A HOMOFOBIA E A CULTURA ESCOLAR KOTOWSKI, Fátima Regina – UFPR - [email protected] DINIS, Nilson Fernandes - UFPR EIXO: Educação e Gênero/n.20 Agência Financiadora: Sem Financiamento Este ensaio apresenta um estudo exploratório sobre os discursos da sexualidade nas escolas da rede pública estadual de ensino de Curitiba e sua relação com a construção de práticas homofóbicas. Desta maneira pretende-se provocar um questionamento a respeito dos saberes e sujeitos que estão sendo forjados pela educação neste contexto. Descrever o que entendemos a respeito da sexualidade é um desafio que perpassa pela nossa construção do significado desta palavra, muito além da reunião de signos fundantes em um significante, ou de signos que venha descrever de forma objetiva a realidade. A sexualidade, nesta perspectiva, é produzida por um conjunto de discursos que desde o século XVII vem se imprimindo sobre os corpos e as práticas sexuais em nossa sociedade. Através de seus estudos, Michel Foucault apresentou na obra História da Sexualidade: a vontade de saber as construções históricas que deram as condições de possibilidade da existência das sexualidades atuais, desconstruindo a hipótese repressiva e apontando como a construção da sexualidade é mais resultado de ação positiva e produtora do poder, do que uma ação repressiva ou negativa em relação à sexualidade. Sexualidade e poder encontram-se imbricados, assim estratégias de poder-saber estabelecem novos territórios que demarcam as categorias de normalidade e anormalidade em relação à sexualidade, estabelecendo estratégias mais efetivas de controle que não passam mais pelos mecanismos da repressão, já que o domínio sobre os corpos se dá através da própria produção do conceito de sexo. Poder exercido não mais pela repressão, mas sim permeando as relações. Instaurou-se o que Michel Foucault denomina de “uma nova ‘economia’ do poder, isto é, procedimentos que permitem fazer circular os efeitos de poder de forma, ao mesmo tempo, contínua, ininterrupta, adaptada e ‘individualizada’ em todo o corpo social” (Foucault, 1988, p.08). O corpo humano visto como possibilidade de adestramento a fim de utilizar ao máximo suas capacidades e potencialidades, tornando os homens mais dóceis politicamente. O poder exercido como disciplina, como rede sem fronteiras. 2 Nesta nova economia os discursos sobre o sexo foram intensificados e regulados, pois as palavras não apenas descrevem, incitam, significam. Elas criam os sujeitos, sujeitam sua vivência. O discurso sobre o sexo torna possível sua existência, substituindo o plano real. Deve-se sim falar de sexo, mas em lugares demarcados, por pessoas e vocabulário próprio, delimitando o território do poder/saber, demarcando o espaço dos especialistas que podem falar sobre a sexualidade. O silêncio também está presente como componente constituinte deste discurso, faz parte de suas estratégias de intensificação na medida em que alguns saberes sobre a sexualidade são desqualificados pelos discursos dos especialistas e relegados a um espaço periférico ou invisível. . Para Foucault (1988), a sexualidade surge como “verdade do sexo e de seus prazeres”, tecida por discursos científicos sobre uma verdade do sexo por meio da confissão e do processo de escuta analítica, pois sempre há algo a ser interpretado sobre a sexualidade. Entra em jogo o normal e o patológico, normatizando o que se espera do sexo. ... a sexualidade foi definida como sendo”, por natureza “, um domínio penetrável por processos patológicos, solicitando, portanto, intervenções terapêuticas ou de normalização; um campo de significações a decifrar; um lugar de processos ocultos por mecanismos específicos; um foco de relações causais infinitas, uma palavra obscura que é preciso, ao mesmo tempo, desencavar e escutar. È a “economia” dos discursos, ou seja, sua tecnologia intrínseca, as necessidades de seu funcionamento, as táticas que instauram, os efeitos de poder que os sustêm e que veiculam –é isso, e não um sistema de representações, o que determina as características fundamentais do que eles dizem. A história da sexualidade – isto é, daquilo que funcionou no século XIX como domínio de verdade específica – deve ser feita, antes de mais nada, do ponto de vista de uma história dos discursos.