Fernando Pessoa/Maria José e a encenação do feminino “Criei em mim várias personalidades. Crio personalidades constantemente”. Fernando Pessoa/B.Soares processo de pluralização do sujeito, anunciado na frase que citamos em epígrafe, inscreve-se numa problemática que se começa a anunciar já em alguns autores do século XIX (lembremos o famoso “Je est un autre” de Rimbaud ou o “Je suis l’autre” de Nerval), pondo em causa a homogeneidade do sujeito cartesiano, proprietário do logos, e permitindo equacionar, no princípio do nosso século, em termos completamente inovadores, a complexa questão da identidade/alteridade que tanto interessará as ciências humanas, em particular, a psicanálise. A Modernidade confere uma dimensão especial à afirmação de uma liberdade que se manifesta por uma vontade de ruptura, pela rejeição do discurso unívoco onde impera geralmente um sujeito monolítico, pela busca de uma totalidade, de que são exemplos o Livro de Mallarmé ou o teatro heteronímico de Pessoa. Em Portugal, como observa Fernando Guimarães, a geração de Orpheu (1915) rodeouse efectivamente de “um tom polémico que exprime bem o seu desacordo com uma tradição que tanto marcava o que se ia escrevendo por essa altura”.1 Poeta da viagem no labirinto alargado da subjectividade, Fernando Pessoa abriu na literatura deste século os horizontes de uma consciência que, ao pretender “sentir tudo de todas as maneiras”, encenou, pela arte do “fingimento”, uma multiplicidade de dramatis personae que correspondem essencialmente ao desejo vertiginoso de conjugar a identidade e a alteridade, numa incansável busca do Absoluto. Os exegetas pessoanos polarizaram uma grande parte do seu interesse em torno do universo heteronímico de Pessoa, propondo as mais variadas interpretações. Convém lembrar, como o faz Antonio Tabucchi, que a heteronímia pes- O 22 soana não corresponde a nenhuma patologia: “Não há nenhum caso clínico a descobrir na heteronímia de Pessoa, apenas uma “simples loucura”, do mesmo modo que talvez seja “simples loucura” toda a literatura” 2 Por outro lado, Ettore Finazzi-Agrò sublinha que não devemos pensar a heteronímia “desligada de uma dinâmica histórico-cultural que a torna compreensível e a justifica: que, numa palavra, a fundamenta”3 Para Eduardo Lourenço, a heteronímia é, sobretudo, “a forma teatral de ilustrar a única “verdade” digna desse nome para Pessoa: o Ser é ausência”4. Em 1990, a galáxia pessoana alargou-se consideravelmente, com a revelação, por Teresa Rita Lopes, de 72 personalidades literárias 5 , que representam graus diferentes de despersonalização. Na sua incansável viagem pelos espaços da alteridade, na tentativa de “ser plural como o universo”, Fernando Pessoa abordou a certa altura os territórios do feminino, escolhendo o pseudónimo Maria José para assinar a conhecida “Carta da Corcunda para o Serralheiro” que nos importa aqui considerar. Trata-se de um texto complexo que, na opinião de Teresa Rita Lopes, corresponde ao “ponto máximo nessa escala da despersonalização que Pessoa percorria em todos os sentidos, estacionando em todos os degraus”6. A incursão pessoana nos domínios do feminino, através do artifício do pseudónimo, não nos surpreende, embora seja rara no nosso Modernismo7, onde as vozes femininas ocupam um lugar marginal que seria interessante questionar (basta evocar a posição de Florbela Espanca ou de Irene Lisboa, contemporâneas do movimento modernista). Para Pessoa, a possibilidade de se imaginar mulher corresponde a uma capacidade de despersonalização que se traduz, sob a forma epistolar, por um registo de tipo diarís- Maria Graciete Besse tico onde se exprime uma experiência feminina marcada pela exclusão e pela dor, através de um monólogo que relata um processo de autorepresentação dum sujeito marginal, em busca da legitimação existencial. Maria José,a “autora” da carta, é uma corcunda de 19 anos, solitária, doente e apaixonada pelo serralheiro que vê passar na sua rua. A janela, lugar estratégico do ver/ser visto, é o topos essencial do percurso do olhar, espaço de revelação do mundo e do amor, lugar onde a contemplação