Um exemplo da desorganização nacional
J. Norberto Pires*
O maior problema de Portugal não é o seu atraso relativamente ao resto da
Europa, porque isso tem solução (veja-se a Irlanda), nem é a qualificação dos
seus cidadãos, porque isso também tem solução (esta ridiculamente simples:
avaliação rigorosa). O maior problema de Portugal é cultural, está enraizado nas
pessoas, é-lhes incutido desde pequenos, todos os dias e de várias formas. Tem a
ver com a enorme aversão do País à organização, à definição e cumprimento de
regras, à avaliação. Sem objectivos e sem organização que os permita realizar
caminhamos para o desastre.
A organização pressupõe o estabelecimento de regras claras. Ora, as regras que
temos, quando as temos, são fluidas, dão para qualquer coisa. E se, por “erro de
cálculo” (muito frequente), não permitem determinada coisa, não há nenhum
problema, porque logo se alteram as regras, com a passividade geral. Se, na
escola, os alunos não se esforçam e não aprendem, baixam-se as exigências. Se
for necessário, não se avalia ou faz-se uma avaliação virtual. Quando se tem
mesmo de avaliar, o resultado não serve para nada. Vivemos para parecer e não
para ser, já que parecer custa bastante menos do que ser. Também pouco
interessa se os professores trabalham muito ou pouco, porque ninguém é
avaliado a sério pelo seu desempenho. O mesmo se passa, embora em menor
grau, na economia. Se as empresas certificadas não prestam serviços em
condições, não sofrem consequências. Continuam certificadas, porque já toda a
gente se habituou a ficar indiferente perante a falta de qualidade. A avaliação e a
certificação são chavões, que se apregoam mas não correspondem a uma forma
consciente de vida, tanto de pessoas como de instituições.
Como exemplo da desorganização nacional, veja-se o caso do Ministério de
Educação (ME) e a Ordem dos Engenheiros (OE). Um aprova, autoriza e até
avalia cursos de engenharia e o outro não os reconhece. Actuam como se não
fossem instituições públicas e de utilidade pública do mesmo país, fazendo com
que existam licenciados em engenharia impedidos de exercer plenamente a sua
profissão. Depois, recorrendo a raciocínios complicados e de fundamentação
duvidosa, inventam (fartamo-nos de inventar!). Fazem-se exames de admissão
em organizações profissionais a profissionais que já o são. Eu próprio sou
licenciado em Engenharia Física, pela Universidade de Coimbra. Sou também
Mestre em Física Tecnológica e Doutor em Engenharia Mecânica, pela mesma
Universidade. Mas não estou inscrito na OE, porque esta me impede a inscrição.
Porquê? Porque o curso de Engenharia Física (um tipo de curso reconhecido no
estrangeiro, onde os licenciados que forma são altamente valorizados) não está
acreditado pela OE. Na verdade, não está acreditado nenhum dos seis cursos de
Engenharia Física (além do de Coimbra, o do Instituto Superior Técnico, o da
Universidade de Lisboa, o da Universidade Nova de Lisboa, o de Aveiro e o da
Universidade do Algarve). Mas funcionam todos e com bons resultados. Existem
hoje mais de 600 engenheiros físicos, muitos doutorados, a grande maioria a
exercer profícua actividade na sua área.
Para me inscrever na OE, pedem-me um exame de admissão, o qual recuso por
não ser o papel da Ordem fazer exames (esse é um papel da universidade). Um
dia destes haverá engenheiros físicos que são professores catedráticos. O que vai
fazer a OE? Fazer-lhes um exame? Tem de o fazer porque as regras são para
todos (serão?), mas cobrir-se-á de ridículo.
Acresce que pelo menos um curso de Engenharia Física (o do Técnico) esteve
recentemente acreditado pela OE. Ou seja, um aluno saído hoje dessa escola tem
de fazer exame de admissão à OE, mas um que tenha terminado dois anos antes
não teve de o fazer?!
O resultado é o descrédito da OE e, com ela, de toda uma classe. Mas também o
descrédito do ME, porque oferece cursos de engenharia não reconhecidos pela
OE, a instituição profissional que deveria representar os licenciados em
engenharia. É um verdadeiro engano!
Só deveriam funcionar com o nome de engenharia cursos criados com o aval do
ME, eventualmente em conjunto com a OE, que deveriam ser regularmente
avaliados para manterem o seu reconhecimento. Essa avaliação devia ser
rigorosa e independente. E devia ter consequências, uma das quais devia ser o
reconhecimento das pessoas formadas.
Repare-se que a maior parte dos cursos reconhecidos de engenharia vive
essencialmente da física tal como esta era no início do século XX. Poucos
descobriram a física moderna, que permitiu afinal as grandes realizações do
nosso tempo. Ao mesmo tempo, os cursos que conferem preparação na física
mais moderna são discriminados pela OE.
A ausência de organização transforma os direitos dos cidadãos em meras frases
no papel. Os portugueses não exigem, não querem saber, a começar pelos
próprios governantes. Os políticos esquecem que a primeira coisa que devem
fazer, depois de eleitos, é casar com a culpa, em bodas públicas e solenes. E as
pessoas sabem que há sempre uma volta a dar, uma invenção a fazer. Não
confiam nas instituições. Tal estado de coisas mina o funcionamento da
sociedade, uma vez que a confiança nos órgãos de governo e nas instituições
públicas ou de utilidade pública é a base de uma democracia responsável e de
uma sociedade desenvolvida.
* Professor Auxiliar do Departamento de Engenharia Mecânica da Universidade de
Coimbra. Polo II, 3030, Coimbra.
[email protected]
Texto Publicado na Revista “Gazeta da Física”, da Sociedade Portuguesa de Física.
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