(FOUCAULT, 1988, p.78). Vimos construindo uma sociedade que concede às sexualidades consideradas ilegítimas os espaços escondidos “não-autorizados”, os prostíbulos, as festas privadas, onde a sexualidade pode se manifestar com todas as palavras e gestos: “Fora desses 3 lugares, o puritanismo moderno teria imposto seu tríplice decreto de interdição, inexistência e mutismo” (FOUCAULT, 1988, p.10). Toda essa força discursiva é encontrada em muitos lugares, mas principalmente na instituição escolar. Esse espaço ensina através de seus horários, da organização espacial, das avaliações, dos saberes escolares curriculares, da vigilância constante, do lugar do corpo nas relações, enfim do que é dito e não dito, a utilidade dos sujeitos no corpo social. Para Vasconcelos (1995) compreender a instituição escolar, considerando uma funcionalidade de disciplinamento, é concebê-la com um local de vivências, disputas de conhecimento, de processos simbólicos, mas principalmente, de relações de poder, de saber e de violência. Desta maneira, o espaço escolar pode ser estudado como um locus onde as relações de poder manifestam-se de formas efetivas, em que os agentes sociais devem ser localizados concretamente entre os profissionais da educação, alunos e funcionários, ou em suas ramificações, promovedoras de olhares múltiplos, de vigilância perpétua de forma que podem ser visualizados os códigos e processos normalizadores. Estudar a escola, hoje, provavelmente encante pelo emaranhado discursivo gerado em torno do chamado espaço institucional. Os seus vários produtores de saber cada vez mais amparam-se em novas verdades que na maioria das vezes, são as mesmas mentiras que fazem matrizes, centralizadoras, homogêneas, que, ao obstar que a história jorre, impedem também que a escola seja emancipadora, libertadora e produtora de novos caminhos (VASCONCELOS, 1995, p.36). Mediante esse novo exercício do poder, segundo Vasconcelos (1995), é que se podem compreender os novos mecanismos de controle exercidos no interior da escola, promovendo uma sutileza do poder, que, em minúcias, enquadra os indivíduos esperando o cumprimento dos papéis necessários exigidos pela grande máquina social moderna. 4 Estudo exploratório Esse estudo compõe a primeira parte da pesquisa de mestrado em educação “A homofobia e a cultura escolar: um estudo de campo em escolas da rede pública estadual de ensino do município de Curitiba”, realizado em três fases: o levantamento de casos de homofobia nas escolas, a análise de conteúdo de artigos científicos sobre o tema e, por fim, entrevistas com profissionais da educação. Através de depoimentos de professores e alunos foram levantados 10 casos envolvendo preconceitos contra o homoerotismo e papéis de gênero, 4 em Escolas Municipais dos municípios de Curitiba e Araucária, e 6 na Rede Estadual de Ensino, também em Curitiba. Dentre as principais situações apresentadas nos casos relatados pode-se citar: - professores discursam sobre seu pensamento a respeito dos papéis universais de gênero (Exemplo das falas observadas: cuidar da casa é tarefa feminina e não masculina, roupas e penteados considerados como de “boiola”, brincadeiras tidas como inadequadas a um gênero específico); - amizade entre alunas considerada como manifestação de uma relação homoerótica e a intervenção da escola para separa-las durante o período letivo (solicitação para não andarem mais juntas) - encaminhamento ao auxílio psicológico de meninos que revelam ter ‘condutas’ padronizadas socialmente como femininas; - solicitação de intervenção de órgãos gestores em casos de namoro de alunos do mesmo sexo - casos de violência contra alunos homossexuais considerados como brincadeira da idade; - aulas de reprodução humana realizadas apenas na perspectiva religiosa criacionista. Já na segunda fase do estudo exploratório foi realizada uma revisão bibliográfica, não exaustiva, sobre os temas: “sexualidade, gênero e homossexualidade”, visando uma perspectiva da produção existente a partir da análise do banco de dados de artigos Scielo. Foram analisados resumos, títulos e palavras-chave de 77 artigos, bem como a íntegra de 