Augustus – Rio de Janeiro – Vol. 08 – N. 17 – Jul./Dez. – 2003 – Semestral
UMA ANÁLISE INTRODUTÓRIA À NOÇÃO
DE FATO SOCIAL TOTAL EM MARCEL MAUSS
Aline Trigueiro*
Nas sociedades mais do que idéias ou regras apreendem-se homens, grupos e seus comportamentos. (…) O
princípio e o fim da sociologia é perceber o grupo inteiro e seu comportamento global.
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Marcel Mauss
RESUMO: A obra de Marcel Mauss (1872-1950) não somente redimensionou a maneira como “olhar” e compreender “o outro”, mas, sobretudo, foi capaz de demonstrar de que
modo, através da análise dos fatos sociais, a totalidade de uma cultura pode ser revelada.
Este é justamente o motivo pelo qual este trabalho ganha impulso. Sua proposta constituise em discorrer sobre a noção de fato social total, tomando como suporte analítico alguns
textos do próprio autor. Trata-se de fazer um excurso sobre como tal noção foi sendo paulatinamente construída durante as reflexões de Mauss sobre a vida em sociedade. Isso poderá contribuir para revelar alguns aspectos da trajetória intelectual deste autor e, por
conseguinte, o amadurecimento de suas idéias.
ABSTRACT: Marcel Mauss’ work has redefined the way one “sees” and understands
“the other” but above all he has been able to show how a specific culture could be uncovered as a whole by means of the analysis of social facts. The main goal of this paper is to
discuss the total social fact, which is an important theme proposed by Marcel Mauss. Our
analysis will be based on some relevant Marcel Mauss’ essays and will try to explain how
that notion was gradually constructed by the author during his reflections about social life.
We hope this can contribute to highlighting some of Marcel Mauss’ academic life and consequently the development of his ideas.
Palavras-chave: Marcel Mauss; fato social total.
Keywords: Marcel Mauss; total social fact.
1 – INTRODUÇÃO
A análise dos textos de Marcel Mauss constitui-se em uma referência importante àqueles que
buscam compreender como se conforma o processo de interação entre o Indivíduo e a Socieda––––––––––
de, ou ainda, como o mundo social, a partir de
sua dimensão simbólica, é capaz de estruturar as
práticas e as representações sociais. O autor em
destaque segue uma linha de pensamento que tem
*
Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia da UFRJ.
In. O Ensaio sobre a dádiva – forma e razão das trocas nas sociedades arcaicas, p. 181.
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por objetivo resgatar a percepção da totalidade,
ressaltando a preeminência da sociedade frente a
uma corrente analítica na qual prepondera a perspectiva individualista – aquela que concebe a sociedade como resultante, apenas, da associação de
indivíduos.
Compreender o mundo social sob a perspectiva
da totalidade, tal como Mauss se propôs, é entender como se estrutura e se distribui o valor2 dentro
de cada cultura, fato que, não obstante, torna precípua a análise do concreto, da realidade como ela
é e aparece nas formas de representação, classificação e organização social. Ou seja, faz-se valoroso tudo aquilo que rege e compõe a cosmologia de
uma determinada organização cultural.
Segundo Louis Dumont (1993), a preocupação
de Mauss com o real – “o melanésio de tal ou tal
ilha” – faz parte de um princípio analítico que objetiva transformar os dados concretos em fatos
sociológicos. Diz L. Dumont: “Com Mauss a percepção concreta reagiu verdadeiramente sobre o
quadro teórico” (DUMONT, 1993, p. 180). Para
Marcel Mauss, analisar uma cultura significava
ter acesso às noções nativas de valor, as quais
permitiriam conhecer as representações sociais
dentro de seus próprios contextos. Ou seja, era
parte do “projeto” analítico de Mauss a compreensão da totalidade da vida social, especialmente
como esta se apresentava aos sujeitos sociais e,
por conseguinte, como estes a representavam.
