O KUARUP XINGUANO
E OS UNIVERSAIS DA
NARRATIVA RELIGIOSA
GEORGE DE CERQUEIRA LEITE ZARUR
Consultor Legislativo da Área XV
Educação, Cultura, Desporto, Ciência e Tecnologia
AGOSTO/2003
George de Cerqueira Leite Zarur
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ÍNDICE
I - INTRODUÇÃO: O PARQUE DO XINGU, OS VILLAS BÔAS E OS ÍNDIOS ....................... 3
II - A NARRATIVA RELIGIOSA E A QUESTÃO DA UNIVERSALIDADE DE CERTOS
PRINCÍPIOS RELIGIOSOS ................................................................................................................... 6
III - A NARRATIVA RELIGIOSA XINGUANA E O RITUAL DO KUARUP ................................ 7
IV - CONCLUSÕES: DOS UNIVERSAIS NA VIDA RELIGIOSA ................................................. 14
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Anexo III - Térreo
Brasília - DF
O Kuarup Xinguano e os Universais da Narrativa Religiosa
Relatório Especial
2
George de Cerqueira Leite Zarur
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O KUARUP XINGUANO E OS UNIVERSAIS DA
NARRATIVA RELIGIOSA
I - INTRODUÇÃO: O PARQUE DO XINGU, OS VILLAS
BÔAS E OS ÍNDIOS
E
ste artigo explora o clássico problema dos
universais do comportamento humano, a partir
da narrativa religiosa e do ritual do Kuarup dos índios xinguanos,
por sua comparação com rituais e tradições religiosas ocidentais.
Em Julho de 2003, os índios do Xingu realizaram,
em homenagem a Orlando Villas Bôas, aquele que eles mesmos
consideraram o maior Kuarup (“festa em homenagem a mortos
ilustres”) de todos os tempos, que pode ter reunido de 1500 a
2000 pessoas. Dele participei como amigo de Orlando e convidado
de sua família.
Os índios do Xingu consideram Orlando um herói,
com correto senso de justiça: em um discurso, no final do ritual,
os chefes Yawalapiti lembraram que sua tribo, hoje reunindo mais
de 140 pessoas em uma belíssima aldeia, esteve reduzida a sete
indivíduos dispersos em outras tribos; não se esqueceram que
Orlando foi convencer cada um dos sobreviventes a reconstruir
sua aldeia Yawalapiti. Este antropólogo ainda guarda na memória
a aldeia Yawalapiti, dos anos sessenta, como uma única casinha,
localizada muito perto do posto indígena, por razões de apoio e
proteção. Ameaçadas de desaparecimento e reconstituídas, no
Alto Xingu, foram também, as etnias Maitipu, Nahukwa, Trumai
e Txicão. No Baixo Xingu, os Suiá, Juruna e Kayabi - estes
libertados pelos Villas Bôas da escravidão de seringais - passaram
por processo semelhante. Não tivessem sido os Panará levados
para dentro do Parque do Xingu, em situação emergencial, teriam
desaparecido por completo, dada a decisão do governo militar
de tomar sua terra.
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Relatório Especial
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Em 1971, quando realizei meu trabalho de campo na região, era ela habitada por pouco
mais de oitocentos índios, que ainda se recuperavam da devastadora epidemia de sarampo de 1954.
Graças aos vínculos de Orlando com o grupo liderado por Roberto Baruzzi, da Escola Paulista de
Medicina, as aldeias xinguanas, em 1971, tinham um grande número de crianças para poucos adultos
que, não obstante, foram capazes de sustentá-las e vê-las crescer. Hoje, a população do Alto Xingu é
de mais de quatro mil índios. Muitas tribos estão se dividindo em mais de uma aldeia, devido ao
crescimento demográfico. Em 1971 havia, apenas, nove aldeias, uma tribo por aldeia, com exceção
dos Maitipu e Nahukwa, que devido ao seu pequeno número e identidade lingüística, estavam
concentrados em uma única aldeia (As aldeias eram Aweti, Kamaiurá, Kuikuro, Kalapalo, MaitipuNahukwa, Mehinaku, Waurá, Yawalapiti e Trumai). Hoje, os Maitipu e Nahukwa estão, cada qual,
vivendo em sua aldeia.
Os índios do Xingu estão plenamente conscientes do papel dos Villas Bôas na criação do
Parque do Xingu e na implantação de uma eficaz proteção à saúde e à cultura locais. Já, muitos
caraíbas (termo pelo qual os xinguanos chamam aos brancos) não percebem, ou se recusam a perceber,
que a política indigenista brasileira do século XX foi marcada por Rondon e pelos Villas Bôas. Aliás,
a “deconstrução” de lendários heróis nacionais tem sido um aspecto da fragilização política de nações
periféricas, como o Brasil, nos tempos atuais. Funciona como a desmoralização que os missionários
clássicos impunham aos heróis religiosos, históricos e políticos dos povos que convertiam. Os
intelectuais brasileiros que se dedicam a tal prática operam como agentes coloniais involuntários.
Gostaria, algum dia, de chegar a ver a “deconstrução”, por norte-americanos, de Washington ou
Lincoln, por exemplo... Não é, entretanto, meu objetivo, neste trabalho, “deconstruir” aspetos do
pensamento social brasileiro atual.
