENTAIS? POR QUE CRIAR MECANISMOS DE GÊNERO NOS ÓRGÃOS GOVERNAMENTAIS? Lourdes Maria Bandeira1 O objetivo deste Seminário é a capacitação dos responsáveis pelos mecanismos de gênero no governo federal. Por isso a palestra de abertura ser: Por que criar Mecanismos de Gênero nos órgãos governamentais? Em linhas gerais, o Mecanismo é um espaço de articulação para a elaboração de políticas para a igualdade de gênero nas ações de cada órgão governamental; é um espaço para inserção da perspectiva de gênero nos órgãos para que os mesmos possam incorporar tal perspectiva na formulação e na implementação de suas políticas e ações. A prioridade da Secretaria de Políticas para as Mulheres é que cada órgão governamental tenha em sua estrutura um Mecanismo de Gênero. Esse mecanismo pode ser uma assessoria da/ o ministra/o especializada em gênero que possa reunir representantes de todas as áreas daquele ministério para garantir a perspectiva de gênero em todas as suas ações; ou, em vez de uma assessoria especializada, uma diretoria, ou uma coordenadoria. A nossa proposta é a criação de um Comitê de Gênero em cada órgão do governo federal, que possa atentar para a questão das mulheres em todas as ações implementadas por aquele órgão governamental. A Secretaria de Políticas para as Mulheres foi criada em 2003 para, além de executar políticas públicas para as mulheres, inserir a perspectiva de gênero nas políticas do governo federal; e o Comitê de Articulação e Monitoramento do Plano Nacional de Políticas para as Mulheres – PNPM, criado pelo Decreto nº 5.390/2005, tem também esse papel. A participação dos 33 membros representantes dos órgãos governamentais e da administração pública federal que compõem o Comitê é fundamental para implementação de políticas para as mulheres; mas, além disso, é preciso que cada um desses membros seja o ponto focal em seu respectivo órgão para disseminar a visão de gênero para todas as ações de cada ministério, de cada órgão governamental, internamente. O Comitê faz a articulação transversal e parcerias; no entanto cada membro do Comitê do PNPM deve trabalhar para garantir a perspectiva de gênero em seu órgão. 1 Lourdes Maria Bandeira é Secretária Executiva da SPM-PR e professora titular no Departamento de Sociologia da Universidade de Brasília. POR QUE CRIAR MECANISMOS DE GÊNERO NOS ÓRGÃOS GOVERNAMENTAIS? 13 O Comitê já realizou duas Oficinas sobre a necessidade de criação de Comitês de Gênero nos Ministérios. A primeira ocorreu em 19 de maio de 2010, durante a 34ª reunião do Comitê de Articulação e Monitoramento do Plano Nacional de Políticas para as Mulheres – PNPM, que originou um documento base para criação de Mecanismos nos ministérios2, que foi amplamente divulgado e está disponível no site da SPM. A segunda ocorreu em 19 de fevereiro de 2013, quando MME, MDS, MDA, MMA e BB apresentaram suas experiências acerca do processo de criação dos Mecanismos. Na reunião seguinte, em 16 de abril de 2013, foi discutido e elaborado um projeto para implementação de Mecanismos de Gênero nos órgãos governamentais que ainda não os têm. As/os integrantes do Comitê levaram a proposta para suas respectivas Secretarias Executivas a fim de que dessem os encaminhamentos necessários para criação de Comitês dos Mecanismos. Foi pontuada, por muitos dos membros, a necessidade de uma capacitação e uma formação em gênero tanto para quem irá compor os Mecanismos quanto para o próprio Comitê. Daí a realização deste Seminário. Observamos seis caracteríscas fundamentais dos Comitês existentes: 1) orçamento; 2) representação de todas as secretarias e áreas internas; 3) condição de órgão permanente; 4) vinculação a órgão com poder de decisão; 5) capacidade do comitê de sensibilizar as/os gestores internos; e 6) comitê não responder somente à SPM, mas deve dar protagonismo às políticas de gênero internas à sua instituição. A intenção deste texto é apresentar o contexto dos Mecanismos como estratégia para a transversalização das Políticas para as Mulheres. 1. CONTEXTUALIZAÇÃO Embora o campo dos estudos de gênero tenha se consolidado a partir da década de 1980 no Brasil, a incorporação da perspectiva de gênero nas políticas públicas é recente. Para uma melhor compreensão da questão apresentamos nesta introdução: 1. o conceito de gênero; 2. breve revisão histórica e marcos legais dos precedentes desta demanda; e 3. os marcos políticos que embasam propostas de criação de mecanismos de gênero. 2 14 Orientações Estratégicas para Institucionalização da Temática de Gênero nos Órgãos Governamentais. POR QUE CRIAR MECANISMOS DE GÊNERO NOS ÓRGÃOS GOVERNAMENTAIS? 1.1. GÊNERO O conceito de gênero refere-se ao aparato sócio-cultural que delimita a diferença sexual, ou seja, que confere significado à diferença anatômica/ biológica (feminino, masculino). No entanto, a diferença de gênero não é isenta de arranjos de poder, ao contrário, ela subsidia a desigualdade na medida em que posiciona as diferenças entre masculino e feminino, numa escala hierárquica de poder. Em outras palavras, o conceito de gênero trata das diferenças socialmente construídas que surgem da maneira como as sociedades organizam e hierarquizam as atribuições, atitudes e comportamentos entre mulheres e homens. Refere-se às diferenças entre mulheres e homens não biológicas, mas sim socialmente construídas. 1.2. HISTÓRICO DOS PRECEDENTES E DOS MARCOS LEGAIS O principal precedente da demanda por Mecanismos de Gênero nos órgãos governamentais vem do movimento feminista e da relação entre sociedade civil e Estado. É possível datar a origem do movimento feminista com os movimentos pelo sufrágio e emancipação feminina, a partir de meados do século XIX, iniciados nos Estados Unidos e na Europa Ocidental. No Brasil, a luta pela emancipação feminina acontece nas primeiras décadas do século XX junto às mulheres das classes trabalhadoras, nos movimentos grevistas, e também nas classes mais abastadas, nas quais grupos de mulheres se mobilizavam em torno da causa sufragista. Na chamada segunda onda, na década de 1970, no Brasil, as ações do movimento centraram-se em reivindicações pelas creches, por uma divisão mais igualitária do trabalho reprodutivo (doméstico), pelo combate à violência contra a mulher, pela garantia dos direitos sexuais e reprodutivos, pelo acesso à educação e pela autonomia econômica das mulheres. Este momento histórico caracterizou-se, pelo protagonismo dos grupos feministas autônomos, pela luta contras as diversas formas de opressão contra as mulheres e pela redemocratização do país (COSTA, 2009). No âmbito das convenções internacionais, em 1979, foi estabelecida a Convenção sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (CEDAW) a carta magna dos Direitos da Mulher tirada nesta convenção é de caráter bastante amplo. Trata da discriminação contra a mulher em todos os campos: saúde, trabalho, violência, poder. A Convenção foi aprovada POR QUE CRIAR MECANISMOS DE GÊNERO NOS ÓRGÃOS GOVERNAMENTAIS? 15 pela ONU em 1979, ratificada pelo Brasil em 1984, com reservas aos artigos 15, § 4º e 16, § 1º (a), (c), (g) e (h) (retirados em 1994), referentes, respectivamente, à liberdade de movimento, escolha de domicílio e casamento. No processo da Constituinte, a adesão do Movimento Feminista teve por objetivo garantir uma legislação mais igualitária: Organizadas em torno da bandeira ‘Constituinte pra valer tem que ter palavra de mulher’, as mulheres estruturaram propostas para a nova Constituição, apresentadas ao Congresso Constituinte sob o título ‘Carta das Mulheres Brasileiras’. Várias propostas dos movimentos – incluindo temas relativos à saúde, família, trabalho, violência, discriminação, cultura e propriedade da terra foram incorporadas à Constituição (FARAH, 2004, p. 51). No que tange as políticas públicas, os movimentos feministas também as reivindicaram como um dos meios de enfrentamento às desigualdades: Sob o impacto desses movimentos, na década de 80 foram implantadas as primeiras políticas públicas com recorte de gênero. Tal é o caso da criação do primeiro Conselho Estadual da Condição Feminina, em 1983, e da primeira Delegacia de Polícia de Defesa da Mulher, em 1985, ambos no Estado de São Paulo. Essas instituições se disseminaram a seguir por todo o país. Ainda em 1985 foi criado o Conselho Nacional dos Direitos da Mulher, órgão do Ministério da Justiça. Foi também a mobilização de mulheres que levou à instituição do Programa de Assistência Integral à Saúde da Mulher - PAISM, em 1983 (FARAH, 2004, p. 51). Nota-se um processo dialógico entre sociedade civil e Estado no qual as demandas por igualdade entre mulheres e homens devem continuar em pauta, bem como as demandas por igualdade étnica, racial, de orientação sexual e de identidade de gênero. Assim, a igualdade é uma garantia constitucional explicitada - “homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição” (Art. 5o, I); - que necessita de políticas públicas para se efetivar. 1.3. POLÍTICAS PARA AS MULHERES: MARCOS POLÍTICOS Criada há dez anos, a Secretaria de Políticas para as Mulheres da Presidência da República – SPM/PR representa o reconhecimento por parte do Estado brasileiro da necessidade de 16 POR QUE CRIAR MECANISMOS DE GÊNERO NOS ÓRGÃOS GOVERNAMENTAIS? enfrentamento às desigualdades de gênero de maneira institucionalizada. Desde então, o compromisso do governo federal com as políticas para as mulheres vem se concretizando por meio da implementação do Plano Nacional de Políticas para as Mulheres - PNPM, agora atualizado para o período 2013- 2015. O PNPM é elaborado a partir das deliberações das Conferências Nacionais de Políticas para as Mulheres. Em julho de 2004, foi realizada a 1ª Conferência Nacional de Políticas para as Mulheres - 1ª CNPM. Essa contou com a participação de 1.787 delegadas na etapa nacional, que debateram as suas agendas e contribuíram diretamente para a elaboração do I PNPM. O processo como um todo envolveu mais de 120 mil mulheres em todas as regiões do país. Em agosto de 2007, ocorreu a 2ª Conferência Nacional de Políticas para as Mulheres - 2ª CNPM, com a participação de 200 mil mulheres das quais 2.800 constituíram a delegação na etapa nacional, que sistematizou um conjunto de demandas e propostas ao Estado Brasileiro. O II PNPM foi elaborado a partir das resoluções da 2ª CNPM e publicado em 2008. Em dezembro de 2011, ocorreu então a 3ª Conferência Nacional de Política para as Mulheres - 3ª CNPM, com 200 mil participantes em todo país e 2.125 delegadas na etapa nacional. A 3ª CNPM deliberou pela atualização do II PNPM, optando pela manutenção de seus eixos. Se o II PNPM sintetizava as principais demandas e aspirações da Política para as Mulheres para um longo prazo, o PNPM 2013-2015 reafirma o compromisso do Estado com a igualdade de gênero por meio de ações concretas e transversais. O PNPM pressupõe a transversalidade na sua elaboração, gestão e implementação. Temos, portanto, esta como uma estratégia que dever ser realizada articulada por três dimensões: i. entre os órgãos de governo (intersetorial); ii. entre governo federal, estaduais, municipais e distrital (federativa); e iii. entre Estado e a Sociedade civil (participação e controle social). Pretende-se, por seu meio, consolidar o compromisso das políticas do Estado brasileiro com a igualdade; fortalecer os Mecanismos e os Organismos de Políticas para as Mulheres, garantindo-se recursos orçamentários, humanos e de infraestrutura, como forma de ampliar a capilaridade das políticas para as mulheres: e forjar novas estratégias de diálogo e participação social. POR QUE CRIAR MECANISMOS DE GÊNERO NOS ÓRGÃOS GOVERNAMENTAIS? 17 A perspectiva da transversalidade é fundamental porque as mulheres não se constituem como um grupo homogêneo, são afetadas por múltiplas desigualdades interseccionáveis que podem variar de acordo com a condição de classe social, raça, etnia, orientação sexual, geração, deficiência, contexto geopolítico etc. As desigualdades de gênero perpassam todas as esferas da vida social e por esse motivo devem ser enfrentadas em todas as áreas de atuação governamental. Embora muitas das ações do PNPM resultem de articulações com outros órgãos governamentais, é necessário avançar nesse processo. Promover a igualdade entre as mulheres e entre essas com os homens. Esse é um objetivo que só poderá ser alcançado através da incorporação da perspectiva de gênero nas ações de todos os órgãos governamentais. Com essa certeza, propomos a criação dos Mecanismos de Gênero; ou seja, um locus na estrutura de cada órgão governamental responsável pela incorporação das questões de gênero e tradução destas em ações concretas a serem implementadas nas políticas públicas sob sua responsabilidade. Para tanto, retomamos, nesta apresentação, o conceito de transversalidade, o conceito de Mecanismo de Gênero, e em seguida as orientações para a criação de um Mecanismo de Gênero neste órgão governamental. 2. TRANSVERSALIDADE O conceito de transversalidade é uma tradução de gender mainstreaming, adotada pelas Nações Unidas na Plataforma de Ação da IV Conferência Mundial das Mulheres, realizada em Beijing, China, em 1995. Este conceito tem sofrido transformações e, no Brasil, é utilizado com vistas a garantir a incorporação da melhoria do status das mulheres em todas as dimensões da sociedade: econômica, política, cultural e social, com repercussões nas esferas jurídicas e administrativas, incidindo em mudanças relativas à remuneração, acesso à segurança social, à educação e saúde, partilha de responsabilidades profissionais e familiares na esfera doméstica e a busca de paridade nos processos de decisão. No contexto brasileiro, a incorporação da política de promoção da igualdade das mulheres de maneira “transversal” significa – muito além da criação de um órgão específico de atuação na área da mulher – atenção às especificidades e demandas das mulheres nas políticas públicas desenvolvidas em cada área governamental. 18 POR QUE CRIAR MECANISMOS DE GÊNERO NOS ÓRGÃOS GOVERNAMENTAIS? Vale dizer que as ações políticas devem sempre contemplar o objetivo da igualdade de gênero, vinculando-se e relacionando-se com as demais áreas de ação governamental. Na perspectiva de transversalidade, não há políticas públicas desvinculadas – ou neutras – em relação à condição de gênero. Assim, cada ação política contempla tal perspectiva, uma vez que a pergunta chave implícita está sempre posta: em que medida essa política pública modifica as condições de vida das mulheres e incide na busca por sua autonomia? Ou seja, o que se propõe é uma transformação nas relações de gênero que elimine as visões/representações segregadas e discriminadoras associadas ao masculino/masculinidade e do feminino/feminilidade. É preciso observar que a finalidade é erradicar as desigualdades, sem, contudo, deixar de perceber as diferenças. No contexto das Políticas Públicas para as Mulheres, a transversalidade refere-se também a um pacto de responsabilidades compartilhadas e interseccionadas que envolve todos os órgãos do governo e todos os entes federativos, garantindo-se a participação social. Isso porque somente uma ação conjunta de todos os setores pode obter sucesso em mudar a realidade desigual entre homens e mulheres, tão candente e, ao mesmo tempo, tão quotidiana em nosso país. A gestão transversal implica articulação horizontal e não hierárquica dos vários órgãos do governo federal, bem como entre governo federal e governos estaduais, municipais e do Distrito Federal, com o objetivo de influenciar o desenho, a formulação, a execução e a avaliação do conjunto das políticas públicas, gerando responsabilidade compartilhada por todos os participantes. A concretização de implementação de uma postura transversal às políticas para as mulheres demanda a definição de instrumentos de gestão que permitam a sua operacionalização. Em linhas gerais, esses instrumentos devem assegurar a definição, de modo sistêmico, de ações a serem implementadas, da co-responsabilização dos demais órgãos de governo, e, especialmente, da institucionalização de Mecanismos que permitam uma coordenação horizontal – e não hierárquica – das Políticas para as Mulheres. Para sistematizar e integrar as ações que resultam nas Políticas para as Mulheres, bem como garantir o compartilhamento de responsabilidades pelos órgãos de governo, foi aprovado o Plano Nacional de Políticas para as Mulheres – PNPM e foi instituído o Comitê de Articulação e Monitoramento (Decreto nº 5.390 de 8 de março de 2005). Este Comitê é coordenado pela Secretaria de Políticas para as Mulheres da Presidência da República - SPM/PR. POR QUE CRIAR MECANISMOS DE GÊNERO NOS ÓRGÃOS GOVERNAMENTAIS? 19 Desde então, o Comitê vem se reunindo no mínimo uma vez a cada bimestre, com ampla participação de praticamente todos os órgãos do governo federal e demais órgãos da Administração Pública Federal direta e indireta (IPEA, IBGE, BB, CAIXA). Ao longo de 2012, a SPM/PR elaborou, a partir das resoluções da 3ª Conferência Nacional de Políticas para as Mulheres e com a participação do Comitê de Articulação e Monitoramento do PNPM, o Plano Nacional de Políticas para as Mulheres – PNPM com vigência para o período de 2013-2015. Para garantir a institucionalização de Mecanismo que fosse espaço de pactuação e também de acompanhamento das ações, o Comitê de Articulação e Monitoramento do PNPM foi ampliado (Decreto 7.959, de 13 de março de 2013). Sua atuação é fundamental para o processo de consolidação das questões de gênero na agenda política do Governo brasileiro. A atuação do Comitê deve, contudo, ser complementada por outras ferramentas, que sejam hábeis a suportar o processo de avanço das políticas para as mulheres. É nesse contexto que se identifica a importância inadiável de institucionalizar Mecanismos de Gênero nos órgãos de Governo. 3. MECANISMOS DE GÊNERO Mecanismo de Gênero é um locus – que pode ser uma Secretaria, uma Diretoria, uma Coordenação-Geral, uma Coordenação, um Núcleo, Assessoria, ou mesmo um Comitê que se reúna periodicamente com membros das “instâncias decisórias” de um mesmo órgão governamental – institucionalizado, com representatividade e responsável pela incorporação das questões de gênero e pela tradução destas questões em políticas e ações concretas a serem implementadas nas políticas públicas sob a responsabilidade daquele órgão governamental. Independentemente de sua estrutura o Mecanismo deve estar vinculado à secretaria-executiva ou ao gabinete da/o ministra/o. Os Ministérios da Saúde (MS), do Desenvolvimento Social (MDS), do Desenvolvimento Agrário (MDA), do Meio Ambiente (MMA), de Minas e Energia (MME), do Trabalho e Emprego (MTE), da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA), da Defesa (MD), das Comunicações (MC) da Pesca e Agricultura (MPA), das Relações Exteriores (MRE), a Funai, o Ipea, a Caixa e o Banco do Brasil possuem Mecanismos em pleno funcionamento. O benefício da institucionalização desses Mecanismos para as políticas da SPM é indiscutível, deixando evidente que para gestão transversal dessas Políticas, além da/o representante de 20 POR QUE CRIAR MECANISMOS DE GÊNERO NOS ÓRGÃOS GOVERNAMENTAIS? cada órgão no Comitê de Articulação e Monitoramento do PNPM (coordenado pela SPM/PR), é imprescindível a criação de um Mecanismo de Gênero em cada órgão governamental, bem como o fortalecimento dos existentes nos órgãos governamentais que já o criaram. A criação de Mecanismos de Gênero em órgãos governamentais está prevista no Plano Nacional de Políticas para as Mulheres - PNPM 2013-2015, em sua linha de ação 1, ação 1.4, do capítulo de Gestão e Monitoramento: Linha de Ação 1: Ampliação e fortalecimento da institucionalização das políticas de gênero nos poderes executivos federal, distrital, estaduais e municipais. 1.4. Articular e contribuir para a criação e o fortalecimento de mecanismos de gênero em ministérios e órgãos setoriais. SPM - 0935/4ª meta Também no Plano Plurianual – PPA 2012-2015, os Mecanismos de Gênero aparecem como um dos indicadores do Programa 2016 – Política para as Mulheres: Índice Federal de cobertura de mecanismos de gêneros. E também como uma meta explicita, no sentido de ampliar o número de Mecanismos de Gênero nos órgãos do Governo Federal com prioridade para os representados no Comitê de Articulação e Monitoramento do PNPM, do Objetivo 0935: OBJETIVO: 0935 - Promover a gestão transversal da Política Nacional para as Mulheres, por meio da articulação intragovernamental, intergovernamental e do fomento à participação social, garantindo o monitoramento e avaliação das políticas públicas, a produção de estudos e pesquisas e o fortalecimento dos instrumentos e canais de diálogo nacionais e internacionais. É esse o nosso objetivo. POR QUE CRIAR MECANISMOS DE GÊNERO NOS ÓRGÃOS GOVERNAMENTAIS? 21 4. ORIENTAÇÕES PARA CRIAÇÃO DE UM MECANISMO DE GÊNERO3 Os princípios norteadores do Mecanismo de Gênero devem estar alinhados com os princípios norteadores do Plano Nacional de Políticas para as Mulheres – PNPM e das Conferências Nacionais de Políticas para as Mulheres, quais sejam: • Laicidade do Estado. • Igualdade e respeito à diversidade. • Universalidade das políticas. • Equidade. • Autonomia das mulheres. • Transparência de atos públicos. • Participação e controle social. A atuação do Mecanismo de Gênero deve buscar: • Garantir a implementação de políticas públicas integradas para a construção e a promoção da igualdade de gênero, raça e etnia. • Garantir o cumprimento dos tratados, acordos e convenções internacionais firmados e ratificados pelo Estado brasileiro relativos aos direitos humanos das mulheres. • Fomentar e implementar políticas de ação afirmativa como instrumento necessário ao pleno exercício de todos os direitos e liberdades fundamentais para distintos grupos de mulheres. • Promover o equilíbrio de poder entre mulheres e homens, em termos de recursos econômicos, direitos legais, participação política e relações interpessoais. • Garantir a alocação e execução de recursos das Leis Orçamentárias Anuais para a implementação das políticas públicas para as mulheres. • Formar e capacitar servidores(as) públicos(as) em gênero, raça, etnia e direitos humanos, de forma a garantir a implementação de políticas públicas voltadas para a igualdade. 3 O conteúdo a seguir é um extrato da publicação “Orientações Estratégicas para a Institucionalização da Temática de Gênero nos Órgãos Governamentais”. 22 POR QUE CRIAR MECANISMOS DE GÊNERO NOS ÓRGÃOS GOVERNAMENTAIS? • Garantir a participação e o controle social na formulação, implementação, monitoramento e avaliação das políticas públicas, colocando à disposição dados e indicadores relacionados aos atos públicos e garantindo a transparência de suas ações. O Mecanismo de Gênero de cada órgão governamental deve estar voltado para o desenvolvimento de ações/iniciativas em benefício das mulheres e da igualdade de gênero, e o aprimoramento da capacidade dos órgãos planejarem, articularem, implementarem, monitorarem e avaliarem essas iniciativas. Nesse sentido, têm por objetivo atuar junto às diferentes estruturas do órgão (secretarias, diretorias, departamentos) de modo a sensibilizar, qualificar e comprometer toda a instituição com a adoção de um olhar de gênero que seja transversal a todas as suas ações. Devem, portanto, orientar-se pelo propósito de estimular e proporcionar uma qualificação interna à instituição como estratégia para garantir políticas que estejam profundamente articuladas à dimensão de gênero e promovam iniciativas mais adequadas às necessidades das mulheres brasileiras e à promoção da igualdade de gênero. Não deverá funcionar como uma ouvidoria, nem atuar nas relações internas de trabalho. Atividades a serem desempenhadas pelo Mecanismo: • Participar da formulação do Plano Plurianual em relação à proposição de políticas e de ações que considerem a perspectiva de gênero. • Estimular a reflexão conjunta entre as diferentes áreas da instituição a respeito da incorporação da perspectiva de gênero nas ações desenvolvidas e em outras que possam vir a ser implementadas, favorecendo o reordenamento da programação institucional em direção à transversalização de gênero no conjunto das políticas desenvolvidas. • Garantir a articulação permanente entre todas as áreas da instituição – finalísticas ou não – para o planejamento, execução e monitoramento integrado de novas ações ou a adequação de ações já desenvolvidas em benefício das mulheres ou da igualdade de gênero. • Desenvolver ações de capacitação das equipes – permanentes ou não – nos órgãos governamentais na temática de gênero, raça e etnia aplicadas à elaboração de políticas públicas, incluindo o planejamento e a dimensão orçamentária. POR QUE CRIAR MECANISMOS DE GÊNERO NOS ÓRGÃOS GOVERNAMENTAIS? 23 • Definir, junto às diferentes áreas, as prioridades de execução anual do Plano Nacional de Políticas para as Mulheres – PNPM e coordenar as atividades de elaboração das propostas da instituição para as atualizações desse PNPM (que ocorrem após as Conferências Nacionais de Políticas para as Mulheres). • Capacitar as equipes – permanentes ou não – para preenchimento do Sistema de Acompanhamento do Plano Nacional de Políticas para as Mulheres – PNPM e acompanhar a alimentação semestral desta ferramenta de monitoramento. • Encaminhar servidoras/consultoras/estagiárias que apresentem denúncias ou demandas relacionadas ao aprimoramento das relações internas de trabalho às instâncias responsáveis (ouvidorias, recursos humanos, entre outras) e capacitar as equipes destas esferas para o atendimento qualificado e humanizado. Formalização: é recomendável que o Mecanismo/organismo seja instituído por intermédio de norma legal adequada (portaria, decreto, lei) que o regulamente quanto à composição, objetivos e recursos disponíveis. Devem, também, contar com regimento interno que detalhe o seu funcionamento cotidiano, oriente a articulação intersetorial e auxilie na tomada de decisões. Vinculação: é importante que o Mecanismo esteja vinculado à Secretaria-Executiva, ou estrutura equivalente, como forma de assegurar a interlocução necessária com todas as áreas da instituição, finalísticas ou não. Participação social: o Mecanismo deve assegurar a participação de representantes da sociedade civil, especialmente dos movimentos feministas e de mulheres, como forma de possibilitar o controle social e de assegurar o desenvolvimento de políticas em consonância com as demandas apresentadas pelas mulheres brasileiras. A participação deve se dar, preferencialmente, por meio de movimentos sociais representados nos conselhos setoriais. Intersecção com as temáticas de raça, etnia, orientação sexual e geração: o Mecanismo deve desenvolver suas iniciativas pautando-se pelo princípio da interseccionalidade da condição de gênero com outros marcadores identitários. Nesse sentido, deve considerar questões de raça, etnia, orientação sexual, geração, do campo e da floresta no planejamento, execução e monitoramento das políticas propostas. 24 POR QUE CRIAR MECANISMOS DE GÊNERO NOS ÓRGÃOS GOVERNAMENTAIS? Metodologia de trabalho: a metodologia de trabalho do Mecanismo deverá ser definida em regimento interno a ser construído e aprovado pelos seus próprios integrantes. Sugere-se, porém, que as reuniões do Mecanismo com as áreas setoriais do órgão precedam as reuniões bimestrais do Comitê de Articulação e Monitoramento do Plano Nacional de Políticas para as Mulheres - PNPM. Esta estratégia visa otimizar a participação do órgão governamental no monitoramento do PNPM. Recursos: dada a magnitude dos objetivos a que se propõe, cada Mecanismo de Gênero deve contar com recursos humanos, físicos e orçamentários próprios, considerando-se que: a) Em relação a recursos humanos: deve dispor de equipe própria, composta por colaboradoras/es com experiência em políticas públicas com a perspectiva de gênero e expertise nas temáticas de gênero e mulheres. A equipe-base do Mecanismo deve receber capacitação inicial relacionada às políticas desenvolvidas para as mulheres e ao Plano Nacional de Políticas para as Mulheres - PNPM, além de formação continuada no campo específico ao qual a instituição esteja vinculada. A esta equipe cabe a coordenação das atividades do Mecanismo. b) Em relação a recursos físicos: deve ser dotado de equipamentos mínimos que garantam seu funcionamento cotidiano (computadores, impressoras, telefones, material de escritório), bem como de espaço físico adequado, individualizado e localizado na mesma estrutura física que as áreas setoriais. c) Em relação a recursos orçamentários: deve contar com orçamento próprio destinado às atividades de capacitação e articulação intersetorial, preferencialmente assegurado no planejamento orçamentário do órgão. Os recursos para implementação das políticas devem estar lotados nas áreas finalísticas ou, no caso do Mecanismo desenvolver alguma iniciativa em parceria com as áreas, pode também estar sob sua responsabilidade. POR QUE CRIAR MECANISMOS DE GÊNERO NOS ÓRGÃOS GOVERNAMENTAIS? 25 Instituição de comitês como primeiro passo para criação de um Mecanismo de Gênero Comitês de gênero são estruturas colegiadas, integradas por representantes de diversas áreas da instituição na qual se localizam, que se reúnem regularmente para o planejamento e o monitoramento das ações voltadas às mulheres ou à igualdade de gênero. O Comitê é a instância indispensável para existência dos Mecanismos e para a efetividade de suas ações, podendo, em um primeiro momento, ser equivalente ao próprio Mecanismo. É importante garantir a ideia de uma institucionalidade progressiva que pode, inicialmente, corresponder ao Comitê, mas que deve, em uma fase de maior amadurecimento da questão nos órgãos, incluir o Comitê, mas não se limitar a ele, constituindo-se em um departamento, um setor, uma secretaria, ou outra institucionalidade semelhante. Devem integrar o Comitê os/as representantes de todas as áreas finalísticas da instituição, acrescidas do setor de recursos humanos, da assessoria de comunicação, da secretaria-executiva, de empresas vinculadas (quando houver), da ouvidoria (quando houver) e do conselho dos direitos da mulher – ou outra representação do movimento feminista e de mulheres, na inexistência de conselho específico. Importante assegurar, também, a participação de todas/os as/os colaboradoras/es que estejam representando a instituição em instâncias de deliberação da Secretaria de Políticas para as Mulheres – e respectivos organismos estaduais e municipais, tais como o Comitê de Articulação e Monitoramento do PNPM e o Conselho Nacional dos Direitos da Mulher. É interessante, ainda, estimular a participação de homens e mulheres nos Comitês de Gênero e garantir a presença de representantes de outras instituições parceiras que possam contribuir para as discussões temáticas. Tal como disposto para a equipe base do Mecanismo, as/os participantes do Comitê devem receber formação inicial relacionada às políticas desenvolvidas para as mulheres e ao Plano Nacional de Políticas para as Mulheres, além de formação continuada no campo específico ao qual a instituição esteja vinculada. 26 POR QUE CRIAR MECANISMOS DE GÊNERO NOS ÓRGÃOS GOVERNAMENTAIS? 5. CONSIDERAÇÕES FINAIS A estratégia de transversalidade nas questões de gênero vem apresentando consideráveis avanços sobretudo se constatamos que esse direcionamento político é bastante recente. Pode-se atribuir esses avanços a uma combinação positiva de fatores, entre os quais constam: acerto quanto ao desenho das estratégias, adequada utilização de mecanismos de gestão (como o PNPM e o Comitê, entre outros); e ativa participação da sociedade civil organizada e dos entes federativos. Um ponto é essencial, sobretudo quando pensamos em Mecanismos de Gênero é a co-responsabilização dos órgãos de governo pela consolidação das Políticas para as Mulheres. Trata-se, simultaneamente, de um dos fatores de sucesso e uma das condições essenciais para seguir avançando. E, ainda, para consolidar os avanços conseguidos até agora, e evoluir para outro patamar qualitativo. A atuação engajada de todo o Governo Federal deve ser a diretriz máxima para a Política de Gênero no governo federal. Por isso a institucionalização de Mecanismos de Gênero nos órgãos da Administração Pública constitui uma agenda tão necessária quanto inadiável. Nesse sentido apontamos a necessidade de criação de Mecanismos de Gênero. Propomos, como um primeiro passo nessa direção, a instituição de um Comitê de Gênero. A SPM/PR coloca-se à disposição para fornecer todo apoio técnico necessário para a consolidação desse processo. POR QUE CRIAR MECANISMOS DE GÊNERO NOS ÓRGÃOS GOVERNAMENTAIS? 