Em linhas gerais, o presente trabalho tem por
tarefa acompanhar a construção do projeto analítico de Marcel Mauss – compreender os fatos sociais enquanto dimensões totais de uma cultura –
seguindo a discussão desse tema em alguns trabalhos do autor3. Ao final, após ter feito tal esforço
––––––––––
2
A noção de valor, empregada aqui a partir de uma interpretação
da obra de Louis Dumont (1994), pode ser compreendida como
uma categoria que permite conhecer a dimensão cosmológica de
uma cultura, isto é, os seus estoques de valor e, ainda, como estes
se distribuem diferencialmente entre os vários âmbitos da vida
coletiva, tornando explicita a maneira como as relações, as práticas e as representações sociais de um determinado grupo ou sociedade são classificadas hierarquicamente.
3
Neste trabalho, optou-se por seguir a seqüência cronológica de
alguns trabalhos de Mauss (por ano de publicação): “Ensaio sobre
as variações sazonais das sociedades esquimós” (1904-1905); "A
expressão obrigatória dos sentimentos" (1921); "Ensaio sobre a dádiva – forma e razão das trocas nas sociedades arcaicas"
(1924); "Uma categoria do espírito humano: a noção de pessoa, a
noção de ‘eu’” (1938). Desse modo, espera-se ter uma melhor
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de análise, espera-se que os principais encaminhamentos que contribuíram para a construção da
noção de fato social total possam ser revelados.
2 – A CONSTRUÇÃO DO PROJETO
SOCIOLÓGICO DE MARCEL
MAUSS: a preeminência do Social.
2.1 – O geográfico e o social:
a morfologia das sociedades esquimós.
A morfologia social da cultura esquimó possui
uma peculiaridade que torna possível compreendermos em que sentido o ambiente físico interfere
e/ou se relaciona com a vida social. Isto se deve
ao fato de tal morfologia ser alterada conforme as
variações sazonais. Resultam disso algumas indagações. Seriam os fatos sociais determinados pelas variações geográficas e climáticas? Como e
por quê a morfologia social esquimó altera-se
com as diferentes estações? Estas são algumas
questões que permeiam todo o ensaio sobre As
variações sazonais das sociedades esquimós, as
quais Mauss se propôs analisar e compreender.
Desde o início de sua exposição Mauss desconfia das análises feitas por geógrafos e antropogeógrafos sobre a sociedade esquimó, justamente por
estes não a terem analisado sob o ponto de vista
sociológico, mas, ao contrário, manterem-se concentrados, em maior ou menor grau, no solo, enquanto elemento fundamental e estruturante da
sociedade. Essa proposição é discutida e criticada
por Mauss que percebe o meio geográfico não como determinante da vida social, mas como um dos
aspectos presente em uma realidade múltipla e dinâmica. O geográfico é pensado em relação com a
totalidade e complexidade da vida social, não podendo ser visto, portanto, como fator preponderante e determinante dos modos de agir e operar no
contexto da vida em sociedade. Isto, em princípio,
responde a primeira indagação apontada acima,
resta-nos tentar resolver a segunda.
A morfologia esquimó altera-se com as variações sazonais. No verão tem-se estruturado um
tipo de morfologia que segue o seguinte aspecto:
–––––––––––––––
percepção do que foi sendo aprimorado e do que foi deixado de
lado na trajetória da produção acadêmica desse autor.
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as habitações são construídas distantes umas das
outras, constituindo-se em tendas ocupadas por
uma única família (homem, mulher(es) e filhos
solteiros); o parentesco é individual e o direito é
patriarcal, não existindo religião nesta estação. A
morfologia social é marcada por uma maior dispersão. No inverno tudo se modifica, pois tudo
é parte de um estado de contínua exaltação religiosa, presença de mitos, rituais de xamanismo,
danças, festas etc. As famílias constroem suas casas próximas umas das outras e é possível encontrar em uma mesma casa várias famílias cohabitando. Existe durante esse período uma concentração da vida social.
A oposição entre os modos de vida do verão e
os modos de vida do inverno afeta as representações coletivas, alterando o sistema nominativo,
pois até mesmo as pessoas são classificadas de
acordo com a estação em que nascem, demonstrando com isso, como todo o sistema classificatório altera-se sob as mudanças climáticas. Podemos dizer que, na sociedade esquimó, o princípio social estruturante é a relação inverno-verão.