Rondon, no começo do século XX, revolucionou o que era, mas ainda não se chamava
“política de direitos humanos”. Convenceu, definitivamente, o País de que os índios tinham o direito
à vida. Esta constatação, hoje óbvia, não o era naquele tempo, pois desde o Padre Vieira representava
uma fonte de dúvidas para a ética e para a política. Justificava genocídios em série. Rondon enfrentou
e derrotou, ideológica e politicamente, o evolucionismo dominante no seu tempo, que pregava a
sobrevivência dos mais aptos e o extermínio dos mais fracos, como um imperativo biológico.
Os Villas Bôas, em íntimo contato com a melhor antropologia dos meados do século
XX, pertenciam a um grupo intelectual, político e afetivo que reunia os antropólogos Eduardo Galvão
e Darcy Ribeiro e o médico Noel Nutels. Esse grupo foi responsável pela idéia de que a terra
indígena deveria ser preservada, como condição para garantia da vida. Mas não só: afirmou-se pela
primeira vez, que a cultura indígena representava um valor humano essencial que, também, deveria
ser protegido. Coube aos Villas Bôas participar da elaboração desses princípios e, ainda, de sua
aplicação eficaz. Esta foi outra revolução na política de direitos humanos, no Brasil e no mundo, pois
reconhecia-se, como valor, a diversidade cultural. Esta era época em que se falava de “quistos étnicos”
e em que os estados nacionais - dando seqüência a uma política iniciada com a revolução francesa atuavam pela universalização de uma cultura hegemônica em seu território, que se confundiria com
a “cultura nacional”. A luta pelos direitos indígenas a uma cultura própria representou uma verdadeira
ruptura intelectual e política, na qual os Villas Bôas tiveram um papel decisivo.
Ao direito à sobrevivência física foram adicionados, até como condição, o direito à posse
da terra e a viver segundo sua cultura. A terra, para tanto deveria ser garantida em dimensões
compatíveis com a cultura original do grupo e para amortecer os efeitos do contato com os brancos.
Os índios do Xingu estão plenamente conscientes de que viver segundo sua cultura
representa algo essencial para sua felicidade. Por isto, o Kuarup de Orlando representou uma
reafirmação política pelos índios, dos ideais de diversidade cultural pelos quais lutaram os Villas
Bôas.
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Hoje, há mudanças importantíssimas na vida do Xingu, claramente percebidas por quem,
com este antropólogo, lá foi, pela primeira vez, há quarenta anos (em 1963). Há uma participação
muito maior dos índios na vida nacional brasileira. Há escolas em diversas aldeias, além de professores
informais, que ensinam dentro das próprias casas, de acordo com o ritmo de vida das crianças. Há
televisões, com antenas parabólicas movidas a baterias convencionais ou solares. Há muitas bicicletas
(usadas por homens e mulheres) e algumas motocicletas, de propriedade individual. Há aldeias que
possuem caminhões e quase todas têm barcos a motor. Até a maneira de caminhar das mulheres
xinguanas mudou, pois, como notou Sandra Zarur, o passinho curto e rápido que a caracterizava, foi
substituído por um passo mais largo, devido, presumivelmente, ao uso de “sandálias de dedo”. Roupas
são usadas, principalmente no posto indígena.
A cidade de Canarana (dez horas de viagem de barco e jipe) está no limite do Parque do
Xingú. As fazendas de soja cercam todo o seu território. O Parque é, hoje, uma mancha verde rodeada
por uma área pesadamente desmatada. É, além de tudo, a grande reserva biológica da região.
Entretanto, a vida social e religiosa dos xinguanos, parece não ter, em essência, se alterado,
como demonstram a observação do ciclo de vida, das hierarquias de status, das relações entre homens
e mulheres, das atividades essenciais à subsistência através de pesca e agricultura e, especialmente,
da vida ritual e religiosa. Se os xinguanos conseguirem conciliar as facilidades tecnológicas dos caraíbas
com os valores fundamentais de sua cultura tradicional representarão, também neste particular, uma
experiência importante para o encontro de formas sociais que contribuam para o bem estar humano.
Foto 1: “Cuidado a festa do Orlando”. O índio avisa a todos para que tomem cuidado e não estraguem sua
pintura para a festa do Orlando.
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II - A NARRATIVA RELIGIOSA E A QUESTÃO DA UNIVERSALIDADE DE CERTOS
PRINCÍPIOS RELIGIOSOS
Claude Levi-Strauss enfatizou aspetos comuns na estrutura formal de mitos de diferentes
culturas, enquanto outros autores, a partir de uma tradição que passa por Mircea Eliade e Frazer
exploraram, fenomenologicamente, os conteúdos ideológicos e sentimentos universais à experiência
religiosa.