20 artigos devido à estruturação do resumo não deixar claro a área do pesquisador e o campo de pesquisa. Neste levantamento, foram criadas três categorias de análise: a) as temáticas abordadas pelos pesquisadores baseando-se nos buscadores 5 por conteúdo e palavras-chave, b) a área ou linha de pesquisa buscando entender a partir de que saberes o texto foi elaborado e c) o campo da pesquisa, tratando da forma e dos instrumentos de obtenção dos dados analisados pelos artigos. As questões de gênero alçaram um lugar nas produções acadêmicas sobre educação desde a década de 90, segundo o estudo realizado por Rosemberg (2001), ainda mostrando-se aquém perante outras temáticas em educação. No que se refere à homossexualidade e educação, a produção ainda mostra-se mais incipiente mostrando inexistência de produções sobre homofobia dentro da escola. As temáticas abordadas nos artigos analisados foram divididas em 25 classes, sendo uma destinada à utilização da terminologia homofobia, distinguindo-a de outros termos como violência contra homossexual, lésbica ,bissexual e travesti. Em 5 artigos foram encontrados o termo homofobia, mas nenhum era da área de educação, e os dados analisados não se relacionavam ao campo da escola. Resultado interessante visto que em nove áreas de pesquisa encontradas nos artigos a maioria dos pesquisadores estão ligados a educação. Também foi verificada uma ênfase nos trabalhos de análise documental, comparativos teóricos, revisão bibliográfica em comparação aos estudos baseados no trabalho de campo. O levantamento de casos e a análise dos artigos subsidiaram o recorte da pesquisa nas escolas estaduais de Curitiba e a escolha dos sujeitos das entrevistas. A terceira e última fase do estudo exploratório pautou-se em realizar entrevistas com professores(as) e pedagogos(as) das escolas citadas no levantamento de casos com o objetivo de verificar se as questões elaboradas para a roteiro de uma entrevista semiestruturada levarão estes profissionais a expressarem seu conceitos a respeito do homoerotismo e sua relação com o espaço escolar, bem como possam suscitar uma análise dos principais discursos produzidos sobre a homossexualidade. A opção pela utilização da entrevista não-diretiva parte primeiramente da escolha da metodologia de trabalho, sendo um dos suportes a análise de discursos sobre o tema, tendo como referencial teórico os estudos de Michel Foucault, compreendendo que esta pode possibilitar uma discursividade não direcionada pelo que o interlocutor quer ouvir e sim o que o entrevistado pretende ou não dizer sobre a temática. Assim para MICHELAT (1985, p.192) a utilização da entrevista não-diretiva proporciona um contorno de certos cerceamentos das entrevistas feitas através de questionários, com perguntas fechadas, que geralmente estereotipadas e mais racionalizadas. conduzem a informações superficiais, 6 A partir dos casos de preconceito levantados foram realizadas entrevistas com três profissionais da educação de duas Escolas Estaduais em regiões diferentes do município de Curitiba. Duas das profissionais trabalham em uma instituição que participa do Projeto Brasil sem homofobia e uma professora de uma instituição que não participa e não tem nenhum projeto sobre sexualidade. O critério para a seleção dos entrevistados inicialmente foi aleatório e, a partir do primeiro relato, pensou-se em entrevistar professores que estivessem envolvidos com a discussão a respeito das sexualidades, os que tivessem uma maior aproximação com os alunos e outros professores escolhidos aleatoriamente para estabelecer um paralelo entre os discursos produzidos. Ao analisar o histórico da construção do conceito de homossexualidade percebese que este tem sido relacionado mais precisamente à demarcação de discursos sobre o corpo de sujeitos a quem são atribuídas uma identidade fixa e limitada a partir de seu objeto de desejo. Essa escolha não subordinada a uma normativa dominante de definição de objeto vem sendo caracterizada como anomalia. Desde o século XIX vem se instaurando uma preocupação com a classificação dos padrões normais e anormais da sexualidade, conjuntamente com a causalidade dos ‘desvios’. No entanto, a partir de uma