Tudo parece ser classificado de acordo com esse
princípio, os nomes dos grupos, os hábitos, o parentesco, os tipos de habitação, a religião, o direito, a alimentação, enfim, toda a organização social
opera a partir dessa noção, como escreve Mauss:
Assim, a própria maneira como são classificados, os homens e as coisas têm o cunho dessa oposição cardeal entre as duas estações. Cada estação define todo um gênero de seres e de coisas.
(…) Pode-se dizer que a noção de inverno e a noção de verão são como dois pólos em torno dos
quais gravita o sistema de idéias dos esquimós
(MAUSS, 1974, p. 300).
Isso significa, portanto, que a oposição verãoinverno compõe o sistema simbólico da sociedade
esquimó, constituindo-se no princípio que ordena
toda a vida social.
Essa oposição entre o verão e o inverno coaduna, mesmo com ressalvas, com o princípio analítico proposto por L. Dumont (1994) sobre o
sistema de castas da sociedade indiana, sobretudo, a partir da dicotomia que este autor estabelece
entre o puro e o impuro4 naquela sociedade. As––––––––––
4
Segundo Dumont, na Índia, onde o sistema de castas é encontrado, o princípio cosmológico que estrutura toda a organização so-
sim como na Índia, onde o par de oposição puroimpuro constituiu-se enquanto sistema diferencial
de valor, ou seja, enquanto distribuição hierárquica entre o a mais e o a menos cultural, assim
também se pode afirmar que o par de oposição
inverno-verão estrutura a dimensão cosmológica
da sociedade esquimó.
Certamente não é possível equalizar o exemplo
indiano ao esquimó, pois ambos possuem suas
peculiaridades culturais, mas a análise feita por
Dumont é útil para pensarmos sobre o significado
da existência da dicotomia verão x inverno entre
os esquimós. Todavia, pode ser aceitável compreender essa dicotomia como resultante de uma distribuição hierárquica de valor, pois no verão, a
organização social se constitui sob o ponto de vista mais individualizante, parentesco individual,
dispersão, formas que correspondem ao âmbito
do profano. O inverno, ao contrário, é marcado
pelo coletivismo, pela religião, pela aglomeração
e se apresenta sob os auspícios do sagrado.
Mauss, embora tenha utilizado a relação sagrado-profano para se referir às mudanças que
ocorriam entre o verão e o inverno, não afirmou
substancialmente que a chave de significados da
sociedade esquimó era estruturada pela oposição
sagrado versus profano, como Émile Durkheim,
talvez, pudesse afirmar. Por outro lado, ele percebe que existe uma oposição e que ela estrutura
distintas relações entre as morfologias social e
geográfica. Porém, o fundamental dessa análise é
que não é o meio geográfico que determina as
–––––––––––––––
cial é a relação puro-impuro. Tal relação está associada a uma
distribuição diferencial de valor que ocorre dentro da própria sociedade indiana, a qual define aqueles que possuem um valor a
mais na hierarquia social: os que ocupam as castas superiores,
considerados puros e, também, aqueles que ocupam os lugares
hierarquicamente menos privilegiados naquela sociedade: os que
se encontram nas castas inferiores, considerados impuros. É importante ressaltar que essa distribuição desigual de valor entre as
diferentes castas não representa um diferencial de poder, mas,
como já foi dito, tem a ver com uma hierarquia de valores existente dentro daquela sociedade. Desse modo, a lição que Dumont
traz é a de que não se pode querer entender o exemplo da sociedade de castas a partir de valores ou modelos explicativos que fazem parte das sociedades ocidentais individualistas (onde estão
presentes às discussões sobre poder, classes e estratificação) totalmente distintas da cosmologia indiana, regida por um modelo
hierárquico, classificado segundo a relação puro-impuro. Para
Dumont, compreender a sociedade indiana sem atentar para este
fato é perder a chave de significados que permitiria adentrar o
sentido nativo de explicação da realidade. Maiores informações
consultar Dumont (1994).
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condições humanas de existência, mas é o todo
social que o utiliza e o transforma a partir de seus
valores e códigos simbólicos.
Todos os aspectos da dinâmica social esquimó
estão marcados pela oposição verão x inverno.
Porém, tomar isso como a predominância do geográfico sobre o social não foi o intento de Mauss.
De modo inverso, seu pensamento caminhou para
a conclusão do que muitos geógrafos e antropogeógrafos não perceberam, que, na sociedade esquimó, é necessário analisar não apenas os aspectos morfológicos, mas vê-los dentro de sistemas concretos através do simbólico.
