1º Semestre de 2009 Revista FACOM Nº21 Devorar e ser devorado: uma compreensão a partir do Homem-Urso de Herzog Yara Malki Resumo Abstract O presente artigo tem como objeto o documentário O Homem-Urso de Werner Herzog, que reconstitui trechos da vida de Timonthy Treadwell, um apaixonado pelos ursos-pardos do Alasca que foi devorado por um deles em 2003. O intuito é discutir, por meio da compreensão que o cineasta formulou, aspectos primitivos da mente ligados à paixão, à idealização e ao desejo de incorporação da mente humana que atuam quando não há representação. Algumas idéias de Freud e Melanie Klein serão os principais recursos teóricos. The present article tooks Werner Herzog’s documentary Grizzly Man as object. The film rebuilds pieces of Timonthy Treadwell’s life, a passionated by the Alaska’s griz bear who was devoured by one in 2003. It is aimed to discuss, by the moviemaker standpoint, primitive aspects related to passion, idealization and embodiment desire that acts when there is no representation. Selected Freud and Melanie Klein’s ideas will be taken. Palavras-chave: Homem-urso, Herzog, Freud, Melanie Klein. Keywords: Grizzly Man, Herzog, Freud, Melanie Klein. “I love them! (...) I’m one of them!” Timonthy Treadwell (1957-2003) Não fosse trágica pelo vaticínio que encerra, esta confissão apaixonada pelos ursos pardos do Alasca seria mesmo irônica. Em outubro de 2003, Timonthy Treadwell e sua namorada, Amie Huguenard, foram mortos e parcialmente devorados por um desses ursos a poucos instantes de pegarem o avião de volta da reserva florestal onde Treadwell acampara durante os últimos 13 verões de sua vida. O intuito – manifesto – destes acampamentos era o de acompanhar, conviver e proteger estas criaturas, por quem Treadwell desenvolveu verdadeira devoção. Mas a carne embolada de Treadwell encontrada no estômago do urso que o matou é uma metáfora precisa do volume de conteúdos – latentes – que essa estranha história ainda guardava. A tentativa de deciframento desta história está retratada no documentário de Werner Herzog, O Homem-Urso (EUA/Alemanha, 2005), que gostaria de aqui discutir. Como tentativa de deciframento, o trabalho de Herzog é a construção de caminhos analíticos que levam a uma tese sobre Treadwell e seu percurso. Quanto do Treadwell personagem de Herzog aproxima-se do “verdadeiro Treadwell” não é possível precisar, ainda que 1 2 Revista FACOM 1º Semestre de 2009 o cineasta esteja aparentemente comprometido com a verdade de seu personagem. Mas isso importa pouco diante do fato de ser a narrativa de Herzog uma realidade em si, embora possa não distar léguas do que aconteceu “de fato” fora do filme. Explico: ela é um discurso sobre Treadwell, vida significada por Herzog que acolheu seus fragmentos e o reconstruiu, dando-lhe um corpo e um nome. Ele, Herzog, nos presenteia assim com seu filho Homem-Urso, sua criação, trabalho de sua mente diante da incompreensível ironia de sua fatalidade. E o faz com um entendimento espantosamente coerente, sensível e consciente da coexistência do humano e do bestial dentro de Timonthy Treadwell para que possamos vê-la dentro de cada um de nós. O apaixonado Treadwell tornou-se um urso no sentido mais concreto, primitivo e por isso mesmo, assustador possível. E a primeira idéia que me ocorreu com este filme foi a de como ele escancara a estreita proximidade entre a paixão e a morte. E embora a paixão já tenha sido vivida por boa parte das pessoas, a morte nem sempre parece clara para algumas, talvez hipnotizadas pelo estado de enamoramento, Já se disse que a paixão é o tipo de loucura que qualquer pessoa pode experimentar. Estar apaixonado traz, indissociavelmente, uma série de delícias e uma série de angústias. Exatamente porque o gozo apaixonado é dual, torna-se a extrema gratificação que só o retorno ao estado de indiferenciação pode produzir. E justamente por ela, o apaixonado sofre loucamente quando o elo com o objeto de sua paixão, aquele que “é” a fonte de tanta felicidade, é ameaçado, mesmo que levemente. O brilho que o objeto da paixão tem é o brilho do objeto ideal, presentificado, tornado imaginariamente real numa relação quase (se não inteiramente) delirante, num processo que Freud (1921) descreveu muito precisamente como a substituição do ideal de eu do sujeito pelo objeto. Assim, o objeto é, na fantasia, incorporado pelo sujeito, devorado inteiro. Sujeito e objeto tornam-se um e quanto mais gratificação, mais voracidade e mais angústia. Apenas para exemplificar, tome-se a relação entre o fã e seu ídolo. O