perspectiva construcionista, a homossexualidade, assim como as outras sexualidades são constituídas não a partir de identidades fixas ou pré-moldadas, mas através de uma construção social, a cultura é decisiva nas produção das identidades sexuais e de gênero. Concepção esta percebida, ainda que intuitivamente e com um viés conservador, no discurso de uma professora entrevistada, pois segundo a mesma “percebe-se uma semelhança em muitos casos de homossexualidade, na maneira de criar e na estruturação da família”. Para Foucault os sujeitos são construídos histórica e socialmente, onde as definições de gênero e sexualidade de uma dada sociedade são resultados de uma economia de poder que a sustenta e muitas vezes a faz ser concebida como “universal”. Mas em uma perspectiva construcionista, ao contrário, as sexualidades são construções instáveis, mutáveis e voláteis. De acordo como Britzman, ...toda identidade sexual é um constructo instável, mutável e volátil, uma relação social contraditória e não-finalizada. Como uma relação social no interior do eu e como uma relação social entre ‘outros’ seres, a identidade sexual está sendo constantemente rearranjada, desestabilizada e desfeita pelas complexidades da experiência vivida, 7 pela cultura popular, pelo conhecimento escolar e pelas múltiplas e mutáveis histórias de marcadores sociais como gênero, raça, geração, nacionalidade, aparência física e estilo popular (BRITZMAN, 1996, p.74). O medo da influência da homossexualidade é outro tema recorrente nos discursos. Após argüir sobre ‘o que é homossexualidade’, uma das entrevistadas respondeu de pronto ser “bem resolvida, neste ponto”. Tal afirmação remete a uma associação da imagem do homossexual como se a existência da homossexualidade colocasse em jogo a da heterossexualidade como norma, justificando uma defesa de sua ‘identidade de gênero’. ...em algumas situações, como por exemplo, a produção das imagens e identidades homossexuais, não há como separá-las, ou seja, refletir sobre as identidades é discutir também sobre as construções das discriminações, preconceitos e estereótipos. Talvez, porque as identidades estejam diretamente relacionadas à construção das diferenças e, portanto, à construção do ‘outro’, que, por sua vez, diz muito do ‘eu’. (BRITZMAN, 1996 p. 88). Homossexualidade, escola e homofobia Ser mulher e homem heterossexual é um exercício que se aprende na escola. Em todo o corpo institucional escolar são inscritas as significações dos papéis esperados em seu respectivo gênero: “... Este é o jeito de se comportar de uma menina?”; “Isso não é coisa de homem, é coisa de boiola!”. Muitos são os discursos produzidos também com uma preocupação em lidar com o anormal, aquele que ainda tem a audácia de revelar uma outra forma de prazer e que a todo tempo mostra uma resistência ao que é esperado e regulado de um sujeito normal. Desde o século XIX vem se instaurando uma preocupação com a classificação dos padrões normais e anormais da sexualidade. Segundo FOUCAULT (1988, p.69), a caracterização da anomalia fundou-se a partir de três elementos: “(...) o monstro humano, o indivíduo a ser corrigido e a criança masturbadora”. Desta maneira a sexualidade estará no domínio da anomalia, da preocupação com a classificação e com 8 o policiamento. A partir de então serão identificados e apresentados variados casos de anomalia, caracterizados como distúrbios sexuais. Portanto, não se pode deixar de levar em consideração a construção da concepção de homossexualidade pela caracterização histórica no domínio da anomalia. E temos a grande série dos alemães, com Krafft-Ebing, e, em 1870, o primeiro artigo especulativo, teórico se vocês quiserem, sobre a homossexualidade, escrito por Westphal. Estão vendo, pois, que a data de nascimento, em todo caso a data de eclosão, de abertura, dos campos da anomalia e, depois, sua travessia, se não seu policiamento pelo problema da sexualidade são mais ou menos contemporâneos.