Pensar essa oposição do ponto de vista simbólico, e não apenas do ponto de vista geográfico, é
fundamental para entender a cosmologia daquela
cultura, entender como os nativos pensam, comportam-se, classificam e se organizam a partir
desse princípio.
Mauss conclui seu ensaio sobre “As variações
sazonais na sociedade esquimó” chamando a
atenção de que a oscilação social entre inverno e
verão naquela sociedade também faz parte da dinâmica de outras culturas e está presente, ainda
hoje, nas nossas sociedades ocidentais o que o faz
concluir que estaríamos diante de um fenômeno
com ampla generalidade.
Diz-nos Mauss:
“… basta olhar o que se passa à nossa volta nas nossas sociedades ocidentais, para que sejam encontradas as mesmas oscilações” (MAUSS, 1974, p. 323).
E continua:
A vida social não se mantém no mesmo nível nos diferentes momentos do ano, mas passa por fases sucessivas e regulares de intensidade crescente e decrescente, de pausa e de atividade, de gasto e de reposição (...) Chegamos mesmo a perguntar se, mais
do que causas determinantes e necessárias do mecanismo como um todo, as influências sazoneiras não
são causas ocasionais que marcam o momento do ano
em que cada uma dessas duas fases pode situar-se de
maneira mais oportuna (MAUSS, 1974, p. 324).
Não são, portanto, as variações climáticas que
determinam a mudança dos fenômenos sociais,
elas apenas operam atuando sobre a densidade
social. Poder-se-ia concluir, então, que as variações sazonais atendem a uma função social e é a
partir deste aspecto que ela deve ser analisada.
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No parágrafo conclusivo do ensaio sobre a sociedade esquimó, Mauss deixa indicada sua preocupação com a vida social enquanto totalidade,
pois constata que na sociedade esquimó “no preciso momento em que a forma do agrupamento
muda, vê-se a religião, o direito, a moral, transformaram-se concomitantemente” (MAUSS, 1974,
p. 326). Ou seja, as variações sazonais não alteram somente a forma social, mas com ela todo o
seu conteúdo, de modo que alterar um aspecto
pressupõe a alteração do todo. Isso só pode ser
bem entendido se tivermos em mente a vida social como forma dinâmica e articulada na concretude de suas práticas e representações.
Naquele pequeno trecho destacado da obra de
Mauss já encontramos esboçada a idéia de fato
social total, embora ela esteja plenamente descrita em um outro ensaio chamado “O ensaio sobre
a dádiva”, que analisaremos mais adiante.
2.2 – O FISIOLÓGICO E O SOCIAL:
a expressão obrigatória
dos sentimentos
Os aspectos empíricos e fisiológicos considerados por nós – ocidentais modernos imbuídos
com os valores individualistas – como algo particular e individual possuem, para Mauss, a marca
da sociedade.
Segundo Lévi-Strauss (1974) tais aspectos
(empíricos e fisiológicos) constituíam-se em uma
eminente preocupação de Mauss em querer perceber a “maneira pela qual cada sociedade impõe
no indivíduo um uso rigorosamente determinado
do seu corpo” (LÉVI-STRAUSS, 1974, p. 2).
Mauss teria sido, para Lévi-Strauss, um dos primeiros a salientar esse tipo de relação entre o social e o fisiológico, demonstrando que:
Os limiares da excitabilidade, os limites da resistência são diferentes em cada cultura. O esforço “irrealizável”, a dor “insuportável”, o prazer
“indizível” são mais critérios sancionados pela
aprovação ou desaprovação coletiva do que função de particularidades individuais. Cada técnica,
cada conduta tradicionalmente apreendida e transmitida, fundamenta-se em certas sinergias nervosas e musculares que constituem verdadeiros sistemas, solidários com todo um contexto sociológico (LÉVI-STRAUSS, 1974, p. 4).
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A análise dos rituais de expressão dos sentimentos entre os australianos (MAUSS, 1980), por
exemplo, permite-nos compreender essas afirmações e pode nos fornecer pistas sobre os significados pertinentes a essa própria cultura. Os rituais
australianos são marcados pela coletividade, são
cerimônias públicas, repletas de simbolismo. Nesse aspecto é fácil perceber o caráter coletivo, são
cerimônias ritmadas que expressam uma linguagem que é conhecida por todos.
