Legalidade na interrupção do serviço de fornecimento de energia elétrica por inadimplemento AUGUSTO DANIEL DA SILVA ANNA PAULA B.DE ARAUJO DANIELE EZAKI SAMI HUSSEIN EL KUTBY TIAGO DAMASCENO BERNARDINO FERNANDA ALMEIDADE DE MELO PROFESSORA ORIENTADORA PARA INICIAÇÃO CIENTÍFICA Tathyana Chaves de Andrade Resumo O tema explanado neste trabalho é a interrupção do fornecimento de energia elétrica por inadimplemento e tem como norte mostrar a prática e a realidade no que se refere à legalidade e à ilegalidade na interrupção do fornecimento de energia elétrica por inadimplemento. Para tanto, estudamos a relação jurídica entre consumidor e prestador de serviço público; explanamos as normas reguladoras que tratam do direito do consumidor e do fornecimento de energia elétrica; analisamos julgados e resoluções da ANEEL que tratam da interrupção do fornecimento. Nossa problematização pauta-se na interrupção do fornecimento de energia elétrica por inadimplemento, atingindo, assim, a Dignidade da Pessoa Humana e, por conseqüência, demais princípios referentes à prestação dos serviços públicos. Analisaremos a legalidade quanto à interrupção do fornecimento de energia elétrica e a posição dos tribunais superiores sobre o assunto. Veremos que a prestadora de serviços públicos deve obedecer às normas e aos princípios estruturantes de nosso ordenamento jurídico, garantindo a continuação do serviço, por ser essencial e prestado por concessionária pública. Nossa metodologia de pesquisa foi desenvolvida com base em jurisprudências, artigos da internet e doutrinas. Palavras-chave : legalidade ; concessionária; interrupção no fornecimento de energia elétrica; “corte”. 1 1. Introdução Uma das situações mais comuns que ocorre atualmente e que não é pacifica entre os doutrinadores e a jurisprudência é a interrupção de fornecimento de energia elétrica por inadimplemento. Faz-se necessária uma explanação sobre: serviços públicos; concessionárias; rol de serviços essenciais, conforme a lei de greve; normas regulamentadoras na distribuição de energia elétrica, conforme Agência ANEEL – Resolução n.º 456. É imprescindível esta explanação, para que possamos ter uma visão mais apurada de como e de que forma esse serviço de utilidade pública fere o princípio da legalidade quando há interrupção do seu fornecimento ao consumidor por falta de pagamento. Vale salientar que a energia elétrica é um serviço público, fazendo-se mister conceituá-lo. 2 . Serviço público Conforme Hely Lopes Meirelles, o “conceito de serviço público não é uniforme na doutrina, que ora nos oferece uma noção orgânica, só considerando como tal o que é prestado por órgãos públicos; ora nos apresenta uma conceituação formal, tendente a identificálo por características extrínsecas; ora nos expõe um conceito material, visando a defini-lo por seu objeto. Realmente, o conceito de serviço público é variável e flutua ao sabor das necessidades e contingências políticas, econômicas, sociais e culturais de cada comunidade, em cada momento histórico, como acentuam os modernos publicistas. Eis o nosso conceito: Serviço público: é todo aquele prestado pela administração ou por seus delegados, sob normas e controles estatais, para satisfazer necessidades essenciais ou secundárias da coletividade ou simples conveniências do Estado. Fora dessa generalidade não se pode, em doutrina, indicar as atividades que constituem serviço público, porque variam segundo as exigências de cada povo e de cada época. Nem se pode dizer que as atividades coletivas vitais que caracterizam os serviços públicos, porque ao lado destas existem outras, sabidamente dispensáveis pela comunidade, que são realizadas pelo Estado como serviço público. 2 Também não é atividade em si que tipifica o serviço público, visto que algumas tanto podem ser exercidas pelo Estado quanto pelos cidadãos, como objeto da iniciativa privada, independentemente de delegação estatal, a exemplo do ensino.... O que prevalece é a vontade Soberana do Estado, qualificando o serviço como público ou de utilidade pública, para sua prestação direta ou indireta, pois serviços há que, por natureza, são privativos do poder público, e só por seus órgãos podem ser executados...” 