27 REFERÊNCIAS BANDEIRA, Lourdes Maria; BITTENCOURT, Fernanda. Desafios da Transversalidade de Gênero nas Políticas Brasileiras. In: SWAIN, Tânia Navarro; MUNIZ, Diva do Couto Gontijo (orgs): Mulheres em Ação. Práticas Discursivas, Práticas Políticas. Florianópolis: Ed. das Mulheres, 2005. BRASIL. Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão. Plano Plurianual 2012 - 2015. Brasília, 2011. BRASIL. Secretaria de Políticas para as Mulheres da Presidência da República. Orientações Estratégicas para a Institucionalização da Temática de Gênero nos Órgãos Governamentais. Brasília, 2011. CD-ROM. BRASIL. Secretaria de Políticas para as Mulheres da Presidência da República. Plano Nacional de Políticas para as Mulheres 2013-2015. Brasília, 2013. COSTA, Ana Alice Alcântara. O Movimento Feminista no Brasil: dinâmica de uma intervenção política. In: PISCITELLI, Adriana et al (Org.). Olhares Feministas. Brasília: Ministério da Educação, Unesco, 2009. p. 51-81. FARAH, Marta Ferreira Santos. Gênero e Políticas Públicas. Revista de Estudos Feministas, Florianópolis, v. 1, n. 12, p.47-71, jan./abr. 2004. Disponível em: <http://www.scielo.br/ pdf/ref/v12n1/21692.pdf>. Acesso em: 05 maio 2013. 28 POR QUE CRIAR MECANISMOS DE GÊNERO NOS ÓRGÃOS GOVERNAMENTAIS? INSTITUCIONALIZAÇÃO DAS POLÍTICAS PÚBLICAS PARA MULHERES RURAIS NO MINISTÉRIO DO DESENVOLVIMENTO AGRÁRIO INSTITUCIONALIZAÇÃO DAS POLÍTICAS PÚBLICAS PARA MULHERES RURAIS NO MINISTÉRIO DO DESENVOLVIMENTO AGRÁRIO Renata Leite1 INTRODUÇÃO A partir de 2003, verifica-se a construção de uma nova institucionalidade no Estado com foco na promoção da igualdade de gênero e participação social, representada pela: consolidação da Secretaria de Políticas para Mulheres como órgão vinculado diretamente à Presidência da República com status de ministério; elaboração e implementação dos I, II e III Planos Nacionais de Políticas para Mulheres; e a constituição de ambientes de gestão de políticas de gênero nos diferentes ministérios estimulando promoção de ações que visam a maior igualdade nas relações de trabalho e nas políticas públicas. No âmbito do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA) consolida-se uma agenda de promoção da igualdade entre mulheres e homens no meio rural com orçamento oriundo do próprio governo federal, cujos aportes de recursos alcançam cerca de 170 milhões para ações previstas no Plano Plurianual de 2012-2015. Constituiu-se o Programa de Promoção da Igualdade de Gênero, Raça e Etnia2 que se fortaleceu até se consolidar na Diretoria de Políticas para Mulheres Rurais (DPMR), vinculada à Secretaria Executiva do MDA. No período de 2003 a 2013, as políticas para mulheres rurais se efetivaram com base num diálogo permanente com os movimentos de mulheres rurais do campo, da floresta e das águas a partir de uma agenda que articulou programas voltados à efetivação da cidadania, participação 1 Especialista em Gestão Pública, pela Universidade Dom Bosco; Diretora Adjunta de Politica para Mulheres Rurais e Quilombolas do MDA; Coordenadora Geral de Organização Produtiva e Comercialização da Diretoria de Politica para Mulheres Rurais. [email protected] 2 Antes disso, existia o Programa de Ações Afirmativas no MDA, cuja ação de maior destaque foi a instituição de uma cota mínima de 30% dos recursos de crédito agrícola para as mulheres. Entretanto, a ausência de uma estratégia clara para efetivação da proposta resultou na não efetivação da medida. Ademais, o programa estava limitado e dependente de recursos de cooperação internacional. 30 INSTITUCIONALIZAÇÃO DAS POLÍTICAS PÚBLICAS PARA MULHERES RURAIS NO MINISTERIO DO DESENVOLVIMENTO AGRARIO social, inclusão produtiva e promoção da autonomia. Tais políticas dialogaram com os princípios da economia feminista, problematizaram a divisão sexual do trabalho e valorizaram o trabalho das mulheres rurais, reconhecendo, dentre outros, sua contribuição na produção de alimentos e na agroecologia. Considerando essa nova institucionalidade e o papel do Estado na promoção de políticas de igualdade, este artigo apresenta as estratégias adotadas para a promoção de direitos e garantia de políticas públicas para mulheres no desenvolvimento rural, bem como, descreve, sumariamente, as principais políticas voltadas para elas articuladas pelo Ministério do Desenvolvimento Agrário no período de 2003-2013 e seus resultados. 1. POLÍTICAS PÚBLICAS DE ENFRENTAMENTO DAS DESIGUALDADES DE GÊNERO NO MEIO RURAL Visando enfrentar e superar as desigualdades de gênero no meio rural e promover a autonomia econômica e política das mulheres rurais importantes, mudanças foram promovidas pelo Estado Brasileiro. Reconhece-se a permanência das relações patriarcais no campo e parte-se do pressuposto da inexistência de políticas neutras adotando-se uma estratégia de superação, por parte do Estado. A partir disto, constroem-se novos arranjos institucionais e qualificam-se as políticas públicas objetivando visibilizar e reconhecer as mulheres como sujeitos de direito. Tais mudanças iniciam-se com o reconhecimento das mulheres como beneficiárias diretas das políticas públicas, independente da sua condição civil. Assim, as mulheres rurais são incluídas nos diferentes cadastros e ou formulários como titulares da política e não mais como cônjuges a exemplo de mudanças realizadas nos procedimentos de inscrição e acesso a terra na reforma agrária e no registro da agricultura familiar - a declaração de aptidão ao Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar – Pronaf (DAP). Além das mudanças normativas, as organizações de mulheres são incorporadas nos diferentes espaços de gestão da política pública, garantindo maior participação delas nos espaços de formulação e decisão. Destaca-se, também, o reconhecimento das atividades produtivas desempenhadas pelas mulheres no autoconsumo e seu papel na composição da renda familiar, já que a economia neoclásINSTITUCIONALIZAÇÃO DAS POLÍTICAS PÚBLICAS PARA MULHERES RURAIS NO MINISTERIO DO DESENVOLVIMENTO AGRARIO 31 sica atribuiu valor apenas a atividades associadas a circuitos monetários, deixando de lado o bem estar das pessoas como importante elemento da reprodução social e econômica das sociedades. Como parte deste reconhecimento, busca-se ressignificar a representação social sobre a presença das mulheres na economia, tradicionalmente associado a atividades domésticas ou não agrícolas. Busca-se o suporte das políticas públicas geradoras de renda, ampliando-se as oportunidades para o acesso delas à renda monetária por meio de ações de apoio à produção, beneficiamento e comercialização. À medida que as políticas públicas avançaram, foi-se evidenciando, cada vez mais, a necessidade de implantar mecanismos de socialização do trabalho doméstico e dos cuidados, como essencial para promover a autonomia econômica das mulheres. Exemplifica isto, a adoção de ações afirmativas, tais como a oferta de atividades de recreação infantil nas ações coletivas da Assistência Técnica Extensão Rural - ATER ou durante os mutirões do Programa Nacional de Documentação da Trabalhadora Rural. Os novos arranjos institucionais e o novo arcabouço normativo acompanham uma prática cotidiana de diálogo e parcerias envolvendo os diferentes órgãos governamentais e entidades da sociedade civil para garantia e efetivação da política pública. A incorporação de metas específicas para mulheres rurais em diversos planos nacionais, com destaque para o Plano Brasil Sem Miséria, Plano de Segurança Alimentar e Nutricional e o Plano de Agroecologia e Produção Orgânica (2013), além das metas pactuadas no Plano Nacional de Políticas para Mulheres e, mais recentemente, no Plano Nacional de Desenvolvimento Rural Sustentável3, denotam esse novo desenho de diálogo e transversalidade das políticas públicas para mulheres rurais. São essas estratégias que, no marco do Desenvolvimento Rural Sustentável e Solidário, foram construídas e estão sendo implementadas, garantindo e efetivando políticas para às mulheres rurais. Estas são representadas pelas principais ações e resultados obtidos no período 2003-2013, a seguir descritas. Acesso à Cidadania - Para proporcionar condições efetivas de acesso às políticas públicas, criou-se o Programa Nacional de Documentação da Trabalhadora Rural - PNDTR, em 2004. 3 Documento do Plano Nacional de Desenvolvimento Rural Sustentável e Solidário foi aprovado na II Conferência de Desenvolvimento Rural Sustentável e Solidário realizada em Brasília no período de 14 a 18 de outubro de 2013. 32 INSTITUCIONALIZAÇÃO DAS POLÍTICAS PÚBLICAS PARA MULHERES RURAIS NO MINISTERIO DO DESENVOLVIMENTO AGRARIO O PNDTR visa promover a conscientização sobre a importância e uso dos documentos civis, jurídicos e trabalhistas, além de garantir a obtenção dos mesmos, emitindo-os de forma gratuita. De 2004 a 2013, o PNDTR realizou 5.269 mutirões itinerantes em 4.630 municípios, beneficiando 1.182.435 mulheres rurais, emitindo 2.364.595 documentos4. O PNDTR é a porta de entrada das mulheres às políticas públicas. Acesso à Terra - O II Plano Nacional de Reforma Agrária assumiu o desafio de superar a desigualdade entre mulheres e homens nos assentamentos rurais. Para isto, revisou-se o marco legal do Programa Nacional de Reforma Agrária, garantindo-se a inclusão efetiva das mulheres em todas as fases dos assentamentos. O direito igualitário à terra para mulheres e homens foi garantido por meio da titulação conjunta e obrigatória, instituído pela Portaria nº 981, de outubro de 2003. Além disto, a Instrução Normativa nº 38, de 13 de março de 2007, alterou a sistemática de classificação para as/os candidatos/os à reforma agrária reconhecendo e priorizando mulheres chefes de família como beneficiárias potenciais ao programa. As mulheres chefes de famílias já são a 22,1% do público beneficiário em 2013 (em 2003 elas eram 13%). Na reforma agrária elas representam 69% dentre os titulares registrados (em 2003 elas eram 24%)5. Na política de acesso à terra por meio do crédito fundiário os empreendimentos protagonizados por mulheres recebem valor adicional. A participação das mulheres aumentou de 13,6% em 2003 para 29% em 20126. Ter direito à terra permite à mulher acessar outras políticas de desenvolvimento econômico, bem como ter reconhecido o trabalho produtivo que ela realiza. Acesso às políticas de desenvolvimento na reforma agrária - Em relação às políticas de desenvolvimento econômico dos assentamentos, o Programa Nacional de Assessoria Técnica, Social e Ambiental à Reforma Agrária - Ates adotou diretrizes e orientações com enfoque de gênero para os trabalhos das equipes técnicas. Em 2008, o Incra instituiu o crédito Apoio Mulher, como uma oferta exclusiva de crédito para as mulheres organizadas em grupos produtivos. Trata-se 4 5 6 Período de Tabulação: 2004 a out/2013. Fonte: MDA/DPMR/PNDTR. Dados do INCRA/Sipra, atualizados em abril/2013. Dados da Secretaria de Reordenamento Agrário do Ministério do Desenvolvimento Agrário, 2013. INSTITUCIONALIZAÇÃO DAS POLÍTICAS PÚBLICAS PARA MULHERES RURAIS NO MINISTERIO DO DESENVOLVIMENTO AGRARIO 33 de uma modalidade do crédito instalação e visa reconhecer e valorizar o trabalho produtivo das mulheres na reforma agrária. De 2008 a 2013, foram celebrados mais de 18.292 contratos, com investimento aproximado de 46,6 milhões de reais7. A instituição do Programa de Agroindustrialização na Reforma Agrária – Terra Forte, lançado em 2013, atribuiu maior pontuação aos projetos com maior participação de mulheres, estimulando o acesso delas às políticas de agregação de valor e geração de renda. Acesso à Assistência Técnica e Extensão Rural - Ater - A Política Nacional de Ater passou a contar com a política setorial de Ater para Mulheres, com objetivos de: fortalecer a organização produtiva das mulheres rurais; promover a agroecologia e a produção de base ecológica; ampliar o acesso às políticas públicas; apoiar a articulação em rede. A Ater Setorial para Mulheres beneficiou 56,4 mil mulheres, disponibilizando aproximadamente 33,8 milhões de reais entre 2005 a 20138. Destaca-se que 65% dos projetos apoiados focaram atividades voltadas para agroecologia no período 2004-2010. Com a Lei de Ater, a partir de 2010, as chamadas de Ater Mulheres beneficiaram mais de 6.300 mulheres com foco específico no fortalecimento da produção agroecológica. Na Ater mista, as mulheres já são 41% do público atendido9. Apoio à Produção - Diferentes ações foram estimuladas para o fortalecimento das atividades produtivas das mulheres. Em 2008, criou-se o Programa Interministerial de Organização Produtiva de Mulheres Rurais tendo como perspectiva a promoção da autonomia econômica, da soberania alimentar e da agroecologia. No período de 2008 a 201310, o programa beneficiou mais de 139,2 mil mulheres, investindo mais de 40 milhões de reais em ações de fomento à produção, agregação de valor, capacitação em política pública, apoio à participação em feiras locais. Fortalecer e divulgar a produção das mulheres nas feiras nacionais da agricultura familiar, também, se constituiu numa ação de êxito. Na última Fenafra, realizada em 2012, as mulheres expositoras representaram 56% dos participantes11. 7 8 9 10 11 34 Dados do INCRA, atualizados outubro/2013. Dados da Diretoria de Políticas para Mulheres do Ministério do Desenvolvimento Agrário, 2013. Dados parciais do Sistema de Monitoramento da Ater (MDA/SAF/SIATER, 2013). Dados da Diretoria de Políticas para Mulheres do Ministério do Desenvolvimento Agrário, 2013. Dados Diretoria de Agregação de Valor - DEGRAV/SAF/MDA, 2012. INSTITUCIONALIZAÇÃO DAS POLÍTICAS PÚBLICAS PARA MULHERES RURAIS NO MINISTERIO DO DESENVOLVIMENTO AGRARIO Acesso ao Crédito Produtivo - A produção das mulheres também conta com apoio financeiro por meio do crédito Pronaf Mulher. A instituição da dupla titularidade para a Declaração de Aptidão ao Pronaf, permitiu o acesso das mulheres ao crédito. Em 2012, 68,61% das DAPs tinham dupla titularidade. O crédito específico para as mulheres já contratou mais de 40 mil operações desde sua criação na Safra 2003/2004. No Plano Safra 2013/2014, o limite do Pronaf Mulher foi ampliado para até R$ 150 mil por mulher. Uma inovação trazida para este Plano Safra foi a prioridade de destinação de financiamentos do microcrédito produtivo orientado às mulheres integrantes das unidades familiares de produção enquadradas em qualquer grupo e que apresentem propostas de financiamento de até R$30 mil. Embora siga sendo um desafio melhorar a participação delas no Pronaf Mulher; no microcrédito produtivo elas representavam 48% das operações no nordeste (BNB, 2013)12. Outros esforços foram empreendidos na política pública visando empoderar as mulheres rurais no acesso ao crédito. No Programa Garantia Safra, por exemplo, a Resolução Nº 1 de 2 de janeiro de 2013 institui a titularidade do benefício em nome da mulher assegurando, cada vez mais, o protagonismo delas nas políticas públicas. Ações de apoio a Comercialização - As mulheres participam ativamente do Programa de Aquisição de Alimentos - PAA. Em 2012 elas representaram 29% do total de contratos efetivados13. A Resolução Nº 44 de 2011 do Comitê Gestor do PAA estipulou que 5% da dotação orçamentária anual do PAA deve ser destinado a grupos de mulheres (ou grupos mistos com pelo menos 70% de mulheres). Além disto, a participação das mulheres deve ser de pelo menos 40% para as modalidades de Compra da Agricultura Familiar com Doação Simultânea e Compra Direta Local com Doação Simultânea; e de 30% para as modalidades: Formação de Estoques para a Agricultura Familiar e Incentivo à Produção e ao Consumo de Leite. O PAA, também, oferece vantagens aos produtos orgânicos e agroecológicos, pagando 30% a mais no valor pago aos produtos convencionais. Fortalecimento da participação social no desenvolvimento territorial Cada vez mais as organizações de mulheres participam da gestão da política pública. Elas estão presentes nos Conselho Nacional de Desenvolvimento Rural; nos Comitês Gestores do Programa de 12 13 Dados do Banco do Nordeste do Brasil, 2013 Dados SIOP, abril/2013. INSTITUCIONALIZAÇÃO DAS POLÍTICAS PÚBLICAS PARA MULHERES RURAIS NO MINISTERIO DO DESENVOLVIMENTO AGRARIO 35 Organização Produtiva e do Programa de Documentação da Trabalhadora Rural; participam ativamente do Grupo de Trabalho de Gênero da Reunião Especializada da Agricultura Familiar e, são parte dos diferentes Grupos de Trabalhos e/ou Comitês e Câmaras de Trabalho temporárias. Ademais na política de desenvolvimento territorial, criou-se 77 comitês de mulheres garantindo a participação ativa delas. Em 2013, o Programa de Apoio a Infraestrutura - Proinf nos territórios, destinou 40% dos recursos para atendimento de metas específicas de mulheres nos territórios. Produção de estudos e pesquisas - Repensar as políticas públicas com ações para mulheres demandou estudos e pesquisas sobre a realidade das mulheres rurais. Diferentes estudos foram apoiados no âmbito do Programa de Organização Produtiva, tais como: Ater para Mulheres; Cirandas do Pronaf; Participação das Mulheres no PAA; Perfil dos Grupos Produtivos de Mulheres Rurais; Mulheres Rurais no Mercosul; Estatísticas Rurais sob a perspectiva de gênero; além disso, premiou-se e estimulou-se a produção de pesquisas no âmbito do Prêmio Margarida Alves de Estudos Rurais e Gênero14. Ressalta-se que tais ações têm contribuído para impactar favoravelmente as condições de vida das mulheres rurais. Elas baseiam-se no diálogo mútuo entre governo e sociedade, com ampla participação dos movimentos de mulheres, no fortalecimento a auto-organização e no reconhecimento das lutas das mulheres rurais no campo. Importantes vitórias foram conquistadas em 2013, tal como, a realização da primeira conferência nacional com paridade de gênero e a instituição de paridade na eleição futura de órgãos colegiados de gestão social de política públicas. Mas os desafios ainda são muitos e persistentes. Incidir sobre os processos que perpetuam a divisão sexual do trabalho no meio rural requerem uma ação de Estado cada vez mais articulada e integrada. Para além disto, dentro das próprias organizações da sociedade civil, as mulheres buscam consolidar seus espaços. Potencializar os instrumentos vigentes, incorporar novas ferramentas e efetivar procedimentos de monitoramento para inclusão, valorização, reconhecimento e promoção da autonomia das mulheres rurais são os aspectos determinantes na superação das desigualdades de gênero. 14 36 Disponíveis em: http://portal.mda.gov.br/portal/dpmr/institucional/Publicações INSTITUCIONALIZAÇÃO DAS POLÍTICAS PÚBLICAS PARA MULHERES RURAIS NO MINISTERIO DO DESENVOLVIMENTO AGRARIO Por fim, gostaria de dizer que ainda temos muitos desafios, mas também, há que se registrar as mudanças em curso e a necessidade de firmar uma agenda e um pacto social comum envolvendo Estado e Sociedade Civil na superação das desigualdades entre homens e mulheres, historicamente, construídas no meio rural e na reforma agrária. REFERÊNCIAS BRASIL. Ministério do Desenvolvimento Agrário. Políticas para as trabalhadoras rurais: relatório de gestão do Programa de Promoção da Igualdade de Gênero, Raça e Etnia do MDA/Incra. – Brasília: MDA, 2007. BRASIL. Ministério do Desenvolvimento Agrário/Diretoria de Políticas para Mulheres. Políticas Públicas para Mulheres: Balanço Governo, 2013. Mimeo. BUTTO, Andrea; HORA, Karla. Mulheres e Reforma Agrária no Brasil. In: MDA/NEAD. Mulheres na Reforma Agrária. Brasília: MDA, 2008. BUTTO, Andrea; DANTAS, Isolda; HORA, Karla (orgs). As mulheres nas estatísticas agropecuárias: experiências em países do Sul. Brasília: Ministério do Desenvolvimento Agrário, 220p. 2012. INSTITUCIONALIZAÇÃO DAS POLÍTICAS PÚBLICAS PARA MULHERES RURAIS NO MINISTERIO DO DESENVOLVIMENTO AGRARIO 37 POLÍTICAS SOCIAIS E IGUALDADE DE GÊNERO: CONQUISTAS E DESAFIOS 38 POLÍTICAS SOCIAIS E IGUALDADE DE GÊNERO: CONQUISTAS E DESAFIOS POLÍTICAS SOCIAIS E IGUALDADE DE GÊNERO: CONQUISTAS E DESAFIOS Teresa Sacchet1 INTRODUÇÃO Este artigo discorre sobre impactos de políticas sociais no Brasil, mais especificamente aquelas relacionadas ao Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS), em particular do Programa Bolsa Família – PBF, nas relações de gênero e experiência de vida das mulheres. O artigo discute a contribuição destas políticas para o combate a pobreza e a ampliação da cidadania de seus beneficiários, as principais questões que são apresentadas a partir de uma perspectiva de expandir da autonomia das mulheres, e os desafios para aumentar os impactos positivos destas políticas nas relações de gênero. As ações do MDS são voltadas para os grupos socialmente mais vulneráveis da população. Políticas de assistência social, de transferência de renda, segurança alimentar e nutricional e de inclusão produtiva urbana e rural têm como desafio criar e ampliar equipamentos e serviços que atendam às necessidades destes segmentos, contribuindo para um maior acesso aos direitos e expansão de sua cidadania. Esta tarefa requer compreender as desigualdades em suas especificidades e desenvolver mecanismos capazes de lidar adequadamente com as persistentes diferenças regionais, com as desigualdades de gênero, raça, etnia, dentre outras. A vulnerabilidade é mais pervasiva entre membros de certos grupos sociais, e pode resultar tanto de injustiças materiais, como culturais e de poder. O gênero, a raça/cor, e a sexualidade da pessoa, por exemplo, impactam a sua experiência de vida e as suas oportunidades. O desafio para governos é articular ações que assegurem direitos universais e que ao mesmo tempo sejam capazes de levar em conta as injustiças específicas a cada grupo. 1 Pós-doutorada pela Universidade de São Paulo (USP) e Doutorada pela Universidade de Essex (Reino Unido), ambos em Ciência Política. Pesquisadora senior do Núcleo de Pesquisa em Políticas Públicas da USP (licenciada), especialistas na temática de mulheres, gênero e política, sendo autora de diversas publicações no tema. Coordena o Comitê de Políticas para as Mulheres e Gênero do MDS e é Assessora da Secretaria Executiva deste Ministério. POLÍTICAS SOCIAIS E IGUALDADE DE GÊNERO: CONQUISTAS E DESAFIOS 39 As diferentes formas de injustiças tendem a estar mutuamente imbricadas. Membros de grupos discriminados são também mais propensos a sofrer limitações de ordem material e de acesso a processos decisórios. Porém, as soluções para estas diferentes formas de injustiças não são as mesmas, e atuar sobre uma delas não necessariamente contribui para diminuir as demais. Atuar sobre questões redistributivas, por exemplo, não resolve automaticamente o problema da falta de reconhecimento e de representação de membros de grupos sociais oprimidos/discriminados/ excluídos.2 Membros de alguns grupos encontram-se em situação de tamanha vulnerabilidade social que torna-se mais difícil para eles terem acesso a serviços públicos essenciais e usufruírem de direitos básicos de cidadania. Um dos grandes desafios do governo é identificá-los, reconhecendo suas experiências e vulnerabilidades específicas e incluí-los como cidadãos no exercício de seus direitos. Uma estratégia criada pelo programa Brasil sem Miséria - BSM para atingir este objetivo é a Busca Ativa. Esta ação permite que pessoas que sofrem privações sejam identificadas pelo Estado, inclusas no Cadastro Único de Programas Sociais do Governo Federal (Cadastro Único), e que passem a acessar uma rede de proteção social e de serviços públicos que os auxilie na superação de suas vulnerabilidades. O Cadastro Único é um cadastro público que permite mapear os diferentes problemas sociais, favorecendo, além de uma gestão mais eficiente de recursos, o desenho de políticas mais efetivas para atender as necessidades da população. A partir da identificação deste público e da sua inserção no Cadastro são planejadas ações que visam considerar as diferenças e diminuir as desigualdades sociais. Os dados coletados no Cadastro possibilitam a construção de um diagnóstico socioeconômico que permite desenvolver iniciativas específicas que são postas em prática por meio da articulação de ministérios e secretarias de estado, bem como da parceria entre União, estados e 2 O debate sobre a justiça tem incorporado de forma crescente a noção de que este conceito não se limita a questões de ordem material (redistribuição). Dimensões relacionadas ao status (reconhecimento) e a habilidade de manifestação de opinião e participação em processos decisórios (representação) dos membros de uma sociedade seriam questões igualmente importante. Uma das principais referências neste debate é a filósofa americana Nancy Fraser. Fraser, porém, particularmente em seus artigos menos recentes, defende a preponderância de questões redistributivas sobre as de reconhecimento e, de certa, forma dicotomiza o debate entre injustiças materiais e culturais. Alguns artigos dela sobre este tema foram traduzidos para o português. Ver, por exemplo, Fraser (2002, 2007). Para uma crítica a esta visão dicotômica de justiça ver Iris Marion Young (2007). 40 POLÍTICAS SOCIAIS E IGUALDADE DE GÊNERO: CONQUISTAS E DESAFIOS municípios. Assim, o Cadastro Único é um instrumento central para que problemas inerentes a cada localidade ou grupo social sejam mapeados e as pessoas possam ser atendidas por políticas públicas mais adequadas. 1. TRANSFERÊNCIA DE RENDA E AUTONOMIA DAS MULHERES O Programa Bolsa Família, criado em 2003, é uma das principais políticas públicas para o enfrentamento da pobreza no Brasil. A partir do lançamento do Plano Brasil Sem Miséria em 2011 houve um aumento substancial no número de pessoas atendidas por este programa e no valor repassado às famílias. Até o final de 2013 o programa atendeu 14.1 milhões de famílias pobres e extremamente pobres, com um orçamento de R$ 24,6 bilhões. Houve também, particularmente com a criação do Brasil Carinhoso (descrito abaixo), um avanço no sentido de erradicar a extrema pobreza no Brasil. Além de impactar a pobreza o Bolsa Família tem impulsionado o desenvolvimento humano das gerações futuras. Os dados permitem verificar que houve melhora significante na frequência e no desempenho escolar de filhos dos beneficiários do PBF, e no seu acompanhamento médico, e estes se constituem em indicadores centrais do desenvolvimento social. Há uma tendência mundial crescente para que Políticas de Transferência de Renda Condicionada, como o Bolsa Família, sejam acessadas predominantemente por mulheres. O PBF transfere mensalmente o benefício para 13,8 milhões de famílias, por meio da Caixa Econômica Federal, e o recurso é acessado via cartão magnético cuja titularidade em 93% dos casos é das mulheres. Pesquisas revelam que as mulheres gastam mais eficazmente os recursos de benefícios repassados pelo Estado. No caso do Bolsa Família, elas utilizam o recurso para pagar por suprimentos e serviços que beneficiam todos os membros da família, como na compra de alimentos, de material escolar, no pagamento de contas de serviços de água, luz e gás, em transporte, em remédios etc.(FIALHO, 2007; MARIANO e CARLOTO, 2009). São as mulheres, também, que assumem a maior parte das tarefas relacionadas às responsabilidades domésticas e de cuidado dos membros da família. É, assim, compreensível a decisão do Estado de repassar o recurso para quem mais necessita e melhor faz uso dele. POLÍTICAS SOCIAIS E IGUALDADE DE GÊNERO: CONQUISTAS E DESAFIOS 41 Autoras feministas, porém, têm apresentado críticas à preferência que é dada as mulheres no repasse do benefício. O argumento é que esta orientação, que tem no cumprimento das condicionalidades sua contrapartida, reforça uma identidade tradicional feminina ligada ao cuidado e a maternidade e reproduz um modelo de relação de gênero fundado na desigualdade. As mulheres seriam inclusas nestes programas a partir de uma perspectiva instrumental, tornando-se parceiras na implementação de políticas sociais que tem como foco o desenvolvimento de gerações futuras; porém as condições necessárias para o desenvolvimento das mulheres em si seria uma questão secundarizada (MOLYNEUX, 2009; JENSON, 2009). Este debate é central em estudos sobre estes programas a partir de uma perspectiva de gênero. Mais recentemente, um número crescente de autoras/es feministas tem apresentado interpretações mais positivas destes programas. Embora a preocupação com a essencialização dos papeis de gênero permaneça, o pagamento do benefício às mulheres em situação de pobreza é visto como um meio efetivo para aumentar a autonomia econômica delas, fortalecer seu poder de influência e barganha sobre as decisões familiares, e de aumentar seu status comunitário. Estas/es autoras/es propõem, porém, ações complementares para desenvolver as capacidades e a autonomia das mulheres que recebem o benefício. As propostas não se limitam ao plano material, mas contemplam iniciativas de dimensões pessoais, econômica/social e política do empoderamento das mulheres. Dentre elas são destacadas ações que: a) favorecem a habilidade reflexiva das mulheres sobre seus direitos, por meio da participação em grupos e em atividades públicas como palestras, debates, eventos, dentre outras; b) capacite-as profissionalmente através de processos educativos que permitam sua entrada no mercado de trabalho e o exercício de profissões mais rentáveis, bem como ofereçam orientação, intermediação e incentivos para a entrada delas no mercado de trabalho formal; c) possibilite ou incentive a participação e o controle social dos beneficiários do PBF, para que estes possam conhecer mais a fundo o próprio Programa, reconhecendo-o como um direito de cidadania, podendo em contrapartida contribuir com seu aporte para o planejamento de ações do Programa. Uma iniciativa que perpassa todos estes objetivos, relacionada a uma demanda histórica no movimento de mulheres, 42 POLÍTICAS SOCIAIS E IGUALDADE DE GÊNERO: CONQUISTAS E DESAFIOS é por provimento público de serviços capazes de aliviar as mulheres do encargo com as tarefas domésticas e de cuidado. Como visto, as perspectivas apresentadas vão além de propostas por ampliação de políticas distributivas. Elas incorporam a visão de que iniciativas pelo aumento do reconhecimento e do poder decisório das mulheres são igualmente importantes para incentivar mudanças nas relações de gênero, promover autonomia e maior autoestima entre as mulheres e dar incentivo para que elas possam se manifestar diante de situações de violação de seus direitos e de desrespeito as suas identidades. Estas iniciativas podem ser postas em curso tanto por agentes do estado, como da sociedade civil. O Estado, porém, pode facilitar estes processos por meio de incentivos.3 2. BOLSA FAMÍLIA E EMPODERAMENTO DAS MULHERES As mulheres têm de fato contribuído para o sucesso do PBF pelo apoio que trazem a este programa, por intermédio do bom uso que fazem dos recursos que são repassados a elas, bem como pelo cumprimento das condicionalidades. Porém, um número de iniciativas do governo federal tem, em contrapartida, contribuído para aumentar a autonomia das mulheres. Os programas de inclusão produtiva urbana e rural são destaques neste sentido, na medida em que auxiliam no processo de capacitação técnica e profissional do público do Cadastro Único. O Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego –- Pronatec - Brasil Sem Miséria e o Programa Mulheres Mil são exemplos de iniciativas desta natureza. O Pronatec – Brasil Sem Miséria já atingiu 900,8 mil matrículas, e a meta é ampliá-las para um milhão até o final de 2014. Embora os cursos sejam ofertados para um público mais amplo do que aquele do Bolsa Família, 67% dos matriculados nestes cursos são mulheres. Com o Pronatec, as mulheres passaram a se capacitar para desempenhar funções mais rentáveis antes predominantemente ocupadas por homens. O Mulheres Mil é um programa de capacitação exclusivo para as mulheres que objetiva a formação profissional e tecnológica, ao mesmo tempo em que eleva o nível de escolaridade delas. O projeto utiliza uma metodologia específica de ensino baseada no reconhecimento dos saberes 3 Por exemplo, oferecer bônus as mulheres beneficiárias de programas de transferência de renda que entrassem no mercado formal e incentivos fiscais para as empresas que contratassem essas mulheres. POLÍTICAS SOCIAIS E IGUALDADE DE GÊNERO: CONQUISTAS E DESAFIOS 43 das mulheres. De acordo com os dados da Secretaria Extraordinária para a Superação da Extrema Pobreza, 11 mil mulheres se matricularam neste programa em 2011; 12 mil em 2012; e em 2013 foram 20 mil matrículas. Para as mulheres, particularmente aquelas que vivenciam privações de cunho material, um grande desafio é conciliar trabalho remunerado e outras atividades da esfera pública, com responsabilidades familiares. As famílias de baixa renda com crianças de 0 a 5 anos mais dificilmente tem acesso a serviços públicos de cuidado e educação em tempo integral. Assim, há um desincentivo para a participação destas mulheres em atividades do espaço público como trabalho formal, educação e política. Nos últimos anos houveram mudanças importantes relacionadas a estas políticas. No que diz respeito a creches foi recentemente criada pelo governo federal a Ação Brasil Carinhoso, que além de aumentar os benefícios das famílias que recebem o PBF, promove incentivo para a ampliação do número de vagas em creches, por intermédio de um aumento no repasse de recursos do governo federal. O programa aumenta em 50% o valor do repasse do FUNDEB para creches públicas e conveniadas com as secretarias municipais de Educação, por vaga ampliada para filhos de beneficiários do PBF em idade até 48 meses. Em 2013, mais de 453.465 mil crianças com este perfil foram atendidas em 3.451 municípios. Sobre as escolas em tempo integral, desde 2008 o Programa Mais Educação tem impulsionado um aumento expressivo nesta modalidade de educação. Segundo os dados do MEC enquanto em 2008 havia apenas 1.374 escolas em tempo integral, em 2013 elas somaram 47.000 unidades. Além do aumento no número de escolas, o cruzamento dos dados do Cadastro Único e do MEC a partir de 2011 permitiu uma focalização desta política que conduziu à expansão de escolas em tempo integral em áreas com maior incidência de beneficiários do PBF. Em 2008 o número de escolas em áreas onde a maioria dos moradores eram beneficiários do Bolsa Família representava 28% do número total, em 2013, porém, este percentual passou para 65%. A expansão no número de creches e escolas em tempo integral além de contribuir para a educação das crianças é também uma política que impacta as mulheres, pois aumenta o tempo disponível delas para o exercício de outras atividades na esfera pública. 