primeiro incorpora o ídolo como objeto ideal importando para si seus comportamentos, gostos, inclinações de seu ídolo e tomando-os como se fossem próprios. Divulgação Nº21 Cartaz do filme “O Homem Urso” Os fanáticos viram cópias, arremedos de seus ídolos e, por vezes, ficam até facilmente identificáveis em meio à multidão pela estereotipia de sua aparência ou comportamento. Relacionam-se com eles com a sensação de intimidade como se aqueles fossem uma extensão de si próprios. Evidentemente, uma relação intensa de dependência se forma. Sempre que se menciona este assunto, lembro-me dos tão recorrentes casos em que moças tentam até o suicídio por desespero ao serem abandonadas por namorados. O que fazer com a ausência sempre presente, sempre marcante daquele que se foi, se para a jovem o namorado levou consigo tudo o que a vida dela tinha de melhor? Ou dos pungentes casos de dependentes químicos, que vivem sua paixão pelas 1º Semestre de 2009 Revista drogas – exemplo acabado do poder de alheamento e destruição do “perfeito” encapsulamento narcísico. Em consultório psicológico, sofrimentos intensos causados por rompimento amoroso são extremamente difíceis de tratar e, na minha experiência, nem sempre de bom prognóstico, tanto pela concretude da experiência emocional quanto pela dificuldade de que o sujeito “preencha” seu buraco psíquico com outros objetos que não aquele que se foi. Um quadro severamente melancólico instala-se trazendo a repetição sem fim do buraco, do vazio, da falta e as concomitantes oscilações de ódio, de desespero e de desesperança. Não há versação possível além do objeto ausente pois não há assunto que não o ser ausente, não há interesses além do ser ausente. Tudo sempre leva a ele porque o melancólico está destroçado, esburacado, aos pedaços e orbita em torno do que de mais palpável lhe restou, a sombra do objeto morto: “A sombra do objeto caiu assim sobre o ego; este último, a partir deste momento, pode ser julgado por uma instância especial, como um objeto, e na realidade como o objeto abandonado. Deste modo se transformou a perda do objeto em uma perda do ego, e o conflito entre o ego e a pessoa amada, em uma dissociação entre a atividade crítica do ego e o ego modificado pela identificação.” 1 Treadwell parece-me um apaixonado na luta contra sua melancolia, agarrando-se com unhas e dentes ao que lhe pareceu um bom sustentáculo de seu objeto ideal: os ursos pardos. Sobre eles maciçamente projeta seus conteúdos psíquicos, com isso vendo neles o que queria ver – ou antes, o que podia ver. Ele foge da civilização para o Alasca – o Labirinto do Urso é seu refúgio, um lugar ainda mais remoto na península onde acampa. Herzog mostra-o manifestando uma misantropia que se acentua conforme a clivagem entre o mundo dos homens e o mundo dos ursos é reafirmada, nos moldes de suas fantasias. O recorte feito pelo autor, apoiado em depoimentos de pessoas que conheceram o Homem-Urso e do próprio material audiovisual dos acampamentos que ele deixou gravado, aponta para uma relação entre Treadwell e os ursos em que os contornos entre eles esfumaça-se ficando progressivamente indiscriminado à medida em que ele, o homem, vai incorporando, mimetizan- FACOM Nº21 do o universo das feras, mas vai também humanizando-as, atribuindo-lhes características afetivas, imbutindo-lhes uma missão em sua própria vida. O lado selvagem de Treadwell – pré-verbal, pré-simbólico, indomado e indiscriminado - parece ir tomando conta dele. Pelo olhar atônito do cineasta, vemo-lo escapar para um mundo feérico onde as fadas são Olie, Cracker, Rowdy, Grinch, sr. Chocolate, tia Melissa, Tabitha,... todos ursos pardos que ele batizou, os amigos de “Timmy, the kind warrior”. Emocionado, chega a tocar as fezes de uma de “suas” ursas: “Está quente ainda (...) Estava dentro dela (...) Ela me deu Downey! Tudo sobre eles é perfeito!” Herzog, que se mantém como o narrador do documentário, exprime sua aflição com enorme sensibilidade: “E o que me assusta em todos os rostos de ursos que ele filmou, eu não vejo qualquer parentesco, compreensão, nenhuma piedade. Eu vejo apenas a esmagadora indiferença da natureza. Para mim, não existe tal coisa como o mundo secreto dos ursos. E esse olhar vazio só indica um interesse entediado por comida. Mas para Timonthy Treadwell, este urso era um amigo, um salvador.” 