(FOUCAULT, 1988, p.212) De acordo com Foucault (1988), não deve-se entender esse domínio como a simples expressão da repressão, mas como a constituição de um novo mecanismo de poder. Este promove não apenas experiências “marginalizadas” da expressão da sexualidade, mas mecanismos de poder ligados ao adestramento, à vigilância, e à confissão, trazendo para discussão novos campos de conhecimento promovendo a construção de discursos inesgotáveis e corretivos, como na medicina, na psicologia e na educação. Guacira Lopes Louro (2001) afirma que a sexualidade e os dispositivos existentes encontram um interesse nas diversas áreas da ciência reproduzindo diversas perspectivas que vigoram nos dias atuais: Nos dois últimos séculos, a sexualidade tornou-se objeto privilegiado do olhar de cientistas, religiosos, psiquiatras, antropólogos, educadores, passando a se construir, efetivamente, numa ‘questão’. Desde, então, ela vem sendo descrita, compreendida, explicada, regulada, saneada, educada, normatizada, a partir das mais diversas perspectivas. Se, nos dias de hoje, ela continua alvo da vigilância e do controle, agora ampliaram-se e diversificaram-se suas formas de regulação, multiplicaram-se as instâncias e as instituições que se autorizam a ditar-lhe as normas, a definir-lhe os padrões de pureza, sanidade ou insanidade, a delimitar-lhe os saberes e as práticas 9 pertinentes, adequados ou infames. Ao lado de instituições tradicionais, como o Estado, as igrejas ou a ciência, agora outras instâncias e outros grupos organizados reivindicam, sobre ela, suas verdades e sua ética (LOURO, 2001, p. 541). O novo mecanismo de poder inaugurado no século XIX, segundo Foucault (1988), promoveu a incorporação das sexualidades que fugiram do formato cristão do casamento monogâmico e do modelo heterossexual adulto, assim como as perversões e novas especificações dos indivíduos, forjando o homossexual como um personagem: [...] um passado, uma história, uma infância, um caráter, uma forma de vida; também é morfologia, com uma anatomia indiscreta e, talvez uma fisiologia misteriosa. Nada daquilo que ele é, no fim das contas, escapa à sua sexualidade. Ela está sempre presente nele todo; subjacente a todas as suas condutas, já que ela é o princípio insidioso e infinitamente ativo das mesmas; inscrita sem pudor na sua face e no seu corpo já que é um segredo que se trai sempre. É-lhe consubstancial, não tanto como pecado habitual, porém como natureza singular. (FOUCAULT, 1988, p.43). O que parece um movimento de inclusão do diferente por meio de políticas públicas nacionais, por exemplo, os programas que vem promovendo uma formação para professores sobre a temática homofobia, muitas vezes não conseguem o apoio dos governos locais, compreendendo este como uma política menor em educação. Revela uma desarticulação das políticas nacionais e locais e até mesmo a catalisação de um temor de desconstrução de identidades de gênero e da família compreendida como o aporte de uma sociedade - promovendo o pânico moral. Para Miskolci (2007) o casamento homossexual fez reviver discursos conservadores sobre um temor coletivo relacionado à sobrevivência da família enquanto mantenedora de toda uma ordem social, hierarquia entre os sexos, meio de transmissão da propriedade e, principalmente, os valores tradicionais. O surgimento da AIDS sem dúvida transformou e redefiniu o lugar dos movimentos homossexuais em uma luta por novos espaços sociais e políticos. Este movimento que busca afirmar os novos modos de vida gay e novas formas de legitimidade através de projetos como a parceria civil, encontra contraponto nos limites 10 morais da sociedade atual. “Os pânicos morais exprimem de forma culturalmente complexa as lutas sobre o que a coletividade considera legítimo em termos de comportamento e estilo de vida”. (MISKOLCI, 2007, p.111). A modernidade para Veiga-Neto (2001) traduz-se como um tempo de intolerância muitas vezes recoberta pelo véu da aceitação e possível convivência com o desigual. Os movimentos de inclusão escolar muitas vezes intensificam a desigualdade corporificada no dispositivo da sexualidade, implantando práticas de tolerância nesta relação. Pois quem tolera já se encontra em uma postura superior àquilo que é ou aquele que deva ser suportado (tolerado). Assim, talvez as políticas públicas sobre o tema da diversidade sexual e de gênero tenham encaminhado a educação para práticas de tolerância em relação à diferença, sem