se conjuga com uma percepção dolorosa da diferença. Ao dirigir-se ao serralheiro, que nunca a lerá (“O senhor nunca háde ver esta carta...”), Maria José inaugura um discurso da intimidade que oscila entre dois pólos: eu/ele, para se alargar em seguida a um universo em expansão num tempo descontínuo, surgindo a escrita como salvação ou forma de terapia (“se não escrevo abafo”), ao sabor das ressonâncias da memória e da consciência afectiva do sujeito. Apesar do seu interlocutor imediato se caracterizar pela ausência e pela inacessibilidade, a sua presença fantasmática é todavia importante para activar o desejo da mulher apaixonada que afirma : “eu não penso senão em si”. No entanto, esta confissão caracteriza-se por uma ambiguidade fundamental, na medida em que o “pensar” supõe sempre uma dimensão de esquecimento necessário, como sublinha Roland Barthes ao analisar o discurso amoroso: “Qu’est-ce que ça veut dire, “penser à quelqu’un?” Ça veut dire: l’oublier (sans oubli, pas de vie possible) et se réveiller souvent de cet oubli”8. Entre o esquecimento e a manipulação da ausência, o discurso de Maria José põe em cena uma circulação do desejo que se afirma de maneira redundante: “Eu gosto de si porque gosto de si, e tenho pena de não ser outra mulher, com outro LATITUDES n° 4 - décembre 98 corpo e outro feitio”. O corpo disforme e doente parece ser, efectivamente, a representação de uma negatividade que se define por laivos de masoquismo, sobretudo quando se defronta com a imagem da “rapariga loura alta e bonita”, a amante do serralheiro, que aponta para um feminino erotizado pelas categorias estéticas convencionais. Ao longo da carta, a temática amorosa impõe-se como o único discurso susceptível de conferir uma certa intensidade ao quotidiano sombrio e monótono da mulher “corcunda desde a nascença” que interroga o seu lugar no mundo, partilhada entre uma dimensão trágica (“eu não tenho senão dias de vida”) e uma profunda consciência do ridículo que tocaria o seu suicídio (“Eu às vezes dá-me um desespero como se me pudesse atirar da janela abaixo, mas eu que figura teria a cair da janela?”). A ideia do suicídio faz parte de uma solução interior ao sistema amoroso que, como assinala Barthes, se apresenta como uma ficção: “une scène pathétique que j’imagine et dont je m’émeus ; bref, un théâtre (...). En imaginant une solution extrême (...), je produis une fiction” 9 . O suicídio imaginado por Maria José aponta para uma dimensão patética logo ultrapassada pela ironia resultante da sua amarga lucidez: “Até quem me visse cair ria e a janela é tão baixa que eu nem morreria (...) e estou a verme na rua como uma macaca, com as pernas à vela e a corcunda a sair pela blusa e toda a gente a querer ter pena mas a ter nojo ao mesmo tempo ou a rir se calhasse, porque a gente é como é não como tinha vontade de ser”. O corpo de Maria José surge assim em constante representação, excessivo na sua afirmação em termos de diferença, entregue a todas as seduções, corpo escrito como um território de exílios, justificando as lágrimas finais que fazem parte da actividade normal do estado amoroso (“Aí tem e estou a chorar”). Trata-se de um corpo eminentemente desejante, em busca de uma legitimação que lhe poderia advir do olhar do outro, elemento fundamental de reconhecimento e da partilha de uma certa intimidade: “Se o senhor soubesse isto tudo era capaz de de vez em quando me dizer adeus na rua”. Situamonos aqui ao nível do fantasma, isto LATITUDES n° 4 - décembre 98 é, no plano da projecção de um desejo que se afirma sobretudo como desejo de ser. Na constante oscilação que define os diferentes momentos da carta de Maria José, a aventura da escrita constrói, pouco a pouco, uma identidade indefinida, recusada: “eu não sou mulher nem homem, porque ninguém acha que eu sou nada a não ser uma espécie de gente que está para aqui a encher o vão da janela e a aborrecer tudo que me vê”. A partir desta constatação, o que se impõe ao leitor é a experiência de uma exclusão, a manifestação de um corpo impedido, através da descrição atenta da impossível articulação eu/outro. A