44 POLÍTICAS SOCIAIS E IGUALDADE DE GÊNERO: CONQUISTAS E DESAFIOS No que diz respeito às políticas de inclusão produtiva rural, existem iniciativas específicas voltadas para o fortalecimento das mulheres e suas organizações. Alguns exemplos são: a) no Programa de Aquisição de Alimentos - PAA está previsto reserva de recursos para organizações constituídas por mulheres e percentuais mínimos de participação de mulheres nas suas diferentes modalidades (40% na modalidade compra e doação simultânea e 30% na modalidade formação de estoques e incentivo a produção e ao consumo de leite); b) as políticas de Assistência Técnica Extensão Rural - ATER têm focado nas necessidades específicas das mulheres, bem como aumentado o número de extensionistas do sexo feminino. Estas iniciativas visam a construção da autonomia das mulheres no campo as quais, embora contribuam de forma significativa para a produção familiar, têm acesso limitado ao recursos provenientes da mesma. Crédito é um insumo importante para as pessoas criarem alternativas de investimento e superarem sua situação de pobreza. As operações de microcrédito do Programa Crescer oferecem crédito produtivo orientado a taxas reduzidas, constituindo-se em uma opção para pessoas que querem iniciar um micro negócio. Das pessoas inscritas no Cadastro Único que acessam o microcrédito do Programa Crescer, 72% são mulheres. Na área de Assistência Social houve uma expansão significante no número de equipamentos e serviços nos últimos anos. No final de 2013, havia no país 7.446 Centros de Referência em Assistência Social (Cras) e 2.216 Centros de Referência Especializado em Assistência Social (Creas). Estes equipamentos oferecem serviços para prevenir o rompimento de vínculos familiares ou para assistir aquelas pessoas que sofreram violação de direitos, que impactam de forma direta as mulheres, já que são elas que mais tendem a utilizar serviços de socioassistenciais. O planejamento de políticas para as mulheres e de gênero requer conhecimento, reflexão e avaliação constantes sobre processos que potencializam as igualdades de gênero e o empoderamento das mulheres. Por isso é fundamental a criação de espaços dentro das estruturas ministeriais que, além de propor ações, sejam capazes de monitorar políticas com o intuído de construir a igualdade de gênero. Desde março de 2012, o Comitê MDS de Políticas para as Mulheres e de Gênero cumpre este papel. Este Comitê, que é coordenado pela Secretaria Executiva do MDS, reúne-se regularmente e tem planejado ações junto às diferentes áreas deste ministério. POLÍTICAS SOCIAIS E IGUALDADE DE GÊNERO: CONQUISTAS E DESAFIOS 45 As ações citadas acima são destaques de um número de iniciativas no âmbito do Plano Brasil Sem Miséria que têm contribuído de forma crescente para aprofundar direitos das mulheres. 3. CONCLUSÕES Fazendo uma análise das políticas do MDS com um enfoque na questão da ampliação da autonomia da mulheres e da igualdade de gênero observamos que, embora existam ainda desafios, houve avanços significativos. Além da transferência de renda outras políticas têm contribuído também para ampliar a cidadania das mulheres. Um dos mais significativos impactos do PBF foi a retirada de 22 milhões de pessoas da extrema pobreza, representando uma conquista sem precedentes em um país historicamente marcado por uma grande desigualdade de renda e exclusão social. A diminuição da pobreza impacta de forma particular as mulheres, que tendem a ser as que se encarregam do desenvolvimento das tarefas e responsabilidades da esfera doméstica. No que concerne às relações de poder entre homens e mulheres, persistem importantes desafios para que ocorra um salto qualitativo. Isso não surpreende dado que as relações desiguais de gênero se solidificaram através de processos materiais, culturais e legais históricos que estabeleceram a preponderância masculina tanto na esfera pública quanto na familiar. Houve, porém, nos últimos anos avanços em diferentes áreas. Um dos mais importantes é a transferência de renda para as mulheres. Por intermédio dela foram criados incentivos para que as mulheres se tornassem menos dependentes de seus maridos/companheiros e melhorassem sua autoestima e poder de ingerência sobre as decisões familiares. A expectativa é que estes resultados somados a outros derivados de políticas de inclusão produtiva urbana e rural, da iniciativa recente de ampliação da rede de serviços públicos para a área de cuidado e educação, bem como da implementação de projetos que possam favorecer a participação social e política das mulheres irão contribuir ao longo prazo para que ocorram mudanças substantivas na autonomia das mulheres. Por fim, em termos de desafios um dos principais é tornar o tópico dos direitos das mulheres e da igualdade de gênero, questões centrais do desenho, gestão, monitoramento e avaliação 46 POLÍTICAS SOCIAIS E IGUALDADE DE GÊNERO: CONQUISTAS E DESAFIOS das políticas públicas. Isso implica em tomar indicadores relacionados a estas agendas como parte integral do processo de planejamento das políticas de governo. As ações governamentais seriam planejadas e os seus impactos medidos levando em conta a igualdade de gênero e a diminuição das assimetrias entre homens e mulheres tanto na esfera pública como na privada. A eficácia das políticas públicas está relacionada à sua habilidade de ir ao encontro das necessidades e questões centrais população, de dialogar com as diversidades dos segmentos sociais, com as particularidades regionais, e de criar respostas adequadas que reflitam estas diferenças. REFERÊNCIAS BRASIL. Ministério do Desenvolvimento Social. Secretaria de Avaliação e Gestão da Informação. Síntese do 1º. Relatório contendo os Principais Resultados da Pesquisa de Avaliação de Impacto do Bolsa Família – 2ª Rodada – AIBF II, Nota Técnica nº 110/2010. Disponível em: http://www.mds.gov.br/saladeimprensa/noticias/2010/agosto/ arquivos/nt-110-2010-sintese-aibf-2a-rodada-educacao-e-saude-2.pdf. FIALHO, Paula Juliana. O programa Bolsa Família em São Luís (MA) e Belém (PA): um estudosobre a relação entre a gestão local e os efeitos do programa na condição de vida das mulheres. Dissertação de mestrado: Departamento de Serviço Social da Universidade de Brasília, 2007. disponível em: http://bdtd.ibict.br/. FRASER, Nancy. A justiça social na globalização: redistribuição, reconhecimento e participação. Revista Crítica das Ciências Sociais, 63, 2002. p. 7-20. FRASER, Nancy. Mapping the feminist imagination: from redistribution to recognition to representation. Revista Estudos Feministas, vol.15, no.2, Florianópolis, 2007. JENSON, Jane. Lost in Translation: The Social Investment Perspective and Gender Equality. Social Politics: International Studies in Gender, State & Society 16(4), 2009. p. 446-483. MARIANO, Silvana Aparecida e CARLOTO, Cássia Maria. Gênero e combate à pobreza: programa bolsa família. Revista Estudos Feministas, Dez, vol.17, no.3. Florianópolis, 2009. p.901-908. POLÍTICAS SOCIAIS E IGUALDADE DE GÊNERO: CONQUISTAS E DESAFIOS 47 MOLYNEUX, Maxine. Conditional Cash Transfers: A Pathway to Women’s Empowerment? Pathways Brief5. London: DFID, 2009. SUÁREZ, Mireya and LIBARDONI, Marlene. The Impact of the Bolsa Família Program: Changes and Continuities in the Social Status of Women, in Vaitsman, J. and Paes-Sousa, R. Evaluation of MDS Policies and Programs – Results, Volume 2. Brasília: MDS, 2007. YOUNG, Iris Marion. Categorias desajustadas: uma crítica à teoria dual de sistemas de Nancy Fraser. Revista Brasileira de Ciência Política, Nº 2, julho-dezembro, Brasília, 2009. p. 193-214 48 POLÍTICAS SOCIAIS E IGUALDADE DE GÊNERO: CONQUISTAS E DESAFIOS DESAFIOS E OPORTUNIDADES DE GÊNEROS NO MUNDO DO TRABALHO DESAFIOS E OPORTUNIDADES DE GÊNEROS NO MUNDO DO TRABALHO Adriana Rosa dos Santos1 Esther Baltazar Alvim2 Na data de 07 de maio de 2008, o Ministro de Estado do Trabalho e Emprego, Carlos Lupi, através da Portaria nº219/2008, instituiu a Comissão de Igualdade de Oportunidades de Gênero, de Raça e Etnia, de Pessoas com Deficiência e de Combate à Discriminação, tendo em vista o compromisso do governo brasileiro de promover políticas públicas de igualdade, de oportunidades e de combate à discriminação no mundo do trabalho. A referida Comissão é composta por uma instância Central e instâncias Regionais. A Comissão Central é composta por quatro sub-comissões, responsáveis pelas ações afirmativas de Igualdade de Oportunidades de Gênero, de Raça e Etnia, de Pessoas com Deficiências e de Combate a Discriminação. Ela é constituída por representantes: • Do Gabinete do Ministro. • Da Secretaria Executiva. • Da Secretaria de Políticas Públicas e Emprego. • Da Secretaria de Relações do Trabalho. • Da Secretaria Nacional de Economia Solidária. • Da Secretaria de Inspeção do Trabalho. As competências da Comissão Central são: • Orientar a execução das ações de promoção de igualdade de oportunidade e de combate à discriminação no mundo do trabalho. 1 Adriana Rosa dos Santos é Assessora em Gênero do Gabinete do Ministro do Trabalho e Emprego. Socióloga e Especialista em Saúde e Trabalho. 2 Esther Baltazar Alvim é Agente Administrativa, atua na Assessoria em Gênero do Gabinete do Ministro do Trabalho e Emprego. Formada em Arquivologia pela Universidade de Brasília. 50 DESAFIOS E OPORTUNIDADES DE GÊNEROS NO MUNDO DO TRABALHO • Monitorar e avaliar a implementação de ações sob responsabilidade do MTE. • Promover a articulação interna e parcerias com os diversos órgãos governamentais e com a sociedade civil, com a finalidade de combater todas as formas de discriminação e de promover a igualdade de oportunidades de tratamento no mundo do trabalho. • Orientar na efetivação das ações afirmativas enquanto políticas de Estado. • Acompanhar as atividades das Comissões Regionais. As competências das Comissões Regionais são: • Elaborar plano de ação, a ser referendado pela Comissão Central, em parceria com os representantes das/os trabalhadoras/es e empregadoras/es e as instituições envolvidas com o tema. • Implementar ações educativas e preventivas voltadas para a promoção da igualdade de oportunidades e de combate à discriminação no mundo do trabalho. • Propor estratégias e ações que visem eliminar a discriminação e o tratamento degradante e que protejam a dignidade da pessoa humana, em matéria de trabalho e emprego. • Articular-se com organizações públicas e privadas que tenham como objetivo o combate à discriminação, na busca da convergência de esforços para a eficácia e efetividade social de suas ações. • Acolher denúncias de práticas discriminatórias no trabalho, buscando solucioná-las de acordo com os dispositivos legais e por meio de negociações e, quando for o caso, encaminhá-las ao Ministério Público do Trabalho. • Produzir relatório mensal sobre as atividades exercidas e resultados alcançados, encaminhando-o à Comissão Central. Cumpre informar que, tendo em vista a transversalização da temática de Gênero e, devido à mesma não se constituir em uma ação finalística do MTE, esta Assessoria em Gênero contribui para efetivação com as agendas de políticas públicas para as mulheres do governo federal. DESAFIOS E OPORTUNIDADES DE GÊNEROS NO MUNDO DO TRABALHO 51 Acreditamos que através da perspectiva transversal, com aplicação de medidas específicas de políticas públicas de emprego, nas ações de geração de emprego e renda e qualificação social e profissional , poderemos melhorar, promover e ampliar o acesso das mulheres ao mundo laboral, rompendo definitivamente o vínculo que se estabelece entre o aumento da população, os níveis de pobreza e a desigualdade de gênero. A título de exemplo, podemos citar a importância dos dados de 2011 do Programa Nacional de Microcrédito Produtivo e Orientado - PNMPO, que girou em torno de 62% o número de mulheres que acessaram o programa de micro crédito. Temos também as atividades do Subcomitê de Igualdade de Gênero no âmbito da Agenda Nacional do Trabalho Decente - ANTD, coordenação conjunta com a SPM , o qual objetiva a construção e a implementação da Agenda de Promoção do Trabalho Decente voltada para a Igualdade de Gênero, tendo como referência a ANTD e o Plano Nacional de Emprego e Trabalho Decente - PNETD. E no que se refere aos desafios e oportunidades, temos: 1. Revitalização da Comissão de Igualdade de Oportunidades. 2. Definição de Indicadores: para assinalar em que medida os programas,projetos e políticas tem atingido seus objetivos e resultados previstos em matéria de igualdade de oportunidades. 3. Acompanhamento, monitoramento e atualização das ações do MTE que constam do Plano Nacional de Políticas para as Mulheres, e no Sistema Integrado de Planejamento e Orçamento - SIOP, junto às diversas instâncias do Ministério sobre a discussão/inclusão de Gênero em suas políticas. 4. Implementação do Sistema de Cadastro de Discriminação do Trabalho - SCDT de acolhimento e denúncias nas Superintendências Regionais do Trabalho e Emprego -SRTEs. 52 DESAFIOS E OPORTUNIDADES DE GÊNEROS NO MUNDO DO TRABALHO 5. Ampliação, diversificação e melhoraria da participação das mulheres na formação e qualificação profissional e técnica. 6. Interface com as SRTE por meio da Comissão Regional de Igualdade de Oportunidade de Gênero, de Raça e Etnia, de Pessoas com Deficiência e de Combate à Discriminação. 7. Coordenação conjunta com a SPM, do Subcomitê de Igualdade de Gênero no âmbito da Agenda Nacional do Trabalho Decente. 8. Campanhas de divulgação da Comissão de Gênero. 9. Curso de Capacitação em Gênero. Contamos assim, com as parcerias abaixo : • Universidades, Secretarias do Trabalho Estaduais e Municipais. • Ministério Público do Trabalho. • Sistemas. • FUNDACENTRO. • Conselhos Municipais e Estaduais dos Direitos das Mulheres. • Coordenadorias/Secretarias dos estados e municípios de Organismos para as Mulheres. • Delegacias Especializadas no Atendimento à Mulher. Para encerrar, acreditamos que promover a igualdade de gênero e a autonomia das mulheres por meio das políticas públicas, é um passo necessário na direção de um Brasil mais equânime. DESAFIOS E OPORTUNIDADES DE GÊNEROS NO MUNDO DO TRABALHO 53 A SITUAÇÃO DAS MULHERES NO BRASIL: ESTATÍSTICAS E DESAFIOS 54 A SITUAÇÃO DAS MULHERES NO BRASIL: ESTATÍSTICAS E DESAFIOS A SITUAÇÃO DAS MULHERES NO BRASIL: ESTATÍSTICAS E DESAFIOS Ana Lucia Saboia1 A construção da igualdade de gênero e a perspectiva inclusiva de gênero pressupõe a existência de estatísticas que sejam capazes de mensurar a situação das mulheres e homens na sociedade brasileira. Os desafios são enormes dado que a produção de estatísticas de gênero ainda se concentra predominantemente nas áreas tradicionais como trabalho, saúde e educação e a maioria dos países produz regularmente informações por sexo. Entretanto, são poucos aqueles países que produzem estatísticas sobre temas emergentes como violência contra as mulheres. Segundo a Divisão de Estatísticas das Nações Unidas (2012), o foco na integração de uma perspectiva de gênero nas estatísticas consiste em quatro vertentes: (a) melhor compreensão do processo de integração do gênero nas estatísticas nacionais; (b) identificar lacunas nas estatísticas de gênero e desenvolver um plano coerente e abrangente para a produção de estatísticas de gênero; (c) assegurar que a concepção de pesquisas e censos leve em conta as questões de gênero e evite preconceitos de gênero na mensuração; e (d) melhorar a análise e apresentação de dados para fornecer estatísticas de gênero em um formato que seja de fácil de uso por formuladores de políticas públicas. A apresentação que segue está pautada nos quatro eixos da 3ª Conferência Nacional de Políticas para as Mulheres: I. Autonomia econômica e social - indicadores sobre mercado de trabalho e uso do tempo. II. Autonomia cultural: indicadores sobre educação. III. Autonomia pessoal: saúde e enfrentamento à violência. IV. Autonomia política: informações sobre liderança. 1 Coordenadora de Indicadores Sociais do IBGE. Colaboraram Cintia Agostinho e Betina Fresneda A SITUAÇÃO DAS MULHERES NO BRASIL: ESTATÍSTICAS E DESAFIOS 55 1. INDICADORES DE AUTONOMIA ECONÔMICA E SOCIAL Em 2011, 42,3% das pessoas ocupadas eram mulheres. Mulheres ocupadas apresentam maior escolaridade: 23,5% tinham 12 anos ou mais de estudo, enquanto para homens essa proporção era de 14,4%; a maioria dos homens ocupados (51,6%) tinham até 8 anos de estudo, comparados com 38,6% das mulheres. GRÁFICO 1 Taxa de atividade, taxa de ocupação e taxa de desocupação das pessoas de 16 anos ou mais de idade, por sexo, Brasil - 2011 79,7 75,9 55,9 50,9 4,7 Taxa de atividade Taxa de ocupação Taxa de desocupação Fonte: IBGE,Homem Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios. Rio de Janeiro, 2011. Mulher 56 9,0 A SITUAÇÃO DAS MULHERES NO BRASIL: ESTATÍSTICAS E DESAFIOS Apesar da maior escolaridade das mulheres ocupadas e da elevada taxa de ocupação daquelas com 12 anos ou mais de estudo, é neste grupo que a desigualdade no rendimento médio por hora trabalhada é maior entre mulheres e homens. GRÁFICO 2 % Taxa de ocupação das pessoas de 16 anos ou mais de idade, e razão entre o rendimento médio por hora trabalhada de mulheres em relação ao dos homens, por anos de estudo e sexo, Brasil - 2011 84,1 83,1 79,5 75,9 72,1 71,4 68,7 73,7 66,1 56,7 50,9 39,5 Total Até 8 anos de estudo 9 a 11 anos de estudo 12 ou mais anos de estudo Taxa de ocupação homem Taxa de ocupação mulher Razão rendimento médio por hora trabalhada (Mulher/Homem) Fonte: IBGE, Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios. Rio de Janeiro, 2011. A SITUAÇÃO DAS MULHERES NO BRASIL: ESTATÍSTICAS E DESAFIOS 57 Grupamentos ocupacionais com elevada proporção de mulheres ocupadas apresentam maior desigualdade de rendimento entre homens e mulheres. GRÁFICO 3 Distribuição percentual das pessoas de 16 anos ou mais de idade ocupadas, por grupamentos de atividade no empreendimento do trabalho principal e sexo, e razão entre o rendimento médio por horatrabalhada de mulheres em relação ao dos homens, por grupamentos de atividade no empreendimento do trabalho principal, Brasil - 2011 Educação, saúde e serviços sociais Indústria de transformação Alojamento e alimentação Outros serviços coletivos, sociais e pessoais 3,8 13,9 11,0 3,9 6,2 Administração pública Transporte, armazenagem e comunicação 18,3 10,9 Outras atividades industriais Construção 0,9 15,5 5,7 5,3 1,7 68,3 75,2 18,0 17,6 Agrícola % 64,3 74,8 2,5 5,6 Comércio e reparação Serviços domésticos 17,0 75,5 79,8 82,2 94,3 8,4 99,0 1,2 0,2 0,5 131,1 14,2 Distribuição percentual homem Distribuição percentual mulher Razão rendimento médio por hora trabalhada (Mulher/Homem) Fonte: IBGE, Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios. Rio de Janeiro, 2011. 58 A SITUAÇÃO DAS MULHERES NO BRASIL: ESTATÍSTICAS E DESAFIOS 166,9 As Pesquisas de Uso do Tempo fornecem uma visão global de como as várias atividades remuneradas, voluntárias, domésticas, de cuidados e de lazer estão inter-relacionadas e influenciam umas às outras, em diferentes segmentos da população. Estas pesquisas fornecem o entendimento dos comportamentos e hábitos da população, das formas de interação social, dos relacionamentos sociais e familiares, do desempenho dos papéis de gênero e dão suporte para formulação de políticas direcionadas aos hábitos e comportamentos. As Informações relacionadas ao tema nas pesquisas do IBGE são: •• Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios - PNAD – número de horas trabalhadas na semana de referência, tempo gasto para ir do domicílio ao local de trabalho (desde 1992), se cuidava de afazeres domésticos na semana de referência (desde 1992), número de horas que dedicava normalmente aos afazeres domésticos por semana (desde 2001). •• Pesquisa Piloto sobre Uso do Tempo (Projeto Pnad Contínua) – 4º trimestre 2009, formato: diário. •• PNAD Contínua (Sistema Integrado de Pesquisas Domiciliares) – Questionário estruturado sobre realização de algumas atividades (trabalho voluntário, cuidado de pessoas, afazeres domésticos). GRÁFICO 4 Homem Mulher Trabalho e trabalho voluntário Afazeres domésticos Estudo Socialização 00:42 00:47 00:38 00:54 01:02 00:46 00:24 00:19 00:28 00:26 00:12 00:39 Cuidado de pessoas da família 03:37 03:30 03:44 02:58 03:00 02:56 03:35 02:26 01:14 02:45 03:57 05:12 Total 08:09 08:16 08:02 Tempo médio por dia dedicado às atividades principais, das pessoas de 10 anos ou mais de idade, por sexo, segundo grupos de atividades, total - 2009 (em horas) Atividades culturais, hobbies e esportes Uso de meios Cuidados de comunicação pessoais de massa (exceto dormir) Dormir Fonte: IBGE, Resultados preliminares do Teste piloto da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua / Teste piloto da Pesquisa de Uso do Tempo. R io de Janeiro, 2009. Nota: O total corresponde às 5 Unidades da Federação selecionadas: Pará, Pernambuco, Distrito Federal, São Paulo e Rio Grande do Sul A SITUAÇÃO DAS MULHERES NO BRASIL: ESTATÍSTICAS E DESAFIOS 59 GRÁFICO 5 Tempo médio por dia dedicado às atividades principais de afazeres domésticos, das pessoas de 10 anos ou mais de idade, segundo os grupos desagregados de atividades, por sexo, total - 2009 (em horas) Afazeres domésticos total 2:26 1:14 Preparar e servir a comida, lavar louças 0:23 Limpar o domicílio 0:17 3:35 1:00 1:36 0:39 1:01 Manutenção de roupas e sapatos Adquirir bens de consumo duráveis e não duráveis Atividade de afazeres domésticos não especificada Manutenção e pequenos reparos do domicílio pela própria pessoa Administração da casa e contratação e avaliação serviços Deslocamentos relacionados aos afazeres domésticos Cuidar de animais 0:02 0:12 0:22 0:12 0:11 0:14 0:06 0:04 0:08 0:04 0:04 0:04 0:02 0:02 0:03 Total Homem Mulher 0:05 0:06 0:03 0:01 0:02 0:01 Fonte: IBGE, Resultados preliminares do Teste - piloto da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua / Teste - piloto da Pesquisa de Uso do Tempo. Rio de Janeiro, 2009. Nota: O total corresponde às 5 Unidades da Federação selecionadas: Pará, Pernambuco, Distrito Federal, São Paulo e Rio Grande do Sul. * Identifica o resultado cujo coeficiente de variação é superior a 30. 2. INDICADORES DE AUTONOMIA CULTURAL: EDUCAÇÃO, CULTURA E COMUNICAÇÃO Indicadores educacionais A vantagem feminina no percurso escolar é apontada por diversas pesquisas e é observada desde o início da escolarização. Em 2011, 9,9% das crianças com oito anos de idade não sabiam ler nem escrever. Essa proporção era 11,2% entre os meninos e de 8,5% entre as meninas. O atraso masculino na alfabetização pode estar afetando negativamente tanto o desempenho quanto o fluxo escolar. 60 A SITUAÇÃO DAS MULHERES NO BRASIL: ESTATÍSTICAS E DESAFIOS GRÁFICO 6 Proporção de crianças de 8 anos de idade, que não sabiam ler e escrever por sexo Brasil e Grandes Regiões - 2011 % 20,2 Homens Mulheres 18,9 17,0 13,6 11,2 8,5 6,7 5,5 3,4 Brasil Norte Nordeste Sudeste 3,4 4,3 Sul 4,6 Centro-Oeste Fonte: IBGE, Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios. Rio de Janeiro, 2011. Do total de cerca 5.500 milhões de adolescentes entre 15 e 17 anos que frequentavam o Ensino Médio em 2011, observa-se uma proporção maior de mulheres (54,6%) se comparada com a de homens (45,4%). Essa situação não é fruto da desigualdade de gênero na incidência do abandono escolar, pois a taxa de frequência escolar bruta dessa faixa etária é elevada, tanto para os homens (83%), quanto para as mulheres (84%). Logo, somente o atraso escolar dos homens pode explicar a sobre representação feminina dessa faixa etária no ensino médio. De fato, 59% dos jovens de 15 a 17 anos que frequentavam o ensino fundamental eram homens, enquanto apenas 41% eram mulheres. Essa defasagem também pode ser ilustrada a partir das taxas frequência líquida por sexo no Ensino Médio. A SITUAÇÃO DAS MULHERES NO BRASIL: ESTATÍSTICAS E DESAFIOS 61 GRÁFICO 7 Taxa de frequência líquida no ensino médio dos adolescentes de 15 a 17 anos, por sexo - Brasil e Grandes Regiões - 2011 Homens % Mulheres 57,6 63,6 61,3 55,0 34,6 Norte 50,2 49,1 49,4 47,9 45,9 Brasil 64,5 36,1 Nordeste Sudeste Sul Centro - Oeste Fonte: IBGE, Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios. Rio de Janeiro, 2011. Conciliar escola e trabalho nessa faixa etária também pode ser determinante do percurso escolar dos jovens. A proporção de adolescentes de 15 a 17 anos que trabalha e estuda é significativamente maior entre os meninos. TABELA 1 Jovens de 15 a 17 anos de idade total e respectiva distribuição percentual por condição de atividade na semana de referência, Brasil - 2011 Indicador de escolaridade Total Homem 5.402,172 5.177,888 Só estuda 66,0 61,1 71,1 Trabalha e estuda 17,8 22,0 13,3 Só trabalha 6,4 8,8 3,9 Não trabalha e não estuda 9,9 8,1 11,7 Fonte: IBGE, Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios. Rio de Janeiro, 2011. 62 Mulher 10.580,060 Total A SITUAÇÃO DAS MULHERES NO BRASIL: ESTATÍSTICAS E DESAFIOS Como consequência possível do atraso escolar e de outros fatores associados a papeis de gênero, como a inserção precoce no mercado de trabalho, os jovens do sexo masculino não seguem para o ensino superior na mesma proporção que as jovens mulheres. Em 2011, havia um contingente maior de mulheres entre os universitários de 18 a 24 anos de idade. Sua proporção supera em 15,6% a dos homens, abarcando 57,8% do total de estudantes que frequentam o ensino superior dessa faixa etária. GRÁFICO 8 Distribuição percentual das pessoas de 18 a 24 anos deidade que frequentam o ensino superior, por sexo e rede de ensino - Brasil - 2011 % Homens Mulheres 57,8 42,2 Total 58,9 55,1 44,9 Pública 41,1 Particular Fonte: IBGE, Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios. Rio de Janeiro, 2011. A SITUAÇÃO DAS MULHERES NO BRASIL: ESTATÍSTICAS E DESAFIOS 63 Entretanto, há concentração das mulheres em cursos e carreiras “ditas femininas”, com menor valorização profissional e limitado reconhecimento social. GRÁFICO 9 Distribuição das pessoas com graduação concluída por sexo e áreas gerais de formação - Brasil - 2010 % 8,4 Educação Humanidades e artes Ciências sociais, negócios e direito Ciências, matemática e computação Engenharia, produção e construção Agricultura e veterinária Saúde e bem estar social Serviços Área de formação mal - especificada 4,7 5,8 2,8 3,1 0,9 2,1 1,9 2,7 2,8 28,4 9,5 32,8 9,5 13,7 Homens 9,5 14,9 Fonte: IBGE, Censo Demográfico. Rio de Janeiro, 2010. 64 A SITUAÇÃO DAS MULHERES NO BRASIL: ESTATÍSTICAS E DESAFIOS Mulheres 46,2 TABELA 2 Lista dos 10 cursos de ensino superior com as maiores proporções de concluintes mulheres e homens 2005/2010 2005 2010 Mulheres Mulheres Formação de professor de educação infantil Ciências domésticas Serviços de beleza Secretariado e trabalhos de escritório Serviço social e orientação Ciências da educação Ciências da educação Serviços de beleza Formação de professor da educação básica Serviço social e orientação Vida profissional Terapia e reabilitação Enfermagem e atenção primária (assistência Língua materna (vernácula) básica) Psicologia Psicologia Enfermagem e atenção primária (assistência básica) Humanidades e letras (cursos gerais) Humanidades e letras (cursos gerais) Artes (cursos gerais) Homens Proteção de pessoas e de propriedades Engenharia mecânica e metalurgia (trabalhos com metais) Eletricidade e energia Serviços de segurança (cursos gerais) Homens Proteção de pessoas e de propriedades Engenharia mecânica e metalurgia (trabalhos com metais) Eletricidade e energia Eletrônica e automação Veículos a motor, construção naval e aeronáutica Ciência da computação Setor militar e de defesa Física Processamento da informação Uso do computador Eletrônica e automação Transportes e serviços (cursos gerais) Veículos a motor, construção naval e aeronáutica Setor militar e de defesa Ciência da computação Mineração e extração Fonte: Ministério da Educação Censo da Educação Superior. Brasília, 2011 A SITUAÇÃO DAS MULHERES NO BRASIL: ESTATÍSTICAS E DESAFIOS 65 3. INDICADORES AUTONOMIA PESSOAL: SAÚDE E ENFRENTAMENTO À VIOLÊNCIA O “Guidelines for producing statistics on violence against women: statistical survey (draft)2” coloca os seguintes parâmetros e orientações em relação às pesquisas sobre violência contra a mulher : •• Tipos de violência: Violência física, sexual, psicológica e econômica. •• Estratégias para encorajar revelações honestas sobre a violência incluem: •• Introduções que mostram sensibilidade ao tópico e permitem que as entrevistadoras desenvolvam uma relação de confiança com entrevistada. •• Proporcionar diferentes oportunidades para que entrevistada revele sua experiência. •• Usar questões relacionadas aos diferentes comportamentos, passando daqueles menos sérios para os mais sérios, ao invés de usar questões muito diretas e gerais. •• Selecionar entrevistadores com cautela e proporcionar treinamento adequado. •• Evitar termos carregados ou ambíguos como “abuso”, “estupro” ou “violência”. FIGURA 1 - Orientações para pesquisa sobre violência contra a mulher Status marital (questão filtro) 2 66 Respondentes com parceiros atual (MS1=1,2 ou 3 Violência psicológica e econômica Violência fisíca e sexual Respondentes com parceiros anterior (MS1=1,2 ou 3 Violência psicológica e econômica Violência fisíca e sexual Todos respondentes (aquelas sem parceiros atual ou anterior - direto) Violência fisíca e sexual por agressor que não parceiro intimo Relação com agressor Consultive Meeting: Beirut, Lebanon, 8-10 November 2011. A SITUAÇÃO DAS MULHERES NO BRASIL: ESTATÍSTICAS E DESAFIOS Questões que a pesquisa deve conter no período de referência. •• Violência sofrida com parceiro atual ou parceiro anterior. •• Violência psicológica: últimos 12 meses. •• Violência física e sexual: alguma vez na vida. •• Outros agressores violência física: a partir dos 15 anos de idade. •• Violência sexual: alguma vez na vida. As Informações relacionadas ao tema nas pesquisas do IBGE são: XX PNAD 1988 - Pesquisa suplementar de Participação Político-Social •• Se vítima de agressão física nos últimos 12 meses. •• Quem foi o agressor na última ocorrência (parente, pessoa conhecida, policial, segurança privada, pessoa desconhecida, não sabe). •• Local em que ocorreu agressão. XX PNAD 2009 - Pesquisa suplementar de Vitimização e Justiça •• Se Vítima de agressão física nos últimos 12 meses. •• Quem foi o agressor na última vez (Pessoa desconhecida, policial, segurança privada, cônjuge/ex-cônjuge, pessoa conhecida, parente, pessoa conhecida). •• Local em que ocorreu agressão. XX PNAD – Pesquisa suplementar de Saúde - 1998 e 2003 Não houve pergunta relativa à violência nas pesquisas suplementares. XX 2008 – Pesquisa suplementar de Saúde •• Se vítima de agressão física nos últimos 12 meses. •• Deixou de realizar quaisquer de suas atividades habituais por causa da violência. •• Procurou algum serviço de saúde. A SITUAÇÃO DAS MULHERES NO BRASIL: ESTATÍSTICAS E DESAFIOS 67 XX Pesquisa Nacional de Saúde 2013 1. Vítima de alguma violência ou agressão de pessoa desconhecida, frequência da violência: •• Tipo de violência mais grave (física, sexual, psicológica, outra). •• Foi ameaçada/o ou ferida/o. •• Local em que ocorreu agressão/ agressor. 