O objetivo deste trabalho é o de procurar universais na experiência humana pela
comparação de temas centrais da narrativa religiosa dos índios do Xingu e da narrativa religiosa
cristã. Enquanto autores como Durkhein, Levi-Strauss e Mircea Eliade sempre buscaram a diferença
entre as religiões européias modernas e as dos assim chamados “povos primitivos”, Frazer, em que
pese o viés etnocêntrico da “Belle Époque”, que caracteriza sua obra, procurou as analogias e metáforas
comuns à experiência religiosa de muitos diferentes povos, inclusive, mostrando a origem pré-cristã
de diferentes rituais e crenças cristãs. Ao contrário de antropólogos como, por exemplo, Levi-Strauss
e Evans-Pritchard, que enfatizaram a irredutibilidade do pensamento e das religiões “selvagens”
frente aos das culturas ocidentais contemporâneas, Frazer estabeleceu uma continuidade entre todas
as culturas religiosas do mundo.
Vamos evitar, neste artigo, a expressão “mito”, por ser sinônimo de “lenda”, algo que
seria característico dos povos supostamente menos desenvolvidos, do ponto de vista religioso. A
idéia de “mito” como algo inverídico ou imperfeito pode ser facilmente perceptível a partir dos
significados que são atribuídos ao termo por um dicionário popular brasileiro (“Novo Aurélio”),
embora os antropólogos tenham procurado depurar o termo de seus aspectos negativos. Assim, ou
todas as narrativas históricas, religiosas e científicas de toda e qualquer cultura, inclusive as nossas,
são “mitos”, isto é, ou “tudo é mito”, ou todos os assim chamados “mitos” seriam, também, narrativas
religiosas, históricas ou científicas. Uma breve lembrança sobre estudos recentes sobre a “invenção
das tradições”, a “construção da história” ou as revisões das idéias científicas bastam para sustentar
tal dimensão relativista.
Na visão etnocêntrica dominante, as narrativas religiosas ocidentais não são “mitos”,
mas a única verdade. Embora o nosso evangelho cristão possa fazer sentido para nós, não o faz,
evidentemente, para um maometano e muito menos para um xinguano. A Igreja Católica tem, por
avanços e recuos, caminhado, de forma tolerante, na direção do reconhecimento de tal situação
através do Ecumenismo, que considera, atualmente, um dos seus objetivos mais importantes. A
“descoberta de Deus em outras culturas” define o sentido deste movimento, em que pese o potencial
de intervenção colonial e até de agressão a culturas mais frágeis, ainda presentes no conceito de
“inculturação” (usado em textos religiosos balizando a ação missionária).
A transcrição das narrativas religiosas, no português quase incompreensível dos índios,
em contato recente com a sociedade brasileira, pode ser importante para estudos lingüisticos sobre
os “dialetos do contato”. Em antropologia social, porém, reforça o estereótipo do “mito primitivo”
como oposto à narrativa religiosa característica das religiões ditas monoteistas e, principalmente, da
religião cristã. De fato, o “mal português” indígena, freqüentemente infantilizado pela própria relação
colonial estabelecida no contato interétnico, é plenamente compatível com a idéia de “mito”.
A Antropologia em que pese o exorcismo que vem realizando desde Boas, ainda não
conseguiu, de todo, livrar-se do fantasma de Levy-Bruhl 1. Substituir o conceito de “mito”, com suas
ressonâncias semânticas negativas, pelo de “narrativa religiosa”, pode representar um passo à frente.
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III - A NARRATIVA RELIGIOSA XINGUANA E O RITUAL DO KUARUP
O ritual do Kuarup (nome de uma madeira) revive a narrativa religiosa dos índios do
Xingu, centrada na figura de Mawutzinin, relativa à vida e à morte de seres humanos. Por seu papel
na criação do mundo, dos homens e das coisas, Mawutzinin tem sido comparado a “Deus” ou, de
outra forma, ao “demiurgo” (na tradição platônica, também divino). Mawutzinin é um ser eterno,
antropomorfo, responsável pela criação dos primeiros seres humanos, a partir de troncos de árvore.
Mawutzinin é também, o responsável pela criação da sociedade, após ceder as filhas que criou de
troncos Kuarup para casamento com as onças. Dadas tais características, o conceito de “Deus”
parece-nos que melhor ajuda à compreensão, em uma tradução cultural livre, uma metáfora que
busque, sobretudo, a inteligibilidade do leitor ocidental.
Há vários registros da narrativa dramatizada através do ritual do Kuarup. Existe um
volume inteiro sobre o tema em que o ritual e o complexo de idéias associadas são descritas 2.
Os primeiros homens, em uma das versões colhida por Agostinho teriam sido criados a
partir da madeira Kuarup. Segundo a narrativa colhida por Villas Bôas, o primeiro Kuarup teria sido
realizado com o objetivo de trazer os mortos de volta à vida. Abaixo transcrevemos a versão dos
Villas Bôas 3, por ser em português mais claro que o “dialeto do contato” transcrito por Agostinho e,
também, por representar uma versão menos detalhada mas, possivelmente, mais “universalmente”
xinguana da narrativa:
“Mavutsinim (o primeiro homem no mundo) queria que os seus mortos voltassem à vida. Foi para o
mato, cortou três toros da madeira de Kuarup, levou para a aldeia e os pintou. Depois de pintar, adornou
os paus com penachos, colares, fios de algodão e braçadeiras de penas de arara.