1 Assim, consoante definição esclarecedora de Hely Lopes Meirelles, entende-se que o Estado deve sempre ter como meta que o serviço público é prestado para o público, e que qualquer outro prestador de serviço público (mesmo que não seja o próprio Estado) deverá prestá-lo da mesma forma, atendendo a princípios legais de direito público. Nessa linha, transcrevemos as palavras de Anhaia Mello: “Deve o Estado no exercício do poder inerente à sua sabedoria, fixar tarifas, determinar standards de serviço, fiscalizar a estrutura financeira de todas as empresas de serviços de utilidade pública.”2 Quando se deixa de observar um dos princípios que regem a administração pública, qualquer que seja o serviço prestado (direta ou indiretamente) pelo Estado, pode-se afirmar que tal serviço será irregular; portanto, passível de reparação. Importante explanarmos algumas considerações sobre o serviço prestado indiretamente pelo Estado, principalmente pelas concessionárias de serviços públicos. 2.1. Concessionária de serviço público A prestação de serviço de distribuição de energia elétrica é uma concessão e, conforme ensinamentos de Hely Lopes Meirelles, pode ser definida da seguinte forma: “É a delegação contratual, na forma autorizada e regulamentada pelo executivo. O contrato de concessão é ajuste de direito administrativo, bilateral, oneroso, comutativo e realizado intuitu personae. Com isso se afirma que é um acordo administrativo, com vantagens e encargos recíprocos, no qual se fixam as condições da prestação do serviço, levando-se em conta o interesse coletivo na sua obtenção e as condições pessoais de quem se propõe a executá-lo por delegação do poder concedente. Como o serviço, apesar de concedido, continua sendo público, o poder concedente ─ União, Estado-membro, Município ─ nunca se despoja do direito de explorá-lo direta ou indiretamente, ele apenas 1 Meirelles, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro, 1993, p. 295. 2 www.mp.rs.gov.br 3 delega a execução do serviço, nos limites e condições legais ou contratuais. Nas relações com o público o concessionário fica adstrito à observância do regulamento e do contrato, que devem estabelecer direitos e deveres também para os usuários, para defesa dos quais dispõe o particular de todos os meios judiciais comuns, notadamente a via cominatória, para exigir a prestação do serviço nas condições em que o concessionário se comprometeu a prestá-lo aos interessados em geral.” 3 O contrato de concessão é o documento escrito que encerra a delegação do poder concedente; define o objeto da concessão; delimita a área, a forma e o tempo da exploração; estabelece os direitos e deveres das partes e dos usuários do serviço. A alteração unilateral do contrato pode ocorrer pela administração, mas essa alteração restringe-se a cláusulas regulamentares ou de serviço, sempre para melhorar o atendimento do público. Além disso, toda vez que, ao modificar a prestação do serviço, o concedente alterar o equilíbrio econômico e financeiro do contrato, terá que reajustar as cláusulas remuneratórias da concessão, adequando as tarifas aos novos encargos acarretados ao concessionário. A fiscalização do serviço concedido cabe ao poder público concedente, que é o fiador de sua regularidade, da boa execução perante os usuários. Visto anteriormente que serviço público é para o público, é dever do concedente exigir sua prestação em caráter geral, permanente, regular, eficiente e com tarifas módicas, princípios esses relativos aos serviços públicos. A remuneração da concessionária é feita por tarifa (preço público), e não por taxa (tributo). E a tarifa deve permitir justa remuneração do capital, o melhoramento e a expansão do serviço, assegurando o equilíbrio econômico e financeiro do contrato. Os direitos do usuário devem ser claramente assegurados no contrato de concessão, por ser ele o destinatário do serviço concedido. A ausência de cláusulas em favor do público tem ensejado o maior descaso das empresas concessionárias com direitos do usuário, o que não aconteceria se o próprio interessado no serviço dispusesse de reconhecimento expresso em seu favor, para exigir a prestação que lhe é denegada, sem qualquer providência punitiva por parte do poder público. A Constituição Federal de 1988 consagrou a proteção desse direito no artigo 175, inciso II: Art. 175 - Incumbe ao Poder Público, na forma da lei, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, sempre através de licitação, a prestação de serviços públicos. Parágrafo único - A lei disporá sobre: 3 Meirelles, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro, 1993, p. 163. 