uma efetiva relação com a diferença na qual esta possa ser vista como motor de invenção de novas possibilidades de vida. Tolera-se o outro desde que outro permaneça no enclausuramento do espaço de si mesmo. A partir dos dados que analisamos em nossa pesquisa, podemos concluir que a discussão a respeito da homofobia ainda está distante de ser incorporada como uma prática escolar. De diversas formas a homofobia revela-se como manifestação de uma cultura identitária de gêneros sexista e androcêntrica que coloca as práticas sexuais homoeróticas como anormais. A escola vem promovendo uma normatização através de diversos discursos produzidos em seu universo, forjando sujeitos que venham responder o que a sociedade espera. As práticas homofóbicas estão presentes na escola, nos discursos de todos os que constituem e são constituídos nesta instituição. Longe de construir saberes que falem da pluralidade do ser humano, a escola ainda está com toda força reproduzindo o que é ser homem e mulher dentro dos valores estabelecidos pela nossa sociedade. Igualmente, a própria produção acadêmica sobre gênero e sexualidade acaba por não dar a ênfase necessária a estas práticas de preconceito, promovendo um vazio no discurso de enfrentamento da homofobia na educação. Existem possibilidades de mudança neste lugar de reprodução de modelos culturais estabelecidos. Primeiramente a escola pode desenvolver uma percepção da função que vem desempenhando e assim passar a construir novas formas de compreensão do que foi constituído como verdades científicas. Promover uma busca da forma como os conhecimentos foram construídos e ‘naturalizados’ tornando a escola um lugar de pensar e não apenas aceitar aquilo que foi estipulado como saber constituído. Compreender que o que conhecemos como gêneros e sexualidade foi construído cultural e historicamente, não 11 se configurando, de forma alguma, como um dado biológico imutável. A própria formação docente deve promover a indagação das ditas verdades, bem como os materiais didáticos e os demais recursos utilizados, devem ser olhadas de forma a perceber quais os saberes estão eleitos como legítimos, quais valores são representados por estes e a que sujeitos pretendem alcançar com os discursos ali escritos. Desta maneira, deve-se colocar em debate as práticas homofóbicas existentes na cultura escolar e evidenciá-las de forma a promover na própria cultura escolar uma reflexão sobre seu lugar de construtora de sujeitos. Deve-se tornar possível conceber a instituição escolar como espaço de trocas onde aprendemos com o outro as possibilidades do ser humano. Tais possibilidades de encontros permitem a compreensão que a diferença está em todos, independente de seu gênero, de sua sexualidade, e não apenas naqueles que foram relegados a um lugar de ‘diferentes’ do que foi normatizado. Referências Bibliográficas: BRITZMAN, Deborah P. O que é esta coisa chamada amor: identidade homossexual, educação e currículo. Educação e Realidade, Porto Alegre, v.1, n.21, p.71-96, jan./jun. 1996. MICHELAT, G. Sobre a utilização da entrevista não-diretiva em sociologia. In: THIOLLENT, Michel. Crítica Metodológica, Investigação Social e Enquete Operária. 4.ed. São Paulo: Polis, 1985. p. 191 – 211. MISKOLCI, Richard . Pânicos Morais e Controle Social: Reflexões sobre o Casamento Gay. Cadernos Pagu (UNICAMP), v. 28, p. 101-128, 2007. FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade l: a vontade de saber. Trad. Maria Thereza da C. Albuquerque e J. A. Guilhom Albuquerque, 12.ed. Rio de Janeiro: Ed Graal, 1988. LOURO, Guacira Lopes. Teoria queer: uma política pós-identitária para a educação. Revista de Estudos Feministas. Florianópolis, vol.9, n.2, 2001, p. 541-553 ROSEMBERG, Fúlvia. Caminhos cruzados, educação e gênero na produção acadêmica. Educação e Pesquisa, v. 27, n. 1, p. 47-68, 2001. VASCONCELOS, J. G. A produção de Saber/Poder e os Processos de Disciplinamento na Escola: revivendo o pensamento de Michel Foucault. Revista Educação em Debate. Fortaleza, no 30, 1995. 12 VEIGA-NETO, A. Incluir para excluir. In: LAROSSA, J e SKIAR, C. (org.): Habitantes de Babel: políticas e poéticas da diferença. Belo Horizonte: Autêntica, 2001. p.105-118.