… todas essas expressões coletivas, simultâneas, de
valor moral e de força obrigatória dos sentimentos
do indivíduo e do grupo, são mais do que simples
manifestações são signos de expressões compreendidas. Numa palavra, são uma linguagem. Esses gritos são como frases e palavras. É preciso pronunciálos, mas, se é preciso pronunciá-los, é porque todo o
grupo os compreende (MAUSS, 1980, p. 62).
Com isso chega-se à conclusão de que esse é
um ato simbólico capaz de envolver práticas e representações coletivas, pois, manifestar os sentimentos coletivamente é participar, compartilhar e
estar envolto por uma rede de múltiplas relações
que abrange todo o sistema social.
É por essa forma que Mauss pretende mostrar
como a sociedade obriga certos usos do corpo,
mostrando que as expressões dos sentimentos não
são resultados de algo interior, apenas fisiológico
ou psicológico, mas são na verdade fenômenos sociais marcados pela obrigatoriedade, porque contêm a marca da totalidade social, do valor social.
Mesmo em sociedades, como as ocidentais modernas, que pouco ritualizam as expressões dos
sentimentos é possível encontrar a marca da sociedade nesses atos. Também aí, os rituais de expressão dos sentimentos são fenômenos marcados não
pela espontaneidade, mas pela obrigação. Em sociedades cujo valor simbólico é o indivíduo, a expressão do sentimento é também uma construção
social, possui uma marca coletiva, ainda que essa
não seja imediatamente visível. Embora Mauss
não tenha comparado em seu artigo sobre “A expressão obrigatória do sentimento” os rituais de
expressão dos sentimentos dos australianos à sociedade moderna, tentaremos fazer esta digressão.
Diferentemente da Austrália, onde segundo
Mauss a expressão do sentimento é algo coletivo,
as sociedades modernas desenvolveram uma for-
ma particular de expressão dos sentimentos, que
em princípio apresenta-se como particular, privada, mascarando todo o processo de ritualização de
sua expressão. No entanto, isso só pode ser possível de ocorrer em uma sociedade que opõe razão
e emoção e que restringe o campo de atuação de
cada uma, encerrando-as dentro do indivíduo como algo contraditório ao invés de complementar.
Ou seja, a expressão privada dos sentimentos,
presente nessas culturas individualistas, enuncia
os princípios cosmológicos que regem essas mesmas culturas.
Não obstante, mesmo que se queira afirmar
que a expressão do sentimento é algo particular e
não-obrigatório nas modernas culturas ocidentais,
não é possível omitir que no fundo ela resulta da
nossa própria imagem cultural. Isto é, só é possível compreender a expressão do sentimento como
algo privado e particular em culturas onde a parte
se sobrepõe ao todo, ou seja, onde o indivíduo é o
valor fundamental.
De um modo geral, os trabalhos de Mauss são
convidativos à reflexão e ao entendimento de
como mesmo em modelos de explicação individualista da realidade, que operam em sociedades
que têm tal princípio por valor, o aspecto coletivo
não deixa de existir. É provável que na inquietação de compreender de que forma a sociedade está presente na vida das pessoas, Mauss tenha se
dedicado ao estudo dos fatos sociais e os modos
pelos quais estes são capazes de revelar como a
sociedade se apresenta enquanto totalidade – algo
a mais que a soma de seus elementos individuais.
Acreditamos que essa perspectiva do entendimento da vida social enquanto totalidade tenha sido o caminho inicial para a proposição maior de
Mauss: a noção de fato social total.
2.3 – O FATO SOCIAL TOTAL:
as trocas agonísticas na Polinésia,
Melanésia e Noroeste Americano.
Nos trabalhos anteriores ao “Ensaio sobre a
dádiva” (1924), Mauss apresentou a vida social
como todo organizado, estruturante dos vários níveis englobados por esta, porém ainda não havia
descrito os fatos sociais totais. Embora a idéia já
estivesse presente, a forma só foi proposta no ensaio de 1924.
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Entender o fato social é procurar vê-lo a partir
da sociedade concreta, ou seja, tomando a dimensão social como realidade e não como abstração.