4 I - o regime das empresas concessionárias e permissionárias de serviços públicos, o caráter especial de seu contrato e de sua prorrogação, bem como as condições de caducidade, fiscalização e rescisão da concessão ou permissão; II - os direitos dos usuários; III - política tarifária; IV - a obrigação de manter serviço adequado. Dessa forma, o tratamento a ser dado ao usuário, além de protegido pela Constituição de forma genérica, deve seguir a alguns princípios. A execução do serviço concedido deve atender fielmente ao respectivo regulamento e às cláusulas contratuais específicas, para plena satisfação dos usuários, que são seus legítimos destinatários, devendo seguir, ao menos, a cinco princípios que regem todo serviço público.4 2.2. Princípios do serviço público Serviço público é a atividade exercida pelo poder público, direta ou indiretamente, para realizar o que entende estar de acordo com seus fins e suas atribuições. Os serviços públicos podem ser delegados a entidades públicas ou privadas, na forma de concessão, permissão ou autorização de serviço. Aplicam-se aos serviços públicos oito princípios específicos, arrolados na lei: regularidade, continuidade, eficiência, segurança, atualidade, generalidade, cortesia e modicidade (cf. art 6º, parag. 1º, da Lei n° 8987/95, que regula a concessão e a permissão de serviços). A empresa de fornecimento de energia elétrica se enquadra na classificação de serviço público, como um serviço de utilidade pública que é considerado útil ou conveniente à população.5 Essa concessão é delegada pelo poder público, restando aos concedentes a execução do serviço por sua conta e risco, com remuneração, em regra, paga pelo usuário, cujo preço deve ser adequado e atender aos princípios do serviço público. Portanto, os mesmos princípios que regem o poder público devem ser seguidos pelos prestadores de serviços públicos. Dessa forma, nota-se que o princípio da continuidade é descumprido, de imediato, no momento em que é interrompido o fornecimento da prestação de serviço. Assim, sua interrupção acarreta o direito de o consumidor postular em juízo, buscando que se condene a Administração a fornecer tal prestação. 4 5 Hely Lopes Meirelles, id., p. 300‐1. Resumo de Direito Administrativo, 12. ed., p. 52‐3, Col. Resumo. 5 2.3 . Energia elétrica - serviço público essencial Os serviços públicos essenciais, conforme art. 9º, parágrafo único, da C.F./88 e os termos da Lei nº 7.783/89, são os indispensáveis à sobrevivência do ser humano e que, por sua vez, são prestados, em alguns casos, pelo Estado e, em outros, por seus concessionários e permissionários. No caso de uma interrupção, seria possível dizer que é inconstitucional? Ocorrem situações que conflitam com a ordem social e o bem-estar da sociedade, contrariando, por exemplo, o artigo 3º, IV, da C.F./88. Entendemos que a inexistência da prestação de serviço essencial acaba atingindo frontalmente princípios fundamentais, bem como fere o direito à qualidade de vida e ao bem-estar.6 Dessa maneira, podemos concluir que o direito à qualidade de vida e ao bem-estar depende da disponibilidade do ser humano em usufruir serviços essenciais, entre eles, a energia elétrica. A importância da energia elétrica para o ser humano, assim como para toda a sociedade, está expressa na Lei n° 7.783/89, que a colocou no rol de serviços essenciais: LEI Nº 7.783, DE 28 DE JUNHO DE 1989 Dispõe sobre o exercício do direito de greve, define as atividades essenciais, regula o atendimento das necessidades inadiáveis da comunidade, e dá outras providências. Art. 10 São considerados serviços ou atividades essenciais: I - tratamento e abastecimento de água; produção e distribuição de energia elétrica, gás e combustíveis; II assistência médica e hospitalar; III - distribuição e comercialização de medicamentos e