Feito isso, Mavutsinim mandou que fincassem os paus na praça da aldeia, chamando em seguida o sapo
cururu e a cutia (dois de cada), para cantar junto dos Kuarup. Na mesma ocasião levou para o meio da
aldeia, peixes e beijus para serem distribuídos entre o seu pessoal. Os maracá-êp (cantadores), sacudindo os
chocalhos na mão direita, cantavam sem cessar em frente dos Kuarup, chamando-os à vida.
Os homens da aldeia perguntavam a Mavutsinim se os paus iam mesmo se transformar em gente, ou se
continuariam sempre de madeira como eram. Mavutsinim respondia que não, que os paus de Kuarup iam se
transformar em gente, andar como gente e viver como gente vive.
Depois de comer os peixes, o pessoal começou a se pintar, e a dar gritos, enquanto fazia isso. Todos
gritavam. Só os maracá-êp é que cantavam. No meio do dia terminaram os cantos, o pessoal, então, quis
chorar os Kuarup, que representvam seus mortos, mas Mavutsinim não permitiu, dizendo que eles, os
Kuarup, iam virar gente, por isso não podiam ser chorados.
Na manhã do segundo dia Mavutsinim não deixou que o pessoal visse os Kuarup. “Ninguém pode ver”
- dizia ele. A todo o momento Mavutsinim repetia isso. O pessoal tinha que esperar. No meio da noite desse
segundo dia os toros de pau começaram a se mexer um pouco. Os cintos de fios de algodão e as braçadeiras de
penas tremiam também. As penas mexiam como se estivessem sacudidas pelo vento. Os paus estavam querendo
transformar-se em gente.
Mavutsinim continuava recomendando ao pessoal para que não olhasse. Era preciso esperar.
Os cantadores - os cururus e as cutias - quando os Kuarup começaram a dar sinal de vida cantaram
para que se fossem banhar logo que vivessem. Os troncos se mexiam para sair dos buracos onde estavam
plantados, queriam sair para fora. Quando o dia principiou a clarear, os Kuarup do meio para cima já
estavam tomando forma de gente, aparecendo os braços, o peito e a cabeça. A metade de baixo continuava
pau ainda.
Mavutsinim continuava pedindo que esperassem, que não fossem ver. “Espera...espera...espera” - dizia
sem parar. O sol começava a nascer. Os cantadores não paravam de cantar. Os braços do Kuarup estavam
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crescendo. Uma das pernas já tinha criado carne. A outra continuava pau ainda. No meio do dia os paus
começavam a virar gente de verdade. Todos se mexiam dentro dos buracos, já mais gente do que madeira.
Mavutsinim mandou fechar todas as portas. Só ele ficou de fora, junto com os Kuarup. Só ele podia vêlos, ninguém mais. Quando estava quase completa a transformação de pau para gente, Mavutsinim mandou
que o pessoal saísse das casas para gritar, fazer barulho, promover alegria, rir alto junto dos Kuarup. O
pessoal, então, começou a sair de dentro das casas.
Mavutsinim recomendava que não saíssem aqueles que durante a noite tiveram relação sexual com as
mulheres. Um, apenas, tinha tido relações. Este ficou dentro da casa. Mas não agüentando a curiosidade,
saiu depois. No mesmo instante, os Kuarup pararam de se mexer e voltaram a ser pau outra vez.
Mavutsinim ficou bravo com o moço que não atendeu à sua ordem. Zangou muito, dizendo: - O que eu
queria era fazer os mortos viverem de novo. Se o que deitou com mulher não tivesse saído de casa, os Kuarup
teriam virado gente, os mortos voltariam a viver toda vez que se fizesse Kuarup. Mavutsinim, depois de
zangar, sentenciou:
- Está bem. Agora vai ser sempre assim. Os mortos não reviverão mais quanto se fizer Kuarup. Agora
vai ser só festa.
Mavutsinim depois mandou que retirassem os buracos os toros de Kuarup. O pessoal quis tirar os
enfeites, mas Mavutsinim não deixou. ‘Tem que ficar assim mesmo’, disse. E em seguida mandou que os
lançassem na água ou no interior da mata. Não se sabe onde foram largados, mas estão lá até hoje lá, no
Morená.”
O Kuarup só é realizado para pessoas ilustres, seja por um critério de “sangue”, seja por
um critério de liderança política ou econômica. A sociedade xinguana apresenta duas classes
tradicionais, o “morekwat” (na lingua Aweti) ou “morerekwat”, (em Kamaiurá) os descendentes uma
classe hereditária de chefes, originários dos primitivos índios de cada tribo. Os “morekwat” têm o
direito (teórico) à propriedade do pátio da aldeia e uma posição de destaque em determinados rituais.
A eles cabem os discursos e representar a aldeia no momento do recebimento ou oferta de presentes
em rituais, especialmente, nos de caráter intertribal. Possuem o direito ao uso de uma pintura
característica no braço.
Além da chefia tradicional há, ainda, a liderança emergente do contato interétnico, índios
que melhor falam o português e desempenham a função de intermediários culturais com a sociedade
caraíba. Em um trabalho anterior4, denominei-os “capitães”, termo que embora seja usado pelos
índios como tradução de “morekwat” enfatiza a relação com a sociedade nacional brasileira.