2 É no mundo secreto dos ursos que Treadwell quer viver; é ali onde pertence, onde se sente aceito e incondicionalmente amado. E ele vai-se embora para sua Pasárgada ursídea, embrenhando-se num labirinto selvagem dentro de si, com o desvario alimentando sua misantropia. Escotomizando a realidade, seu refúgio no Alasca parece uma grande extensão de sua própria mente e do refúgio de que necessita para continuar existindo. Em outro momento de emoção, confessa à câmera em um dos acampamentos que, antes dos ursos, ele não tinha vida. E então descobriu quão “desprotegidos” esses estavam e a vida deles tornou-se sua própria. Treadwell agradece aos ursos por terem-no afastado do álcool, por terem-no resgatado. Ficamos sabendo que fora usuário de drogas. 3 Nº21 Revista FACOM 1º Semestre de 2009 Um amigo diz que após uma overdose, ele criara uma nova “persona”, inventando ser um órfão australiano, fazendo sotaque e então parece-me claro que a orfanandade que ele vê nos ursos não é outra senão sua própria. Lembro-me de ter encontrado, certa vez, mãe e esposa de dependente químico que estavam extasiadas e emocionadas, esperanças mais que renovadas na recuperação do familiar. Motivo? Ele seria pai em breve. A esposa descobriu que estava grávida e aquele já era fato suficiente para mergulhar as duas na mais completa euforia. Depositavam no bebê uma fé messiânica: o bebê deixará o parente limpo, “se Deus quiser!”, a despeito do longo e árduo calvário, este sim, que estava sendo a recuperação do familiar. O Cristo que chegou para dar sua vida em troca da salvação de todos os que têm fé... e para fazer mágica diante de situações-limite. Os ursos pardos parecem ter sido o messias de que Treadwell parecia necessitar, com o desespero de quem sente que não existe, tornando-se seu novo vício, sua nova adicção. E todo vício opera no nível da incorporação concreta do objeto no qual o sujeito é viciado – por isso, ao final da construção de Herzog, uma das impressões que fiquei é de que a história não poderia ser de outro jeito, não caberia outro final porque o final é sempre a morte: o objeto exaurido e o sujeito, numa tal indiscriminação com ele, exaure-se junto. Incorporar/digerir 4 Incorporar o objeto não é o mesmo que digeri-lo. No primeiro, o objeto permanece magicamente introjetado, “inteiro”. No segundo, torna-se parte do sujeito por um processo de elaboração que particulariza o objeto, transformando-o organicamente em parte de si. De um jeito ou de outro, o que no apetite voraz urge é a consumação do objeto em fluxo contínuo, sem trégua, sem separação, o que, se efetivado, resulta na morte do objeto. O desejo de incorporação do objeto é o desejo de ser o objeto pelo caminho mais primitivo que existe, ou seja, devorando seus atributos vitais, brilhantes, imaginariamente ideais. Este é um círculo repetitivo pois quanto mais idealizado o objeto, mais vorazmente o desejo de incorporação se coloca. A compreensão psicanalítica deste interjogo entre inveja, voracidade, idealização e incorporação do objeto teve uma contribuição fundamental de Melanie Klein. O outro, vivido como o bom ideal, é visto com a fonte de toda a vida. O ego frágil e depauperado pelas identificações projetivas maciças sente que sua fome é insaciável e o outro, na fantasia, tem todo o bom para dar. A idealização aparece neste momento para Klein (1956) como uma defesa diante da inveja: o ego fica preservado da persecutoriedade do objeto ao vêlo como apenas o bom total e perpétuo, preservando-se assim também da fragmentação. Quando o objeto ideal não se comporta como ideal (afinal, ele não o é de fato), há uma saída para a mente iniciar a desidealização, mas o ego deve ser capaz de suportar esta frustração e para isso ocorrer, ele tem de ter um objeto real, que geralmente é a mãe, que possa ser continente. As fronteiras entre o eu e o outro são confusas quando o eu, fracamente constituído, não consegue se distinguir do ambiente externo. O conteúdo interno vaza. Vaza para todos os lados. O mundo interno do bebê vai se organizando apenas à medida que as ansiedades primitivas conseguirem ser dosadas com experiências libidinais, sendo a mais importante delas, evidentemente, o mamar. As mamadas, quando são satisfatórias e ocorrem no tempo adequado para o bebê, são uma grande fonte de conforto emocional, servindo como motor do desenvolvimento egóico. A ambivalência opera dentro de uma visão limitada do objeto que chamamos de dissociada porque ele é apreendido em pedaços que são vividos como mundos em si, mundos que não se conversam. Assim, o ego enxerga o que lhe é bom ou mau (na realidade ou na fantasia) em termos absolutos e exagerados. Ou seja, o bom é “ideal” e o mau é “persecutório”. A dissociação atua como um mecanismo de defesa, segundo