2. Vítima de alguma violência ou agressão de pessoa conhecida, frequência da violência: •• Tipo de violência mais grave. •• Foi ameaçada/o ou ferida/o. •• Local em que ocorreu agressão. •• Relação com agressor (Cônjuge, companheira/o, namorada/o, ex-cônjuge, ex-companheira/o, ex-namorada/o, pai, mãe, padrasto, madrasta, filha/o, irmã/o, outro parente, amigas/os, colegas, chefias, outra pessoa conhecida). GRÁFICO 10 Percentual de pessoas que foram vítumas de agressão física, no período de referência de 365 dias, na população de 10 anos ou mais de idade, segundo as Grandes Regiões - 1988/2009 1,9 1,8 1,6 1,4 1,2 1,1 1,0 1,4 1,2 0,8 Brasil (1) Norte e Centro Nordeste Oeste urbanas Sul Sudeste 1988 2009 Fonte: IBGE, Diretoria de Pesquisas, Coordenação de Trabalho e Rendimento, Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios. Rio de Janeiro, 1988/2009. Nota: (1) Exclusive as pessoas da área rural de Rondônia, Acre, Amazonas, Roraima, Pará e Amapá. 68 A SITUAÇÃO DAS MULHERES NO BRASIL: ESTATÍSTICAS E DESAFIOS GRÁFICO 11 Distribuição de pessoas que foram vítumas de agressão física, no período de referência de 365 dias, na população de 10 anos ou mais de idade, segundo a situação do domicílio, o sexo e a cor ou raça - Brasil- 1988/2009 87,5 91,2 Urbana Rural 12,5 8,8 Homens 39,8 42,9 Mulheres Branca Preta ou... Preta 41,1 43,4 7,4 11,0 Parda 36,0 60,2 57,1 56,3 58,2 1988 2009 47,1 Fonte: IBGE, Diretoria de Pesquisas, Coordenação de Trabalho e Rendimento, Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios. R io de Janeiro, 1988/2009. Nota: Exclusive as pessoas da área rural de Rondônia, Acre, Amazonas, Roraima, Pará e Amapá. TABELA 3 Distribuição das pessoas de 10 anos ou mais de idade que foram vítimas de agressão física, no período de referência de 365 dias, por agressor da última agressão física, segundo o sexo, a cor ou raça e os grupos de idade- Brasil - 2009 Sexo, cor ou raça e grupos de idade Distribuição das pessoas de 10 anos ou mais de idade que foram vítimas de agressão física, no período de referência de 365 dias (%) Agressor na última agressão física Total Pessoa desconhecida Policial ou segurança privada Cônjuge ou ex-cônjuge Parente Pessoa conhecida 100,0 39,0 4,5 12,2 8,1 36,2 Homens 100,0 46,4 6,7 2,0 5,6 39,3 Mulheres 100,0 29,1 1,5 25,9 11,3 32,2 Total (1) Sexo Cor ou raça Branca 100,0 44,8 3,7 11,9 7,0 32,7 Preta ou parda 100,0 35,1 5,0 12,4 8,9 38,6 Preta 100,0 33,1 6,5 14,0 12,2 34,3 Parda 100,0 35,5 4,7 12,1 8,1 39,6 Grupos de idade 10 a 24 anos 100,0 35,2 5,1 6,5 7,3 45,8 25 a 34 anos 100,0 38,0 4,9 19,7 7,5 29,8 35 a 39 anos 100,0 36,6 3,6 19,5 8,6 31,8 40 a 49 anos 100,0 43,1 4,6 15,6 7,8 28,9 50 anos ou mais 100,0 49,3 2,3 7,7 11,3 29,3 Fonte: IBGE, Diretoria de Pesquisas, Coordenação de Trabalho e Rendimento, Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios. Rio de Janeiro, 2009. (1) Inclusive as pessoas de cor ou raça amarela, indígena ou sem declaração. A SITUAÇÃO DAS MULHERES NO BRASIL: ESTATÍSTICAS E DESAFIOS 69 4. INDICADORES DE AUTONOMIA POLÍTICA GRÁFICO 12 Proporção de assentos ocupados por mulheres no Parlamento (Congressos Nacionais - Lower orSingle House) - Março/2013 Rwanda (1) Cuba (3) Sweden (4) Finland (7) South Africa (8) Norway (11) Mozambique (12) Denmark (13) Ecuador (14) Costa Rica (15) Argentina (18) Mexico (19) Spain (20) Germany (25) Italy (28) Portugal (32) Afghanistan (36) France (37) Bolivia (42) Australia (45) China (53) United Kingdom (56) Israel (60) Peru (61) United States of America (77) Paraguay (78) Venezuela (80) Russian Federation (96) Uruguay (104) India (109) Brazil (120) Nigeria (127) Haiti (133) Egypt (139) 56,3 48,9 44,7 42,5 42,3 39,6 39,2 39,1 38,7 38,6 37,4 36,8 36,0 32,9 31,4 28,7 27,7 26,9 25,4 24,7 23,4 22,5 21,7 21,5 17,7 17,5 17,0 13,6 12,1 11,0 8,6 6,7 4,2 2,0 Fonte: Inter - Parliamentary Union. 70 A SITUAÇÃO DAS MULHERES NO BRASIL: ESTATÍSTICAS E DESAFIOS GRÁFICO 13 Proporção de assentos ocupados por mulheres no Senado (Upper House) - Março/2013 47,2 46,3 40,8 38,9 38,5 38,2 34,2 32,8 32,1 29,0 27,5 27,5 22,6 22,2 20,0 20,0 19,6 18,6 17,3 16,3 16,0 13,2 13,0 12,9 11,7 10,6 10,0 8,0 6,4 4,4 1,8 % Bolivia Burundi Belgium Argentina Rwanda (1) Australia Spain Mexico South Africa 1 Italy Germany Afghanistan United Kingdom France United States of America Paraguay Switzerland Japan Czech Republic Ethiopia Brazil Chile Poland Uruguay Jordan India South Sudan Russian Federation Nigeria Egypt Yemen Fonte: Inter - Parliamentary Union. A SITUAÇÃO DAS MULHERES NO BRASIL: ESTATÍSTICAS E DESAFIOS 71 GRÁFICO 14 Distribuição de ministros por sexo - Brasil, 2013 75,4 25,6 Homens Mulheres Fonte: Presidência República. Brasília, 2013. TABELA 4 - Prefeitos por sexo – Brasil 2013 Total % Ano Total 2001 5.559 5.224 335 94,0 6,0 2005 5.564 5.115 449 92,0 8,1 2009 5.564 5.052 512 90,8 9,2 Homem Mulher Fonte: IBGE, Pesquisa de Informações Municipais. Rio de Janeiro, 2001/2005/2009. 72 A SITUAÇÃO DAS MULHERES NO BRASIL: ESTATÍSTICAS E DESAFIOS Homem Mulher TABELA 5 - Distribuição de Ministros do Supremo Tribunal por sexo – Brasil 2013 Órgão Total Ministros ativos Homens Mulheres % Participação Presidente de Mulheres Mulher TSE 7 4 3 42,9 1 STJ 30 24 6 20,0 0 TST 25 20 5 20,0 0 STF 11 9 2 18,2 0 STM 14 13 1 7,1 0 CNJ 15 14 1 6,7 0 Institucional O Tribunal Superior Eleitoral, órgão máximo da Justiça Eleitoral, exerce papel fundamental na construção e no exercício da democracia brasileira (Lei nº 4.737, de 15.7.1965). O Superior Tribunal de Justiça é a corte responsável por uniformizar a interpretação da lei federal em todo o Brasil, seguindo os princípios constitucionais e a garantia e defesa do Estado de Direito. O Tribunal Superior do Trabalho é órgão de cúpula da Justiça do Trabalho, cuja função precípua consiste em uniformizar a jurisprudência trabalhista brasileira (art.111 da CF) O Supremo Tribunal Federal é o órgão de cúpula do Poder Judiciário, e a ele compete, precipuamente, a guarda da Constituição (art.102 da CF) A Justiça Militar da União é justiça especializada na aplicação da lei a uma categoria especial, a dos militares federais - Marinha, Exército e Aeronáutica, julgando apenas e tão somente os crimes militares definidos em lei. O Conselho Nacional de Justiça é uma instituição pública que visa aperfeiçoar o trabalho do sistema judiciário brasileiro, principalmente no que diz respeito ao controle e à transparência administrativa e processual. Fonte: TSE, Brasília; STJ, Brasília; TST, Brasília; STF, Brasília; STM, Brasília; CNJ, Brasília. 2013 Distribuição das posições de gerência em organizações do Governo (DAS) – Brasil 2013 GRÁFICO 15 100% 90% 80% 70% 55,0 53,9 53,9 63,5 60% 71,6 78,3 50% 40% 30% 20% 45,0 46,1 46,1 36,5 10% 0% 1 2 3 Mulher 4 28,4 5 21,7 6 Homem Fonte: Ministério do Planejamento, Boletim Estatístico de Pessoal. Brasília, Janeiro de 2013. A SITUAÇÃO DAS MULHERES NO BRASIL: ESTATÍSTICAS E DESAFIOS 73 GRÁFICO 16 - Distribuição de empregados em grupos ocupacionais por sexo – Brasil 2011 Ocupações mal definidas Membros das forças armadas e auxiliares Trabalhadores de produção de bens e serviços e da reparação e manutenção 42,6 6,2 57,4 93,8 13,6 Trabalhadores agrícolas Vendedores e prestadores de serviço no comércio Trabalhadores dos serviços 86,4 30,3 Trabalhadores de serviços administrativos Técnicos de nível médio Profissionais das ciências e das artes Dirigentes em geral 52,2 47,8 33,1 36,7 44,4 38,4 36,4 66,7 66,9 60,3 55,6 61,6 Mulher Homem 63,8 Fonte: IBGE, Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio. Rio de Janeiro, 2011. 5. CONSIDERAÇÕES FINAIS As pesquisas nacionais que investigam as características da mão de obra têm várias limitações para mensuração das desigualdades de gênero. As pesquisas de Uso do Tempo são de grande importância para a área de gênero, especialmente aquelas cujo formato é um diário de preenchimento das atividades diárias. Devido à dificuldade de se obter amostras significativas desagregadas para as ocupações, a principal explicação para a desvantagem salarial feminina no mercado de trabalho, levando em conta que as mulheres são, em média, mais qualificadas do que os homens, é a discriminação salarial. Assim, diversos estudos que utilizam grupos ocupacionais agregados subestimam a segregação ocupacional. Talvez o maior desafio seja implementar uma pesquisa de violência contra a mulher a nível nacional devido as especificidades regionais do país. O ideal seria poder contar com pesquisas menores ou módulos especiais para melhor entendimento de questões específicas relacionadas a gênero. REFERÊNCIAS BRASIL. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Censo Demográfico. Rio de Janeiro, 2010. 74 A SITUAÇÃO DAS MULHERES NO BRASIL: ESTATÍSTICAS E DESAFIOS BRASIL. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Pesquisa de Informações Municipais. Rio de Janeiro, 2001. BRASIL. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Pesquisa de Informações Municipais. Rio de Janeiro, 2005. BRASIL. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Pesquisa de Informações Municipais. Rio de Janeiro, 2009. BRASIL. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio. Rio de Janeiro, 2011. BRASIL. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Diretoria de Pesquisas, Coordenação de Trabalho e Rendimento. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios. Rio de Janeiro, 1988/ 2009. BRASIL. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Resultados Preliminares do teste Piloto da Pesquisa nacional por Amostra de Domicílios Contínua. Rio de Janeiro, 2009. BRASIL. Ministério da Educação. Censo da Educação Superior. Brasília - DF, 2011. BRASIL. Ministério do Planejamento. Boletim Estatístico de Pessoal. Brasília, Janeiro de 2013. UNITED NATIONS. Economic Comission for Latin America and Caribbean. Annual report 2012 the bonds in focus: contribution and burden for women, 2013. UNITED NATIONS. Statistics Division. Guidelines for producing statistics on violence against women: staistical survey (draft), 2011. UNITED NATIONS. ECONOMIC AND SOCIAL COUNCIL. STATISTICAL COMMISSION. Gender Statistics: Report of the Secretary-General . E/CN.3/2013/10. 19 december 2012. SITES CONSULTADOS: Conselho Nacional de Justiça. http://www.cnj.jus.br/. Acesso em junho de 2013. Inter-Parliamentary Union. http://www.ipu.org/english/home.htm. Acesso em junho de 2013. Supremo Tribunal Militar. http://www.stm.jus.br/. Acesso em junho de 2013. Supremo Tribunal de Justiça. http://www.stj.jus.br/. Acesso em junho de 2013. Supremo Tribunal Federal. http://www.stf.jus.br/. Acesso em junho de 2013. Tribunal Superior do Trabalho. http://www.tst.jus.br/. Acesso em junho de 2013. Tribunal Superior Eleitoral. http://www.tse.jus.br/. Acesso em junho de 2013. Presidência da Repúblca. http://www2.planalto.gov.br/presidencia/ministros. Acesso em junho de 2013. A SITUAÇÃO DAS MULHERES NO BRASIL: ESTATÍSTICAS E DESAFIOS 75 IGUALDADE DE GÊNERO NA PRÁTICA DO GOVERNO FEDERAL - UM OLHAR A PARTIR DE ESTUDO SOBRE A TRANSVERSALIDADE 76 IGUALDADE DE GÊNERO NA PRÁTICA DO GOVERNO FEDERAL – UM OLHAR A PARTIR DE ESTUDO SOBRE A TRANSVERSALIDADE IGUALDADE DE GÊNERO NA PRÁTICA DO GOVERNO FEDERAL - UM OLHAR A PARTIR DE ESTUDO SOBRE A TRANSVERSALIDADE Fernanda de Carvalho Papa1 A apresentação que este texto registra anseia contribuir à reflexão sobre transversalidade e políticas para as mulheres a partir da prática no governo federal e teve como base pesquisa realizada para minha dissertação de mestrado – “Transversalidade e políticas públicas para mulheres no Brasil – percursos de uma pré-política”, defendida em maio de 2012, na EAESP-FGV, sob orientação da Profa. Dra. Marta Farah. Agradeço a oportunidade desse momento de reflexão, para compartilharmos da vivência como gestoras/es em iniciativas pela construção da igualdade entre homens e mulheres, e da superação da desigualdade também entre mulheres, por meio da nossa ação com as Políticas Públicas. Isso é o que também move o nosso trabalho constantemente dentro ou fora do Governo. O que eu trouxe para discutirmos é basicamente uma síntese do que foi a minha pesquisa na dissertação. A pesquisa teve como uma das inspirações o diálogo e a referencia que tenho em várias servidoras feministas que estão hoje na SPM. E veio também da motivação advinda do contato que tive com gestoras de Política para as Mulheres em governos locais desde o ano 2000. Lembro-me delas sempre dizendo que o difícil quase não era criar o organismo de Política para a Mulher, porque isso, no compromisso político, o Movimento Feminista com a sua incidência histórica fundamental consegue fazer. Mas uma vez criados esses organismos, o difícil seria conseguir convencer as demais áreas do governo, da importância de orientar suas políticas na perspectiva da construção da igualdade, da superação das descriminações e das desigualdades não só em relação a mulheres e homens, mas também entre mulheres (PAPA, 2012). Nós sabemos que as mulheres também vivem desigualdades de raça, desigualdades relativas à região do país ou ao bairro em que elas moram, há ainda desigualdades geracionais, pela orientação sexual, entre outras. Então foi com essa motivação que procurei verificar o que significa 1 Fernanda C. Papa é comunicadora social, mestre em Administração Pública e Governo, e desde março de 2012 Coordenadora Geral de Relações Institucionais da Secretaria Nacional de Juventude / Secretaria Geral da Presidência da República. Conselheira governamental do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher na gestão atual. IGUALDADE DE GÊNERO NA PRÁTICA DO GOVERNO FEDERAL – UM OLHAR A PARTIR DE ESTUDO SOBRE A TRANSVERSALIDADE 77 fazer transversalidade na prática. Considero o nosso encontro aqui como um momento de troca, porque me parece que todas nós estamos tentando fazer transversalidade no dia a dia do governo federal. Falo todas nós, pois aqui somos maioria, mas é muito bom também encontrar aqui colegas homens, com quem a gente compartilha essa tarefa e desafio, isso é muito importante. Para situar essa reflexão, e isso já deve ter sido abordado no momento anterior do seminário, é importante falar das Políticas para as Mulheres, relembrar o histórico da redemocratização do Brasil, e que as políticas públicas para as mulheres brasileiras precedem a Constituição de 1988, pois naquela mesma década já tinham sido criados os primeiros Conselhos. Também vem deste período toda a incidência das mulheres nos movimentos de mulheres e feminista, no contexto de lutas contra o Regime Militar e pela redemocratização do país. Vem a nossa Constituição Cidadã, em que estão garantidas uma série de conquistas para as mulheres, e ali surgem os primeiros organismos de Política para as Mulheres nos Governos locais, e mais tarde a criação da Secretaria de Política para as Mulheres, que depois em 2003 vai do Ministério da Justiça para a Presidência da República, como a Secretaria de Políticas para as Mulheres - SPM. Este pode ser considerado um ponto de inflexão, uma oportunidade para a consolidação e institucionalização das Políticas para as Mulheres no país: a construção do Ministério da Mulher com o status que ele tem até hoje e o reconhecimento permanente da incidência do movimento feminista nesta construção. Parece-me que esses são os paradigmas e a orientação que não se pode deixar de mencionar nos preâmbulos, porque sem a força e a persistência das mulheres organizadas não teríamos a construção desse espaço, tampouco a ampliação de uma relação intersetorial e interministerial com outras áreas do governo. Então para iniciar, partimos da inquietação de por que, por vezes, tem-se a sensação de que não há o entendimento sobre o que é a política que as mulheres estão propondo? Essa frase: “Mas não é uma coisa como beber água e ir ao médico. Não é. Estamos lutando por um direito que uma parte sente. Outra parte não” captei da gestora que foi responsável pelo primeiro organismo de Política para as Mulheres, criado no município de Santo André, ainda no início dos anos 90. A Ivete Garcia que disse isso, explicando que naquela época esse era um grande desafio. 78 IGUALDADE DE GÊNERO NA PRÁTICA DO GOVERNO FEDERAL – UM OLHAR A PARTIR DE ESTUDO SOBRE A TRANSVERSALIDADE Portanto, proponho-me a compartilhar o que encontrei nas conversas com gestoras/ es de diferentes ministérios, tentando acompanhar e observar o que é fazer a transversalidade na prática do foverno federal. Como estudo de caso, escolhi o Pacto de enfrentamento à violência contra as Mulheres, no período de 2008 a 2011, relativo ao último Plano Plurianual - PPA antes do atual. O desafio foi tentar entender como fazer com que a Política para as Mulheres aconteça de concretamente, quais as formas para alcançar este objetivo e se a transversalidade é uma estratégia válida para isso. A inquietação de tentar se deslocar para o lugar do outro é importante. Mas nem sempre o outro enxerga o que precisamos, pois quando se fala de uma disputa de sentidos e de quebrar a naturalização da desigualdade, por meio das Políticas Públicas para as Mulheres, muitas vezes é preciso provocar o outro que não se coloca no lugar desta fala. Daí a necessidade de colocar algumas questões, como: os fatores que permitem que a construção da igualdade nas Políticas Públicas aconteçam a partir de uma ação transversal. Ao discutirem também neste seminário as experiências dos Comitês de Gênero, certamente lançou-se luz a este tema para conhecer o que tem avançado. Quero situar que essa minha pesquisa se deu em 2011, então sabemos que de 2011 para cá deve ter havido mais avanços. E o próprio Comitê tem mostrado isso. Proponho continuarmos a reflexão, com um olhar sobre as percepções do que é fazer a Política para as Mulheres a partir da transversalidade, que pode ser entendida como a ação de levar a perspectiva da igualdade para outras áreas, que já trabalham com missões muito importantes, mas que não necessariamente têm incorporada a leitura e a prioridade política da igualdade de gênero. Ou seja, não necessariamente consideram que aquela ação pode ter um impacto diferente sobre homens e mulheres, reconhecendo que existem desigualdades a serem superadas. Outra questão inerente à primeira é como levar essa abordagem para o ciclo da Política Pública, desde a sua concepção, da definição de prioridades, da implementação, do monitoramento e da avaliação. Esta foi uma orientação importante, que vem da Plataforma de Ação da Conferência de Beijing, a IV Conferência Mundial de Mulheres, realizada pela ONU na China em 1995, e que a partir dali, com o conceito de “gender mainstreaming”, tentou permear uma série de Políticas Nacionais no mundo todo. O Brasil também foi impactado por esse processo, do qual as feministas brasileiras participaram ativamente. E de lá para cá muito se buscou construir e a própria existência da SPM pode ser considerada também um resultado disso. IGUALDADE DE GÊNERO NA PRÁTICA DO GOVERNO FEDERAL – UM OLHAR A PARTIR DE ESTUDO SOBRE A TRANSVERSALIDADE 79 A partir do que foi observado na pesquisa em torno do Pacto, observamos que a transversalidade de gênero é uma tarefa difícil de ser executada no Governo Federal. Verifica-se que não é “natural” para muitas áreas do Governo considerar que uma política pode afetar mulheres e homens de forma diferente, e que por isso ela precisa ser desenhada considerando esse impacto, se ela não tiver capacidade de corrigir desigualdades. Mas ao observar a ação do Pacto de Enfrentamento a Violência Contra as Mulheres, também foi possível perceber que embora complexa, a tarefa é possível de se concretizar de diferentes formas, que variam em alcance e intensidade, e é isso que a interlocução com cada Ministério permitiu revelar. Observamos uma necessidade de o organismo de Política das Mulheres, a SPM, dar passos graduais para ampliar a sua incidência em relação à questão de igualdade de gênero nas Políticas Públicas nacionais. Diferentemente do que se observa em um conceito, por exemplo, como é o que está traduzido na definição sobre “gender mainstreaming” - que em português é frequentemente usado como transversalidade de gênero -, colocar o gênero no centro da concepção de toda política é algo normativo, mas difícil de concretizar. Porque depende de decisões de pessoas, de suas visões de mundo, de normas e regras estabelecidas nas instituições do Estado, do momento histórico em que se está vivendo e de uma série de outros fatores como, por exemplo, ter cotas ou paridade para mulheres no Legislativo, ou ter uma Presidenta mulher que contribua para o fortalecimento desta agenda. São muitos os elementos, como se ter ou não um movimento social ativo na rua, ou acontecer algum caso absurdo de violência que se torna emblemático, que vai para os meios de comunicação, e que obriga ação rápida das instituições e assim por diante. São muitos os fatores que contribuem para formar a agenda – ou para tirá-la de cena. Então o fato de existir uma prioridade da Política Nacional para as Mulheres não necessariamente implica um automático compromisso das diferentes áreas de governo para levar essa política adiante. E a transversalidade não se realiza em todas as áreas de governo envolvidas com essa iniciativa da mesma forma, ou no mesmo tempo. Em relação ao Pacto de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres, uma primeira aproximação é considerar que quem está no organismo que tem que promover a política transversal 80 IGUALDADE DE GÊNERO NA PRÁTICA DO GOVERNO FEDERAL – UM OLHAR A PARTIR DE ESTUDO SOBRE A TRANSVERSALIDADE vive uma espécie de ansiedade permanente por chegar a todos os ministérios estratégicos, dialogar com todos e de pactuar ações relevantes. Percebemos uma diferença em relação ao interesse dos Ministérios para se somar nesta relação proposta com o Pacto. Para isso, e pode parecer um pouco óbvio, é necessária muita negociação, é necessário um investimento grande de tempo para conversar e para negociar prioridades, entendendo os diferentes lados do problema, de quem está propondo e a visão de quem está no outro ministério. Entender que não necessariamente se tem ali a mesma compreensão em relação à necessidade de correção das desigualdades de gênero e das outras desigualdades que estão também implicadas, a exemplo da questão racial e também da questão da orientação sexual, geracional, entre outras. Então a importância de dedicar tempo para estabelecer relações de confiança entre gestoras/es aparece como um fator importante para a transversalidade. Esse fator foi trazido principalmente por quem elogiou a SPM no processo, pelo cuidado e pelo investimento feito para dialogar com as pessoas de outras áreas. Quando entrevistei a Secretária Aparecida Gonçalves, da Secretaria de Enfrentamento à Violência Contra a Mulher da SPM-PR, ela disse: “Você vai ver que na minha equipe não tem quase ninguém aqui.” Porque de fato estavam na rua, na Esplanada, indo conversar com os parceiros e parceiras, para tentar chegar a entendimentos. Entre os seis ou sete Ministérios que foram ouvidos na pesquisa, foi possível observar diferentes formas de envolvimento e que, todas legítimas, expressam um avanço importante das Políticas para as Mulheres no nosso país, no momento em que estamos vivendo. Variam as maneiras como se revela a construção da perspectiva de gênero nesses Ministérios. O Ministério da Justiça, por exemplo, expressou, entre várias de suas Secretarias, uma incorporação que variou de inicial a muito consistente da perspectiva de gênero. Uma das Secretarias, por exemplo, nunca tinha trabalhado a questão de fato, mas em função do Pacto passou a incorporar e buscava iniciar uma política nova. Naquele momento, dizia-se: “olha, temos ideias, ajudaram muito os estudos da SPM, mas ainda não temos nada concreto, estamos desenhando”. Hoje, dois anos depois, recebemos a notícia de formalização de uma política para as mulheres presas. Isso mostra que “leva um tempinho”, mas no processo gradual, com evidente compromisso das diferentes partes, ocorrem avanços. IGUALDADE DE GÊNERO NA PRÁTICA DO GOVERNO FEDERAL – UM OLHAR A PARTIR DE ESTUDO SOBRE A TRANSVERSALIDADE 81 Ter uma certa “tranquilidade” e paciência em relação a como incorporar a perspectiva de gênero pode ser valioso. E os resultados aparecem também. Outros Ministérios, como o da Saúde, mostravam muito entusiasmo ao afirmar que a SPM se tornou uma “aliada para a vida”, pois sem ela o ministério não teria a incidência que tem hoje em relação à saúde da mulher, e isso está refletido também em maior orçamento para as ações. Nomear novas sinergias possíveis no interior do próprio ministério, em função de uma provocação por se olhar a questão das mulheres de maneira específica, neste caso estudado de enfrentamento à violência, é outro fator que ajuda a compreender a transversalidade na prática. Isto é, a possibilidade de novas sinergias, provocadas pelo encontro com o organismo específico de Políticas para as Mulheres. Por outro lado, há também os casos de ministérios em que esta sinergia ainda “não flui”, ou não fluía, mesmo com a presença de gestoras feministas à frente de áreas importantes e com o movimento social de mulheres presente pressionando o ministério por meio de demandas apresentadas de forma organizada. A explicação era a da que ainda não havia sido possível encontrar “o lugar para encaixar gênero e dar um salto”. Uma hipótese é a de que existem diferenças de concepção na orientação da política, que por construção política e histórica não tem por base a mulher, mas sim a família. A política com orientação feminista, por sua vez, reordena e reorganiza o mundo na perspectiva da igualdade de gênero, reconhecendo que as relações sociais, entre elas as familiares, também expressam desigualdades de poder e de acesso a determinados direitos. Por isso busca evidenciar que homens e mulheres podem ganhar em qualidade de vida com o desenvolvimento dessa política, na medida em que se busca corrigir desigualdades. Convivemos, no entanto, com diferentes abordagens no desenho das diferentes políticas, de modo que nem sempre é possível construir a política de gênero em contraponto a outras concepções. Convivemos também com orientações que não são pautadas ainda pela construção da autonomia e do fortalecimento do sujeito de direito mulher em primeiro lugar, mas seguem outras concepções. Não se trata, no entanto, de modelos estáticos ou monolíticos. Mesmo em ministérios em que essa “dificuldade” está presente para a orientação feminista das políticas públicas, o movimento social faz a diferença e é reconhecido por isso. É possível citar exemplos, como o da Marcha 82 IGUALDADE DE GÊNERO NA PRÁTICA DO GOVERNO FEDERAL – UM OLHAR A PARTIR DE ESTUDO SOBRE A TRANSVERSALIDADE das Margaridas, cuja pauta dialoga com muitos ministérios. A Marcha das Margaridas convoca ao diálogo atores que talvez não o fizessem só pelo chamado do organismo específico de Política para as Mulheres, e a permanente ação dos movimentos sociais foi citada como uma fortaleza. Há ainda exemplo de ministério em que a política de igualdade está na concepção da Política do Ministério, não só de uma Diretoria da Mulher. Seria um caso de verificação do conceito de “gender mainstreaming” se concretizando, porque existe a orientação proposta por ele desde a concepção das grandes linhas de ação do órgão, com priorização nas diretrizes de suas políticas e não só das Políticas para as Mulheres. Trata-se do reconhecimento de que o sujeito da ação finalística não vive em condição de igualdade, em relação aos demais sujeitos. Um exemplo é a mulher que vive no meio rural. A mulher rural não está em situação de igualdade em relação aos homens do meio rural em diferentes dimensões da vida cotidiana e simbólica. Sendo negra, ribeirinha ou de comunidades tradicionais da floresta, e assim por diante, as condições de desigualdade ficam mais complexas. Ao se reconhecer que existe uma desigualdade de acesso a direitos para o sujeito que recebe a ação da política na ponta, já se procura definir ações que priorizem esse sujeito, que está vivendo em uma condição inferior aos demais. O Ministério do Desenvolvimento Agrário - MDA se destaca, neste sentido, em relação à Política para as Mulheres Rurais. Já outros Ministérios têm uma incorporação um pouco mais normativa em relação à perspectiva de gênero, indicando que isso está no PPA ou na designação de uma pessoa específica para responder pelo tema. Verifica-se ainda dificuldade de relatar a sua experiência prática em relação ao assunto. Não significa dizer que não exista algo em curso, que uma equipe não esteja valorosamente trabalhando pelo objetivo, mas ainda se observa fragilidade para “encontrar eco ou mais vozes” que se somem a estes esforços no interior de seu ministério. Observa-se não haver uma prioridade por parte de quem toma a decisão em uma esfera acima de quem está respondendo pelo tema. Nota-se “uma certa solidão” entre algumas gestoras e alguns gestores que não conseguem ir além de uma meta que está escrita no PPA. Entre estas diferentes percepções, ou nuances em que se observa o avanço da perspectiva de gênero em algumas áreas do governo federal, é central reconhecer que faz muita diferença o papel exercido pela SPM para persistir nesse desenvolvimento, ressaltando-se a importância de gesIGUALDADE DE GÊNERO NA PRÁTICA DO GOVERNO FEDERAL – UM OLHAR A PARTIR DE ESTUDO SOBRE A TRANSVERSALIDADE 83 toras com uma trajetória ou com uma atuação ligada ao movimento feminista. Esta experiência lhes permite contar com redes e mais ferramentas para sensibilizar as pessoas que estão no seu entorno, ao seu redor, no seu ministério e nos demais espaços do governo e na relação com a sociedade civil. Outro ponto a se destacar em relação à experiência brasileira, e isso aparece