dualidade mulher/homem é assim destruída (“eu sou nada”), a favor do fantasma do neutro (“uma espécie de gente”) que surge como a expressão de um narcisismo absoluto, como já observou André Green: “Le n’être rien apparaît comme la condition idéale d’autosuffisance” 10. Desta forma, o fantasma de “ser nada” conjuga-se, simbolicamente, com o fantasma de “ser tudo”. Lembremos que o mesmo processo surge noutros textos de Pessoa, por exemplo no célebre início da “Tabacaria”, de Alvaro de Campos: “Não sou nada. Nunca serei nada. Não posso querer ser nada. À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.” Através da neutralização da identidade sexual, o discurso de Maria José coloca uma série de questões fundamentais sobre a relação entre o corpo textualizado e as figuras discursivas que encenam uma desconstrução do sujeito, podendo constituir um ponto de partida interessante para desenvolver uma reflexão sobre o “gender”. Não é por acaso que o discurso do amor e do corpo doente, em estado de alerta, tal como o exprime Maria José, se transmite, sob o signo da negação e da impossibilidade, por meio de uma carta dirigida a um amante radicalmente ausente. Com efeito, o género epistolar é geralmente considerado como feminino11, visto ser durante muito tempo o único tipo de escrita que era permitido às mulheres, correspondendo ainda, como afirma Laurent Versini, a uma “voca- Dessin de Brito in Brito, um “Canard Enchaîné” Português, Câmara Municipal de Oeiras/humorgrafe ção sentimental e feminina do género”12. Num interessante artigo sobre este texto, Dionísio Vila Maior, depois de analisar a problemática da alteridade e de reflectir sobre as incidências particulares do posicionamento do sujeito de enunciação, pergunta se se tratará de um “exemplo paradigmático de discurso feminino”13 Os sistemas de representação ocidentais admitiram durante muito tempo uma só perspectiva, a do sujeito masculino, excluindo a mulher do palco da criação, convertendo-a apenas em objecto do “irrepresentável”. Neste contexto, a escrita feminina surge como um símbolo da subversão, como um sistema capaz de interrogar a Diferença, tentando escapar à repetição de um sistema de valores binário, base teórica da sintaxe patriarcal, e definindo-se justamente pela sua incapacidade de definição. Como afirma Hélène Cixous : “Impossible à présent de définir une pratique féminine de l’écriture, d’une impossibilité qui se maintiendra, car on ne pourra jamais théoriser cette pratique, l’enfermer, la coder, ce qui ne signifie pas qu’elle n’existe pas. Mais elle excèdera toujours le discours qui régit le systè23 Vasco - Ofélia, mon amour me phallocentrique; elle a et aura lieu ailleurs que dans les territoires subordonnés à la domination philosophique-théorique. Elle ne se laissera penser que par les sujets casseurs des automatismes, les coureurs des bords qu’aucune autorité ne subjugue jamais”14. Por seu lado, Luce Irigaray defende como características fundamentais do discurso feminino a fluidez, a pluralidade e a heterogeneidade 15. No entanto, parece-nos importante sublinhar que o termo “feminino” é ambíguo, visto que se refere tanto ao sexo biológico da mulher como à construção socio-cultural do conceito de mulher. Mesmo se é difícil definir exactamente o que se entende por “discurso feminino”, parece-nos que este texto de Fernando Pessoa encena muito claramente, através do simulacro do pseudónimo, alguns dos elementos-chave do que poderia ser um discurso no feminino, mais do que propriamente um “discurso feminino”. A forma epistolar de temática amorosa, a situação expectante da mulher apaixonada, a linguagem do corpo que se impõe como circulação dolorosa do desejo, a cronologia da memória que converge numa percepção circular do tempo, a forma suspensa da escrita, a importância da voz como forma de legitimação existencial, a figuração de uma marginalidade que aponta para uma situação socio-histórica particular, ou seja, o estatuto minoritário da mulher na sociedade “falogocêntrica” (Derrida), eis alguns dos aspectos que poderiam caracterizar uma cenografia do feminino tal como