Isso é possível, apenas, buscando-se neste contexto, os sujeitos sociais totais, aqueles que agem e
comportam-se permeados por múltiplos valores, que
conformam suas ações. A partir da observação e análise das categorias nativas têm-se, então, o acesso
ao sistema simbólico que estrutura uma sociedade.
Segundo Lévi-Strauss (1974) o fato social total não representa uma associação linear
dos aspectos descontínuos: familial, técnico,
econômico, jurídico, religioso, seja qual for o aspecto pelo qual poderíamos ser tentados a apreendê-lo exclusivamente. É preciso também que
ele se encarne em uma experiência individual (...)
primeiro, em uma história individual que permita
‘observar o comportamento de seres totais e não
divididos em faculdades’; segundo, gostaríamos de
chamar de antropologia, isto é, um sistema de interpretação que simultaneamente considere os aspectos físico, fisiológico, psíquico e sociológico de
todas as condutas (LÉVI-STRAUSS, 1974, p. 24).
É, então, nos agentes sociais concretos, no interior de suas culturas que todos esses aspectos
se integram; porque antes de tudo o fato social
total opera no âmbito relacional, compõe-se da
relação entre indivíduos e sociedade, somente
nesse sentido pode-se enxergar as relações entre
o sujeito e seu grupo, e suas formas de atuar e
representar a vida social.
Na Polinésia, na Melanésia e no Noroeste
Americano, Mauss encontrou o fato social total
na sua forma elementar e primordial – o potlatch.
Esse é um sistema de trocas de presentes-dádivas
que movimenta e organiza as várias dimensões da
vida em sociedade e as relações sociais nessas localidades. As trocas são efetuadas em cerimônias,
festas, rituais que ocorrem entre coletividades5
(tribos, clãs, famílias), onde os princípios básicos
que operam nessas trocas são: a obrigação de dar,
de receber e retribuir dádivas. Integradas a este
modelo estão as noções de reciprocidade e confli––––––––––
5
Tais trocas não seguem a lógica da simples permuta de bens entre
indivíduos, mas ao contrário, ocorrem entre grupos e organizações sociais. O que se trocam não são apenas bens utilitários, mas
também gentilezas, posições políticas, ritos, festas, mulheres,
danças etc. Todas as “coisas” que são trocadas no potlatch estão
imbuídas de um valor a mais, um mana que confere prestígio e
honra a aqueles que as trocam e as recebem.
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to, já que o potlatch é por definição um sistema
de prestações totais de caráter agonístico, ou seja,
expressa rivalidade.
As coisas permutadas são portadoras de um
espírito que faz com que elas circulem e sejam
trocadas baseadas em um princípio nativo da reciprocidade: o hau. Segundo o direito maori, onde aparece o princípio do hau, a “coisa” trocada
ou recebida (taonga) não é inerte, existe uma obrigação de fazê-la circular, porque ela é animada
pelo hau (espírito da floresta), isto é, pelo lugar
de onde provém. Portanto, dar algum presente a
alguém é dar algo de si, pois o que é dado leva
consigo a essência, ou substância espiritual de seu
dono, por isso ele deve ser imediatamente retribuído para que o hau da “coisa” dada retorne ao seu
ambiente original. O hau é, portanto, a consciência nativa da reciprocidade, é uma noção de valor
à qual os cientistas sociais somente têm acesso através das representações dos sujeitos sociais em
seus contextos.
Também há antagonismo nesses sistemas de
troca. Observa-se isso nas cerimônias de “luta de
presentes”, “luta de generosidades” e destruição
de riquezas – encontradas, sobretudo, no Noroeste Americano onde estão as formas mais raras e
evoluídas desses sistemas. O objetivo dessas cerimônias é superar uns aos outros, doadores ou
donatários, em generosidades, pois dar objetos de
maior valor significa aumentar o prestígio de sua
tribo e clã frente às outras. As lutas são normalmente de caráter simbólico, podendo vir a tornarse guerra caso a obrigação de dar, receber e retribuir as dádivas não seja cumprida. As tribos, os
clãs e os chefes que assim o fizerem sofrem o peso das sanções sociais.