pouco na literatura acadêmica sobre o tema - que muito se debruça sobre a experiência européia -, é a questão da participação social. Uma hipótese que vale atenção é de que sobre o Brasil, em função dos processos de Conferências Nacionais impulsionados com os governos do Presidente Lula e de resultados importantes que as Políticas para as Mulheres têm conseguido a partir de então, a exemplos dos Planos Nacionais de Políticas para as Mulheres e da Lei Maria da Penha, haveria algo de diferente a dizer sobre a política de “gender mainstreaming” considerando-se a participação dos movimentos sociais como um fator mais acentuado que em outros países estudados na literatura. Também a partir dessa hipótese, além das outras características do caso estudado mencionadas anteriormente, tentamos descrever quais são os fatores que contribuem para que tenha sucesso a política de promoção da igualdade, de construção de autonomia das mulheres e de superação das discriminações de gênero no Brasil. Em síntese, trata-se de tentar identificar e apresentar os elementos que explicam o bom funcionamento da política de forma transversal em relação aos demais ministérios, e também dificuldades que constrangem o avanço das políticas para as mulheres a partir da estratégia da transversalidade. A seguir apresenta-se um resumo do que foi possível identificar a partir da pesquisa: •• O já mencionado papel fundamental do Organismo de Políticas para as Mulheres: motor que impulsiona, que gera informação, dados e questões, que zela pelos processos por estar olhando especificamente para a inclusão das mulheres, o que não necessariamente outras áreas fazem “de forma espontânea”. Revela-se fundamental a ação desse organismo específico, articulador das políticas, com um projeto político bem definido. •• A SPM como executora também de políticas. Além de iluminar questões e problemas que provavelmente não teriam sido tratados se não fosse a existência dos organismos específicos - “Você já tinha ouvido falar de quilombolas antes da 84 IGUALDADE DE GÊNERO NA PRÁTICA DO GOVERNO FEDERAL – UM OLHAR A PARTIR DE ESTUDO SOBRE A TRANSVERSALIDADE SEPPIR existir? Ou será que existiria a Lei Maria da Penha antes de a SPM ser criada?” – é importante reconhecer a SPM também como executora, além de articuladora, de políticas. Isso exige estrutura física, de recursos humanos, políticos e financeiros. O organismo não deve ser apenas o centro irradiador de expertise sobre a agenda, mesmo sabendo-se que sua especialidade no tema é um recurso valioso. Mas também por isso, a SPM deve ainda atuar como executora, porque há demandas para as políticas públicas que se não forem assumidas por iniciativa este órgão, não serão trabalhadas. É o caso do serviço disque 180, de denúncia em casos de violência contra a mulher, que faz muita diferença na vida das mulheres. •• A perspectiva feminista do projeto político do Organismo de Políticas para as Mulheres é igualmente importante porque não é suficiente apenas afirmar que se realiza política de gênero e despolitizar o conceito de gênero, sem reconhecer que existe uma tensão política e ideológica em relação ao sujeito mulher. É preciso reconhecer que há uma questão de poder colocada na reivindicação de políticas para as mulheres, evidenciar um acesso desigual ao poder em relação a homens e mulheres, quando se trata das políticas de gênero. •• Para avançar nesta agenda, é preciso reunir capacidade técnica para negociação política, com habilidades de relacionamento interpessoal e boa escuta. É preciso dedicar tempo para demonstrar, com fatos e dados, a necessidade de afirmação das mulheres, em sua diversidade, como sujeitos de direitos, perspectiva esta que nem sempre está visível para quem atua em outro Ministério, com outras prioridades. É comum que estas/es servidoras/es entendam muito de outros temas, mas que ainda não tiveram a oportunidade de refletir sobre a condição da mulher, em suas múltiplas dimensões, sejam elas de raça, classe, idade, se vive no campo ou na cidade, se sofre violência doméstica etc., e assim por diante. É preciso contar com prioridade e tempo para efetivá-la. Investir na capacidade de se inter-relacionar para falar no assunto é fundamental. •• Perceber que a intersetorialidade é o começo é outro passo importante. Isto é, entender que é mais difícil fazer a política transversal se antes, ou concomitantemente, não houver a aproximação por meio da ação intersetorial. Qual a diferença de intersetorial para transversal? Uma compreensão possível é de que o intersetorial aproxima interlocutores que não interagiriam se não houvesse a necessidade, em muitos casos até formal, de agir em torno de um problema comum, IGUALDADE DE GÊNERO NA PRÁTICA DO GOVERNO FEDERAL – UM OLHAR A PARTIR DE ESTUDO SOBRE A TRANSVERSALIDADE 85 o qual ganha prioridade na agenda governamental. O Pacto de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres é um exemplo disso, por ter se tornado prioridade na Agenda Social do segundo Governo do Presidente Lula. A partir dali, vários ministérios foram convocados a trabalhar junto em torno deste problema comum. No trabalho intersetorial, cada um aporta seus conhecimentos, questões, expertises, visões e recursos para resolução do problema comum. Juntam-se e cada um faz a sua parte. •• O “salto” da transversalidade, em relação à incorporação da perspectiva da igualdade, está em continuar a fazer “a sua parte”, mas passando a agir para que este trabalho contribua para a correção de desigualdades, no caso aqui, de gênero. Significa incorporar também a perspectiva feminista, não sexista, antirracista e assim por diante, em processos até então não permeados por estes olhares. •• O trabalho é gradual. Então, sugere-se começar pela intersetorialidade, contar com o encontro de áreas. Inicialmente, até sem expectativa de que já cheguem com a visão de trabalhar para superação das desigualdades de gênero. Há casos em que isso ocorre, há outros em que não, mas tal postura pode ser desenvolvida. •• Portanto, investir em reuniões bilaterais também é importante, dado que muitas vezes os espaços de diálogo interministeriais coletivos não dão o tempo suficiente para aprofundar certas questões. Em que pese o tempo escasso no cotidiano da gestão, em geral as reuniões bilaterais são muito enriquecedoras, porque permitem tirar dúvidas e conhecer um pouco melhor aquela outra pessoa, aquele outro projeto, aquele outro ministério. E é ali que se pode aprofundar relações de confiança. •• Contar com espaço de gestão intersetorial para negociação da transversalidade, a exemplo dos grupos de trabalho como o Comitê de Monitoramento do PNPM, as Câmaras Técnicas do Pacto, os Comitês Gestores em geral, etc. Tal espaço constitui uma estratégia importante porque formaliza o compromisso do conjunto de áreas envolvidas na política em questão e impactam a institucionalidade. Reconhecer a importância de formalizar este ponto de encontro, que é o lócus em que esses pactos vão se dar em torno de como se pode avançar nessa política de igualdade, é um passo importante. Mas vale lembrar que estes espaços não se bastam, sendo preciso combiná-los com outras estratégias para fazer avançar a política. •• Do ponto de vista interno aos ministérios, os seus Comitês de Gênero trazem 86 IGUALDADE DE GÊNERO NA PRÁTICA DO GOVERNO FEDERAL – UM OLHAR A PARTIR DE ESTUDO SOBRE A TRANSVERSALIDADE boas notícias, a exemplo do que se sabe estar realizando o Ministério do Meio Ambiente, Minas e Energia, o MDS também, entre outros. A organização desses Comitês é importante, mas deve ser vista como um passo inicial em um caminho que é mais longo. Existe um desafio de tornar estes espaços cada vez mais estratégicos, em meio a dificuldades de disponibilidade de tempo e pessoas para se reunirem, traçarem metas, contarem com a parceria do conjunto do ministério para alcançá-las etc. Fazer política para as mulheres a partir de outras áreas não significa criar um comitê apenas, mas pode ser um bom começo para impulsionar estas políticas a partir deste comitê. Ele é uma célula viva para contar com pessoas que incidam sobre as políticas do ministério, mas de uma forma estratégica, não isolada. •• Por isso é igualmente importante sensibilizar os atores principais para a política de igualdade. Se a/o ministra/o ou mesmo a/o secretária/o daquela pessoa que participa dos espaços intersetoriais, com toda dedicação e boa vontade, não está convencido de que aquela política é importante, aquela pessoa vai levar um bom legado para sua vida, o que já é positivo, mas ainda não terá sido dado o salto de que se necessita para avançar a política para as mulheres político e institucionalmente. Contar com uma estratégia para que tomadoras/es de decisão nos níveis mais altos da hierarquia possam ser aliadas/os da agenda é extremamente importante. •• A idéia dos diálogos que geram entendimento também merece destaque. Valorizar espaços de reuniões em que se busca construir os argumentos consistentes, recolher esses argumentos para desenvolver a política, e não por “imposição da perspectiva feminista”, que por vezes pode causar incompreensão, mal estar ou estranheza entre certas/os interlocutoras/es. Trata-se, então, de tornar acessível a descrição da realidade comprovada das desigualdades que ainda fazem de nossa democracia uma democracia em construção. De buscar a compreensão dos pontos de vista do interlocutor das outras áreas do governo e construir conjuntamente objetivos para avançar no trabalho comum. •• Reconhecer, portanto, uma co-responsabilidade em atender esse grupo da nossa população, as mulheres, para ganhar aliadas/os nesta construção. Reconhecer que é preciso andar junto, que as ações de todas as áreas são tão importantes quanto as do organismo específico de políticas para as mulheres, e que é possível contar com a referencia histórica e atual de organizações feministas IGUALDADE DE GÊNERO NA PRÁTICA DO GOVERNO FEDERAL – UM OLHAR A PARTIR DE ESTUDO SOBRE A TRANSVERSALIDADE 87 na sociedade civil para fortalecer a construção, a exemplo daquelas que estão representadas no Conselho Nacional dos Direitos da Mulher. •• Contar com especialistas, como consultorias ou com parcerias institucionais, para acompanhar os espaços de desenho e implementação das políticas públicas, produzindo estudos, é ponto de apoio importante para se construir a transversalidade. Esta percepção veio de depoimentos em mais de um ministério, que se referiram à importância “da autoridade da SPM e do CNDM”, para trazer dados com consistência, para desmistificar e desconstruir determinadas visões que estão na sociedade que “naturalizam” determinados papéis em relação às mulheres, as quais as políticas de igualdade têm o objetivo também de desconstruir. •• Importante identificar e contar com uma nova geração de gestoras sensíveis à questão de gênero. Observa-se depois de uma década do trabalho da SPM um novo momento em relação ao que foi o período inicial de atuação da Secretaria. Foram vividos vários processos em que servidoras/es tiveram a oportunidade de construir uma compreensão da necessidade de políticas com perspectiva de gênero no interior do Governo Federal. As Conferências Nacionais que implicavam a atuação de delegadas/os governamentais de forma combinada, os cursos de formação que a SPM ou outros ministérios e entidades externas ao governo promovem são citados como exemplos de iniciativas que despertaram interesse e aproximam servidoras/es ao tema. •• A igualdade como questão de decisão política. Definir que a igualdade seja colocada no centro da orientação das ações do governo federal é uma questão de decisão política, o que também vale dizer para os governos estaduais e municipais. Desenvolver a transversalidade é também agir para que a definição de uma política para todo o público reconheça que essa política deve olhar as mulheres de forma específica. E a decisão de fazê-lo implica reconhecer que vivemos, dentro e fora do Estado, relações de poder desiguais entre homens e mulheres. Atuar com a transversalidade explicita este desafio. Como diria uma das gestoras ouvidas na pesquisa, “significa ter a preocupação de atender as mulheres de forma diferenciada, porque as políticas não podem chegar de forma igual para todo mundo se, na ponta, no cotidiano, não está todo mundo igual”. Essa construção da prioridade política não é banal, não é menor, pelo contrario. 88 IGUALDADE DE GÊNERO NA PRÁTICA DO GOVERNO FEDERAL – UM OLHAR A PARTIR DE ESTUDO SOBRE A TRANSVERSALIDADE 1. DIFICULDADES •• Por isso por vezes verifica-se desânimo entre gestores e gestoras que não contam com chefes atentos ou abertos a esse debate. É necessário não perder de vista que estamos tocando relações de poder historicamente construídas, e em desvantagem para as mulheres, como observa a Secretária Executiva Lourdes Bandeira. •• Na visão de pessoas ouvidas pela pesquisa, o que dificulta também o trabalho é o tempo do ciclo da gestão em relação ao tempo que urge por transformações sociais de fundo para que nossa sociedade possa cada vez mais viver em igualdade. Observa-se que o tempo da administração pública para absorver importantes mudanças de valores, que devem orientar essas novas Políticas Públicas, é diferente, infelizmente, do tempo da duração de uma gestão. Encontramos relatos de pessoas de vários ministérios que afirmam estar engajadas nas metas construídas com a SPM para o PNPM, por exemplo, mas o tempo se mostra insuficiente para as expectativas e necessidades da SPM na produção de indicadores, e para demonstrar determinada transformação da realidade como decorrência das políticas para as mulheres em andamento. •• Desafio de reunir informações que são produzidas por outros órgãos – O organismo específico, por outro lado, é um conector importante de ações pela construção da igualdade, contando com ações dos ministérios para seu plano nacional, a exemplo do PNPM. Mas não lhe cabe controlar a ação finalística, fazer a execução financeira destas ações e responder por elas aos órgãos de controle. Isso não significa dizer que seu papel de “tradutor” das informações geradas para a construção de indicadores pelo avanço da perspectiva da igualdade de gênero e que sua parceria neste processo não sejam importantes. Por isso pode ser útil tentar trabalhar com “certa tranqüilidade” para contar com quem está do outro lado buscando fazer o que pode. E provavelmente descobrindo que pode fazer ainda mais pelas mulheres. •• Existem choques de visão entre as diferentes diretrizes que orientam algumas ações ministeriais, que nem sempre estão coadunadas, ou exatamente alinhadas, com a concepção da política para as mulheres. Também a baixa capacidade de escuta entre o organismo específico e os ministérios setoriais, quando ocorre, pode comprometer um bom processo em curso. IGUALDADE DE GÊNERO NA PRÁTICA DO GOVERNO FEDERAL – UM OLHAR A PARTIR DE ESTUDO SOBRE A TRANSVERSALIDADE 89 2. PROCESSO EM CONSTRUÇÃO A noção de processo em construção pode ajudar a reconhecer que há avanços significativos sendo alcançados e que muitos desafios seguem colocados. Se considerado o tempo de existência das políticas para as mulheres no nível do Governo Federal, em “perspectiva de impaciência histórica”, em relação ao lugar de subordinação das mulheres que estas políticas buscam superar, pode ser pouco tempo para o que já se fez até agora. E ainda falta muito tempo para tudo que é preciso transformar. Trata-se de um processo que está em construção, e essa percepção ajuda a compreender, ainda que não verificados em todas as áreas, que o avanço para uma mudança na definição das políticas na direção de maior inclusão das mulheres está em curso. Que cada ação é relevante. Que cada retrocesso é perigoso também. O trabalho cotidiano de cada uma e de cada um que está aqui é importante. A sensação de estar contribuindo, inclusive com questionamentos, para mover alguma coisa na construção da igualdade deve ser sempre valorizada. Essas são idéias gerais, muito simples até, que o trabalho com gestoras de políticas para as mulheres por alguns anos, a pesquisa em 2011 e a vivência no Governo Federal desde março de 2012, me permitem trazer hoje para compartilhar com as nossas reflexões e ações. Vamos continuar dialogando. REFERÊNCIA PAPA, Fernanda de Carvalho. Transversalidade e políticas públicas para mulheres no Brasil – percursos de uma pré-política. 2012. Dissertação (Mestrado em Administração Pública e Governo), EAESP-FGV, São Paulo, 2012. 90 IGUALDADE DE GÊNERO NA PRÁTICA DO GOVERNO FEDERAL – UM OLHAR A PARTIR DE ESTUDO SOBRE A TRANSVERSALIDADE POLÍTICAS SOCIAIS E GÊNERO COMO INTERDISCIPLINARIDADE E PARADIGMA POLÍTICAS SOCIAIS E GÊNERO COMO INTERDISCIPLINARIDADE E PARADIGMA Lia Zanotta Machado1 Obrigada a Ministra Eleonora Menecucci, a Lourdes Bandeira, e a Sonia Malheiros, por terem me convidado em nome da Secretaria de Política das Mulheres para uma palestra neste Seminário de Capacitação de Mecanismos de Gênero no Governo Federal. Gostaria de começar, situando-me. Participei dos anos 2005 até 2008 do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher (CNDM) como representante da Rede Nacional Feminista de Saúde e Direitos Reprodutivos. E como representante do Conselho Nacional de Direitos da Mulher, participei naquele período, do Comitê de Articulação do Monitoramento das Políticas Públicas para as Mulheres, instância e comitê, do qual vocês, muitas de vocês e muitos de vocês participam agora. Tenho assim uma certa experiência, de refletir, de montar plano, de pensar como delinear temáticas e definir metas a partir dos resultados das Conferências Nacionais e então articulá-las com as políticas e especificidades de cada ministério. Por outro lado, faço parte do campo acadêmico como pesquisadora e professora antropóloga onde uma das minhas especialidades é a questão de gênero, vinculada à questão dos direitos das Mulheres. Ao me convidarem para essa palestra neste Seminário de Capacitação, propuseram-me como tema: Políticas Sociais e Gênero como Interdisciplinaridade e Paradigma. Se a referência fosse intersetorialidade e não interdisciplinaridade, seria tentada a entender que estava sendo demandada para falar sobre o trabalho possível no Comitê de Articulação, pois lá o que está em foco, é como tratar de gênero e direitos das mulheres, de forma intersetorial. Mas eu estou sendo demandada para discorrer e debater gênero como interdisciplinar e como paradigma. Essa temática específica me leva para o campo acadêmico. A noção de gênero é fundamental para delinear conceitualmente e fundamentar pesquisas qualitativas e quantitativas com mais densidade. Espero que consiga aqui fazer a passagem entre o entendimento acadêmico a partir do meu lugar de pesquisadora e feminista do que é a questão de gênero e a questão da interdisciplinaridade e se gênero é ou não paradigma 1 Lia Zanotta Machado Professora Titular de Antropologia da UnB, Dra. em Ciências Humanas pela Universidade de São Paulo, 1980, especialista em Direitos das Mulheres e Violência de Gênero, autora de várias publicações e do livro Feminismo em Movimento, Editora Francis, 2010. 92 POLÍTICAS SOCIAIS E GÊNERO COMO INTERDISCIPLINARIDADE E PARADIGMA conceitual e depois chegar a refletir sobre como a perspectiva de gênero é capaz de permitir uma nova formulação e abordagem das políticas sociais. Por que gênero é interdisciplinar, e por que a palavra interdisciplinar? 1. FEMINISMO E INTERDISCIPLINARIDADE DE GÊNERO A palavra gênero e o entendimento de gênero como interdisciplinar no campo acadêmico, veio após a emergência do campo feminista político que aparece nos anos 60 nos Estados Unidos. Farei também referência aos campos intelectuais acadêmicos e aos campos de políticas públicas que se construíram em torno da temática de gênero nos países em que mais nos espelhamos e debatemos: Estados Unidos, Reino Unido e França. Poderia abranger muitos outros países, mas esse é o universo com o qual o espaço brasileiro mais se comunica, e onde a articulação das feministas brasileiras com feministas e intelectuais daqueles países fez e faz mais efeitos na configuração do feminismo brasileiro. Hoje, é claro, há uma maior circulação entre os feminismos latino-americanos que nos anos históricos dos seus inícios. No Brasil, o início do movimento feminista tem muito a ver com mulheres que saíram do Brasil durante o período autoritário, pelo exílio forçado ou voluntário em busca de formas de lutar pela democracia no Brasil e foram para a França, para o Chile, e para os Estados Unidos. Houve assim uma densa circulação internacional de ideias entre o que as mulheres feministas diziam nos anos 60 nos Estados Unidos e nos anos 70 na França e o que foi dito, pensado e construído pelo emergente movimento feminista brasileiro ao final dos anos setenta. É exatamente a movimentação feminista em todos esses países que é a fonte, e não outra, de introdução das questões dos direitos das mulheres e da questão de gênero nos diferentes campos intelectuais acadêmicos. Tanto no campo francês, como no americano, quanto no inglês, e, depois no brasileiro, a questão de gênero somente entrou no campo acadêmico em decorrência da movimentação feminista. As formas de entrada foram diferentes. Nos Estados Unidos como se tinha já instalados no campo acadêmico, ao lado de departamentos de estudos disciplinares, centros vinculados a estudos interdisciplinares sobre questões específicas temáticas, como os chamados Cultural Studies (Estudos Culturais), surgem os Women’s Studies (Estudos das Mulheres) em centros com enfoque interdisciplinar. Depois se transformam em Gender Studies (Estudos de Gênero) que continuam interdisciplinares. Constituem-se como pares POLÍTICAS SOCIAIS E GÊNERO COMO INTERDISCIPLINARIDADE E PARADIGMA 93 acadêmicos em Estudos de Gênero: Filósofas, Cientista Políticas, Sociólogas, Antropólogas, Historiadoras, Profissionais e Pesquisadoras em Letras e Literatura. São grupos acadêmicos que já começam de forma interdisciplinar. Na França não é nada disso, o conhecimento acadêmico se organiza basicamente através das disciplinas, e a chamada “cité universitaire” (cidade/citadela universitária) é mais refratária inicialmente à entrada das questões feministas. Assim, os primeiros textos feministas teóricos foram organizados e publicados em revistas propostas e organizadas pelas “teóricas feministas”, a partir de revistas organizadas pela movimentação feminista e não por revistas já presentes no campo acadêmico. Era um grupo de intelectuais feministas que escreviam textos políticos e teóricos. Se havia sempre essa intenção de fazer teoria, a politização estava sempre implicada. É interessante como o feminismo sempre produziu além de uma politização social e uma movimentação social, uma movimentação e politização do conhecimento. Tanto nos Estados Unidos, quanto na França houve uma variedade de feministas em termos de posicionamento em classes sociais e em segmentos sociais: operárias, mulheres de classe média, mulheres intelectuais, estudantes, profissionais, mulheres donas de casa. Na França, desde o início, há diversidade de origem de classe das mulheres feministas e de posição política: operárias, intelectuais, estudantes, socialistas, comunistas, liberais. A politização do conhecimento é levada adiante pelas feministas intelectuais que querem a introdução das relações de gênero no campo acadêmico, até então invisibilizadas. Nos Estados Unidos a movimentação começa um pouco mais concentrada na classe média, entre intelectuais, estudantes e entre mulheres brancas, mas é lá que, depois aparece claramente o movimento do feminismo negro. Será o feminismo negro que, claramente, propõe a intersecção entre classe, raça e gênero; questões postas por Collins (1990) de forma inovadora que passam a ter lugar em todo o conhecimento feminista e teórico. Por diferentes caminhos e diferentes momentos, tem-se uma entrada muito forte da politização no campo social pelos vários segmentos sociais diferenciados das feministas, às vezes se contrapondo, às vezes convergindo, transformando-se, e entrando sempre em movimentação. O desafio está posto no campo de conhecimento e é incessante. Na França, os estudos de gênero começaram como estudos disciplinares na História, com a História das Mulheres, na Sociologia e na Antropologia, com o estudo das chamadas “relações sociais de sexo”, na Literatura e na Psicanálise, com os estudos das “escritas femininas” e das “estruturas psíquicas femininas”. 94 POLÍTICAS SOCIAIS E GÊNERO COMO INTERDISCIPLINARIDADE E PARADIGMA O desafio é grande. Para a historiadora Michelle Perrot (1994), uma das intelectuais pioneiras feministas, sua tentativa de fazer doutoramento sobre a história das mulheres, não se realiza de imediato. É levada a fazer a tese sobre a movimentação das mulheres operárias. Somente depois, como professora reconhecida é que consegue levar adiante o projeto de uma História das Mulheres. Na França, a divisão disciplinar é hegemônica e os modos de focalizar a questão de gênero são bastante diferenciados segundo a pertença a uma disciplina ou outra. A pertença disciplinar parece duplicar a contraposição entre dois tipos de feminismo que logo se configuram depois de um início conjunto e convergente da movimentação feminista francesa, chamada de “movimentação pela liberação das mulheres”. As feministas das disciplinas, especialmente, da psicanálise, das letras e da filosofia, em especial constroem um tipo de feminismo que se dizia “diferencialista”, pois se posicionavam contra a univocidade do masculino. Contrapunham-se ao pensamento hegemônico de pensar toda a cultura a partir da égide do uno, do idêntico, cujo modelo seria o masculino. A proposta era a de construir fortemente a noção do feminino, enfocando e reforçando a presença e os valores culturais diferentes das mulheres, valores que deveriam ser mantidos, contrapondo-se, no entanto, ao lugar inferior dado às mulheres e a seus valores. Eram contra a inferiorização dos valores femininos, mas os essencializavam, transformavam tais valores em valores que essencialmente eram diferentes. Propunham que haveria uma certa eternidade do feminino que se expressaria numa forma de escrita feminina e numa estrutura psíquica feminina. Se vocês olharem culturalmente, é possível identificar uma certa forma de escrita feminina em algumas escritoras e literatas, como é o caso das sempre referidas escritoras brasileiras Clarice Lispector e Nélida Piñon: um alto grau de introspecção, e frases que não terminam, fazem circunvoluções e se enredam, parecendo se contrapor a qualquer reflexão no sentido da “reta” entre dois pontos que seria o pensamento masculino chamado de falo-logocêntrico. Por outro lado, como diz o Sociólogo francês Pierre Bourdieu, em pesquisa por ele realizada, apresentadas redações escritas por alunos, meninos e meninas, a vários leitores, os leitores não souberam acertar se os autores eram homens ou mulheres. Formas mais identificadas pelo feminismo diferencialista como masculinas eram escritas por homens e mulheres e formas mais identificadas como femininas eram escritas por homens e mulheres. A Psicanálise Lacaniana inspirou feministas francesas a entenderem que há fronteiras entre a estrutura do feminino e a do masculino no simbólico, mas com a ressalva que, se homens e mulheres tendem a se colocar reciprocamente POLÍTICAS SOCIAIS E GÊNERO COMO INTERDISCIPLINARIDADE E PARADIGMA 95 na posição do masculino e do feminino, é sempre possível que homens se coloquem na estrutura simbólica feminina e mulheres na estrutura simbólica masculina. Podem se constituir ou serem constituídos em posições inversas, apesar da tendência convergente de homens para o masculino e mulheres para o feminino. Então vejam que a Psicanálise já faz uma ressalva, já não são homem e mulher obrigados a estarem no masculino e no feminino. Contudo, propõe-se a existência de uma estrutura psíquica do feminino e uma estrutura psíquica do masculino. Vejam como o próprio conhecimento, do meu ponto de vista, vai mexendo com as categorias do masculino e do feminino. Antes do feminismo dos anos setenta, a diferença de gênero era a diferença de sexo posta no biológico e era a diferença percebida como inferioridade do sexo feminino. Nos anos setenta e oitenta com o feminismo igualitarista e com o feminismo diferencialista, a diferença de sexo deixa de estar assentada no biológico. O feminismo igualitarista que, na França, foi desenvolvido teoricamente pelas feministas no campo acadêmico das disciplinas de História, Sociologia e Antropologia, propugna a igualdade de gênero e considera todas as diferenças produções sociais e culturais, portanto transformáveis. Mas o feminismo diferencialista repõe a diferença de sexo na dimensão do cultural e do simbólico, como uma diferença essencial, não transformável, mas em que o feminino não é visto como inferior, mas como diferente. Os homens concretos e as mulheres concretas é que podem se distribuir por essas duas estruturas, obedecendo ou não à tendência dominante de se dirigir a uma ou a outra. 