Klein. Isso porque a criação de dois reinos antagônicos seria a forma do ainda frágil ego preservar as boas experiências, mantendo nelas a esperança de salvação contra o mau absoluto. FACOM Nº21 Divulgação 1º Semestre de 2009 Revista Cena do filme “O Homem Urso” Não é difícil perceber como a humanidade termina atuando de acordo com este funcionamento. Numa guerra, no fanatismo religioso, num grupo terrorista – e nos filmes policiais standard, na tendência das pessoas a sempre encontrar “mocinhos” para lhes salvar dos “bandidos” – a visão de objeto é assim dicotômica, tal qual nos contos de fada: o bom e o mau estão em terrenos bem separados e incomunicáveis. De fato, esta dissociação é um falseamento da verdade porque este maniqueísmo resulta da impossibilidade da mente de suportar uma visão mais elaborada da realidade, funcionando em padrões infantis mesmo que o sujeito já seja adulto. Explicações lineares e simplistas são as únicas que uma mente mais frágil e com pouca capacidade de elaboração consegue suportar. Ao que parece, Treadwell alimentou-se de uma visão idealizada e negadora da natureza, escapando assim da selvageria humana que habita a todos. Aliás, visão esta que encontramos também em diversos programas sobre a vida natural como “Bindi”(Discovery Kids) e inúmeros shows do Discovery e NatGeo com seu repreensível hábito de, por exemplo, dar nomes às hienas e aos leões do Serengueti ou ensinar às crianças como os tigres de bengala são fofos e certas cobras ficam lindas enroladas ao pescoço. Aliás, Bindi é a filha do “caçador de crocodilos” australiano que, como Treadwell, igualmente “morreu em serviço”. Não se pode deixar de mencionar que Treadwell fora, com efeito, uma estrela de sucesso em seus próprios documentários, levando-os a es- colas América afora, aparentemente sem nada cobrar. É incrível notar a familiaridade que tem com a câmera e sua capacidade de torná-la quase onipresente durante os acampamentos. Senti-me dentro dos acampamentos, participando de tudo, como se os limites fossem tênues. Timonthy Treadwell mostrava-se muito à vontade, convidando o espectador para sua intimidade quase sem barreiras. A especularidade desta relação como algo que poderosamente dava-lhe um sentido de vida, uma identidade, um ser-alguém é incrivelmente claro no filme. Herzog reconstruiu algo da vida ceifada e destroçada de Treadwell, digerindo o material, selecionando cenas, lapidando o entendimento. Ao fazê-lo, mostra uma aliança de vida, onde encontramos o trabalho do pensamento (não o pseudopensamento da racionalização), que é a única real possibilidade que temos, além da sorte, de nos salvar do destino trágico que a pulsionalidade sem representação nos reserva. Winnicott (2000) tem uma citação curiosa sobre qual deve ser o desejo para um, no caso, analista, do que é feito dele por um paciente, diferenciando entre ser devorado (magicamente introjetado pelo paciente) e ser comido (digerido e internalizado por eles): “Queremos ser comidos, não magicamente introjetados”.3 5 Nº21 Revista FACOM 1º Semestre de 2009 Treadwell devorava ursos pardos há anos. Ao final do filme, já temos desenhado um mapa com hipóteses plausíveis sobre o que aconteceu com o Homem-Urso. Mas uma nova indagação surge, fazendo coro com a do cineasta: quando será que nós, humanos, poderemos ter com nossa própria natureza no que ela guarda de assassina, bestial, truculenta, sombria e devoradora, uma relação que não a subestime mas que não seja de mais violência, que, como não se cansou de escrever Adorno, entre outros, sempre retorna na forma de barbárie. 1 FREUD, S. [1917] – Duelo y Melancolia. Obras Completas. 4a ed., Madrid: Biblioteca Nueva, 1981. p. 2095. 2 HERZOG, Werner. O Homem-Urso. EUA/Alemanha, 2005. 3 WINNICOTT, Donald W. – A posição depressiva no desenvolvimento normal. Da Pediatria à Psicanálise. Rio de Janeiro: Imago, 2000. p. 373. FREUD, S. [1917] – Duelo y Melancolia. Obras Completas. 4a ed., Madrid: Biblioteca Nueva, 1981. FREUD, S. [1921] – Psicologia de las Masas y Analisis Del Yo. Obras Completas. 4a ed., Madrid: Biblioteca Nueva, 1981. KLEIN, Melanie [1956] – A Study of Envy and Gratitude. In: MITCHELL, Juliet. The Selected Melanie Klein. New York, The Free Press, 1986. WINNICOTT, Donald W. – A posição depressiva no desenvolvimento normal. Da Pediatria à Psicanálise. Rio de Janeiro: Imago, 2000. Sandra Nunes Yara Malki 6 Professora de Psicologia da Comunicação da FACOM-FAAP, psicóloga e psicanalista. Mestre em Psicologia pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo.