- A CARNE – JÚLIO RIBEIRO – ANÁLISE - O AUTOR: Júlio Ribeiro Vaughan, mineiro de Sabará, foi um escritor e gramático brasileiro. Polêmico, abolicionista, anticlerical e representante do naturalismo, movimento fundado pelo francês Émile Zola. - O CONTEXTO LITERÁRIO: O Realismo-Naturalismo é fruto da realidade material, racional produzida pela II Revolução Industrial, reflete a visão positivista de mundo que definiu o método de observação e análise dos fatos. Marcado pela objetividade, o movimento representa a ruptura com o mundo idealizado dos românticos, com a visão crítica das instituições burguesas, do clero, e com consciência da problemática social. O Realismo-Naturalismo reflete influência das leis deterministas e das teorias das Ciências Naturais, especialmente o Darwinismo, em moda na época. O Realismo-Naturalismo representa o mundo real, seus problemas, a partir do processo de observação da vida, para analisar os conflitos sociais e individuais, minuciosamente, apontando as causas e consequências. O objetivo da análise da realidade visa ao reformismo crítico, apontar os problemas da sociedade e do indivíduo com a finalidade de conscientização, trata-se de Arte engajada, a Arte com finalidade de transformar não só o leitor, mas todo o contexto. Os autores do período apresentam em sua obra temas polêmicos como o parasitismo social, o adultério, a luta pela ascensão social, o anticlericalismo, a exploração do ser humano, as questões políticas de seu tempo de forma crítica, irônica. Os realistas, portanto, retratam o mundo que vivenciam, a contemporaneidade, ao contrário dos românticos, que preferiam o passado histórico e espaços recriados pela imaginação. Os personagens do Realismo-Naturalismo não são idealizados, predominam neles os defeitos: a hipocrisia, o egoísmo, a mediocridade, a mesquinharia. O comportamento do indivíduo é determinado por circunstâncias externas a ele, meio raça e momento, não há livre arbítrio, e as relações humanas pautam-se pelo jogo de interesses, pela lei do mais forte em que os fins justificam os meios. É uma visão pessimista da vida e do ser humano, sem a grandiosidade e o amor que movia o Romantismo. O discurso realista marca-se pela objetividade, pela linguagem clara e precisa e revela um mundo e um indivíduo pequeno, incapaz de modificar as circunstâncias que o envolvem. Na segunda metade do século XIX, houve o surgimento e o desenvolvimento de importantes áreas das Ciências Humanas, especificamente a Psicologia, a Sociologia e a Linguística. O reconhecimento destas ciências representou um salto importante para a compreensão dos mecanismos da mente humana, das relações interpessoais e intersociais. Influenciadas pelas teorias da Biologia, condicionaram o comportamento do indivíduo e dos grupos sociais às condições do ambiente e, se o tempo provou que as questões humanas e sociais são mais complexas que a sua relação com o ambiente em que se desenvolvem, representaram o primeiro passo para a compreensão da vida humana. Influenciado pelas teorias das Ciências Naturais, o Naturalismo significa momento de impactante renovação do conhecimento humano, porque o período implantou método de estudo do comportamento humano baseado em pesquisa científica, em que a observação e comprovação dos fatos por pesquisas, experiências e análise é o ponto principal do conhecimento. O Positivismo, as descobertas das Ciências Naturais – Darwin, Lamarck e Mendel, levaram o intelectual da época a abandonar a imaginação, a fantasia dos românticos e criar método criterioso para análise do indivíduo e da sociedade, estudando-os como se fosse um estudo de anatomia, dissecando o corpo individual e social em busca das causas e consequências de suas anomalias. Estudar o Naturalismo é compreender a importância das pesquisas para qualquer campo do conhecimento. A análise dos conflitos sociais da época será feita pelos autores do Naturalismo, visto que o Realismo teve como tema recorrente os conflitos gerados nas relações pessoais dentro do universo burguês, a camada alta. O Naturalismo surgiu na França em 1867, com o romance Thérèse Raquin, de Émile Zola, uma década após o início do Realismo. Zola criou o conceito de romance experimental, embasado na Medicina experimental de Claude Bernard, que propunha a anatomia rigorosa do corpo em busca da causa da doença. Na Literatura, os autores dissecam a sociedade em busca da origem do que eles consideravam doenças sociais. A divisão da literatura do período em Realismo e Naturalismo observou-se na França, com Zola e sua obra prima, Germinal, e no Brasil, com Aluísio Azevedo. Em Portugal, as características naturalistas dissolveram-se no Realismo de Eça de Queirós, especificamente em O Crime do Padre Amaro, O Primo Basílio e Os Maias. A perspectiva naturalista dos problemas revela forte influência das ciências naturais, daí o nome Naturalismo. A presença de Darwin, Lamarck e Mendel nota-se na construção dos personagens e dos conflitos e gera as principais marcas do movimento, os autores do Naturalismo veem o comportamento humano numa ótica animal, o indivíduo regido por seus instintos primitivos, é o zoomorfismo, predominam os grupos, a ideia de bando, pessoas condicionadas pelo ambiente, em que os mais fortes prevalecem, é a lei da seleção natural. Os personagens são, portanto, planos, sem profundidade psicológica, porque se comportam como animais. Acentua-se também o Determinismo, o social, o biológico, e o histórico; o indivíduo perde o livre arbítrio, é fruto do meio, da raça e do momento. A teoria determinista gera visão de ser humano, vista pelo olhar do século XXI, marcada por preconceito, já que implica a ideia do europeu superior, do negro inferior e de que toda forma de mestiçagem é uma aberração; reforça a ideia do brasileiro sensual e preguiçoso, devido ao clima tropical e ao caráter mestiço de nosso povo. Outra característica naturalista vista hoje como preconceituosa é a forma como os autores encaram os problemas da sociedade: a prostituição, o adultério, a homossexualidade são vistos como patologias, como doenças sociais. Os autores do período seguem a lógiObserve que o que a sociedade considera hoje como preconceito, na época, eram ideias aceitas, eram verdades consensuais. A influência positivista percebida no Naturalismo refere-se à preocupação de observar os problemas retratados nos romances, o autor procura viver os problemas ou pesquisálos para a composição de suas obras. Este aspecto se confirma no Brasil nos romances de Aluísio Azevedo que escreveu O Mulato baseado em fatos reais da sua cidade natal, São Luís – MA, e conviveu em cortiços para a construção de sua obra prima. A observação da realidade reflete na linguagem dos romances, fruto de pesquisa, segue a variedade do grupo social retratado, normalmente explorando a oralidade, dando à obra mais veracidade, maior compromisso com a realidade retratada. - A Carne – resumo: O romance naturalista A Carne, de Júlio Ribeiro, é uma das mais controversas obras de nossas letras. Tendo sua primeira edição sido publicada em 1888, este romance desfrutou de reação ambivalente do público e da crítica de seu tempo, impondo um constrangimento indisfarçável à sociedade que vivia durante a transição do Segundo Reinado para a República no Brasil. Este mal-estar, todavia, veio acompanhado de sucesso entre os leitores, tornando-se Júlio Ribeiro um dos mais populares romancistas da época, principalmente entre os adolescentes. Nesse sentido, os anos que se seguiram à publicação de A Carne imprimiram-lhe marcas de fama e infâmia levantando polêmicas e escândalos acerca de sua temática erótica e acirrando discussões sobre a escola naturalista a que Júlio Ribeiro pertencia. Abordando temas polêmicos para a época, o autor granjeou com esta obra grande polêmica, em especial com o clero católico. Afora a questão moral, também traz referência ao impacto causado pela obra de Charles Darwin nas pessoas comuns. Narrando uma paixão proibida, versa sobre assuntos que apenas no final do século XX passaram a ser legalizados no Brasil – como por exemplo o divórcio. Surpreendendo pelo teor, A Carne expõe os anseios sexuais femininos, sobrepujando o lado racional. - A Carne – Romance de tese: Influenciado pelo desenvolvimento das ideias científicas da sua época, principalmente nas ciências biológicas e sociais, o Naturalismo, movimento literário ao qual a obra em análise pertence, tenta explicar de forma materialista ou científica, os fenômenos da vida e o comportamento humano. Buscando explicar os fatos sociais e pessoais através do determinismo, por relações de causa e efeito das ciências. Em “A Carne” não é diferente. As personagens são resultados de sua decência e condições em que vivem. Assim como outras obras naturalistas, é chamada Romance de Tese, pois apresenta um ponto de vista, e tenta demonstrá-lo através dos fatos narrados. Neste caso, o autor procura assumir uma postura de cientista que observa experimentos. É objetivo, demonstrando distanciamento e impessoalidade no trato dos fatos do romance. A obra é narrada em 3ª pessoa, com um narrador pressuposto onisciente neutro, sabe tudo o que se passa, conhece até mesmo o desejo e sentimentos das personagens. Porém é extradiegético, ou seja, não faz parte do enredo/discurso. Trata-se de um romance naturalista, onde o autor aborda temas polêmicos da época com divórcio, amor livre e um novo papel para a mulher na sociedade. O livro narra a história de Helena, chamada Lenita, cuja mãe morrera em seu nascimento. O pai a educara, ministrando-lhe uma instrução acima do comum. Lenita era uma garota especial, cheia de vida. No entanto, aos 22 anos, com a morte de seu pai, torna-se uma jovem extremamente sensível e com saúde abalada. Decide então viver na fazenda do coronel Barbosa, tutor de seu pai. Lá conhece Manuel Barbosa, filho do coronel. Aos poucos os dois firmam uma amizade sólida, que, com o passar do tempo vai revelando uma forte paixão, um forte desejo, o da “carne”. Esse amor é marcado por encontros e desencontros, prazer e violência, desejo e sadismo, uma verdadeira batalha entre a carne e a mente. Os personagens, ao se entregarem, passam da posição de seres intelectualmente superiores para a de animais com consciência do que fazem, como pode ser observado na passagem: “A palavra amor é um eufemismo para abrandar um pouco a verdade ferina da palavra cio. Fisiologicamente, verdadeiramente, amor e cio vêm a ser uma coisa só” (1972, p.137). E é tal consciência que os perturba: a de que são realmente animais, guiados pela carne e de que corpo e mente não se equiparam, mas formam uma cadeia hierárquica. Em seus momentos finais, paralisado pelo veneno que se auto aplicara, Barbosa percebe que o cérebro e toda sua inteligência de nada valia sem o corpo A história caminha para um trágico desfecho a partir do momento em que Lenita encontra cartas de outras mulheres, guardadas por Manuel, o que a faz sentir-se traída, decidindo abandoná-lo. Estando ela grávida de três meses, casa-se com outro homem. Manuel, não suportando a traição, suicida-se, o que comprova o resultado final do duelo entre a carne e a mente. No início, triunfam os prazeres da carne, no trágico final, os desenganos da mente. A Carne apresenta traços românticos, realistas e naturalistas, e a narrativa estabelece um diálogo entre esses aspectos, procurando tornar preponderante o Naturalismo, como forma de fortalecer essa tradição dentro de nosso sistema literário. Essa disputa manifesta-se na superfície linguística do romance e nos elementos folhetinescos da narrativa. Alguns críticos condenaram a obra e ressaltaram aspectos negativos, questionando a coerência da personagem e censurando suas ações. A despeito dessas leituras, nota-se que o A Carne continua a ser lido e discutido, o que evidencia sua produtividade e demanda estudos que possam considerar esta obra não como romance monstruoso ou inexistente, mas como um texto problemático que mostra as escolhas estilísticas e temáticas de um escritor a fim de integrar-se ao cânone ocidental.