Pessoa o entende. Nesta perspectiva, e para reto24 mar a questão colocada por Dionísio Vila Maior, parece-nos que a “Carta da Corcunda para o Serralheiro” não corresponde exactamente ao “discurso feminino”, tal como hoje o entende a crítica feminista, ou seja, uma forma de reivindicação identitária, de afirmação de uma palavra outra, mas é evidente que existe neste texto assinado por um nome que integra o feminino e o masculino, uma interrogação importante sobre a relação entre o corpo textualizado e as figuras discursivas que constituem o sujeito da escrita. Ao propôr-nos o monólogo de uma alma solitária à janela do ser, Pessoa equaciona a tríade feminino-masculino-neutro, encenando, como vimos, uma desconstrução da identidade sexual que se poderia identificar com a nostalgia do Uno e que, ao mesmo tempo, evoca a sede de uma multiplicidade infinita. Ao “brincar a ser muitos”, ao pluralizar indefinidamente a sua consciência do mundo, Pessoa ergueu um sistema que se impôs como a representação mais radical da Modernidade, colocando, neste texto assinado por Maria José, o problema fundamental do ser e do parecer. Tal sistema constitui, como já apontou Carlos Felipe Moisés, “uma espécie de plataforma epistemológica sobre a qual assenta toda a obra pessoana, como se cada heterónimo (o ortónimo incluído) correspondesse a graus diferentes de uma escala móvel de aproximação da realidade, tarefa inviável para um sistema único e fixo”16 1 Fernando Guimarães, Os problemas da Modernidade, Presença, 1994, p.9. Lisboa, Ed. 2 Antonio Tabucchi, Pessoana Mínima, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1984, pp.23-24. 3 Ettore Finazzi-Agrò, O alibi infinito. O projecto e a prática na poesia de Fernando Pessoa, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1987, p.25. 4 Eduardo Lourenço, Fernando Rei da nossa Baviera, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1986, p.61. 5 Teresa Rita Lopes, Pessoa por conhe- cer - Roteiro para uma expedição, Lisboa,. Ed.Estampa, vol.I, 1990, p.172. 6 Cf. op.cit., p.143. 7 Lembramos o caso de Armando Côrtes Rodrigues que publicou no segundo número da revista Orpheu, com o pseudónimo feminino de Violante de Cysneiros. 8 Roland Barthes, Fragments d’un discours amoureux, in Oeuvres Complètes, III, Paris, Seuil, 1995, p.607. 9 Cf.ibidem, p.593. 10 André Green, Narcissisme de vie/Narcissisme de mort, Paris, Minuit, 1983, p.212. 11 Segundo Camille Aubaud, “la critique considère toujours le roman épistolaire et la correspondance comme des genres féminins”, in Lire les femmes de Lettres, Paris, Dunod, 1993, p.83. 12 Laurent Versini, Le roman épistolaire, Paris, PUF, 1979, p.184. 13 Dionísio Vila Maior, “Fernando Pessoa-Maria José: alteridade e discurso feminino”, in Discursos, 5, Coimbra, Universidade Aberta, 1993, p.104. 14 Hélène Cixous, La jeune née, Paris, UGE, 1975, p.170. 15 Luce Irigaray, Le corps-à-corps avec la mère, Montréal, Ed.Pleine Lune, 1981. 16 Carlos Felipe Moisés, O poema e as máscaras - micro estrutura e macro estrutura, Coimbra, Livraria Almedina, 1981, p.213. Résumé en Français Fernando Pessoa/Maria José et la mise en scène au féminin Fernando Pessoa, poète pluriel, choisit le pseudonyme Maria José pour aborder les territoires du féminin, dans un texte singulier intitulé “Carla da Corcunda para o Serralheiro”. Nous y découvrons un discours complexe qui, à travers la forme épiscolaire et le registre intime, traduit une expérience féminine ponctuée par l’exclusion et la souffrance. La présence fantasmatique de l’Autre (le serrurier qui passe dans la rue) permet la circulation d’un désir où le corps malade de la femme, en constante représentation, devient excessif dans son affirmation en termes de différence, corps offert à toutes les séductions, corps écrit comme un territoire d’exils. L’aventure de la parole légitimante construit, peu à peu, une identité indéfinie qui échappe aux catégories étroites du Masculin et du Féminin pour rejoindre la catégorie du Neutre, expression du narcissisme absolu, manifestation éloquente de la soif d’une multiplicité infinie. LATITUDES n° 4 - décembre 98