alimentos; IV funerários; V transporte coletivo; VI - captação e tratamento de esgoto e lixo; VII telecomunicações; VIII - guarda, uso e controle de substâncias radioativas, equipamentos e materiais nucleares; IX - processamento de dados ligados a serviços essenciais; 6 http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=2505 6 X XI - controle de compensação tráfego aéreo; bancária. Tal entendimento é compartilhado pela jurisprudência: A competência para exploração, direta ou indiretamente, ou mediante autorização, concessão ou permissão, é da União, conforme o artigo 21, XII, alínea b, da Constituição Federal de 1988. O serviço de prestação de energia elétrica está previsto como essencial no artigo 10, I, da Lei n° 7.783/89, e no item 3, da Portaria nº 03, de 19 de março de 1999, da Secretaria de Direito Econômico do Ministério da Justiça. Essa contextualização permanece ratificada também pelo recente acórdão de julgado ocorrido no STJ, que teve como Relator o Ministro José Delgado, da 1ª Turma (ROMS 8915/MA. DJ 17.08.98. Unânime), que, pelo brilhantismo, copiamos a ementa: "ADMINISTRATIVO. MANDADO DE SEGURANÇA. ENERGIA ELÉTRICA. AUSÊNCIA DE PAGAMENTO DE TARIFA. CORTE. IMPOSSIBILIDADE. 1. É condenável o ato praticado pelo usuário que desvia energia elétrica, sujeitando-se até a responder penalmente. 2. Essa violação, contudo, não resulta em reconhecer como legítimo ato administrativo praticado pela empresa concessionária fornecedora de energia e consistente na interrupção do fornecimento da mesma. 3. A energia é, na atualidade, um bem essencial à população, constituindo-se serviço público indispensável subordinado ao princípio da continuidade de sua prestação, pelo que se torna impossível a sua interrupção. 4. Os arts. 22 e 42, do Código de Defesa do Consumidor, aplicam-se às empresas concessionárias de serviço público. 5. O corte de energia, como forma de compelir o usuário ao pagamento de tarifa ou multa, extrapola os limites da legalidade. 6. Não há de se prestigiar atuação da Justiça privada no Brasil, especialmente, quando exercida por credor econômica e financeiramente mais forte, em largas proporções, do que o devedor. Afronta, se assim fosse admitido, aos princípios constitucionais da inocência presumida e da ampla defesa. 7. O direito do cidadão de se utilizar dos serviços públicos essenciais para a sua vida em sociedade deve ser interpretado com vistas a beneficiar a quem deles se utiliza. 8. Recurso improvido.(1ª Turma Min. José Delgado. ROMS 8915/MA. DJ 17.08.98. Unanime.)" A industrialização dos utensílios fabricados pelo homem forçou-o a usá-los na forma de seu avanço tecnológico deixando-o a mercê das energias que os alimentam. O homem não tem outra alternativa senão usar da principal forma de energia disponibilizada pela modernidade que é a corrente elétrica. Com a energia elétrica faz-se tudo, vê-se, houve-se, opera-se, informa-se, trabalha-se, enfim vive-se, o que a qualifica como essencial às atividades humanas, e que por esta natureza não poderá sofrer interrupção, como mesmo manifesta-se a Jurisprudência: 7 "ENERGIA ELÉTRICA - SUSPENSÃO DO FORNECIMENTO, ATRAVÉS DE ATO DA CONCESSIONÁRIA DO SERVIÇO PÚBLICO, POR ATRASO NO PAGAMENTO DA FATURA ILEGALIDADE MANDADO DE SEGURANÇA CONCESSÃO - RECURSO PROVIDO. O fornecimento de energia elétrica constitui serviço público essencial, devendo ser prestado continuamente (artigo 22, Lei 8.078/90), não sendo admissível a suspensão com fundamento no atraso quanto ao pagamento da fatura, uma vez que o fornecedor pode se utilizar dos meios de cobrança que o sistema jurídico lhe proporciona.