Opostos aos “morekwat” (lideranças hereditárias tradicionais) e “capitães” (lideranças
novas resultantes do contato interétnico) estão os “camara”, transformação do termo português
“camarada”.
Normalmente, os “morekwat” e “capitães”, por sua situação estratégica nos diversos
rituais, possuem a indispensável capacidade de mobilização econômica, que lhe permite acionar uma
forte rede de parentes e outras pessoas, para a produção de alimentos e, assim, “pagar” rituais maiores,
como é o caso do Kuarup, o maior de todos. Há um intricado sistema de prestações e contraprestações,
que se inicia com a iniciativa dos familiares da pessoa morta e vai se desdobrando até atingir todas
tribos do Xingú.
Tradicionalmente, o Kuarup era realizado, apenas, para os “morekwat” (hoje, também,
para “capitães” e outras pessoas importantes), pois eram esses chefes tradicionais associados aos
primeiros índios, que viveram a narrativa do Kuarup. A realização de um Kuarup, em homenagem a
determinada pessoa ilustre, representa, portanto, o reconhecimento de que esta pessoa estaria associada
aos primeiros índios que conviveram com Mawutzinim. A realização de um Kuarup significa, assim,
uma grande honraria, o reconhecimento de que o homenageado passa a ser situado no mesmo nível
dos que conviveram com Mawutzinim, isto é, são incorporados ao povo descrito na narrativa religiosa
e passam a integrá-la.
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A idéia de convívio com a divindade apresenta um claro paralelo com a situação dos
santos católicos que, também, convivem em proximidade com a divindade. Outro paralelo é a questão
da transgressão na narrativa do Kuarup, na medida em que o processo de ressurreição é interrompido,
pelo fato de um dos índios ter mantido relações sexuais enquanto acontecia. É desnecessário elaborar
a idéia do sexo como transgressão e seus efeitos no Cristianismo, como aparece na expulsão de Adão
e Eva do Paraíso. Durante a quaresma, a “abstinência” não se fazia, tradicionalmente, apenas com o
jejum de alimentos.
Por outro lado, a proibição do sexo durante o Kuarup pode estar associada à criação da
vida por um método não “biológico”. Para que haja a plena criação da vida pela divindade não pode
haver a criação da vida pelos homens, através do método que lhes é próprio, o sexo. Um método
inviabiliza o outro. Quando Mawutzinin diz que “agora é só festa” está dizendo que resta o método
humano de criação de vida.
O kwarup que assistimos foi oferecido pelos índios Yawalapiti, em associação com as
demais tribos de língua Aruak, os Mehinaku e Waurá. Esses índios, chegaram antes dos demais e
foram abrigados nas casas dos Yawalapiti. Os homens vieram dançando, acompanhados por algumas
poucas mulheres, principalmente meninas, fazendo, na dança, uma fila paralela à dos homens. As
demais mulheres chegaram discretamente.
Depois de muita dança, alguns índios foram para o mato cortar um tronco do arvore
kwarup. Foi construída uma cobertura de palha, um “rancho”, em frente à “Casa dos Homens”, sob
o qual foi fincado o tronco no chão. O tronco foi descascado e aplainado para receber a pintura.
Foto 2: O tronco do Kuarup recém colocado e decorado. No chão os arcos, cocares e maracás dos dois cantadores, que
tinham, por um breve momento, interrompido sua atividade. (foto Sandra Zarur)
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Dois cantadores, que lá se encontravam, previamente, deram continuidade ao seu trabalho,
acompanhados por seus maracás. A tradução que me fizeram foi a seguinte da letra da música:
“Auíre (“morekwat” em Ywalapiti, “chefe”), você está sendo pintado,
Sua pintura está ficando muito bonita”.
Este e outros refrãos parecidos são repetidos, e o que é importante é que se dirigem ao
tronco como a uma pessoa humana. A pintura (de sapo) é, não apenas, humana, como é aquela só de
uso dos chefes importantes. O tronco é decorado com os mais belos ornamentos masculinos, como
cinto de algodão colorido (dois são colocados), colar de caramujo, e cocar de penas. Tudo em tamanho
maior do que seria usado por humanos vivos, pois sua dimensão é adequada à do tronco.
Foto 3: Os cantadores apoiados no arco e com o maracá na mão direita.
No primeiro dia de efetiva realização do ritual (os demais dias foram preliminares)
começaram a chegar as demais tribos, que foram se instalando ao redor da aldeia iawalapiti. No final
da tarde e começo da noite foi feita uma fogueira em frente ao tronco do kwarup. Os homens de cada
uma dessas aldeias visitantes vieram dançando e cantando e um deles se aproximava para recolher o
fogo com que se aqueceriam suas fogueiras na fria noite xinguana.
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Foto 4: Dança do Kuarup
Um dos índios veio correndo e tirou um dos cintos de algodão do tronco do kwarup. Este
é uma ação que só os grandes campeões da luta huka-huka têm o direito de realizar. É como um
desafio ao grande chefe que está em processo de revivescência no tronco.