2. GÊNERO COMO CONSTRUÇÃO CULTURAL E COMO PARADIGMA Hoje, no modo atual tendencial da produção de conhecimento feminista e no meu entender, pode-se perceber a necessidade de relativizar qualquer forma de definir estilos de escrita e de características psíquicas a serem considerados mais femininos ou mais masculinos, assim como é impossível marcar fronteiras nítidas entre o feminino e o masculino. A construção do feminino e do masculino assim como a construção de uma polifonia de gênero e de orientação sexual, são sempre construções culturais, sociais e históricas, e, portanto transformáveis. A produção cultural das diferenças é contínua, assim como é contínua sua desconstrução e transformação. Hoje, longe dos anos setenta, nós temos que prestar atenção naquilo que o feminino tem, pode ter ou pode deixar de ter 96 POLÍTICAS SOCIAIS E GÊNERO COMO INTERDISCIPLINARIDADE E PARADIGMA de diferente, sem jamais essencializar ou tornar “natural”, pois sempre se trata de uma construção cultural. Ao pensar em políticas públicas qualquer característica hoje é fundamental pensar no lugar de reprodução das mulheres advindo do lugar diferencial em termos biológicos e que tem efeito na reprodução social, pela forma em que a reprodução biológica é imediatamente percebida social e culturalmente como reprodução social. Já se diz que não é o biológico determinando o cultural, nem o econômico determinando o cultural. Essa relação entre como se percebe, socialmente, a capacidade de reprodução biológica da mulher, e como se imagina e se concebe o que deve ser o cuidado das mulheres e/ ou dos homens em relação às crianças é variado, absolutamente variado, e depende do olhar da cultura. Mas preciso voltar um pouquinho na história do feminismo: essa discussão posta pelo feminismo diferencialista na relação com o feminismo igualitário é importante porque me permite chegar à configuração atual da questão de gênero que supera a dicotomia entre igualdade e diferença. Para o feminismo da produção da igualdade, desde o começo, o que mais importava é que se lutasse por uma igualdade entre homens e mulheres. No entanto, no seu começo, o feminismo da igualdade muitas vezes era pensado e se pensava como feminismo da identidade: se todos temos que ser absolutamente iguais, homens e mulheres, teríamos que ser idênticos? Sempre, no entanto, a perspectiva fundamental foi, era e é a questão da igualdade de direitos: não importa se nós sejamos mais vistos culturalmente como femininos ou masculinos, não importa a escolha de estilos de personalidade, estilos de aparência, estilos de escrita, estilos de fala, formas de sexualidade, o fundamental é que, sejam mais ou menos marcadas ou desmarcadas as fronteiras entre as formas masculinas e femininas, todos homens e mulheres tenham plena igualdade de direitos. Na concepção hodierna dos estudos de gênero e sexualidade, as fronteiras de gênero ultrapassam de longe quaisquer diferenças entre homens e mulheres. Hoje se fala na produção cultural de diversos outros gêneros. Ao se pensar na constituição de gênero, a questão da sexualidade, mais do que simplesmente sexo, entra fortemente através das opções ou das orientações de sexualidade. Permite que o gênero seja e abarque, como diz a filósofa americana Judith Butler (1990), uma proliferação de gêneros, homens e mulheres, heterossexuais e homossexuais, lésbicas, gays, travestis, POLÍTICAS SOCIAIS E GÊNERO COMO INTERDISCIPLINARIDADE E PARADIGMA 97 transexuais, transgêneros e várias outras categorias. A questão de gênero implica não só o modo pelo qual eu me constituo como estilo feminino, masculino, como eu me visto, como eu penso, etc., mas também implica em determinadas formas de sexualidade que exercemos. Hoje, estamos longe da ideia de que haja uma diferença eterna entre homens e mulheres biologicamente assentadas e simbolicamente reproduzidas. A igualdade politicamente é que é importante. O fundamental é que se tenha a capacidade de valorizar politicamente, da mesma forma, todas as nomenclaturas possíveis de gênero da sociedade atual, todas as escolhas sexuais e todos os estilos de estética e modo de vida. É por isso que hoje tanto se fala e se exige, ao mesmo tempo em respeito à diversidade e à igualdade. A busca da igualdade não é a busca da identidade única, é a busca da igualdade política de direitos e do respeito à diversidade de estilos de vida, de estilos de sexualidade, de exercícios de opções, enfim, da diversidade de perfis emocionais. Hoje nós tornamos mais complexa a noção de gênero. Por quê? Porque sobre o gênero agora se tem uma grande certeza: não há consenso nenhum, nem essência nenhuma sobre o que é masculino e o que é feminino. O conceito de gênero complica, pois ele não mais admite dizer o que é o masculino, o que é o feminino, o que é o ser lésbica, o que é o ser gay. Não define nenhum dos gêneros nem quantos são, os estudos de gênero afirmam que há uma proliferação de formas de ser e de se construir. Se há um consenso hoje nos estudos de gênero é que não há uma constância da definição do que é masculino e do que é feminino. Duas foram as metodologias nascidas das movimentações feministas e de sua inserção no campo acadêmico e político do conhecimento: primeiro os estudos de mulheres e depois os estudos de gênero. Podemos falar da construção de um novo paradigma metodológico pelas análises de gênero diante da proposta metodológica dos estudos sobre mulheres. Ao se afirmarem os estudos das relações de gênero a partir dos anos oitenta, passa-se a estar diante da afirmação compartilhada da ruptura radical entre a noção biológica de sexo e a noção social de gênero, de sua construção cultural e da afirmação do privilégio metodológico das relações de gênero, sobre qualquer substancialidade das categorias de mulher e homem ou de feminino e masculino. Já o afirmava neste termos: Gênero como paradigma (Machado,1998). É clássica na Antropologia britânica a inscrição em 1980 do conceito de gênero por MacCormack e Strathern: Nature, Culture and Gender. Afirma-se, ao mesmo tempo, a transversalidade de gênero, isto é, o entendimento de que a construção 98 POLÍTICAS SOCIAIS E GÊNERO COMO INTERDISCIPLINARIDADE E PARADIGMA social de gênero perpassa as mais diferentes áreas do social e se constitui como interdisciplinar. Para a posição paradigmática dos estudos de gênero é ainda fundamental a afirmação de que a análise das relações sociais e dos processos sociais, somente se faz quando se leva em conta as posições distintas dos sujeitos segundo o gênero, interseccionado com classe e raça/etnia, nas mais diferentes sociedades e contextos. 3. A DIVERSIDADE DAS MULHERES E OS OBJETIVOS DAS POLÍTICAS SOCIAIS DE IGUALDADE DE GÊNERO O desafio é grande na hora em que se vai pensar a política social e em como se dá a relação entre os movimentos feministas e o Estado. Como é possível atender essas diferenças, essa diversidade? Se não há constância da definição de qualquer gênero, e não há identidade dentre todas as mulheres, e se temos que dar conta da diversidade, de outro lado há problemas que culturalmente afetam mais as mulheres. É evidente que, ao se pensar em grandes amostras, pode-se dizer que, algumas questões são mais pertinentes às mulheres e outras mais pertinentes aos homens. Mas sempre temos que pensar que qualquer atendimento diferenciado para mulheres e homens e para distintos estilos de vida, ocupações e situações sociais, tem que ter como objetivo máximo a igualdade de direitos: políticos, sociais e civis. O movimento feminista hoje no Brasil e no mundo, cada vez mais, propõe que o desenvolvimento da igualdade de gênero chegue a alcançar as mais diferentes formas de viver e de fazer política. O senso comum às vezes pensa que o feminismo já alcançou seus objetivos, já “chegou lá”, ou que a sociedade já alcançou o caminho “natural” do futuro no rumo da igualdade de gênero. Falta muito para construir o fim da desigualdade de gênero, e para construir uma igualdade de direitos em relação à diversidade de estilos de vida e de opções que se organizam em torno da proliferação de gêneros na sua intersecção com raça e classe. Igualdade e diversidade tornam complexas as formas de se demandar e fazer políticas sociais. Nas Conferências Nacionais de Políticas Públicas para as Mulheres cada vez mais emerge a defesa das especificidades de identidades diversas. São as vozes das mulheres negras, das mulheres lésbicas, das mulheres ribeirinhas, das mulheres que quebram coco, das mulheres das florestas, das jovens, das mais velhas. POLÍTICAS SOCIAIS E GÊNERO COMO INTERDISCIPLINARIDADE E PARADIGMA 99 As demandas em torno da questão de gênero, tal como concebidas hoje, fazem efeitos: ao valorizarem-se as identidades específicas e a noção de abrangência, as diversidades acabam sendo reforçadas pelas movimentações feministas desde que não entendidas como restritivas ou eternizadas. Então, esse é um ponto, eu diria que a ideia, a noção de gênero, produziu o efeito de que não se falasse apenas de condição da mulher no singular, mas que se falasse de mulheres diversas no plural, e que se falasse de gêneros no plural. Se nós pensarmos em momentos iniciais do feminismo onde o conceito de gênero não havia emergido, mas se falava apenas de diferença de sexo e da condição da mulher como sinônimo de todas as mulheres, poderemos nos dar conta mais acuradamente do processo de complexidade que o conceito de gênero trouxe para o feminismo e para as políticas sociais. Voltemos na história para um nome expoente do pioneirismo do feminismo da metade do século passado. Simone de Beauvoir foi uma grande precursora do feminismo francês. Feminista, escreveu o livro sobre o “Segundo Sexo” em 1949, antes mesmo da grande movimentação feminista dos anos setenta que vai às ruas e que alcança a repercussão mundial hoje tão conhecida. O que há de novidade entre hoje com a noção de gênero e a forma de pensar de Simone de Beauvoir? Simone de Beauvoir tinha uma dificuldade muito grande de trabalhar com o sexo biológico feminino, porque achava que o sexo biológico das mulheres era um fator limitador, fazia referência à menstruação e à reprodução. Entendia-os como fatores limitadores frente à possibilidade de se desenvolver como um ser humano com projeto social. O projeto social é o que faz do humano um sujeito, segundo a ideia sartriana existencialista. Assim, para Simone, as mulheres tinham que superar duas coisas: a inferioridade social a elas imposta que fez do sexo feminino o “segundo sexo” e as desvantagens e limitações do sexo biológico feminino. As mulheres ao se proporem um determinado projeto social deixariam de serem consideradas inferiores. Este é um dizer bastante precursor identificado com o feminismo da igualdade. No entanto, sua visão negativa do lugar do sexo biológico, de alguma forma, dificultava a visão de sua igualdade. Era como se o sexo biológico continuasse a ser uma das razões para seu lugar cultural inferior. Estava implícita uma dicotomia entre natureza e cultura. 100 POLÍTICAS SOCIAIS E GÊNERO COMO INTERDISCIPLINARIDADE E PARADIGMA 4. GÊNERO, SEXUALIDADE E CORPO Hoje, temos a noção de que natureza e cultura não são coisas tão distintas, em que uma, a biológica, determina a outra, a cultural. Hoje se as pensa como estando entranhadas. O que chamamos de biológico, é sempre definido a partir do cultural. É a partir do lado cultural que se diz se o sexo biológico inferioriza ou não, porque o sexo biológico não faz nada, o efeito de inferiorizar ou não advém de uma definição que se dá no interior das relações sociais e culturais. A noção de gênero, e não a de sexo biológico, é aquela que faz o corte, que mostra que há um arbitrário cultural. Não é o sexo que determina o gênero, mas é o gênero que, na verdade, a partir do próprio gênero ou da própria concepção de gênero que vivo e experimento que faz com que eu veja o sexo. É a partir do gênero que se atribui causas, características e determinações ao sexo biológico. Li um texto muito interessante autobiográfico de João W. Nery (2011) - Viagem Solitária, Memórias de um Transexual Trinta Anos Depois - cujo autor foi entrevistado em vários programas de televisão. Trata-se de um autor cujo sexo biológico é mulher, que é referido como female to male, ou seja, alguém que se transformou de mulher (com aparato biológico fêmea) em homem (com aparato biológico macho). No Brasil, é o primeiro homem transexual que muda de identidade social, um dos primeiros ou o primeiro que introduz modificações cirúrgicas e hormonais no seu corpo, além de mudar sua forma aparente de se vestir e apresentar. É impressionante como os seus relatos mostram como é a partir da noção que ele tem do que é ser homem e de que ele é homem, que não consegue viver o seu corpo de mulher. Vê, percebe e sente a questão do sexo e do corpo a partir do modo pelo qual se constituiu social e psicologicamente. Quer dizer, não é o sexo que determina sua percepção do seu sexo e do seu corpo, é de um outro lugar, do modo como concebe a ideia do masculino e do feminino (do gênero) que concebe o entendimento do sexo, do corpo e da sexualidade. A tragédia dele é ter um corpo feminino, a tragédia dele é se olhar no espelho tendo relação sexual e ver que seu corpo não corresponde a como ele se entende: homem. O autor escreve muito bem, e mostra como é de um lugar cultural de gênero que se percebe o sexo, que, portanto, gênero e sexo estão entranhados, mas que o acesso ao significado é sempre através da dimensão cultural das relações sociais onde se constroem as percepções psíquicas. POLÍTICAS SOCIAIS E GÊNERO COMO INTERDISCIPLINARIDADE E PARADIGMA 101 Não há assim, no meu entender, um primeiro sexo e um segundo sexo como diz Simone de Beauvoir fora da dimensão cultural de gênero. A importância do corpo não é uma instância metafórica, ela é fundamental, mas ela deve ser percebida junto ao cultural, pois é a densidade cultural que faz ver e construir estilos, gêneros, corpos, sexualidades. É dando o peso e a densidade à dimensão das relações sociais e culturais que se pode pensar o lugar de sujeitos sociais e políticos e pensar o que se pode fazer para lutar incessantemente pela igualdade de gênero, levando em conta as posições diferenciais e desiguais dos sujeitos sociais mulheres na sua diversidade. Esta é uma questão fundamental para as pesquisas feministas de gênero, aquilo que trouxeram de novo para o campo acadêmico e para o campo das políticas sociais. 5. POLITIZAÇÃO E INOVAÇÃO DOS ESTUDOS DE GÊNERO NO CAMPO DO CONHECIMENTO As pesquisas de gênero fazem o caminho interdisciplinar e como elas estão preocupadas com o conhecimento e politizam o conhecimento mudam muito as formas de saber e conhecer. Escrevi textos: “Campo Intelectual e Feminismo” (1994) e “Estudos de gênero: para além do jogo entre intelectuais e feministas” (1997) em que faço a crítica ao conhecido sociólogo francês Pierre Bourdieu, (1990), autor de “La Domination Masculine”, que coloca em dúvida que os estudos feministas tenham trazido algo de novo para o campo acadêmico, pois, segundo ele, a questão tradicional do estudo da divisão sexual do trabalho já apontava e resolvia as questões trazidas pelo feminismo. Sua pergunta poderia ser assim traduzida livremente: “Vocês feministas, o que estão trazendo de novo?” Para Bourdieu, tanto na Antropologia, como nas Ciências Sociais, a tão velha questão da divisão sexual do trabalho sempre esteve presente. Não haveria nada de novo ao dizer que as sociedades dividem os seu trabalho sexualmente. O autor já faleceu, e já escreveu outro texto atenuando o dito crítico. Considero, no entanto, importante afirmar aqui que há novidade nos estudos feministas de gênero, contrariamente ao que o autor escreveu. As abordagens tradicionais da antropologia e das ciências sociais simplesmente descreviam como realidade a divisão sexual do trabalho. Ela se repetia nas sociedades africanas, nas sociedades indígenas da América do Norte e do Sul, nas sociedades orientais. Esses estudos antes do feminismo o que traziam de volta ao mundo ocidental? Ao tratarem da divisão sexual nas mais diferentes sociedades como fenômeno a ser 102 POLÍTICAS SOCIAIS E GÊNERO COMO INTERDISCIPLINARIDADE E PARADIGMA descrito, naturalizava-se o princípio da divisão sexual, mesmo que seus formatos fossem diferentes. Assim se produzia um processo de “naturalização”, a que chamei de “naturalização de segundo grau”, produzida pelo próprio meio acadêmico: isto é, a divisão sexual parecia decorrer da natural existência da diferença sexual biológica. A fala acadêmica enfatizava o processo como “natural”. Construía-se assim a mensagem de que se para as outras sociedades sempre há divisão sexual do trabalho, é por isso que a divisão sexual também se dá na nossa sociedade... Digo que muitos autores do campo acadêmico, inclusive Bourdieu, mesmo depois do advento do feminismo, continuam trazendo de volta, a mesma coisa: reiteram, naturalizam, e acabam por terem o efeito de legitimar a divisão sexual do trabalho. A ideia de dominação masculina, tal como formulada por Bourdieu incide no risco de naturalizá-la, pois o autor a ela se refere como quase inerente à ordem social, como prática e regra, quando, ao contrário, do olhar paradigmático da metodologia feminista de gênero, a dominação masculina deve ser lida como se dando em processo relacional, onde as posições e os olhares de mulheres e de homens sempre as percebem diferentemente. Ao se dizer sobre a dominação masculina segundo o paradigma metodológico feminista de gênero, tratam-se de relações sociais em processo que, tanto podem estar sendo reinventadas, como podem estar sendo transformadas e colocadas em jogo. Segundo o paradigma feminista de gênero, aponta-se e critica-se ao mesmo tempo a dominação masculina por não considerá-la fenômeno quase imutável, entendendo que as relações sociais são sempre vividas a partir de posições diferenciadas de sujeitos e em processo e estão sempre sendo transformadas. Quando o campo acadêmico naturaliza a divisão sexual do trabalho, reforça o senso comum do funcionamento do mercado de trabalho que reproduz a diferença de salários entre os gêneros, e o senso comum de uma natural vocação exclusiva das mulheres ao cuidado da casa e dos filhos. Pela entrada do paradigma feminista de gênero nas mais diferentes disciplinas é que se traz para o campo acadêmico a ideia de rever e de não refazer a naturalização no gênero tal como ela está, mas de pensá-la em mudança. Buscarei agora responder a uma pergunta antropológica conjectural que advém da teoria de um eminente antropólogo, também francês, Lévi-Strauss. Para Lévi-Strauss, a sociedades se dividem em dois grandes tipos: as sociedades quentes e as sociedades frias. As sociedades POLÍTICAS SOCIAIS E GÊNERO COMO INTERDISCIPLINARIDADE E PARADIGMA 103 quentes são as sociedades modernas que adotam positivamente a ideia de mudança. Mudam, estão mudando, e seria por isso, que nestas nossas sociedades modernas falamos de mudanças na divisão sexual do trabalho, por isso é que estaríamos mudando as formas de construção de gênero. Mas as sociedades frias, segundo Lévi Strauss, elas mantêm e repetem eternamente a sua tradição, pois o seu valor é a tradição e não a mudança. Assim, e nesse sentido, autores antropólogos entendem que a noção de gênero talvez nem seja adequada para o uso nas sociedades indígenas, pois naquelas sociedades, não haveria a ideia de que as relações de gêneros possam ser repensadas ou mudadas. Contudo, hoje há também uma forte crítica, não somente advinda do campo feminista, no campo antropológico deste entendimento da noção de tradição. Hoje, considera-se por muitos que esta noção, da forma como foi concebida nos inícios da antropologia britânica e francesa, é uma noção reificada. Não é mais a “verdade única” dentro da Antropologia. Por quê? Porque tem várias questões que exigem o repensar da questão da tradição. Não há tradição que não se mantenha por uma vontade política de uma comunidade, portanto a tradição não é uma coisa inerte fisicamente. A ideia de trazer uma metáfora da física aqui, é minha pois, no meu entender, a palavra inércia e repetição, foram fundamentais, ao lado de outras palavras/conceitos que significam seus opostos, foram fundamentais para o desenvolvimento da física. Considerar a tradição como uma inércia, poderia ser uma noção da física. Isso não é Sociologia, isso não é Antropologia. Para se manter uma tradição, nunca se a mantem exatamente como é ou como era: para se manter há que ter vontade política. E se é possível manter, é possível modificar, modificar pouco, flexibilizar, reinventar, sempre em contexto e dentro da densidade do contexto. Há textos relevantes como o de Sahlins (1990) onde fala da reinvenção das tradições (Ilhas da História) e onde explicita que o conhecimento antropológico advindo do conhecimento da sabedoria dos povos tradicionais indígenas permite dizer que “uma tradição sempre implica alguma consciência”, que a “consciência da tradição implica alguma invenção”, e que a “invenção da tradição implica alguma tradição” (1990, p.89). Wagner (2011) em seu livro: “A invenção da cultura” enfatiza o sentido social da construção e transformação das culturas no interior das relações sociais. As tradições são inventadas e reinventadas, elas não são inertes e nem se reproduzem inertemente. 104 POLÍTICAS SOCIAIS E GÊNERO COMO INTERDISCIPLINARIDADE E PARADIGMA Se nós pensarmos e devemos pensar sobre a existência das diversidades culturais que se conformam delimitando fronteiras culturais, também devemos pensar nas interações entre as diversidades culturais e, sempre que se tratam de relações sociais e culturais em contexto e em processo. Assim, as relações de gênero nessas sociedades seguem tradições distintas das nossas, mas se constituem em processo e a partir das posições de sujeitos diferenciados. Assim, não há uma visão uniformatada de toda uma cultura. Esta é uma ilusão, talvez criada, ao se pensar as sociedades como absolutamente outras, como logicamente opostas às nossas, tal como a oposição dicotômica clássica, mas ultrapassada dos termos durkheimianos de consciência coletiva e consciência individual. Isso seria reificar a noção de tradição e desconsiderar a força e complexidade das relações sociais de gênero e o seu caráter dinâmico. Considerar, no entanto, a diversidade cultural é fundamental, desde que não se a reifique. 6. TRANSFORMAÇÕES DE GÊNERO E DIVERSIDADE CULTURAL Temos que pensar não somente nas diferenças advindas das diversidades culturais no interior dos nossos sistemas sociais com seus diferentes estilos e formas de vida, mas também como sistemas sociais distintos, como é o caso relevante das sociedades indígenas no Brasil. Isso não significa que a cultura seja um lugar eterno, nem que o masculino seja eterno, nem que o seja o feminino. A cultura se constrói na movimentação das relações sociais, portanto, onde os sujeitos se situam em posições sempre diferenciadas, mesmo nas sociedades onde a divisão do trabalho se distingue especialmente pela diferença de gênero e idade e se organiza em torno do parentesco e/ ou das facções e metades. A alteridade não é pensada apenas em relação às sociedades indígenas. Uma forma de alteridade que toma cada vez mais atenção das movimentações feministas e do campo intelectual de gênero é o mundo oriental onde as formas hegemônicas das relações de gênero introduzem uma forte desigualdade em termos de direitos e de possibilidades de escolha de estilos de vida. Face ao recente cuidado e atenção com a necessidade de respeito aos direitos à diversidade cultural, eu já ouvi dizer assim: “Vamos esquecer a questão das mulheres do Oriente porque eles têm lá uma cultura diferente, nós temos que respeitar.” Estive nos Estados Unidos em 2009 e 2010 e fiquei surpreendida, do ponto de vista brasileiro de que a esquerda crítica POLÍTICAS SOCIAIS E GÊNERO COMO INTERDISCIPLINARIDADE E PARADIGMA 105 considerava politicamente incorreto denominar determinados crimes de violência doméstica como crimes de honra. Qual a razão? Pois esta nomenclatura somente era atribuída aos crimes contra mulheres, filhas, enteadas, esposas, quando se tratavam de crimes cometidos por imigrantes dos países orientais. Em contraste, no Brasil, nós feministas falamos que os crimes domésticos contra mulheres referem-se ao poder patriarcal de gênero que é todo significado em torno da ideia de honra das famílias e da honra dos homens. Denominei que as famílias, historicamente, se organizaram em torno do “código relacional da honra”. A honra do homem, neste código, depende da fidelidade da esposa e da virtude das filhas e das irmãs no longo percurso da história. Foram histórias que compartilhamos no passado, mas em grande parte ainda no presente, em formatos bastante semelhantes, mas não idênticos, não apenas no mundo oriental, no mundo ocidental mediterrâneo, mas também no mundo anglo-saxão. Surpreendi-me também com colegas intelectuais feministas que se manifestaram contra a organização feminista internacional que fazia campanha contra o apedrejamento das mulheres que traem seus maridos, em países do oriente. Entendiam que, o alvo das campanhas deveriam ser as Guerras declaradas contra esses países pelos Estados Unidos em nome dos direitos humanos. Entendiam que a manipulação do uso dos direitos humanos pode ser muito forte, com a supressão de determinado apoio econômico a um país porque não obedece o respeito aos direitos humanos dos gays, ou da mulheres, por exemplo. Entendi e considero relevante a percepção crítica das intelectuais ao uso e manipulação dos direitos humanos em nome de poderes de Estado contra Estado. Sobre a Guerra contra o Afeganistão, por exemplo, muito foi dito em nome dos direitos das mulheres. Evidentemente fez efeitos positivos para os direitos das mulheres, mas foi um desastre em termos dos tormentos de uma Guerra para homens, mulheres e crianças. Pergunto-me, no entanto, por que nós feministas não podemos fazer as duas críticas ao mesmo tempo? Denunciar as guerras devastadoras e ao mesmo tempo continuar a fazer a crítica ao apedrejamento de mulheres, aos direitos suprimidos de gays e lésbicas, por quê? O que estaria em jogo, nesta negação por algumas feministas intelectuais americanas, de uma das metas fundamentais do feminismo internacional como a campanha contra o apedrejamento de mulheres? Analiticamente, entendo que seja o recente crescimento internacional da defesa dos direitos à diversidade cultural. O medo de se 106 POLÍTICAS SOCIAIS E GÊNERO COMO INTERDISCIPLINARIDADE E PARADIGMA reconhecerem como universalistas e não respeitarem o princípio do relativismo cultural. Contudo, entendo que o conceito de cultura e de diversidade cultural que parece embasar estas asserções, está absolutamente equivocado. As culturas não são uniformatadas e não fazem desaparecer os conflitos entre as posições diferenciadas dos sujeitos no entranhado das relações sociais. Não existe nenhuma cultura, nenhum código relacional da honra que consiga, quer esteja inscrito no código penal e civil, quer esteja inscrito na memória oral e na inscrição dos desejos e emoções dos sujeitos, que consiga anular a diferença de sentimentos, de emoções e de sofrimentos entre o sujeito do ato violento ou do ato punitivo em relação ao sujeito que recebe e sofre o ato violento ou o ato punitivo. Não há mulher apedrejada que não sofra ao ser apedrejada, porque sabe que se trata de um ato compartilhado pela hegemonia do contexto cultural ao qual pertence. Ela sente a pedra que a mata, ela sente a violência psicológica que a amordaça. As posições sociais dos agentes sociais são distintas, porque as posições de poder, hierarquia e prestígio nas relações de gênero são extremamente desiguais. Esta é uma grande questão e um grande ensinamento que o feminismo traz. Nós temos que estudar as relações de gênero nas diferentes sociedades, diferentes culturas, respeitá-las, mas sempre verificar as posições diferenciadas dos sujeitos. A pesquisadora e o pesquisador tem que levar em conta o ponto de vista situado dos sujeitos mulheres nas relações de gênero e da mesma forma se situar a partir de um ponto de vista que busca desvendar as relações de desigualdade e poder. Teóricas feministas como Sandra Harding (1990 e 2004) desenvolveram teorias metodológicas do standpoint, que consideram que o conhecimento é socialmente situado e que as posições dos sujeitos em uma sociedade e cultura são relacionais, não são idênticas ou uniformatadas. No Brasil, as mulheres indígenas de diversas comunidades participaram e estão participando de várias reuniões entre elas, reuniões e encontros que começaram nos anos 90, e se intensificaram nesta década. A questão de saúde e da violência são as questões que mais as mulheres indígenas querem falar, e decidir o que fazer nas suas comunidades e o que reivindicar em termos de políticas públicas. Ouvi algumas lideranças indígenas em comissão do Senado e em reunião em Manaus organizada por uma organização não governamental de direitos humanos. Há uma variação muito grande em que umas se manifestam para que seja aplicada a Lei Maria da Penha, especialPOLÍTICAS SOCIAIS E GÊNERO COMO INTERDISCIPLINARIDADE E PARADIGMA 107 mente aquelas que vivem nas cidades e outras, predominantemente mulheres indígenas que vivem nas reservas, propõem: “ Nós não queremos o mesmo processo jurídico, mas nós queremos nas nossas comunidades o mesmo espírito da Lei,o espírito da Lei contra a violência contra as mulheres.” E dizem que a violência vem aumentando não só porque ela advém do alccolismo dos brancos, da cultura branca, mas porque ela já estava instalada. Ela é uma das questões presentes. Embora compartilhem a mesma cultura com seus companheiros, e que, como eles, suas culturas estejam em interação com a cultura branca, sempre são vivenciadas diferentemente pelos sujeitos a partir de suas posições distintas. Várias mulheres indígenas, no encontro em Manaus, diziam o seguinte: “Eu quero ter cuidados na saúde ginecológica, porque meu marido não deixa que eu seja examinada pelo médico. Mas eu quero, eu preciso.” A outra dizia: “O meu marido deixa, mas o meu cacique não deixa.” Mas, a violência ou a obediência exigida sobre as mulheres jamais é uma questão que você possa dizer: “É cultural, é imexível.” Na interlocução com as comunidades indígenas, tem que ser respeitadas as suas diversidades, mas também saber que há uma relação com saberes da cultura branca e que as demandas de indígenas homens e mulheres por estarem em posições e situações diferenciadas podem se configurar de maneira, ora semelhante, ora contrastante e distinta. Quanto à ambivalência e ambiguidade que as mulheres vítimas de violência sexual ou doméstica apresentam nas sociedades indígenas, elas também estão presentes nas sociedades modernas. A ambiguidade em relação aos fatos ocorridos, está muito presente nas suas emoções, percepções, representações e desejos. São decorrentes do seu lugar desigual onde as mulheres tendem a ser colocadas, quer seja em ambientes públicos ou familiares e afetivos. Nas pesquisas que realizo, no âmbito da cultura urbana moderna, com mulheres vítimas de violência doméstica que denunciam e buscam o sistema judiciário, deparo-me com inúmeras ambiguidades. A cada dia a resposta de como avaliam seu agressor pode ser diferente, seja dirigida à pesquisadora ou ao Juiz: “Olha, ele agora está uma benção.” “Não quero mais, eu quero suspender esse processo.” Aí o Juiz pergunta: “Vamos esperar um pouquinho, eu vou fazer uma outra audiência para você vir aqui dizer que você quer suspender o processo...” Aí na segunda audiência ela diz assim: “Não, eu quero continuar. Tenho medo. Ele quer me matar. Quero continuar o processo.” Seus dizeres apontam a presença conjunta do medo e da vontade e do desejo imaginário que venha a dar certo o casamento ou a união. 108 POLÍTICAS SOCIAIS E GÊNERO COMO INTERDISCIPLINARIDADE E PARADIGMA Concluindo, somente podemos usar politica e analiticamente a categoria de mulheres, se jamais esquecermos a categoria de gênero, porque sem conhecer a categoria do gênero como construção cultural e sem levar analitica e politicamente a categoria de diversidade cultural social, as mulheres seriam essencializadas sob a ilusão de uma identidade única. As mulheres no plural e na diversidade, ao se reconhecerem duplamente nesta forma, podem construir alianças que podem ser fecundas e produtivas em favor da igualdade de gênero e de um mundo misto de homens e mulheres com maior igualdade. Judith Butler em Undoing Gender (2004) refere-se ao seu primeiro livro (Gender Trouble, 1990) e afirma que lá, ela fora absolutamente crítica ao uso pelo feminismo da categoria de mulheres, porque a categoria das mulheres não daria lugar à diversidade das mulheres, especialmente das mulheres lésbicas. Como as mulheres eram pensadas pelo senso comum abstratamente como heteronormativas, e hegemonicamente, como brancas, a categoria de mulher poderia ser impeditiva de pensar o que eram as mulheres plurais e o que eram as mulheres homossexuais. Em Undoing Gender reconhece que a categoria mulheres possibilitou a politização da causa e a produção de alianças. Se não se acionassem questões identitárias, dificilmente se politizaria a questão das mulheres, ou a questão dos direitos da diversidade das identidades homossexuais. Mas alerta para que nenhuma categoria identitária possa ser eternizada ou não admitir diversidades. Seu texto passa a mensagem como se fosse nos seguintes termos: “É preciso saber que não se pode eternizar a categoria de mulheres.” Quanto a mim, uso a categoria de mulheres, mas com muito cuidado, desde que seu sentido seja político e que inclua a diversidade. Ao se pensar com a categoria de gênero como construção cultural transformável, em termos acadêmicos, psicológicos, sociológicos e antropológicos, torna-se claro que não há identidades mas identificações em processo, jamais identidades eternas e uniformatadas. Estudos antropológicos mostram que em várias culturas se dão determinadas ações sexuais entre homens do mesmo sexo, algumas bem vistas, outras mal vistas, mas que não produzem identidade. Em determinadas culturas em que os homens fazem o arco e as mulheres fazem o cesto, podem haver homens que fazem o cesto. Ele faz o cesto, porque ele não é nem homem e nem mulher, nem homossexual. Outras culturas, você tem que homens mais velhos estabelecem relações sexuais como jovens, como forma de os jovens poderem aceder à masculinidade e se transformarem POLÍTICAS SOCIAIS E GÊNERO COMO INTERDISCIPLINARIDADE E PARADIGMA 109 em homens. O jovem tem que ter uma relação oral com homem mais velho, de tal maneira que o sêmen masculino que o jovem introjeta se torna a substância que o ajudará a se tornar homem. Em nossa sociedade, embora as identificações possam ser sempre abertas e mudadas, há uma forte construção da identificação do homossexual. Nas sociedades modernas, por outro lado, se examinarmos nossas vidas pessoais, pode-se facilmente constatar que determinadas formas de se comportar podem ser vistas por si mesmo ou pelo outro, de forma divergente, como mais feminina ou masculina, como mais homossexual ou heterossexual, ou como mais andrógena. Pode-se constatar que, às vezes, sequer se sente a necessidade de se dizer o gênero de um ato, de um comportamneto ou de um estilo. Sempre penso que há lugares, dimensões em nós, homens e mulheres, onde ou somos tão parecidos ou não nos parece importante designar qualquer gênero para o que fazemos ou pensamos. Para outros lugares e outras dimensões, nós designamos gêneros e nos designam gêneros. Entendo que foi a construção social e simbólica dos gêneros que, em graus e formatos diferentes, superdiferenciou a questão das diferenças e desigualdades entre homens e mulheres e entre heterossexuais e homossexuais, constituindo diferentes sistemas de gênero e sexualidade. Assim, se há um lado positivo na categoria mulheres por sua politização onde mulheres plurais entenderam que as situações vividas demandavam ações conjuntas, há o lado negativo de reificar a categoria da identidade “mulher” como fixa e sem espaço para a diversidade, quer seja entre as mulheres de uma mesma sociedade, quer seja entre mulheres de distintas sociedades e culturas. 