( TJPR – Ac. 18.450 - Apelação Cível n° 94.883-2, Relator: Juiz Convocado Lauro Laertes de Oliveira. Julg. 21.03.2001.)7 3. Energia Elétrica e Código de Defesa do Consumidor A Lei nº 8.078 /90 (Código de Defesa do Consumidor) veio abarcar a essencialidade que é inerente à necessidade básica do ser humano, não só indicando a coerção, mas também a reparação, ambas previstas no parágrafo único, do artigo 22, do C.D.C.: Art. 22 - Os órgãos públicos, por si ou suas empresas, concessionárias, permissionárias ou sob qualquer outra forma de empreendimento, são obrigados a fornecer serviços adequados, eficientes, seguros e, quanto aos essenciais, contínuos. Parágrafo único - Nos casos de descumprimento, total ou parcial, das obrigações referidas neste artigo, serão as pessoas jurídicas compelidas a cumpri-las e a reparar os danos causados, na forma prevista neste Código. Conforme o caput do artigo, não basta apenas a adequação, eficiência e segurança, mas sim, a obrigação de continuidade da prestação de serviço essencial. O art. 42 do CDC assim dispõe sobre o consumidor inadimplente: Art. 42 - Na cobrança de débitos, o consumidor inadimplente não será exposto a ridículo, nem será submetido a qualquer tipo de constrangimento ou ameaça. O mencionado artigo busca evitar abusos por parte da concessionária, em relação ao usuário, bem como garantir a prestação de serviços prestados pelas concessionárias e permissionárias para o consumidor inadimplente. 7 http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=2505 8 Mesmo assim, mesmo com a advertência constante do texto legal, o artigo 71 do CDC traz a tipificação penal: Art. 71 - Utilizar, na cobrança de dívidas, de ameaça, coação, constrangimento físico ou moral, afirmações falsas, incorretas ou enganosas ou de qualquer outro procedimento que exponha o consumidor, injustificadamente, a ridículo ou interfira com seu trabalho, descanso ou lazer: Pena - Detenção de 3 (três) meses a 1 (um) ano e multa. Nosso entendimento é o de que o constrangimento descrito no C.D.C é uma situação que prejudica e desestabiliza o inadimplente, fazendo com que, além da dívida que este tem com o prestador de serviço e da devida cobrança, ainda tenha a interrupção do serviço, causando-lhe constrangimento moral, expondo-o ao ridículo perante sua vizinhança (já que, habitualmente, o corte da energia elétrica é feito por um “ trio elétrico” que para na porta da casa do inadimplente, executa o serviço de corte, fazendo com que todos tomem conhecimento do ocorrido). Além disso, não estaria ocorrendo dupla punição? Estar sem o serviço e com a dívida? O "corte" de energia elétrica por inadimplemento não pode ser permitido em nosso ordenamento jurídico, pois a energia elétrica é serviço essencial, e sua utilização se mostra indispensável para a sobrevivência de qualquer ser humano. Se pensarmos na restrição que ocorre a direito constitucional garantido como, no caso, o não fornecimento de serviço essencial, tem-se que o corte não possui o condão de relacionar-se com o pretendido pagamento, mas está diretamente relacionado à ofensa ao bem-estar e à qualidade de vida do usuário, o que é defeso, nos exatos termos do CDC. A interrupção na prestação do serviço não irá saldar a dívida. Além disso, teremos uma diminuição nas condições do indivíduo, para que possa se recuperar dessa fase ou dessa crise por que esteja passando, e, pior ainda, também terá repercussões negativas sobre a sua dignidade, o seu direito à vida e suas relações sociais. Ora, porque o prestador destes serviços essenciais não se utiliza do racionamento como proposto pelo eminente Mestre citado? Mas, asseveramos, nunca o "corte". O direito de cobrar que tem as prestadoras de serviço essencial não pode vir a restringir tal serviço por completo, pois verdadeiros direitos essenciais do homem. Tal atitude configura o abuso de direito, e de direito essencial, pois "o ato de cobrar não pode ser confundido com o de humilhar." 8 8 http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=3849 9 4. Lei nº 8.987/95 - Regime de Concessão e Permissão da Prestação de Serviços Públicos Preliminarmente, vejamos o artigo 6º, § 3º, II, da Lei n° 8.987/95 (Lei da Concessão): Art. 6o Toda concessão ou permissão pressupõe a prestação de serviço adequado ao pleno atendimento dos usuários, conforme estabelecido nesta Lei, nas normas pertinentes e no respectivo contrato. § 1o Serviço adequado é o que satisfaz as condições de regularidade, continuidade, eficiência, segurança, atualidade, generalidade, cortesia na sua prestação e modicidade das tarifas. § 2o A atualidade compreende a modernidade das técnicas, do equipamento e das instalações e a sua conservação, bem como a melhoria e expansão do serviço. § 3o Não se caracteriza como descontinuidade do serviço a sua interrupção em situação de emergência