Dar presentes-dádivas, despojar-se de objetos
valiosos representa, ainda, angariar para si (clã,
chefes, famílias) um valor a mais, um mana, ocorrendo o inverso com aquele que é obrigado a
receber. Dar significa desafiar aquele que recebe,
pois o presente dado significa, muitas vezes, um
ato de humilhação ao donatário, obrigando-o a retribuir algo que, muitas vezes, ele não será capaz.
Receber uma dádiva é aceitar um desafio, é
antes ter de provar que o clã, a tribo e o chefe são
capazes de retribuir o presente com igual ou maior valor, assim sendo, mantém-se o privilégio, a
honra e o prestígio sociais. Não retribuir significa
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perder posição, perder prestígio e até mesmo
“perder a posição de homem livre” (MAUSS,
1974a, p. 112).
Percebe-se, com essa breve análise dos sistemas de prestações totais, o caráter ambíguo da
troca, ao mesmo tempo em que faz associar também confronta. Isso é parte constitutiva do próprio princípio da reciprocidade que também se
revela como momento de tensão social através
das formas ambivalentes de associação e oposição, ressaltando, com isso, o sistema de hierarquia social. A troca seria, portanto, o conceito que
faz relacionar todos os aspectos da vida em sociedade; seria para Mauss um princípio geral, presente ainda hoje6.
O potlatch apresenta-se como um fenômeno
total, um fato social “mobilizador” dos comportamentos, ações e classificações sociais dos agentes. A obrigação de dar, de receber e retribuir os
presentes faz com que todos os aspectos e elementos da vida social interajam, constituindo um fato
social total que opera nesse ambiente de relacionalidade integrando os vários âmbitos sociais. Contudo, isso só pode ser visto em síntese nos agentes
sociais concretos, nos comportamentos e representações que estes fazem no e do seu contexto; em
suma, na própria dinâmica da vida social. Com isso, Mauss nos ensina que através da análise dos fatos sociais, a totalidade de uma cultura pode ser
revelada e que é possível perceber a vida social
como realidade total, onde não há preeminência de
uma ou outra dimensão social, mas antes, todas
estão presentes integradas e interagindo através
dos atores sociais. Pois, como diz Merleau-Ponty
(1989): “vivemos na unidade de uma só vida todos os sistemas de que é feita nossa cultura”7.
3 – CONSIDERAÇÕES FINAIS:
É possível encontrarmos nas obras de Marcel
Mauss vários elementos, dentre eles: a noção de
totalidade e de generalidade dos fatos sociais. En––––––––––
6
Os potlatchs que foram analisados sob a ótica da rivalidade e do
conflito correspondem a aqueles tipos de fenômenos que podem
ser chamados de “totais”, pois fazem interagir nas ações, representações e comportamentos individuais e coletivos aspectos religiosos, mitológicos, relacionados à troca, à morfologia social etc.
7
In: Merleau-Ponty – De Mauss a Lévi-Strauss. Coleção Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, p. 199.
tretanto, existe um outro aspecto que permeia
seus escritos e que está associado aos acima referidos, que também nos auxilia na compreensão da
sua trajetória intelectual. Trata-se da crítica ao
modelo individualista (presente de modo latente
em suas obras). Talvez, preocupado em descobrir
as origens desse valor que permeia as sociedades
ocidentais modernas, Mauss tenha se proposto estudar no ensaio “Uma categoria do espírito humano: a noção de pessoa, a noção de ‘eu’”, o
processo de construção da preeminência da parte
(indivíduo) sobre o todo (sociedade). Mauss analisa a noção de pessoa através do processo histórico buscando as origens da transformação dessa
noção em indivíduo como valor social – parte
componente e não como síntese do todo social.
Analisando detalhadamente essa obra é possível observar e propor que a intenção de Mauss de
perceber os fatos sociais como totais, compõe
também, uma crítica à sociedade moderna, cujo
valor não recai sobre a totalidade dos fatos sociais, mas sobre o indivíduo como parte autônoma
desse contexto.
A análise a ser feita é certamente aquela que
evoca a categoria central da sociedade ocidental
moderna – o indivíduo. Entender como essa categoria se produz historicamente é o primeiro passo
para entendermos nossa própria sociedade. A análise da categoria do “eu”, enquanto ser individual,
marca essencial na construção dos valores das sociedades ocidental-modernas, reporta-nos à noção
de pessoa e todo o seu processo de desconstrução.
