Tom Stoppard Agora a Sério versão de pedro mexia lisboa: tinta‑da‑ china MMX Personagens max charlotte henry annie billy debbie brook © 2010, Edições tinta‑da‑china, Lda. Rua João de Freitas Branco, 35A 1500‑ 627 Lisboa Tels: 21 726 90 28/9 | Fax: 21 726 90 30 E‑mail: [email protected] www. tintadachina.pt Título original: The Real Thing © 1982, Tom Stoppard Título: Agora a Sério Autor: Tom Stoppard Versão: Pedro Mexia Posfácio: Pedro Mexia (Em todos os excertos da peça de John Ford, foi utilizada a tradução de Aníbal Fernandes em Má Sorte Que Ela Fosse Puta, Estampa, 1983.) Revisão: Tinta‑da‑china Capa: Vera Tavares Composição: Tinta-da-china 1.ª edição: Abril de 2010 isbn 978-989-671-032-3 Depósito Legal n.º 308699/10 quarenta e tal à volta de 35 quarenta e tal trinta e tal à volta de 22 17 25 The Real Thing estreou a 16 Novembro de 1982, no Strand Theatre, Londres, com direcção de Peter Wood. A versão portuguesa, Agora a Sério, estreou em Abril de 2010, no Teatro Aberto, em Lisboa. Intérpretes: Pedro Lima [Max] São José Correia [Charlotte] João Reis [Henry] Ana Brandão [Annie] Nuno Casanovas [Billy] Diana Costa e Silva [Debbie] Afonso Lagarto [Brook] Versão e encenação: Pedro Mexia Assistente de encenação: Marta Dias Cenário: João Mendes Ribeiro Figurinos: Dino Alves Luz: Melim Teixeira Acto I cena 1 max, charlotte max não tem de ser fisicamente impressionante, mas não o que‑ reríamos ter como inimigo. charlotte não tem de ser especial‑ mente atraente, mas quereríamos logo ser amigos dela. Sala de estar. Uma porta parcialmente aberta leva a um hall que não vemos e a uma porta de entrada que também não ve‑ mos. Há uma ou duas portas para outras divisões. max está sozinho, sentado numa cadeira confortável, com um copo de vinho na mão e uma garrafa aberta ao seu alcance. Está a usar um baralho de cartas para construir um edifício em pirâmide numa mesa baixa à sua frente. Acrescenta mais um par de cartas, unidas de modo a segurarem‑se mutuamente, e a pirâmide vai bem. Através da porta do hall, ouvimos uma chave na fechadura. A luz que vem daí acende‑se quando a porta se abre. max não reage à abertura da porta, que está localizada mais atrás dele do que à frente. max Não batas com… [A porta de entrada bate, sem violência. A pirâmide de car‑ tas desfaz‑se.] [Superfluamente, filosoficamente.] … a porta. [charlotte, no hall, com um casaco, espreita pela porta, [9] tom stoppard agora a sério só o tempo de dizer duas palavras, e depois desaparece ou‑ tra vez.] charlotte O quê, desde ontem? charlotte Sou eu. [max deixa as cartas onde elas caíram. Bebe. Não olha em frente. charlotte, já sem o casaco, regressa à sala com uma ma‑ linha e um saco de plástico de uma loja de aeroporto. Pousa a mala, dirige‑se a max por trás e dá‑lhe um beijo na nuca.] Olá. max Bem, alguma coisa te fez bem. Como está Basel? max Olá, minha amante. charlotte Isso é bonito. Dantes chamavas‑me amante. [Deixa o saco de aeroporto no colo dele e dirige‑se à mala.] max Ah, és tu. Pensei que fosse a minha amante. [Ele não abre o presente. Põe o saco no chão, ao pé da cadeira.] Onde é que estiveste mesmo? [A pergunta surpreende‑a. Interrompe o gesto de pegar na mala — talvez para a levar para o quarto, e deixa‑a onde está.] charlotte Quem? [max finge que ficou intrigado com a pergunta.] max Basel. Dizes Basileia? Eu digo Basel. charlotte Ah, sim. Eu digo Basel. max [Cantarola] «Let’s call the whole thing off…» [charlotte estuda‑o num relance, tentando perceber.] charlotte Bem, na Suíça, claro. Não me ouviste dizer isso? [max olha finalmente para ela.] charlotte Queres uma bebida? [Ela repara no copo, na garrafa e no comportamento dele.] [Com mordacidade afectuosa.] Outra bebida? [Ele sorri para ela, bebe o que tem no copo e levanta o copo na direcção dela. Ela pega no copo, pega num segundo copo, deita vinho em ambos e dá a max o copo dele.] max Estás com bom aspecto. Fez‑te bem. max Como está a velha Basel? Em forma? [10] [11] Cena 2 henry, charlotte, max, annie henry é amigável, mas sabe bem o que quer. charlotte é ainda mais amigável, e sabe ainda melhor o que quer. max é simpático, pouco assertivo, conciliador. annie é muito parecida com a mu‑ lher que charlotte estava