ou após prévio aviso, quando: I - motivada por razões de ordem técnica ou de segurança das instalações; e, II - por inadimplemento do usuário, considerado o interesse da coletividade. O artigo acima transcrito descreve que não é considerada descontinuidade na prestação do serviço público se, após prévio aviso ao usuário inadimplente, o fornecimento for interrompido. Retornando aos princípios que devem ser seguidos pela prestadora de serviços públicos, veremos que esse artigo da Lei de Concessão está em desacordo com o princípio da continuidade. O inadimplemento é causa para a interrupção do fornecimento de um serviço essencial? Ou seja: um serviço, que devido a seu grau de importância foi incluído como sendo um serviço essencial, deve ser interrompido por inadimplemento? O Princípio da Continuidade na prestação do serviço essencial não está sendo deixado de lado? Não poderia a concessionária encontrar outra forma de cobrança do serviço prestado, haja vista que o devedor poderia ser cobrado de outra forma, que não com o “corte”? 10 Dessa forma, a Lei n° 8.987/95 veio derrubar, em tese, o que se considera absoluto quanto à continuidade dos serviços essenciais. Nesse contexto, Plínio Lacerda Martins descreve que “constitui prática abusiva o corte de energia elétrica por falta de pagamento, sendo vedado o corte de energia por parte do fornecedor, em razão do serviço ser considerado essencial, não prevalecendo a norma que autoriza a interrupção de serviço essencial (art. 6º, parágrafo 3º, II da Lei 8. 987/95), pois a mesma conflita com o Código do Consumidor, prevalecendo a norma consumeirista em razão do princípio da proibição de retrocesso ao invés do princípio lex posteriori revoga legis a priori.” 9 Alguns doutrinadores não consideram infração o corte na prestação do serviço público tarifado, já que a continuidade prevista no CDC não é absoluta, requerendo, ainda, uma contraprestação. Da mesma maneira por que encontramos julgados a favor do usuário, que não consideram o inadimplemento causa suficiente para a interrupção do fornecimento, encontramos, com maior facilidade, jurisprudência em sentido contrário, como segue: ENERGIA ELÉTRICA - AMEAÇA DE CORTE DO FORNECIMENTO POR FALTA DE PAGAMENTO DO RESPECTIVO PREÇO - LEGALIDADE DA MEDIDA - DIREITO LÍQUIDO E CERTO INEXISTENTE - Não tem o consumidor direito a continuar recebendo energia elétrica da concessionária local se não cumpre a elementar obrigação de pagar a tarifa pelo respectivo fornecimento. Precedentes desta Corte e do TJSP - Apelo desprovido. (TJSC - AC - MS 98. 003817-0-SC - 4ª C. Cív. . Rel. Des. João José Schaefer - J. 20. 08. 1998) MANDADO DE SEGURANÇA - ENERGIA ELÉTRICA DÉBITO PARCELADO - ACORDO NÃO CUMPRIDO PELO USUÁRIO - CORTE LEGÍTIMO - SEGURANÇA CONCEDIDA REMESSA - NÃO CONHECIMENTO - RECURSO PROVIDO SENTENÇA REFORMADA - A sentença proferida em mandado de segurança contra sociedade de economia mista não está sujeita ao reexame necessário. A concessionária de serviço de energia elétrica, quando não for paga a conta respectiva e desde que expedido regular aviso prévio, pode interromper seu fornecimento, porque o consumidor não tem o direito, muito menos líquido e certo, de receber energia sem pagar. (TJSC 9 http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=3849 11 AC -MS 88. 087189-3 (5. 712) - SC - 2ª C. Cív. Esp. Rel. Des. Nilton Macedo Machado - J. 12. 06. 1998)10 Seguindo em nossa busca pela resolução do conflito legal presente na interrupção do fornecimento de energia, buscamos orientações da agência reguladora de energia elétrica – ANEEL. A ANEEL é uma autarquia sob regime especial, vinculada ao Ministério das Minas e Energia, que tem como finalidade regular e fiscalizar a produção, transmissão e comercialização de energia elétrica, em conformidade com as Políticas e Diretrizes do Governo Federal. Regulada pela Agência Nacional de Energia Elétrica, encontramos, nos artigos 90 e 91 da Resolução nº 456/2000, a lícita maneira para se interromper o fornecimento da energia elétrica. 