7. POLÍTICAS SOCIAIS PARA A IGUALDADE DE GÊNERO NO BRASIL As relações de gênero estão presentes como um dos eixos estruturadores históricos das relações sociais no Brasil. Ao pensar as políticas sociais a questão de gênero toma assim um lugar transversal na sociedade, um lugar interdisciplinar no meio acadêmico e um lugar intersetorial na divisão de trabalho de competências entre Ministérios na área Federal e entre Secretarias nas áreas estaduais e municipais. Reivindica-se para as mulheres a igualdade de salários e rendimentos, o acesso a todas as profissões, o acesso à educação onde não haja desigualdade e discriminação de gênero, raça e orientação sexual, o acesso ao sistema de saúde, à saúde integral das mulheres 110 POLÍTICAS SOCIAIS E GÊNERO COMO INTERDISCIPLINARIDADE E PARADIGMA em todas as fases do seu ciclo de vida, a uma gravidez não obrigatória, ao parto humanizado, o acesso aos documentos, posse e propriedade da terra, o acesso à moradia, o acesso às creches, o acesso a postos políticos, dentre outras demandas. Às vezes não se pensa que toda a construção do Código Penal e do Código Civil no Brasil da colônia até o momento da Constituição de 1988, é a diferença e desigualdade de gênero que está posta o tempo todo. Não estava declarada a questão da igualdade de gênero. A filósofa britânica feminista, Carole Pateman (1988), analisa em Sexual Contract, a construção dos Estados nações modernos como tendo realizado, ao mesmo tempo, um contrato social da igualdade entre os homens, independente do seu status social, e um contrato sexual de desigualdade de gêneros/sexos. Como se fosse um contrato de igualdade entre indivíduos e ao mesmo tempo uma cláusula de desigualdade entre homens e mulheres. A construção colonial da ideia de família no Brasil, e da ideia da harmonia familiar, se fez em torno a um pátrio poder onde se podia bater o quanto se quisesse na mulher, desde que sem excesso, para corrigi-la e fazer obedecer e se ela o traísse, o marido poderia matar a mulher e o amante, este último, desde que fosse de situaçao social inferior. Ele estaria salvando a sua honra. Então, legalmente, as mulheres que traíssem poderiam ser mortas. É essa tradição que nós temos que mudar, reinventá-la, porque é essa que permite que se “bata nas suas mulheres e nos seus filhos”. Essa é uma tradição violenta que chamo de “longa duração”. Ao lado dessa violência tradicional que busca resolver conflitos interpessoais através da violência verbal e física, especialmente violência de gênero, aglutinam-se novas formas mais modernas, que são a violência do tráfico de drogas, do tráfico de pessoas e de toda essa construção da ideia do ethos guerreiro entre jovens errantes: dificuldade de emprego, ganho rápido no tráfico ou no assalto, desafio de ser o maior: “ninguém olha no meu olho, eu pego o revólver, e todo mundo abaixa o olhar”. Novas formas de violência que também seguem e reforçam a desigualdade de gênero. Para a historiadora francesa, Michelle Perrot (1994), o século XIX é o século que instaura a contradição dos direitos e dos lugares das mulheres. As mulheres entram no mercado de trabalho, mas ao mesmo tempo são designadas por excelência e “por vocação” ao cuidado do lar e dos filhos. Este duplo e contraditório lugar tem por resultado que elas são consideradas merecedoras de salários inferiores porque somente “ajudam os maridos” e porque “não são tão capazes POLÍTICAS SOCIAIS E GÊNERO COMO INTERDISCIPLINARIDADE E PARADIGMA 111 para o trabalho” quanto os homens. Iguais ou “quase iguais” para o trabalho e desiguais quanto aos poderes na família, onde devem se dedicar aos cuidados do marido, dos filhos e da casa, mas sempre obedecendo aos maridos. A ideia de que a mulher “ajuda” no trabalho está profundamente dentro da forma como se naturaliza a desigualdade das mulheres no mercado de trabalho até hoje. Há muito tempo atrás, lembro-me que um Secretário de Estado de Educação se permitiu dizer nos anos 70 diante de uma greve do magistério por melhores salários – mas foi um escândalo para a opinião pública - o seguinte: “O salário das Professoras está bom, a maior parte aqui são mulheres, elas só ajudam os seus maridos.” Hoje não se pode mais dizer isso, mas se faz. Pesquisas em meios empresariais mostram que, nas razões presentes para fixar salários de gerentes, há uma cumplicidade masculina entre aquele que é o empresário presidente da empresa e os seus diretores e gerentes masculinos, até os trabalhadores masculinos pois, entendem que são eles quem devem prover a família. É importante verificar o quanto a produção de uma igualdade de gênero vem revolucionar uma ideia consolidada de desigualdade e diferença que está na cabeça de juízes, operadores de direito, policiais, médicos, advogados e empregadores do comércio e da indústria diante de seus clientes, pacientes, empregados ... Por isso digo que a relação de gênero deve ser analisada interdisciplinarmente porque, afeta os mais diferentes setores da sociedade; é intersetorial. Já fiz pesquisas na área de saúde em que um médico obstetra dizia para a parturiente que atendia: “A senhora aí, não vou fazer seu parto agora a senhora não para de chorar. Fica aí, só quando parar de gritar, eu vou te atender.” E atendeu uma outra que não tinha tanta urgência, reforçando assim o sofrimento daquela que mais padecia. É como houvessem dispositivos emocionais nas mais diferentes categorias de profissionais, para, ao atenderem as mulheres, as discriminarem por respeitarem mais seus mais semelhantes através da cumplicidade masculina. Por outro lado, como a discriminação de gênero se entrelaça com a discriminação de classe e raça, muitas vezes profissionais mulheres também discriminavam pacientes, empregadas ou clientes mulheres. Então, se há intersetorialidade na dimensão da vida e da sociedade, pode-se concluir da importância de que as políticas sociais se façam intersetorial e articuladamente entre os Ministérios e o quanto ainda é necessário fazer para atingir e implementar a igualdade de gênero nos mais diferentes espaços e dimensões da vida. 112 POLÍTICAS SOCIAIS E GÊNERO COMO INTERDISCIPLINARIDADE E PARADIGMA Comparando os anos oitenta com os anos atuais, acredito que alcançamos o objetivo de legitimar que a igualdade é um valor positivo. Nos anos 80 quando fazia pesquisa com as mulheres vítimas de violência, encontrava muitas que diziam que este era o seu destino, o destino das mulheres, tal como fora o destino de suas mães e avós. Hoje ninguém mais me diz que violência é destino. Dizem que o companheiro ou marido não tem direito de bater, mas que bate, mas que não está certo. Agora, quanto aos homens agressores é impressionante como não falam dos direitos das mulheres e como eles incorporam a ideia de que estão certos porque cabe aos homens mandar, corrigir e castigar. Parecem estar vivendo o que estava posto nas Ordenações Filipinas coloniais: cabe aos homens fazer obedecer as mulheres e corrigir fisicamente, desde que sem excessos. Afirmam muitos: “Só bati um pouquinho, ah, ela machucou só um pouco.” Outro diz assim: “O mundo vai acabar, se eu não posso corrigir a minha filha.” Este caso era de um pai que mandara a filha jovem tirar um piercing que havia colocado na orelha, depois que ele não deixara. E mandou: “Você tira o piercing.” Como ela não tirou o piercing o pai arrancou o piercing e rasgou a orelha da menina, fato que deu origem à denúncia. Ele estava então indignado porque estava acabada a moralidade, a capacidade de educação dos pais sobre os filhos e sobre a família. O fato de a denúncia ter sido aceita significava que se estava diante de um mundo sem salvação e sem moralidade. Senti como se o mundo da moralidade inscrita nas Ordenações Filipinas da época colonial estivesse sendo vivido como um mundo do presente. Minha análise e minha conclusão é a de que há muito o que fazer para atingirmos a igualdade de gênero e o fim da violência doméstica e da violência de gênero. Além do conservadorismo da tradição que se mantém de uma moralidade oral que foi constituída há séculos passados em torno da honra das famílias, o momento político atual está comportando o surgimento de um neoconservadorismo que, politica e impositivamente quer voltar a uma moralização pela chefia do poder pátrio heterossexual familiar, com a volta/ida exclusiva das mulheres para seus lugares domésticos de reprodução, cuidado dos filhos e obediência aos maridos e demonização da interrupção da gravidez. Foi recentemente proposta uma nova lei que obriga a mulher a levar adiante a gravidez ainda que resultante de um estupro ou que traga risco de morte para a mulher. As opções das mulheres de levar adiante ou não a gravidez decorrente de um estupro devem ser delas; as opções POLÍTICAS SOCIAIS E GÊNERO COMO INTERDISCIPLINARIDADE E PARADIGMA 113 das mulheres se dedicarem exclusivamente aos cuidados da casa e dos filhos ou se dirigirem ao mercado de trabalho devem ser delas. São exemplos fortes de um neoconservadorismo que cresce em segmentos políticos e religiosos, cujo alicerce parece ser o de impor politicamente através de leis, novamente lugares fixos ao masculino e feminino, quando exatamente a questão de igualdade de gênero é a de levar em conta os direitos das mulheres. De outro lado, sem que tenha sido imposto por qualquer ideia política neoconservadora, uma das tendências das novas configurações familiares é a do aumento das mulheres que passaram a exercer a chefia monoparental. Assim, os lugares da reprodução biológica e da reprodução social, culturalmente, tendem a se repetir, fazendo com que as mulheres sejam cada vez mais responsáveis pelas famílias, agora, muitas mais de forma solitária como provedoras e cuidadoras exclusivas e simultaneamente. Apesar de todos os cuidados que as políticas sociais e o feminismo tenham tido para incentivar a paternidade responsável, a responsabilidade familiar do cuidado é quase exclusivamente feminina e a ela se acresceu a de compartilhar a função do provimento ou exercê-lo solitariamente. Então, nós temos que pensar a partir das condições sociais e culturais tais como vividas pelas mulheres. Outros arranjos familiares se organizam advindos de ex-casados e ex-casadas que se casam novamente com terceiros e que articulam novos irmãos e irmãs não biológicas. Casais de lésbicas e gays se unem e adotam ou procriam filhos e filhas. Temos que deixar de imaginar que apenas pai e mãe dão a educação familiar e a educaçao de gênero, é aí realizada e enraizada. A educação do gênero se passa em um contexto muito mais amplo: avó, avô, tio, tia, vizinho, vizinha. Qual o referencial de gênero que é transmitido? Casais heterossexuais podem educar filhos e filhas que venham a se constituir como homossexuais. Casais homossexuais podem educar filhos e filhas que venham a ser heterossexuais. A referência de idade, de gênero, do meu ponto de vista, não está circunscrita ao casal nem homossexual, nem heterossexual. Além de todas estas identificaçoes de gênero e sexualidade, há ainda escolhas de sexualidade e gênero que não se querem rotuladas, fixas ou constantes. É a diversidade de sexualidade e gênero que devem ser reconhecidas para uma política social em prol da igualdade de direitos entre gêneros nas mais diversas dimensões e setores da sociedade e que venham a se confrontar contra as posições discriminativas. Quanto menos houver discriminação e desigualdade de gênero, quanto mais misto poderá ser esse mundo entre seres humanos diversos com igualdade de direitos. 114 POLÍTICAS SOCIAIS E GÊNERO COMO INTERDISCIPLINARIDADE E PARADIGMA As políticas sociais para as mulheres com perspectiva de gênero são imprescindíveis para se alcançar o fim da desigualdade no mundo do trabalho, no mundo da política e o fim da violência e desigualdade de gênero no mundo familiar, afetivo e doméstico. REFERÊNCIAS BEAUVOIR, Simone. O Segundo Sexo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, [1949] 1980. BOURDIEU, Pierre. La Domination Maculine. In: Actes de la Recherche en Sciences Sociales. Paris, nº 84, 1990. BUTLER, Judith. Gender Trouble: Feminism and the Subversion of Identity. New York and London: Routledge, 1990. BUTLER, Judith. Undoing Gender. New York and London: Routledge, 2004. COLLINS, Patricia Hill. Black Feminist Thought: Knowledge, Consciousness and the Politics of Empowerment. 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WAGNER, Roy. A Invenção da Cultura. Tradução Marcela Coelho de Souza e Alexandre Morales. São Paulo: Cosac Naify, [1975] 2010. PATEMAN, Carole. The Sexual Contract. Stanford: Stanford University Press, 1988. PERROT, Michelle. Où en est en France l’histoire des femmes? In: French Politics and Society, v.12, n.1, 1994. 116 POLÍTICAS SOCIAIS E GÊNERO COMO INTERDISCIPLINARIDADE E PARADIGMA TRABALHO REMUNERADO E TRABALHO DOMÉSTICO UMA TENSÃO PERMANENTE TRABALHO REMUNERADO E TRABALHO DOMÉSTICO – UMA TENSÃO PERMANENTE Verônica Ferreira1 Maíra Saruê Machado2 A participação da mulher no mercado de trabalho se intensificou nos últimos anos, mas aparentemente não houve uma redistribuição dos cuidados com a casa e a família, tradicionalmente atribuídos às mulheres. Para entender o cotidiano das mulheres brasileiras e compreender as tensões e estratégias existentes para conciliar o trabalho remunerado e o trabalho doméstico, foram ouvidas mulheres que exercem trabalho remunerado em um estudo realizado pelo SOS Corpo – Instituto Feminista para a Democracia, junto ao Data Popular, com planejamento e supervisão do Instituto Patrícia Galvão, no Projeto Mais Direitos e Mais Poder (consórcio que envolve as seguintes organizações feministas: CFEMEA, Coletivo Leila Diniz, CUNHÃ Coletivo Feminista, GELEDÉS Instituto da Mulher Negra, Instituto Patrícia Galvão, REDEH e SOS Corpo Instituto Feminista para a Democracia). Na primeira etapa do estudo, ocorrida entre março e abril de 2012, foram realizados oito grupos de discussão, com homens e mulheres de 24 a 45 anos, em Recife e São Paulo, com os seguintes perfis: mulheres das classes C e D responsáveis pelos cuidados da casa; homens das classes C e D casados com mulheres; e trabalhadoras domésticas mensalistas ou diaristas. A segunda etapa, ocorrida entre junho e julho de 2012, teve abordagem quantitativa, com a aplicação de 800 questionários semiestruturados a mulheres de 18 a 64 anos, moradoras das capitais e regiões metropolitanas da Bahia, Ceará, Distrito Federal, Minas Gerais, Pará, Paraná, Pernambuco, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul e São Paulo, totalizando 31 municípios. Todas essas mulheres exerciam trabalho remunerado. Os dados a seguir referem-se às duas etapas desse estudo. 1. TRABALHO DOMÉSTICO E CUIDADOS COM A CASA E A FAMÍLIA Praticamente todas as mulheres ouvidas na etapa quantitativa do estudo, 98% das participantes, além de exercer trabalho remunerado, exercem tarefas de cuidados com a casa. Ou 1 Pesquisadora do Sos Corpo Instituto Feminista para a Democracia, Assistente Social e Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da Universidade Federal de Pernambuco – UFPE. 2 Diretora de Pesquisa no instituto Data Popular, Cientista Social e Mestre em Sociologia pela Universidade de São Paulo – USP. 118 TRABALHO REMUNERADO E TRABALHO DOMÉSTICO – UMA TENSÃO PERMANENTE seja, trabalhar, para essas mulheres, significa exercer atividade remunerada, em geral fora de casa, e também cuidar da casa. Destas, 63% declararam ter ajuda gratuita de alguém para cuidar da casa – um auxílio que é exercido basicamente por outras mulheres. Um contingente de 10% paga por alguma ajuda para cuidar da casa – também majoritariamente exercida por outras mulheres. Essas mulheres que as ajudam nos cuidados com a casa, mediante pagamento ou não, em geral pertencem a sua própria rede de sociabilidade, como sua mãe, filha ou vizinha. Ainda, 27% das entrevistadas declararam não ter ajuda nenhuma nos cuidados com a casa – ou seja, apesar de exercerem trabalho remunerado, elas são responsáveis exclusivas pelo trabalho doméstico. “Eu me acho na obrigação de cuidar da casa”3, disse uma participante de grupo de discussão em São Paulo. Com relação ao cuidado com os filhos, 97% das mulheres com filhos menores de 12 anos cuidam deles. O descompasso entre os horários da mulher que está no mercado de trabalho e o horário das creches é um fator complicador no cuidado com os filhos menores, que acaba demandando ajuda externa e muitas vezes paga. 45% declararam não ter nenhuma ajuda nessa tarefa, 31% têm uma ajuda pela qual pagam e 24% têm ajuda gratuita – ajuda também exercida sobretudo por outras mulheres de sua rede de relacionamento. Chama a atenção o fato de que, entre as casadas, 71% não contam com o apoio do marido para cuidar dos filhos. Os dados acima evidenciam como a divisão sexual do trabalho perdura e gera a desigual divisão do trabalho doméstico entre homens e mulheres. O cuidado com a casa permanece como uma atribuição das mulheres. O mesmo se passa no cuidado com os filhos. Assim, as mulheres recorrem a outras mulheres de suas redes de apoio, remuneradas ou não, ou cuidam elas mesmas da casa e dos filhos, o que em si já aponta uma grande dificuldade na sua inserção no mercado de trabalho e ajuda a compreender o porquê das mulheres exercerem, sobretudo, atividades mais precárias, já que, muitas vezes, são essas as atividades nas quais elas podem articular o cuidado das crianças (principalmente as que têm filhos pequenos) com o trabalho remunerado. Ao se especificar algumas tarefas de cuidados com a casa e a família, é possível ter uma visão mais clara sobre a multiplicidade de tarefas que essas mulheres que exercem trabalho 3 Algumas frases ditas por mulheres na etapa qualitativa estão transcritas para ilustrar os argumentos apresentados. As frases trazem a referência da cidade em que foram ditas. TRABALHO REMUNERADO E TRABALHO DOMÉSTICO – UMA TENSÃO PERMANENTE 119 remunerado cumprem diariamente. Nos lares em que cada tarefa é executada, 94% das entrevistadas lavam roupa, 93% lavam louça, 92% varrem a casa, 92% compram produtos para a casa, 91% preparam refeições, 89% limpam os móveis e 88% passam roupa. Quando se faz um corte etário, é possível perceber uma diferença geracional entre a participação dos homens no trabalho doméstico, o que pode operar como um indicativo de mudança. Entre as mulheres casadas de 18 a 34 anos, há uma maior participação dos companheiros nas tarefas domésticas do que entre as casadas de 35 a 64 anos, conforme tabela a seguir. Tabela 1: Participação dos maridos / companheiros por faixa etária da mulher Total 18-34 anos 35-64 anos Passar roupa 13% 16% 11% Lavar roupa 14% 17% 12% Limpar móveis 22% 28% 18% Preparar refeições/ cozinhar 25% 25% 24% Varrer a casa 26% 33% 20% Lavar louça 33% 40% 27% Comprar produtos para a casa 50% 53% 48% Base: Mulheres casadas/ moram junto – 18-34 anos: 195/ 35 anos ou mais: 294 Assim, ainda que haja uma maior participação dos companheiros entre as mulheres casadas mais jovens, os lares em que os maridos executam tarefas também são minoritários. O cotidiano de cuidados com a casa mostra, portanto, que embora haja um indicativo de ampliação da participação masculina, a responsabilidade ainda é majoritariamente feminina. Na prática, mais do que contribuir com essas tarefas, as mulheres têm a responsabilidade por sua execução. 94% das mulheres casadas / que moram com o companheiro são as principais responsáveis por lavar ou passar roupa, sendo que apenas 1% disseram que essa é uma responsabilidade de seu marido. A mulher também é a principal responsável por cozinhar e por lavar a louça em 92% dos casos (5% o marido), por limpar os móveis e varrer a casa em 86% dos casos (também 5% o marido) e, em 76% dos lares, a mulher é responsável por comprar produtos para a casa, 120 TRABALHO REMUNERADO E TRABALHO DOMÉSTICO – UMA TENSÃO PERMANENTE função exercida fora de casa e na qual os maridos têm maior responsabilidade (22%) – mas ainda bastante inferior à das mulheres. Ou seja, não apenas o trabalho doméstico é assumido majoritariamente pelas mulheres, como também há uma diferenciação e uma divisão entre tarefas no que diz respeito a quem as executa e à frequência de execução. A participação dos homens na manutenção do lar é praticamente insignificante na grande maioria das tarefas. Só é mais presente justamente na tarefa de fazer compras, realizada no espaço público (mercado, feira etc), que envolve o controle da renda e que também não é uma tarefa sistemática. A compra de suprimentos para a casa em geral é concentrada em um dia do mês, diferente das tarefas que são inadiáveis, incontornáveis e que são sistemáticas e diárias, como lavar a louça ou cozinhar, assumidas majoritariamente pelas mulheres. Essa divisão do trabalho entre tarefas acirra, portanto, a desigualdade entre mulheres e homens. Estratégias de negociação para que os parceiros das mulheres casadas participem de atividades de manutenção da casa foram apontadas pelas participantes da etapa qualitativa: “Falo assim: estou cansada, tô com dor nas costas, daí ele faz alguma coisa” (São Paulo). Não é secundário o fato de que a participação masculina nas tarefas domésticas seja entendida como uma “ajuda”, no sentido de que o termo empregado deixa implícito que a responsabilidade pela execução das tarefas de cuidados com a casa e a família é, de fato, da mulher. E por trás dessa “ajuda” há a geração de tarefas: 58% das mulheres casadas concordaram com a frase “pensando nos cuidados da casa, os maridos dão mais trabalho do que ajudam” (32% discordam e 10% não concordam nem discordam). Outras frases ilustram essa situação tão comum nos lares brasileiros: O trabalho pesado é meu, não posso contar com ele. (São Paulo). Ele faz do jeito dele, não falo nada, mas quando ele sai eu ajeito! (Recife) Meu marido ajuda em 1%, o resto faço eu. (São Paulo). Você prefere fazer sozinha do que pedir para que ele faça e acabe mal feito. (São Paulo) A questão de manter a casa organizada e limpa ele não faz, não. (Recife) Assim como as mulheres acionam estratégias para fazer com que esse trabalho seja mais partilhado – embora sempre de uma forma secundária, ou seja, como uma “ajuda” –, nos TRABALHO REMUNERADO E TRABALHO DOMÉSTICO – UMA TENSÃO PERMANENTE 121 relatos nos grupos de discussão foi possível apreender que os homens também mobilizam estratégias para continuar não fazendo esse trabalho. Fazer mal feita uma tarefa, como varrer a casa de qualquer modo, sem se preocupar de fato com a limpeza, é uma forma de desencorajar a mulher a pedir para que ele faça essa tarefa novamente. Ou seja, o não comprometimento com a qualidade da execução da tarefa é uma forma de evitar que as mulheres busquem esse compartilhamento. Assim, os homens não se desresponsabilizam de maneira passiva, mas acionam estratégias que desencorajam a sua convocação, por parte das mulheres, com o “fazer mal feito” ou “de qualquer jeito”. A falta de comprometimento dos homens com as tarefas de manutenção do lar e da família ficou bastante evidente também quando, na etapa qualitativa do estudo – na qual mulheres e homens foram ouvidos separadamente – os participantes foram perguntados sobre sua rotina diária. Os homens disseram que se levantam, vão ao banheiro e tomam o café da manhã. As mulheres, por sua vez, contaram que se levantam, acordam os filhos, o marido, preparam o café da manhã para toda a família e arrumam os filhos para ir à escola. Chama a atenção que o cotidiano dos homens seja focado em ações individuais que beneficiam a si próprios ao passo em que o cotidiano das mulheres se foca em cumprir com uma multiplicidade de tarefas que beneficiam à família como um todo. O estudo reforça, portanto, a percepção de que a maior participação das mulheres no mercado de trabalho não tem sido acompanhada por uma transformação da divisão do trabalho doméstico no interior das famílias. Ou seja, permanece a divisão desigual do trabalho doméstico entre homens e mulheres, que coloca como realidade cotidiana a jornada extensiva com o trabalho remunerado e não remunerado para a vasta maioria das mulheres que trabalham. A desigualdade na divisão do trabalho doméstico dentro de casa é tamanha, que muitas mulheres executam todas as tarefas sem contar com a ajuda de qualquer pessoa, e grande parte das que têm ajuda contam com o apoio de outras mulheres de sua rede de sociabilidade para realizar esse trabalho. Ainda no caso de uma pequena parcela que pode pagar, o serviço é executado por uma trabalhadora doméstica. A divisão sexual do trabalho permanece como uma invariável no cotidiano das mulheres entrevistadas. 122 TRABALHO REMUNERADO E TRABALHO DOMÉSTICO – UMA TENSÃO PERMANENTE 2. TRABALHO REMUNERADO A possibilidade de ter um trabalho remunerado, que lhe dê a autonomia de uma renda própria, é um fator muito bem avaliado pelas mulheres. Nesse sentido, o trabalho é encarado como uma emancipação. Frases ouvidas na etapa qualitativa ilustram isso: “Já pensou pedir dinheiro ao marido para comprar uma calcinha?” (São Paulo). O trabalho, contudo, monopoliza a maior parte do dia das mulheres e, por isso, gera culpa, pois as afasta dos cuidados com os filhos, o marido e a casa. Assim, embora a ida ao mercado de trabalho muitas vezes gere um sentimento ambivalente, o acesso ao mercado de trabalho é visto como uma conquista pelas mulheres. Vale lembrar que, em 10 anos, entre 2002 e 2012, a taxa de atividade das mulheres subiu de 46% para 50%, enquanto a dos homens manteve-se estável, 66% em 2002 e 67% em 2012 (IBGE, Pesquisa Mensal de Emprego). Embora a maioria das mulheres casadas e que trabalham ainda vejam o homem como provedor – 54% concordam que “o papel do homem é botar dinheiro dentro de casa”, e 36% discordam (as demais não se posicionaram), o trabalho do homem não é mais importante do que o da mulher para 73% das respondentes, que discordam que “o trabalho do homem é mais importante do que o da mulher” (apenas 19% concordam). A tensão entre ter um trabalho remunerado que dá certa autonomia e ter que afastar-se das responsabilidades com trabalho doméstico se expressa na concordância com a frase “se eu pudesse, eu pararia de trabalhar para cuidar da casa”. Quanto menor a renda (e, de modo geral, mais precário o trabalho e/ou a situação de trabalho), maior a vontade de parar de trabalhar – na classe econômica AB, 32% concordam com a frase, na classe C, 37% e, na classe D, 59% – ou seja, a maioria das mulheres – concordam com a frase. Assim, fica claro o sentido vital do trabalho na vida das mulheres, ainda que diante de uma situação de sobrecarga com um trabalho não remunerado e em uma situação de trabalho muitas vezes precária, com baixos rendimentos. Ainda, a necessidade de articular essas esferas determinam a forma de inserção desigual das mulheres no trabalho remunerado, levando-as a ocupar postos de trabalho precários como estratégia de enfrentamento desta tensão e comprometendo, TRABALHO REMUNERADO E TRABALHO DOMÉSTICO – UMA TENSÃO PERMANENTE 123 assim, as possibilidades de autonomia econômica que buscam no trabalho remunerado. Instala-se, desse modo, uma das principais contradições apontadas pelos resultados da pesquisa: entre a percepção da importância do trabalho remunerado e as condições desiguais que marcam sua experiência. Nessa direção, 91% das mulheres concordam com a frase “meu trabalho é fundamental na minha vida”. Um depoimento de uma participante de grupo de discussão sintetiza esta contradição: “sobrecarregou, mas você não se sente mais submissa” (São Paulo). No entanto, a realidade vivenciada no trabalho remunerado altera significativamente a percepção sobre o sentido do trabalho, o que explica a realidade de maior concordância com a frase “se eu pudesse, pararia de trabalhar para cuidar da casa” entre aquelas com menores rendimentos e, possivelmente, com as piores condições no mercado de trabalho, que é também lugar de exploração e desigualdade. Para elas, trabalhar remuneradamente significa superexploração, desproteção e, no contexto da injusta divisão sexual do trabalho doméstico, sobrecarga. Ademais, muitas delas, conforme apontado nos grupos da etapa qualitativa, comprometem seus já baixos rendimentos com o pagamento de outras mulheres para cuidar dos filhos, de modo que nem sempre essa inserção no trabalho remunerado é tão mobilizadora. Este dado revela que a promoção de políticas para a autonomia econômica das mulheres deve abranger melhores condições no trabalho remunerado e políticas para enfrentar a sobrecarga com o trabalho doméstico e a escassez de tempo dela decorrente. “Já fiz tudo para os patrões, a casa deles é até mais arrumada que a minha.” (Empregada doméstica – São Paulo). A disparidade salarial entre homens e mulheres é percebida pela maioria das mulheres – 63% concordam que “as mulheres sempre ganham menos do que os homens” sendo que, na classe D, a concordância é de 71%. Além disso, 35% das mulheres declararam trabalhar por mais tempo que a jornada diária para a qual elas foram contratadas, sendo que, dessas, 82% trabalham mais de uma hora além da jornada diária formal que deveriam cumprir. Isso problematiza ainda mais a gestão do tempo no cotidiano dessa mulher que trabalha fora e dentro de casa e se soma à explicação de por que algumas mulheres pensam em ficar em casa e parar de trabalhar. 124 TRABALHO REMUNERADO E TRABALHO DOMÉSTICO – UMA TENSÃO PERMANENTE Configura-se um cenário, portanto, em que a sobrecarga no trabalho remunerado, somada ao trabalho doméstico, cria uma rotina desgastante, que gera conflitos na gestão do tempo e desencoraja muitas mulheres de permanecer no mercado de trabalho. Esses fatores apresentam, assim, uma contradição fundamental entre a relevância do trabalho para a própria vida e para a autonomia pessoal e as condições em que esse trabalho é realizado, sobretudo para as mulheres mais pauperizadas da classe trabalhadora. Isso, no contexto de uma sociedade de superexploração, de precarização e de baixos rendimentos – sobretudo para as mulheres – ajuda a compreender a percepção que a maioria (54%) das mulheres tem do homem como provedor. É evidente que a análise dessa percepção deve levar em conta a construção social de gênero e a existência ainda forte da cultura do homem como provedor, mas ao mesmo tempo também é necessário considerar que as mulheres têm ciência de que elas ganham menos. Então, se elas ganham menos do que os homens e grande parte delas – principalmente as que têm renda menor – percebe essa diferença, isso também possibilita que elas vejam que os homens têm muito mais condições de serem provedores do que elas mesmas. E, ao mesmo tempo, como eles não realizam o trabalho doméstico não remunerado, é possível que esperem que cumpram com o trabalho remunerado e a provisão da renda. As percepções das mulheres devem ser analisadas considerando as condições objetivas em que vivem sua experiência de vida e trabalho. Assim, a divisão de opiniões com relação à frase “cuidar da casa é responsabilidade da mulher” (47% concordam, 43% discordam e 10% não se posicionaram) mostra que também está presente uma disputa de sentido e que a transformação das visões de gênero já mostra avanços. Certamente, se a pergunta fosse feita há 20 anos, o resultado traria um percentual muito menor de mulheres que discordariam disso. 