A visita de outras tribos é, sempre, um processo considerado muito perigoso, especialmente
devido à possibilidade de feitiçaria, que pode ser realizada com um resto humano qualquer, como um
pouco de cabelo. Há muita tensão. A entrega do fogo às tribos visitantes e as danças associadas não
interrompem o cantochão do cantadores.
Durante a noite, há um momento que corresponde ao da ressurreição do homenageado,
que estaria, fugazmente, presente no tronco da mesma maneira que na narrativa religiosa acima
transcrita. Segundo me informou um dos morekwat yawalapiti, no Kuarup que homenageou Cláudio
Villas Bôas, em um dado momento, as penas do cocar teriam mexido. No Kuarup de seu pai (Kanato),
os morekwat yawalapiti, os irmãos Aretana e Piracumã, relataram-nos terem ouvido um farfalhar,
um vento, na cobertura de palha que cobre o Kuarup e em seguida ter visto o pai de pé, em frente ao
tronco. Piracumã informou ter desmaiado com a visão.
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Foto 5: O aprendizado do ritual pelas crianças.
Este momento é o da virtual ressurreição do morto. Corresponde ao instante em que os
troncos da narrativa religiosa começam tomar vida. Foi quando Orlando retornou e esteve perto de
nós. Foi o momento em que a família de Orlando se aninhou junto ao tronco e três amigos de Orlando,
um dos quais o autor deste artigo, foram chamados para sentar-se próximo à família e ao tronco.
O momento seguinte foi das carpideiras, cinco mulheres de idade, enroladas em cobertores
que choravam , um choro tristíssimo, repetido, com voz muito baixa. Não é difícil comparar tal
costume com o das carpideiras mediterrâneas. A diferença é a notável delicadeza do choro baixo das
xinguanas, embora no Nordeste brasileiro, por exemplo, também haja “incelenças” muito belas e,
também, delicadas.
Parecia haver uma alternância e, por vezes, uma disputa, entre as vozes masculinas dos
cantadores e as femininas das carpideiras. Como se os homens estivessem estimulando o morto a
reviver e as mulheres chorando, cantando tal impossibilidade.
Pela noite inteira ouvem-se as vozes ritmadas dos cantadores e, até um dado instante,
bem baixinho, o choro sentido das carpideiras.
A manhã seguinte, com os primeiros raios de sol, são ouvidos os gritos, por meio dos
quais as tribos visitantes, que dormiram ao redor da aldeia, anunciam sua chegada. Acaba o choro e
a atividade dos cantadores. Nota-se perfeitamente, que se inicia outra etapa do ritual. Chegam os
índios e, rapidamente, começam as lutas de huka-huka, primeiro, uma a uma, entre os campeões das
diferentes tribos e, depois, lutas simultâneas, principalmente, entre indivíduos mais jovens que ainda
não se afirmaram como bons lutadores. Houve um momento em que havia perto de 30 lutadores,
simultaneamente, em atividade.
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Foto 6: Huka-huka: notar a pintura de peixe do lutador da esquerda e de onça, do lutador da direita. A narrativa
completa da origem dos homens faz menção à luta dos peixes contra as onças.
A mãe de um dos lutadores, uma mulher kamaiurá, entrou no círculo dos lutadores e fez
um discurso político, em defesa de Takumã, o capitão Kamaiurá. Gritou para que todos ouvissem
que “Takumã não era feiticeiro”.
O morekwat yawalapiti ajoelha-se frente ao morekwatde cada das tribos visitantes recémchegadas e lhes oferece, em hospitalidade, peixe e beiju, que o chefe visitante, vai, posteriormente
distribuir à sua tribo. Em se tratando de “morekwats”, uo seja, chefes por “nobreza de sangue”,
alguns dos que recebem a oferenda são muito jovens. Ficam sentados nos bancos em que são esculpidas
cabeças de gavião, de seu uso exclusivo, e assumem uma postura corporal de superioridade, uma
“pose aristocrática”. Posteriormente às lutas há um moitará, ritual de trocas, em que cada tribo
oferece os produtos de sua especialidade (arquetipicamente, os Aruak, a cerâmica; os tupis, o arco
preto; e os karib, os colares de caramujo).
O ritual é encerrado com o lançamento do tronco do Kuarup na água. Houve, porém, no
Kuarup do Orlando, uma inovação: entre o Moitará e o lançamento dos toros na água, houve a
reunião de boa parte dos presentes, para a apresentação de um vídeo. Sentados frente à tela nas
poucas cadeiras disponíveis, o Embaixador do Canadá e a família Villas Boas. O vídeo falava da
possível poluição das nascentes do Xingu e, após os chefes yawalapiti, falou um visitante Xavante,
filho do chefe e ex-parlamentar Mário Juruna e o representante de uma ONG, ao que parece apoiada
pela Embaixada canadense, interessada em avaliar a possível poluição das nascentes do Xingu.
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Embora o evento tenha representado uma quebra da seqüência do ritual tradicional, não
aconteceu uma ruptura com sua lógica, como apontaram alguns puristas. A inclusão de um espaço
para os caraíbas em um ritual de articulação política entre sociedades distintas, apenas reforçou o
próprio ritual como instrumento de diálogo e articulação interétnica.
IV - CONCLUSÕES: DOS UNIVERSAIS NA VIDA RELIGIOSA
É inevitável o paralelo com os rituais esportivos mortuários pan-helênicos, como o que
Aquiles manda celebrar em memória de Pátroclo. De fato, no mundo do Xingu, apenas no Kuarup,
acontecem os jogos pan-xinguanos. Existem, no Xingu, outros rituais intertribais, como o Javari, que
opõe, em geral, duas tribos (às vezes, uma tribo menor pode se associar a uma maior, caso em que o
ritual seria realizado por três tribos). O único ritual, porém, que reúne todas as tribos é o Kuarup, o
que dele faz a própria expressão da identidade comum das tribos do Alto Xingu. E não é por acaso,
que pretende restaurar a ordem perdida pela morte de uma pessoa que seja uma referência política e
religiosa. Tal status, o mais alto, é adquirido por via de sua participação na vida intertribal. O kwarup
afirma a comunidade formada por todos os xinguanos e sua origem comum, expressa na narrativa
que descreve a tentativa de Mawutzinim de trazer os mortos à vida. O morto do Kuarup está associado
aos índios desta narrativa primordial.
A tentativa de ressurreição e o pranto são sucedidos pela excitação das lutas e das trocas.
A ações rituais relativas ao indivíduo morto são superadas pela vida coletiva, expressa na emoção
alegre compartilhada. A idéia da convivência com os vivos sucedendo à morte é a própria idéia de
continuidade da vida, de vitória sobre a morte, pela vida em comunidade, como aparece, também, no
cristianismo. Está muito presente no Kuarup, a idéia da partilha da alegria, do jogo, do alimento
comum e da troca de objetos; a idéia de que os seres humanos devem consolar-se e alegrar-se uns
com os outros, após a perda de alguém. Há a súbita alternância entre tristeza e alegria. Assim, os
índios do Xingu dizem que o Kuarup existe para “não sentir saudade”, no sentido de “não ter mais
sofrimento com a perda”.
Na liturgia católica, um momento crucial é aquele que precede a comunhão, isto é, afirmase a idéia de comunidade pela partilha do alimento, fazendo dos presentes “um só corpo e um só
espírito”, uma unidade. É a chegada do Espírito, que a todos reúne, agregando os indivíduos em um
ser coletivo. Esta mesma idéia da comunidade dando continuidade à vida, mantendo vivo o Senhor
“no meio de nós”, está presente em vários trechos do Evangelho. As narrativas cristãs referentes às
aparições após a morte, em que os apóstolos atestam a ressurreição de Cristo, são vividas pelos
participantes de uma missa, como um ato adesão de fé ou de emoção compartilhada induzida pelo
enredo da narrativa, como a própria aparição teria sido para os apóstolos. A tristeza é substituída pela
certeza da continuidade da vida, reciprocamente confirmada pelos membros da assembléia. Há,
também, a troca súbita da tristeza pela alegria. O conceito de ressurreição é estendido a todos os
mortos, na medida em que Cristo é considerado o paradigma do humano.
O Kuarup é, em sua essência, uma forma análoga de superar a morte pela vida em
comunidade. Pela emoção compartilhada que tem sua maior e solene referência na reunião pacífica e
lúdica de todas as tribos da região.
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Alguns símbolos comuns, “hierofanias” no conceito de Eliade, repetem-se na nossa e na
cultura xinguana. Um deles é a idéia do vento trazendo o sobrenatural, como a suave brisa divina que
visitou o profeta Elias e que levou ao farfalhar de folhas, que Piracumã e Aretana ouviram, antes da
verem de seu pai. Já foi visto, também, o papel das carpideiras que, desde os tempos do Velho
Testamento integram as tradições dos povos mediterrâneos.
A seqüência da narrativa xinguana do Kuarup é a seguinte: morte do indivíduo, seguida
pela regeneração incompleta da matéria, seguida por sua ressurreição na comunidade. Na narrativa
cristã a seqüência é: morte do indivíduo, regeneração completa da matéria em outro plano, seguida
por sua ressurreição na comunidade. Os desenlaces são, portanto, semelhantes.
É corriqueira a visão de que os povos “primitivos” seriam “politeístas”, enquanto os
povos “civilizados” seriam “monoteístas”. Ao contrário, a vida religiosa dos índios do Xingu é mais
claramente “monoteísta” ou menos “politeista”, que muitas versões populares do cristianismo, pois
além de Mawutzinim, os únicos outros seres religiosos importantes são, em uma posição muito
secundária, seus descendentes, os gêmeos Sol e Lua, típicos das narrativas indígenas Sul-Americanas.
Depois vêm os “mamaés”, espíritos potencialmente danosos associados a animais, plantas e objetos
que, são outra coisa.
Mawutzinin, por ter criado a vida e a sociedade, e pelo fato de daí em diante não alterar
mais o curso dos acontecimentos, é mais bem entendido como uma “causa final”, a mesma concepção
de Deus de Aristóteles. Já os mamaés, embora invisíveis, são “sobrenaturais” apenas para alguns
antropólogos, pois para os xinguanos são forças naturais, que feiticeiros perversos manipulam para
causar a doença e a morte. Após o diagnóstico dos pajés com a identificação do mamaé causador de
uma doença, é levado um ritual específico relativo àquele mamaé, com o presumível efeito de controle
do mal que causou.