A noção de pessoa existe em todas as culturas,
mas o seu processo de constituição é distinto nas
diferentes organizações sociais (entre os Pueblo
[sudoeste americano]; na China, na Índia, na Roma clássica – ver MAUSS, 1974b). Pode-se dizer
que a categoria pessoa tem uma característica agregativa, organizada em torno do grupo, do clã,
da estrutura social, da religião etc. Não havendo
referência alguma à noção de indivíduo que, ao
contrário, expressa a idéia de um ser completo,
autônomo e isolado de outros.
No texto anteriormente referido, Mauss se
compromete a desconstruir a categoria do “eu”
como algo que sempre existiu. O que ele se propõe a mostrar é como essa palavra e seu significado também foram partes de uma construção
histórica, demonstrando como a categoria “eu” e
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o culto do “eu” é recente e faz parte da Sociedade
Moderna. Ao longo do processo histórico, Mauss
vai acrescentando à noção de pessoa/persona
(máscara) outras acepções que alteram o seu significado, retirando-a do âmbito coletivo para remetê-la ao privado. A introdução da noção de
direito romano, de pessoa civil (homem livre/
direito pessoal), o acréscimo da concepção de fato moral (consciência de si), o papel do Cristianismo na construção da noção de pessoa enquanto unidade (ser portador de uma alma) e, finalmente, a transformação da noção de pessoa
enquanto ser psicológico (consciência psicológica), reafirmam a transformação dessa noção em
categoria do ‘eu’. A preeminência do cérebro (pelo conceito de ser psicológico) também foi fundamental para a constituição da categoria indivíduo.
Podemos concluir, a partir da reflexão feita em
todos os trabalhos relacionados de Mauss, que
seu projeto intelectual vai sendo gradativamente
aprimorado: em seus primeiros trabalhos ele está
se perguntando e respondendo sobre a relação entre o social e os fatores geográficos, fisiológicos e
até psicológicos; posteriormente, já mais maduro
em suas reflexões, constrói a síntese de seu pensamento – a noção de fato social total, na qual está aprimorada a idéia de totalidade social; em
seguida, podemos agregar as análises anteriores
ao seu “projeto genealógico”: entender a “categoria do espírito humano” através da noção de pessoa e todo o seu processo histórico de desconstrução e afirmação do indivíduo enquanto valor
fundamental nas Sociedades Ocidentais Modernas. Com isso, Mauss produz uma crítica ao modelo individualista de explicação da realidade,
projeto este que vai ser retomado por Louis Dumont (seu discípulo) em várias obras. Essa é,
portanto, a síntese do projeto sociológico de
Marcel Mauss, todo seu esforço resultou em
compreender como se constitui a vida social e
como essa pode ser conhecida através de suas
próprias peculiaridades.
4 – REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
DUMONT, Louis. Homo Hierarchicus. São Paulo: EDUSP,
1994.
––––––––––. Marcel Mauss: uma ciência em devenir.
In. O Individualismo – uma perspectiva antropológica da ideologia moderna. Rio de Janeiro: Ed. Rocco,
1993.
LÉVI-STRAUSS, Claude. Introdução à obra de Marcel
Mauss. In. Sociologia e Antropologia. São Paulo: EDUSP,
1974.
MAUSS, Marcel. Ensaio sobre as variações sazoneiras
das sociedades esquimó. In. Sociologia e Antropologia.
São Paulo: EDUSP, 1974.
16
––––––––––. O ensaio sobre a dádiva – forma e razão das
trocas nas sociedades arcaicas. In. Sociologia e Antropologia. São Paulo: EDUSP, 1974a.
––––––––––. Uma categoria do espírito humano: a noção
de pessoa, a noção de “eu”. In. Sociologia e Antropologia.
São Paulo: EDUSP, 1974b.
––––––––––. A expressão obrigatória dos sentimentos. In.
Figueira, S. (org.) Psicanálise e Ciências Sociais. Rio de
Janeiro: Francisco Alves, 1980.
MERLEAU-PONTY, Maurice. De Mauss a Lévi-Strauss.
In. Coleção Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural,
1989.
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