a representar. Uma sala de estar. Um gira‑discos, estantes com discos. Jornais. O gira‑discos toca. henry, com várias capas de discos à sua volta, procura uma can‑ ção em especial. Há portas para o hall, a cozinha e o quarto. charlotte entra, descalça, com o roupão de henry, que é demasiado grande para ela. Está despenteada, porque vem da cama, e ainda desconexa. henry olha brevemente para ela. henry Olá. [charlotte avança sem dizer nada, senta‑se e olha em volta, com ar enfastiado.] charlotte Meu Deus. henry Achei melhor deixar‑te dormir. Queres um café? [23] tom stoppard charlotte Não sei. Que desarrumação. [Talvez referindo‑se às pi‑ lhas de discos, lânguida.] henry Não te preocupes, não te preocupes... [henry continua à procura no meio dos discos.] charlotte Acho que vou ficar na cama. henry Eu liguei ao Max. agora a sério charlotte Ainda estás a fazer a tua lista? henry Hum, hum. charlotte Tens um livro favorito? henry É o Finnegans Wake. charlotte E já o leste? charlotte O quê? Porquê? henry Lembrei‑me dele. Ele vem aí. charlotte [Com veemência.] Não o quero ver. henry Desculpa. henry Não sejas arisca. [Desce o braço do gira‑discos e ouve uns compassos de um Strauss dos Alpes — um sub‑ Strauss. Depois levanta de novo o braço do gira‑discos.] Não, não. Que diabo. [Arruma o disco.] Lembras‑te quando es‑ távamos em Dover ou em Deauville, e havia uma pista de dança ao ar livre mesmo debaixo da nossa janela? charlotte Não. charlotte A sério, Henry. henry Espera, espera. Acho que encontrei. [Ele tira do gira‑discos o disco pop que entretanto já tinha terminado e põe um novo disco...] henry Lembras, pois. Eu estava a escrever a minha peça so‑ bre o Sartre e havia uma maldita orquestra que tocava sempre o mesmo a cada vinte minutos e eu pus‑me a gritar da janela, e o gerente do hotel... [24] [25] Sobre Agora a Sério O teatro de Tom Stoppard sempre tinha sido frio, erudito, cerebral, surreal. Uma mistura de wit inglês com absurdis‑ mo eslavo. A meio dos quarenta, porém, o dramaturgo de‑ cidiu que era tempo de escrever sobre si mesmo, por mais que o decoro o inibisse. The Real Thing / Agora a Sério é nitidamente uma peça pessoal, e para os padrões de Stoppard equivale a uma es‑ pécie de nudez em público. Mesmo a aproximação realista de Night and Day (1978) não fazia antever um tal mergulho biográfico. Cansado de ser autor de «clever plays», de ser isso e apenas isso, Stoppard criou enfim uma personagem que é um alter-ego assumido. Verdade seja dita, o ponto de partida desta peça é bas‑ tante técnico e mental: jogos pirandellianos de realidade e ficção, teatro dentro do teatro, cenas que se repetem e se espelham. Mas o motivo é naturalista por excelência, con‑ vencional mesmo: o adultério burguês. Agora a Sério, no seu enredo e nos seus artifícios, é boulevard. Boulevard de luxo, sem dúvida, mas marcadamente distante das farsas elitistas dos anos 1970. Henry, o dramaturgo dividido entre duas actrizes, é con‑ frontado com a perda das suas certezas, do seu ascenden‑ te, e com a insuficiência da sua retórica e do seu sarcasmo. [185] temas eruditos e destreza cómica. As mais importantes são Hapgood (1988), Arcadia (1993), Indian Ink (1995), The Inven‑ tion of Love (1997). Em 2002 publica a ambiciosa trilogia The Coast of Utopia, épico sobre os intelectuais radicais rus‑ sos de oitocentos; e em 2006 estreia Rock ‘n’ Roll, sobre os dissidentes checos da década de 1960. Adaptou Tchékhov, Schnitzler, Pirandello, Lorca e Havel. O seu teatro está reunido em quatro volumes editados pela Faber and Faber. Escreveu para cinema, nomeadamente Brazil, O Império do Sol e A Paixão de Shakespeare. O último valeu-lhe um Óscar de Melhor Argumento Original. Dirigiu a versão cinema‑ tográfica de Rosencrantz and Guildenstern Are Dead (1990), com a qual venceu o Leão de Ouro do Festival de Veneza. É há décadas activista de organizações de direitos humanos e da liberdade de expressão. Tem quatro filhos de dois casa‑ mentos. Vive em Londres. Foi condecorado com o título de Sir Tom Stoppard em 1997. P.M. foi composto em caracteres Hoefler Text e impresso na Guide, Artes Gráficas, em papel Besaya de 90 g, numa tiragem de 700 exemplares, no mês de Março de 2010.