5. Resolução nº456/2000- Agência Nacional de Energia Elétrica - ANEEL As agências reguladoras são entidades de Estado, encarregadas de fiscalizar o cumprimento de contratos de concessão e de implementar (ou regulamentar) o detalhamento de leis e contratos que regem setores econômicos. Exatamente por isso, sua atuação deve ter em mente o longo prazo, garantindo a blindagem em relação a pressões políticas, originadas de governos, e pressões econômicas, provenientes dos mais diversos grupos de interesse. Essa missão se torna particularmente desafiadora no setor elétrico, uma vez que, por ser um serviço de utilidade pública e um monopólio natural, adiciona complexidade às decisões do regulador. Tais agências existem para equilibrar os interesses de consumidores, empreendedores e governos. Como nem sempre esses interesses são convergentes, os órgãos reguladores devem ser autônomos e independentes, de forma a pautar suas decisões em critérios técnicos e isentos de vieses. 11 No setor elétrico brasileiro, a autonomia e a independência do órgão regulador (Agência Nacional de Energia Elétrica) foram criadas pela Lei n° 9.427/1996, que instituiu a Agência Nacional de Energia Elétrica – ANEEL, disciplinando o regime das concessões de serviços públicos de energia elétrica e dando outras providências. Na resolução n° 456/2000 da ANEEL ficaram estabelecidas, de forma atualizada e consolidada, as Condições Gerais de Fornecimento de Energia Elétrica e, por isso, resolvemos estudá-la. 10 http://www.lfg.com.br/public_html/article.php?story=20080716091634106 11 http://www.acendebrasil.com.br/site/paginas/Agencias_Reguladoras.asp 12 Nos artigos 90 e seguintes, a resolução irá trazer normas quanto à suspensão do fornecimento de energia elétrica. DA SUSPENSÃO DO FORNECIMENTO Art. 90. A concessionária poderá suspender o fornecimento, de imediato, quando verificar a ocorrência de qualquer das seguintes situações: I - utilização de procedimentos irregulares referidos no art. 72; II - revenda ou fornecimento de energia elétrica a terceiros sem a devida autorização federal; III - ligação clandestina ou religação à revelia; e IV - deficiência técnica e/ou de segurança das instalações da unidade consumidora, que ofereça risco iminente de danos a pessoas ou bens, inclusive ao funcionamento do sistema elétrico da concessionária. Art. 91. A concessionária poderá suspender o fornecimento, após prévia comunicação formal ao consumidor, nas seguintes situações: (*) Incluídos os parágs. 3º, alíneas “a” e “b” e o parág. 4º, no art. 91, pela RES ANEEL 614 de 06.11.2002, D.O de 07.11.2002, seção 1, p. 91, v. 139, n. 216. I - atraso no pagamento da fatura relativa à prestação do serviço público de energia elétrica; II - atraso no pagamento de encargos e serviços vinculados ao fornecimento de energia elétrica, prestados mediante autorização do consumidor; III - atraso no pagamento dos serviços cobráveis estabelecidos no art. 109; IV - atraso no pagamento de prejuízos causados nas instalações da concessionária, cuja responsabilidade tenha sido imputada ao consumidor, desde que vinculados à prestação do serviço público de energia elétrica; 13 V - descumprimento das exigências estabelecidas nos arts. 17 e 31; VI - o consumidor deixar de cumprir exigência estabelecida com base no disposto no parágrafo único do art. 102; Destarte, a norma vigente permanece nesta queda de braço, direcionando nossas decisões jurisprudenciais, ora para um lado, ora para outro. 6. Tendência da Jurisprudência no Brasil É de suma importância explanar que as empresas concessionárias e permissionárias, quando detentoras dos serviços de natureza essencial a serem prestados à população, terão o direito a receber o consumo utilizado pelo usuário, e poderão fazê-lo, inclusive, via judicial. Mas a interrupção do fornecimento de energia é a opção mais extremada que se pode encontrar, visto que desrespeita o bem-estar e a qualidade de vida dos usuários. Entendemos que o justo seria a cobrança judicial de tais valores, sem o corte de energia elétrica, como forma lícita para coibir os usuários ao pagamento do serviço essencial prestado pela concessionária. Nos tribunais, o tema não é pacífico. Contudo, os julgados vêm mostrando certa tendência à não suspensão de fornecimento de energia elétrica por inadimplemento, tal como exemplificam as ementas ora transcritas: SERVIÇO PÚBLICO - ENERGIA ELÉTRICA - CORTE NO FORNECIMENTO - ILICITUDE - I - É viável, no processo de ação indenizatória, afirmar-se, incidentemente, a ineficácia de confissão da dívida, à míngua de justa causa. II - É defeso à concessionária de energia elétrica interromper o suprimento de força, no escopo de compelir o consumidor ao pagamento de tarifa em atraso. O exercício arbitrário das próprias razões não pode substituir a ação de cobrança. (STJ - Ac. 199900645553 - RESP 223778 - RJ - 1ª T. - Rel. Min, Humberto Gomes de Barros - DJU 13. 