3. DIA A DIA Ao falarem de seu dia a dia, as mulheres enfatizam a multiplicidade de tarefas, funções e responsabilidades que devem ser enfrentadas cotidianamente. Fica clara a longa e cansativa rotina da mulher que trabalha e também cuida da casa, é esposa e mãe. “É tudo corrido, saio do trabalho, passo no mercado, cuido da casa, é uma loucura” (São Paulo). “Trabalhar não é ruim, é ruim o ônibus: congestionamento, 40 minutos esperando, quebra, gente mal educada” (Recife). TRABALHO REMUNERADO E TRABALHO DOMÉSTICO – UMA TENSÃO PERMANENTE 125 Como resultado, 75% das entrevistadas concordam com a frase: “minha rotina é extremamente cansativa”. Ainda, 68% sentem que falta tempo para algo no seu dia a dia. Esses dados trazem à tona o fato de que a divisão sexual do trabalho, mostrada nos dados anteriores, tem rebatimentos sobre a questão do uso de tempo. Ou seja, opera uma organização temporal desigual, na qual as mulheres são desfavorecidas por serem responsáveis tanto pelo trabalho remunerado, com jornadas que se estendem, quanto pelo trabalho doméstico não remunerado. Mas para que essas mulheres sentem falta tempo? Entre as mulheres que disseram sentir falta de tempo, 58% alegaram que falta tempo de cuidar de si, 46% para ficar com a família e os filhos, 42% para se divertir, 32% para dormir e/ou descansar, 16% dizem que falta tempo para limpar ou cuidar da casa, 11% para estudar ou fazer um curso, 3% para atividades físicas e 2% para trabalhar. A escassez de tempo é uma das principais dificuldades enfrentadas pelas mulheres brasileiras, mostrou a pesquisa. A permanência de uma rígida e injusta divisão sexual do trabalho, no contexto de ausência de políticas públicas que favoreçam o enfrentamento das jornadas extensivas de trabalho pelas mulheres, produz uma outra dimensão da pobreza entre elas – a pobreza de tempo. Ademais da expropriação do tempo, a sobrecarga com o trabalho remunerado e não remunerado gera a extenuação da força física; falta-lhes tempo não só para ocupar-se com outras atividades, mas para restaurar-se. A percepção da ausência de um tempo para cuidar de si, apontada na pesquisa, surge como uma interessante questão e expressa uma contradição da maior relevância. Se, de um lado, a perpetuação da divisão sexual do trabalho usurpa o tempo da vida das mulheres (Ávila, 2010), por outro lado, a percepção sobre a falta de um tempo para si, o reconhecimento da necessidade deste tempo pelas mulheres, é, em si, um indicativo de transformação, de afirmação de uma necessidade como indivíduo para si, quando as dimensões materiais e simbólicas seguem socializando e exigindo que as mulheres constituam-se como seres para os outros. Essa contradição, certamente, é tributária da existência e da atuação do movimento feminista e de mulheres. A principal atividade de lazer realizada no dia a dia por essas mulheres é assistir à novela, citada por 44%: “vou dormir depois da minha novela” (São Paulo). É importante ressaltar que, como foi possível ver na etapa qualitativa, assistir à novela não significa necessariamente ficar 126 TRABALHO REMUNERADO E TRABALHO DOMÉSTICO – UMA TENSÃO PERMANENTE sentada frente à TV em um momento de relaxamento. As mulheres veem a novela enquanto fazem o jantar, colocam a mesa, varrem a casa, cuidam dos filhos, colocam as crianças para dormir etc – de modo que assistir à novela não é uma atividade desprendida das demais. Com relação às demais atividades de lazer cotidianas, 31% conversam com amigos(as); 27% passeiam; 23% jantam com a família (sendo que, em geral, a mulher é quem prepara a refeição); 3% navegam na internet; 2% assistem a filmes; 2% leem e vão ao cinema. Chama a atenção também o fato de que 22% declararam que não exercem nenhuma atividade de lazer no dia a dia. Com relação aos finais de semana, 73% das mulheres realizam tarefas domésticas em suas casas. Vimos, na etapa qualitativa, que durante a semana são realizadas diversas atividades mais curtas, como varrer a casa, trocar o lixo, cozinhar, lavar a louça e a roupa etc – a que as mulheres costumam chamar de “básico” ou “tapinha”. Durante os finais de semana, são feitas tarefas classificadas como “faxina”, tarefas mais pesadas, como esfregar o banheiro, arrastar todos os móveis, lavar o quintal. Apenas pouco mais da metade das mulheres, 52%, disseram que, dentre outras atividades, descansam no fim de semana. 50% disseram que vão ao shopping, parque ou à praia com a sua família, 45% ao salão de beleza ou cuidam da beleza em casa, 32% saem com o companheiro para ir ao cinema, bar ou alguma outra atividade, 27% exercem trabalho remunerado e 5% estudam durante o fim de semana. 4. DEMANDAS E PREOCUPAÇÕES A dificuldade das mulheres em equilibrar as diferentes atividades diárias de trabalho remunerado e doméstico é reforçada pelo descompasso entre os horários de creche e escolares e o horário de trabalho. Embora partilhado pelas entrevistadas, o problema do gerenciamento desses horários é entendido como de ordem individual e solucionado na esfera pessoal: de modo geral, as entrevistadas mobilizam favores de outras mulheres de suas redes de sociabilidade (vizinhas, parentes) para auxiliá-las. Muitas mulheres pagam por esses serviços ou por escolas particulares que tenham melhor localização ou horário estendido de funcionamento. Ao pensar sobre a principal dificuldade que as mulheres encontram no seu dia a dia, dentre as opções apresentadas, 34% citaram creche para os filhos, 27% a falta de tempo para se cuidar, 23% transporte para ir trabalhar, e 14% ajuda nas tarefas domésticas. TRABALHO REMUNERADO E TRABALHO DOMÉSTICO – UMA TENSÃO PERMANENTE 127 A creche aparece com centralidade, pois é um ponto fundamental para que essas mulheres enfrentem sua realidade e tem grande importância como política do cuidado. A percepção de que este é o principal problema é transversal a todas as classes econômicas (classe AB 36%, classe C 33% e classe DE 34%). Isso porque a creche, embora cumpra importante papel como política que assegura o direito da criança à educação infantil, tem papel importante também como política necessária para que as mulheres tenham autonomia econômica, uma vez que gera condições para uma melhor inserção da mulher no mercado de trabalho e permite que ela se libere subjetivamente, ao lhe dar maior autonomia sobre o seu tempo. Nesse momento, seu sentido é desafiado, inclusive, pelas transformações próprias ao mundo do trabalho e pela realidade atual das mulheres no mercado de trabalho. Como as mulheres têm ocupações muitas vezes precárias e maior presença no trabalho informal – que são trabalhos e ocupações que muitas vezes perpassam os finais de semana, cujas fronteiras de jornada são menos definidas, como no caso das trabalhadoras domésticas –, a política de creche também está sendo desafiada a pensar sobre sua extrema relevância para as mulheres hoje. O final de semana ou os horários noturnos, por exemplo, são questões a se pensar: como garantir o cuidado das mulheres que trabalham nesse período, cujas jornadas se estendem? É um momento oportuno para que a política de creche seja atualizada considerando a realidade atual das mulheres no mercado de trabalho. O transporte, como foi possível ver nos grupos de discussão, é outro ponto fundamental a impactar o dia a dia dessas mulheres. As mulheres de São Paulo e de Recife relataram que o tempo de deslocamento para o trabalho pode chegar a mais de três horas, o que aponta para o impacto que a precariedade do transporte público acarreta sobre o tempo. Quando esse período é somado à jornada de trabalho remunerado e à jornada de trabalho doméstico, é possível ter a dimensão da dificuldade que a gestão do tempo representa para essas mulheres. Além do tempo que se esvai, esse período diário no transporte público precário é extremamente cansativo, levando muitas mulheres à exaustão. Quando perguntadas sobre o que pediriam para o governo como uma sugestão de melhoria que ajudasse no seu dia a dia com a sobrecarga de trabalho em casa e para ganhar dinheiro, 16% falaram creche (vaga em creche, horário de funcionamento estendido, proximidade da creche 128 TRABALHO REMUNERADO E TRABALHO DOMÉSTICO – UMA TENSÃO PERMANENTE de casa ou do trabalho etc) e/ou transporte (buscando sobretudo melhoria no transporte público), 14% pediriam melhoria no emprego / trabalho, 10% citaram educação / estudo, 8% um salário melhor, 7% escolas para os filhos e/ou valorização e benefícios para as mulheres, 4% uma ajuda financeira / empréstimos, além de outras citações menores. Chama a atenção o fato de que a menção mais frequente, citada por 17% das entrevistadas, foi “não sei”, ou seja, parcela significativa não sabia apontar sequer alguma melhoria que o governo pudesse promover para ajudá-la nesse dia a dia de duas jornadas intensas. Isso reforça a percepção, mapeada na etapa qualitativa, de que a gestão temporal é encarada pelas mulheres como exclusiva do âmbito pessoal, a ser solucionada na esfera privada, o que demonstra a necessidade de se avançar no debate público sobre o papel do Estado na socialização desses cuidados e o papel das políticas públicas no apoio à reprodução social, ou seja, de pensar a reprodução social também como uma questão pública. Por outro lado, quando foram apresentadas ações que poderiam ser voltadas para a população, 97% disseram que um serviço de saúde mais eficiente ajudaria no seu dia a dia, para 88% um transporte público mais eficiente ajudaria, para 83% escola em tempo integral para as/os filha/os, para 76% parque gratuitos, para 75% creches, para 64% restaurantes populares, e para 42% lavanderias públicas ou coletivas ajudariam no seu dia a dia. Isso mostra que, embora essas mulheres tenham dificuldade em pensar como o poder público poderia ajudar no seu cotidiano marcado pela dupla jornada, quando são apresentadas a algumas soluções, a maioria dessas mulheres concorda que o governo poderia ajudá-las a conciliar as atribuições do dia a dia. Ao passo em que a gestão do tempo e a multiplicidade de tarefas que essas mulheres executam diariamente continuam sendo resolvidas no âmbito privado pelas entrevistadas, já há um reconhecimento entre elas, quando estimuladas, dos mecanismos que poderiam apoiar essa difícil, tensa, cotidiana e permanente articulação entre vida profissional e vida reprodutiva das mulheres, a exemplo de lavanderias coletivas e restaurantes populares. A pesquisa aponta, desse modo, demandas das trabalhadoras brasileiras para a ação do Estado e, nesse sentido, contribui para visibilizar as problemáticas que as mulheres enfrentam no campo do trabalho remunerado e não remunerado cotidianamente e a necessidade de que políticas públicas fundamentais, como a de creches, enfrentem essa realidade. Busca, dessa forma, contribuir para o avanço das políticas públicas e, ao mesmo tempo, se somar e dar uma contribuição para estudos que já vêm sendo feitos nesse sentido. TRABALHO REMUNERADO E TRABALHO DOMÉSTICO – UMA TENSÃO PERMANENTE 129 REFERÊNCIAS ÁVILA, Maria Betânia de Melo. O Tempo do Trabalho das Empregadas Domésticas: Tensões entre Dominação/Exploração e Resistência, Recife, Editora Universitária UFPE, 2010. BRASIL. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Pesquisa Mensal de Emprego, 2002/ dez e 2012/dez. HIRATA, Helena. Vida reprodutiva e produção: família e empresa no Japão. In: KARTCHEVSKY-BULPORT, Andrée et al. O sexo do trabalho. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986. p. 63-78. ______; KERGOAT, Danièle. Novas configurações da divisão sexual do trabalho. Cadernos de Pesquisa. v.37. n. 132. São Paulo : Fundação Carlos Chagas / Autores Associados, set/dez 2007. p. 595-609. ERGOAT, Danièle. Dinâmica e consubstancialidade das relações sociais. Novos estudos - CEBRAP, São Paulo, n. 86, Mar. 2010. Disponível em <http://www.scielo.br/scielo. php?script=sci_arttext&pid=S0101-33002010000100005&lng=en&nrm=iso>. access on 22 Nov. 2012. MARCONDES, Mariana Mazzini e YANOULLAS, Silvia C. Práticas sociais de cuidado e responsabilização do Estado. Revista Ártemis, edição V. 13, jan-jul. 2012. MIOTO; Regina Célia Tamaso. Família e Políticas Sociais. In: BOSCHETTI; Ivanete.; BEHRING; Elaine Rosseti; SANTOS; Silvana Mara Moraeis dos; MIOTO; Regina Célia Tamaso (orgs.); Política Social no Capitalismo: tendências contemporâneas. São Paulo: Cortez, 2008. Cap. 6. p. 130-148. RODRIGUES; Marlene Teixeira. Equidade de Gênero e Transferência de Renda: reflexões a partir do Programa Bolsa Família. In: BOSCHETTI; I.; BEHRING; E. R.; SANTOS; S. M. M.; MIOTO; R. C. T.; Política Social no Capitalismo: tendências contemporâneas. São Paulo: Cortez, 2008. Cap. 10. p. 220-241. 130 TRABALHO REMUNERADO E TRABALHO DOMÉSTICO – UMA TENSÃO PERMANENTE RACISMO INSTITUCIONAL: DEFINIR, IDENTIFICAR E ENFRENTAR RACISMO INSTITUCIONAL: DEFINIR, IDENTIFICAR E ENFRENTAR Nilza Iraci1 Nina Madsen2 Apresentamos aqui uma síntese do Guia de Enfrentamento ao Racismo Institucional e o livro Racismo Institucional: Uma abordagem conceitual, documentos elaborados o âmbito do Projeto Mais Direitos e Mais Poder para as Mulheres Brasileiras3. A proposta visa a oferecer novos elementos para a construção de indicadores de racismo institucional que permitam a criação de um ambiente favorável à formulação e implementação de políticas públicas equitativas, buscando a efetiva transformação das relações de poder na sociedade. Esses instrumentos resultam de uma concentração de esforços e de compromissos coletivos que reuniu sociedade civil, organizações feministas antirracistas, instituições públicas – Ipea, SPM e Seppir – e também agências do sistema ONU comprometidas e realmente interessadas em fazer avançar essa agenda. Contamos também, durante o projeto, com a colaboração do Professor Ronaldo Sales, que deu os primeiros passos na elaboração do marco conceitual sobre racismo institucional a partir do qual trabalhamos, e de Jurema Werneck, responsável pela elaboração do texto final. E é a expressão institucional do racismo que abordamos nesses trabalhos. Como defini-lo e identificá-lo, como enfrentá-lo, são questões consideradas neste material, pensado como um instrumento para que instituições públicas, organizações e empresas se avaliem, construam seus diagnósticos, seus indicadores e suas estratégias de enfrentamento do racismo institucional. 1. EXPRESSÕES DO RACISMO NO BRASIL O racismo continua se constituindo como um dos principais entraves à realização plena da democracia e dos direitos humanos no Brasil. O reconhecimento da existência dessa 1 Nilza Iraci, é comunicadora social e presidenta do Geledés - Instituto da Mulher Negra. 2 Nina Madsen, é socióloga e integra o Colegiado de Gestão do CFEMEA, Centro Feminista de Estudos e Assessoria. 3 O projeto é integrado por um consórcio de sete organizações não-governamentais feministas: Cunhã, CFEMEA, Coletivo Leila Diniz, Geledés - Instituto da Mulher Negra, Redeh, Instituto Patrícia Galvão, SOS Corpo e a Secretaria de Políticas para as Mulheres (SPM/PR). 132 RACISMO INSTITUCIONAL: DEFINIR, IDENTIFICAR E ENFRENTAR dimensão da desigualdade, que tão profundamente estrutura nossa sociedade e nosso Estado, é essencial para enfrentá-la. E reconhecer que ela se manifesta e se expressa em diferentes níveis, a partir de diferentes mecanismos, também é fundamental para avançarmos em direção a uma sociedade mais justa e igualitária. O caminho de combate ao racismo, iniciado há alguns anos pelo Estado brasileiro, está apenas começando a ser trilhado. Um passo importante deste processo foi estabelecer o enfrentamento do racismo institucional como um objetivo prioritário do Plano Plurianual 2012-2015. Além de aparecer como objetivo do Programa 2034, “Enfrentamento ao Racismo e Promoção da Igualdade Racial”, consta também como meta de diversos Programas Temáticos (20154, 20705, 20446). Os dados a seguir demonstram, no entanto, que, apesar dos avanços do governo nas questões sociais, as políticas não foram capazes de alterar as condições de vida de significativa parcela da população brasileira. •• Segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios - PNAD de 2008, 40,9% das mulheres pretas e pardas acima de 40 anos de idade jamais haviam realizado mamografia em suas vidas, frente a 26,4% das brancas na mesma situação. •• Ainda segundo a PNAD 2008, das mulheres acima de 25 anos de idade, 18,1% das mulheres negras e 13,2% das brancas jamais havia realizado o exame de papanicolau. •• A taxa de mortalidade materna entre as mulheres negras, em 2007, era 65,1% superior à das mulheres brancas. •• De acordo com a PNAD 2009, a taxa de distorção idade-série no ensino fundamental atingia a 22,7% da população negra, contra 12,4% da população branca. •• No ensino médio, a taxa de distorção era de 36,6% para a população negra e de 24% para a população branca. 4 Programa 2015, Aperfeiçoamento do Sistema Único de Saúde. Define metas de enfrentamento do racismo institucional nos objetivos 0713, 0721, 0724. 5 Programa 2070: Segurança Pública com Cidadania. 6 Programa 2044: Autonomia e Emancipação da Juventude. RACISMO INSTITUCIONAL: DEFINIR, IDENTIFICAR E ENFRENTAR 133 •• “Considerando o país como um todo, o número de homicídios brancos caiu de 18.867 em 2002, para 14.047 em 2010, o que representa uma queda de 25,5% nesses oito anos. Já os homicídios negros tiveram um forte incremento: passam de 26.952 para 34.983: aumento de 29,8%” (Waiselfisz, 2012: 14). O racismo institucional também pode ser verificado na iniciativa privada, como por exemplo, na hora das contratações no mercado de trabalho. A pesquisa O Perfil Social, Racial e de Gênero das 500 Maiores Empresas do Brasil e Suas Ações Afirmativas, realizada pelo Instituto Ethos e IBGE em 2010, revela que nos quadros funcionais e de chefias intermediárias os negros ocupam, respectivamente, 31,1% e 25,6% dos cargos. Na gerência são 13,2% e na diretoria, 5,3%. A situação da mulher negra é pior: ela fica com 9,3% dos cargos da base e de 0,5% do topo. Em números absolutos significa que, no universo que as empresas informaram, de 119 diretoras e 1.162 diretores de ambos os sexos, negros e não negros, apenas seis são mulheres negras. Estes dados e indicadores demonstram a clivagem que o racismo, independentemente de qualquer outra variável, estabelece em nossa sociedade, mantendo a população negra em situações de vulnerabilidade e de desproteção social: a população negra continua tendo menor acesso a direitos e a serviços que deveriam ser garantidos a toda população brasileira. Direitos e serviços que o Estado, por obrigação, deveria assegurar. E os dados demográficos sobre o Brasil evidenciam que não estamos falando de uma minoria, de acordo com o IBGE em 2010: •• População total: de 191 de milhões de habitantes. •• População Negra: 97 milhões – o equivalente a 51% do total. •• Mulheres Negras: 47 milhões de pessoas, 25 % da população total. •• O Brasil é o maior país do mundo em população afrodescendente, fora do continente africano. •• É o segundo país em população negra depois da Nigéria e o último país a abolir a escravidão negra. Foi também o país que mais importou africanos para serem escravizados. 134 RACISMO INSTITUCIONAL: DEFINIR, IDENTIFICAR E ENFRENTAR 2. CAMINHOS DE ENFRENTAMENTO DO RACISMO INSTITUCIONAL O conceito de racismo institucional é relativamente recente no Brasil, e esse trabalho aprofunda essa construção de uma maneira muito nova e muito importante. Saímos de uma concepção do racismo institucional como o fracasso institucional, ou seja, o Estado falhando em prestar o serviço para uma determinada população, para uma idéia de Estado que está, desde a sua origem, comprometido, no pior sentido da palavra, com uma estrutura racista. O racismo institucional perpassa, portanto, desde a constituição do Estado e das suas instituições, passando pelo processo de formulação e implementação de políticas públicas, até chegar à prestação de serviços que deveriam garantir e efetivar direitos. Jurema Werneck definiu o racismo institucional como “um modo de subordinar o direito e a democracia às necessidades do racismo, fazendo com que os primeiros inexistam ou existam de forma precária, diante de barreiras interpostas na vivência dos grupos e indivíduos aprisionados pelos esquemas de subordinação desse último”(Geledés, 2013). Esse fenômeno limita o acesso da população negra no Brasil a direitos, produzindo efeitos objetivos e subjetivos na vida das pessoas. Passar da ideia do fracasso institucional para a idéia de uma performance que produz o racismo é um salto conceitual importante de se dar porque explicita e amplifica a dimensão multidimensional do problema. Trata-se de como a construção do Estado, o processo de formulação e implementação de políticas públicas e a oferta de serviços que efetivem e garantam direitos se subordinam e se comprometem por causa do racismo institucional. 3. O GUIA DE ENFRENTAMENTO DO RACISMO INSTITUCIONAL Acreditamos que a superação das desigualdades esteja intrinsecamente relacionada à capacidade dos movimentos sociais, das organizações da sociedade civil, das empresas públicas e privadas e das instituições do Estado de se articularem de forma cooperativa, por meio de um compromisso compartilhado e na busca por alternativas eficientes e eficazes para o alcance desses objetivos. RACISMO INSTITUCIONAL: DEFINIR, IDENTIFICAR E ENFRENTAR 135 Nesse sentido, o Guia de Enfrentamento ao Racismo Institucional pretende colaborar para: a identificação e a construção de diagnósticos, por cada organização, instituição ou empresa; para a elaboração de um Plano de Ação para o seu enfrentamento; e para a construção de indicadores para o monitoramento desse Plano de Ação. O instrumento pode ser utilizado para que cada instituição possa construir um diagnóstico sobre o racismo institucional, buscando dados, conceitos e produzindo debates. A partir desse diagnóstico, elaborar um plano de ação que defina o que a instituição vai fazer efetivamente para enfrentar o racismo institucional; e construir indicadores que permitam o monitoramento, avaliação e a prestação de contas para a sociedade. O Guia está organizado em dois grandes blocos: um que se refere à cultura institucional e outro que se refere às manifestações para o público. O primeiro diz respeito à incidência do racismo institucional no funcionamento interno da instituição; e o segundo, à maneira como o racismo institucional incide na relação que a instituição estabelece com a sociedade. Cada grande bloco, por sua vez, está sub-dividido nos seguintes eixos: 1. Cultura Institucional •• Visibilização do compromisso institucional. •• Instância de governança. •• Ações afirmativas e outras políticas de enfrentamento do racismo institucional. 2. Manifestações para o Público •• Produção de dados e informações cadastrais sobre o público. •• Competência cultural. •• Avaliação de políticas e serviços. A cada grande eixo correspondem algumas perguntas norteadoras. São precisamente as respostas a essas perguntas que deverão compor um diagnóstico institucional e definir um conjunto de indicadores, os quais deverão gerar o plano de ação e seu sistema de monitoramento. 136 RACISMO INSTITUCIONAL: DEFINIR, IDENTIFICAR E ENFRENTAR Um exemplo: a pergunta a organização já identificou as formas atuais de racismo institucional? A resposta a essa pergunta implica em um trabalho de pesquisa e de formação da instituição, que precisará debater sobre o que é o racismo institucional, como ele se manifesta, e como ele se expressa dentro da própria instituição. A partir desse esforço inicial, responder a pergunta e definir seus indicadores. A cada pergunta norteadora, portanto, o Guia apresenta a possibilidade de se construir um diagnóstico e ao mesmo tempo construir indicador que permita o monitoramento posterior. No quadro abaixo, apresentamos a título de ilustração o modelo de um dos quadros que integram o Guia. QUADRO DE INDICADORES Grandes Eixos Perguntas Norteadoras Cultura Institucional A organização já identificou as formas atuais de racismo institucional? Visibilidade do Compromisso Institucional Indicadores Observações Periodicidade de estudos e avaliação interna sobre incidência do racismo O acompanhamento regular e as avaliações constantes dos processos institucionais de enfrentamento ao racismo atestam o compromisso institucional e sua capacidade de corrigir rumos em tempo. O enfrentamento ao racismo e a correção das disparidades raciais devem ser prioridades de políticas, Meta de enfrentamento O enfrentamento ao racismo é programa e ações ao racismo estabelecida e uma das metas de sua políticas monitorada pela direção da A responsabilização da direção expõe o grau de e programa prioritário? como? instituição compromisso institucional e colabora com eficiência e eficácia das ações desenvolvidas Existência de portaria Existem normas internas para o interna ou outro tipo A regulamentação do compromisso institucional pode enfrentamento do RI? e regulamento para o garantir maior adesão e estabilidade às iniciativas. enfrentamento do RI. Comunicação institucional A organização tem forma com diferentes linguagens Comunicar os objetivos de enfrentamento do de comunicação internas e (segundo gênero, raça racismo contribui para maior confiança e adesão às externas do compromisso de e cultura) e veículos propostas. eliminação do RI? acessíveis 4. CONSIDERAÇÕES FINAIS A grande inovação apresentada neste Guia é dar visibilidade e sistematizar o racismo institucional de uma maneira que não só permita sua identificação, como também que facilite o seu enfrentamento. O grande desafio para a efetividade do Guia é vencer uma cultura institucional RACISMO INSTITUCIONAL: DEFINIR, IDENTIFICAR E ENFRENTAR 137 de resistência, que na maioria das vezes, não é explícita, e que só pode ser vencida com a sensibilização de gestoras/es, com ações políticas concretas, incisivas e continuadas; e também com o compromisso político das instâncias superiores. Esperamos que esse material produza maior consciência sobre o problema e que dê a dimensão da urgência das respostas e soluções necessárias. Acreditamos que se as instituições públicas, de preferência todas, tomarem um instrumento como esse, fizerem o esforço de responder a essas perguntas, elaborarem um plano de ação, um sistema de monitoramento, uma instância de governança, um orçamento, as coisas possam caminhar para uma mudança efetiva. Sabemos dos esforços e da dimensão do compromisso necessários para a implementação deste instrumento. Mas sabemos também que eles tem a exata dimensão da democracia que desejamos alcançar. O Guia de Enfrentamento ao Racismo Institucional e o Racismo Institucional, uma abordagem conceitual estão disponíveis nos sites do Geledés (www.geledes.org.br), do Cfemea (www. cfemea.org.br.) e da SPM (www.spm.gov.br). 138 RACISMO INSTITUCIONAL: DEFINIR, IDENTIFICAR E ENFRENTAR REFERÊNCIAS BRASIL. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios. Rio de Janeiro, 2008. BRASIL. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios. Rio de Janeiro, 2008. BRASIL. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Censo. Rio de Janeiro, 2010. BRASIL. Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão. Plano Plurianual 2012 - 2015. Brasília, 2011. GELEDÉS – INSTITUTO DA MULHER NEGRA. Guia de Enfrentamento ao Racismo Institucional. São Paulo, 2013. GELEDÉS – INSTITUTO DA MULHER NEGRA. Racismo Institucional: uma abordagem conceitual. São Paulo, 2013. INSTITUTO ETHOS. Perfil Social, Racial e de Gênero das 500 Maiores Empresas do Brasil e Suas Ações Afirmativas – Pesquisa – 2010. São Paulo, 2010. Disponível em: <http: //www1. e t hos.org.br /EthosWeb/arquivo/ 0 -Aeb4Perfil_2010.pdf>. Acesso em: 01 out. 2013. PAIXÃO, Marcelo et al. Relatório Anual das Desigualdades Raciais no Brasil 20092010. Rio de Janeiro: Garamond, 2010. WAISELFISZ, Julio Jacobo. Mapa da Violência 2012. Caderno Complementar 1: Homicídio de Mulheres no Brasil. São Paulo. Instituto Sangari, 2012. RACISMO INSTITUCIONAL: DEFINIR, IDENTIFICAR E ENFRENTAR 139 ANEXO Mecanismos de Gênero nos órgãos do poder executivo federal: 1. Ministério do Desenvolvimento Agrário - MDA: Assessoria Especial de Gênero, Raça e Etnia para a Diretoria de Mulheres Rurais e Quilombolas (Decreto nº 7.255/2010). 2. Ministério de Minas e Energia - MME: Comitê Permanente para as questões de Gênero (funciona ativamente desde 2004 mas não tem instrumento normativo que o institui, embora tenha Regimento Interno). 3. Ministério de Desenvolvimento Social e Combate à Fome - MDS: Comitê Permanente para as Mulheres e Gênero (Portaria n. 381/2009). 4. Ministério do Trabalho e Emprego - MTE: Comissão de igualdade de oportunidades de gênero, de raça e etnia, de pessoas com deficiência e de combate à discriminação (Portaria nº 219/2008). 5. Ministério da Saúde - MS: Coordenação Geral da Saúde das Mulheres (Decreto nº 8.065, de 7 de agosto de 2013). 6. Ministério do Meio Ambiente - MMA: Comitê Interno de Gênero (Portaria nº 25/2008 e Portaria nº 287/2012). 7. Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento – MAPA: Comitê de Políticas para as Mulheres e de Gênero (Portaria nº 806/2013). 8. Ministério da Defesa - MD: Comissão de Gênero (Portaria nº 893, de 14 de abril de 2014). 9. Ministério das Comunicações - MC: Comitê de Políticas para as Mulheres e de Gênero (Portaria nº173, de 10 de junho de 2014). 10. Ministério da Pesca e Aquicultura – MPA: Comitê de Gênero (Portaria nº 361, de 11 de setembro de 2014). 11. Ministério das Relações Exteriores – MRE: Comitê Gestor de Gênero e Raça (CGGR) (Portaria nº 491, de 12 de setembro de 2014). 12. Fundação Nacional do Índio - Funai: Coordenação de Gênero e Assuntos Geracionais (Portaria nº 26/2007). 13. IPEA: Coordenação de Estudos de Gênero na Diretoria de Estudos e Políticas Sociais (Disoc) 14. Banco do Brasil- BB: divisão dentro de gestão de pessoas que trata de temas como igualdade de oportunidades de gênero, raça, etnia. 15. Caixa Econômica Federal – CAIXA: gerência de relacionamento com o empregado dentro de gestão de pessoas, que trata de temas relacionados à igualdade de gênero. 140 RACISMO INSTITUCIONAL: DEFINIR, IDENTIFICAR E ENFRENTAR SIGLAS E ACRÔNIMOS SIGLAS E ACRÔNIMOS 142 ANDT Agenda Nacional do Trabalho Decente Ater Assistência Técnica Extensão Rural Ates Programa Nacional de Assessoria Técnica, Social e Ambiental à Reforma Agrária BB Banco do Brasil CFEMEA Centro Feminista de Estudos e Assessoria Fenafra Feira Nacional de Agricultura Familiar e Reforma Agrária Funai Fundação Nacional do Índio Geledés Instituto da Mulher Negra IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística Ipea Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada Mapa Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento MC Ministério das Comunicações MD Ministério da Defesa MDA Ministério do Desenvolvimento Agrário MDS Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome MMA Ministério do Meio Ambiente MME Ministério das Minas e Energia MRE Ministério das Relações Exteriores MS Ministério da Saúde MTE Ministério do Trabalho e Emprego SIGLAS E ACRÔNIMOS PAA Programa de Aquisição de Alimentos PNAD Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios PNDTR Programa Nacional de Documentação da Trabalhadora Rural PNEDT Plano Nacional de Emprego e Trabalho Decente PNPM Plano Nacional de Políticas para as Mulheres PNMPO Programa Nacional de Microcrédito Produtivo e Orientado Proinf Programa de Apoio a Infraestrutura Pronaf Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar PR Presidência da República Siop Sistema Integrado de Planejamento e Orçamento SPM Secretaria de Políticas para as Mulheres SIGLAS E ACRÔNIMOS 143