O contraste maior entre a religião dos xinguanos e o cristianismo vem da relação com
Deus: embora Mawutzinin seja um ser antropomorfo, não é admitida a possibilidade de sua
comunicação pessoal com os seres humanos. Enquanto os cristãos rezam, individual ou coletivamente,
isto é, conversam com Deus, não há, no Xingu, a idéia de um Deus pessoal com a qual o indivíduo se
comunica e que pode alterar o curso dos acontecimentos, de acordo com as preces que lhe são
apresentadas. É, possivelmente, desta possibilidade de Deus alterar a história que, mesmo sem
reconhecer tal relação, autores como Eliade, por exemplo, extraem a idéia de “tempo linear”. O texto
litúrgico nos rituais xinguanos é padronizado e de atribuição exclusiva do par de cantadores, sem que
nada se peça à divindade. Os demais índios dançam em conjunto, alguns tocam flautas, mas não há
o correspondente à oração na forma de pedido e especialmente de pedido individual. A religiosidade
acontece pela participação e partilha nas atividades do grupo.
Outra diferença importante é a idéia de pecado individual. Já foi visto que os xinguanos
têm, como os cristãos, a idéia de imperfeição, de “queda”, quando o kuarup é interrompido por
transgressão da regra da abstinência sexual por alguém durante o ritual. Esta marca do “pecado”
coletivo é comum à narrativa xinguana e à narrativa do judaica do Genesis. Na visão xinguana, não
existem, porém, as idéias de pecado e culpa individuais. A transgressão à norma, embora possa
ocorrer, no caso de quebra de tabus e outras regras, é explicada por acidentes, pela inevitável fraqueza
humana ou por engano. Não há a decisão consciente de fazer o mal, mesmo porque idéias como as de
consciência individual e livre arbítrio são estranhas à filosofia xinguana. O grande ato perverso, a
feitiçaria, sempre individualmente executada, de forma secreta, acontece (se de fato existir) pela
transmissão hereditária da maldade, pois um feiticeiro tende a ser concebido como filho de outro
feiticeiro. A punição à feitiçaria é social e jurídica e não da ordem divina. Deus não castiga nem
amedronta os índios do Xingu.
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Em que pesem tais diferenças, a análise acima reforça a tese da continuidade entre
diferentes tradições religiosas. Não se sustenta, frente ao caso do Xingu, idéias como a de Eliade de
que o homem religioso seria caracterizado por uma noção de tempo não linear, em contraste com o
homem não religioso, que adotaria o tempo histórico linear, que distinguiria o sagrado do profano. O
contraste entre o tempo linear e o não linear é uma questão de crença na capacidade de intervenção
divina no curso dos acontecimentos e não um dado comprovado empiricamente; reflete a abordagem
de diferentes religiões e não da presença ou não da religião em uma dada sociedade. Não se sustentam,
da mesma forma, idéias como a de Eliade ou de Durkhein, relativas à separação nítida entre o
sagrado e o profano. Tudo tem uma relação e uma continuidade com o sagrado, o que nos aproxima
de Frazer.
Ainda hoje, o sagrado está muito mais presente do que se pode supor. Por vezes, como
no caso do catolicismo, o ano é mapeado em diferentes tempos, como o Advento, a Quaresma ou o
“Tempo Comum”. Também, o dia é dividido, como lembram os sinos da hora do “Angelo”.
Não faz muito, a sociedade brasileira regia-se por um tempo sagrado que permeava toda
a vida das pessoas, ditava-lhes o ritmo e condicionava-lhes a emoção: a Quaresma era para reflexão;
na Semana Santa chorava-se a perda de uma pessoa muito querida, seguida de uma explosão de
alegria com a Páscoa; no Advento, a espera do Natal. As crianças da infância do autor deste artigo,
em uma rua da Gávea, bairro de classe média do Rio de Janeiro, paravam de brincar, todos os dias,
para rezar a Ave Maria, na hora própria.
Hoje, quando a descristianização avança a passos rápidos, talvez estejamos vivendo um
novo tempo sagrado, com novos ídolos e rituais característicos da idade da comunicação de massas.
Talvez estejamos - como os xinguanos - tão submersos neste novo tempo sagrado, que nem sequer o
percebemos como tal.
A percepção da unidade dos sentimentos e motivações humanas, como demonstra a
cerimônia do Kuarup, pode nos levar a sentir esta silenciosa presença de uma dimensão sagrada,
oculta, não percebida, entre nós.
NOTAS DE REFERÊNCIA
Levy-Bruhl acreditava na infantilidade e, portanto, na inferioridade da mentalidade
primitiva. Franz Boas teve um importante papel na formulação do relativismo em antropologia.
2
Kwaríp, Mito e Ritual no Alto Xingu, de autoria de Pedro Agostinho da Silva(Edusp, )
3
Xingu: os índios, seus mitos, de Orlando Villas Bôas e Cláudio Villas Bôas - Ed. Kuarup)
4
George Zarur, Parentesco, Ritual e Economia no Alto Xingú. Brasília, Funai, 1975.
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