03. 2000 - p. 00143)12 SERVIÇO PÚBLICO - Energia elétrica - Suspensão do fornecimento a usuário inadimplente - Abusividade, pois se trata de serviço essencial - Ordenamento jurídico pátrio que coloca à disposição da concessionária outros meios para a cobrança de seu débito - Voto 14 Vencido. EMENTA DA REDAÇÃO: A utilização de energia elétrica é essencial à vida humana, razão pala qual tem-se como abusivo o corte do fornecimento a usuário inadimplente, pois o ordenamento jurídico coloca à disposição da concessionária do serviço público, outros meios para a cobrança de seu crédito. (TACivSP - 1ª Câm. Rel. designado Plínio Tadeu do Amaral - j. 29. 05. 20001 - RT 784/275) Importante mencionar que existem outras soluções para tal problema, evitando-se o corte de energia elétrica. Compartilhamos da opinião de Clever M. Campos: “Esta energia elétrica mínima seria proporcionada através da instalação de um limitador de corrente, alternativamente ao corte total pela concessionária, e deveria atender basicamente a refrigeração de alimentos e iluminação do domicílio do usuário em dificuldade financeira. Essa providência social, harmônica com a Constituição Federal, evitaria o "trauma", que sofre o cidadão ao ter sua energia "cortada" por estar desempregado e momentaneamente sem renda. O cidadão voltando ao trabalho, regularizaria sua situação perante a distribuidora de energia (6). Entretanto, Clever ressalta que a “apologia do calote” deve ser repugnada, pois “somente cidadãos comprovadamente sem renda disponível é que teriam direito ao mínimo de energia elétrica. Não poderia ser diferente, caso contrário o consumidor enriqueceria ilicitamente às custas da diminuição patrimonial da concessionária distribuidora ".13 7. Conclusão Diante do exposto, vemos que o fornecimento de energia deve ser prestado de maneira contínua e eficaz pelo Estado. No que se refere ao “corte”, deve ser repudiado, pois nosso sistema não permite a falta de prestação de serviço essencial. Se permitirmos o corte de energia elétrica por inadimplemento, em tempos de crise econômica, o individuo que não tivesse condições de pagar a conta de luz, não teria como se alimentar, o que, consequentemente, atingiria a todos de sua família. E isso não é permitido, pois nosso Estado tem o dever de amparar esse cidadão, mantendo o piso vital mínimo para sua subsistência, conforme nos ordena a Constituição Federal de 1988. Entendemos que o usuário sem energia elétrica não terá condições mínimas de sobreviver, o que fere frontalmente o direito ao bem-estar e à qualidade de vida. 13 Clever M. Campos. Introdução ao Direito de Energia Elétrica. 15 8. Bibliografia Doutrina BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. 29 ed. atual. ampl. São Paulo: Saraiva, 2002. DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro. Responsalibilidade Civil. São Paulo: Saraiva, 1998, 7v. STOCO, Rui. Responsabilidade Civil e sua Interpretação Jurisprudencial. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1994. Meirelles, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 20 ed. São Paulo: Malheiros, 1993. Cláudio Américo Fuher, Maximilianus; Roberto Ernesto Fuher, Maximiliano, Resumo de direito Administrativo, 12º Ed, Coleção Resumo, 2002. Fernando Elias Rosa, Márcio. Direito administrativo. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2002. (Sinopses Jurídicas, 19) Sites Visitados: 1- http://www.lfg.com.br/public_html/article.php?story=20080716091634106 2- http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=3849 3- http://www.aneel.gov.br/cedoc/res2000456.pdf 4- http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=2505 5- http://www.planalto.gov.br/ccivil/leis/l8078.htm 6- http://www.ibradec.org/ 16