Alelo ɛ 4 DA apolipoproteína E: fator de risco para o desenvolvimento da doença de Alzheimer Gisele Santos Gonçalves – MSc1 Vivian Proença Lara – Farmacêutica2 Arthur Gonçalves Assini – Farmacêutico3 Ana Paula Fernandes – PhD4 Karina Braga Gomes – PhD5 Josianne Nicácio Silveira – PhD6 Maria das Graças Carvalho – PhD7 RESUMO: A doença de Alzheimer (DA) é um problema de saúde pública em razão do envelhecimento populacional, cujo desenvolvimento está relacionado a fatores genéticos e ambientais. Até o momento, uma das principais alterações moleculares associadas com o estabelecimento da DA consiste no polimorfismo da apolipoproteina E (ApoE). Existem três alelos principais do gene ApoE chamados de ɛ2, ɛ3 e ɛ4. O alelo da ApoE ε4 é mais frequentemente encontrado em pacientes com DA, quando comparado com a indivíduos saudáveis, tendo sido associado com maior risco da doença, com idade menor para início dos sintomas em ambas as formas familiar e esporádica e com maior déficit cognitivo. No entanto, cabe ressaltar que a variante ɛ4 do gene ApoE é um fator de risco e não uma causa determinante de DA. Dessa forma, existem indivíduos que possuem os dois alelos de ApoE na forma ɛ4 e não apresentam DA, como também indivíduos que apresentam apenas alelos ɛ2 ou ɛ3, e encontram-se acometidos pela DA. PALAVRAS-CHAVE: doença de Alzheimer. apolipoproteína E. demência. genética. INTRODUÇÃO 2004; CACABELOS, 2007a). O alelo ε4 foi encontrado com uma Nos últimos anos, o Brasil vem apresentando um novo frequência de 39% em portadores da DA, valor cerca de quatro padrão demográfico que se caracteriza pela redução da taxa vezes maior que o encontrado nos indivíduos saudáveis no sul de crescimento populacional e por transformações profundas do Brasil (DE-ANDRADE et al., 2000). na composição de sua estrutura etária, com um significativo Outros fatores de risco para a DA, comumente citados na aumento do contingente de idosos (IBGE). Juntamente com literatura, são idade avançada, história familiar de demência, o envelhecimento populacional, aumenta a prevalência de do- sexo feminino, síndrome de Down e os fatores de risco para enças intimamente relacionadas à senescência, como as co- a doença cardiovascular, como hipertensão arterial, diabetes ronariopatias, as neoplasias, a osteoporose e as demências mellitus, dislipidemia e tabagismo (MUNOZ & FELDMAN, 2000). (APRAHAMIAN et al., 2009). Diante desse contexto, torna-se fundamental o conhecimen- A demência é uma síndrome caracterizada pela perda ou to de fatores genéticos e ambientais potencialmente associados déficit das habilidades cognitivas, como memória e linguagem, ao desenvolvimento da DA, a fim de que sejam identificados por mudanças comportamentais e por um declínio significativo precocemente os indivíduos sob risco de desenvolvimento da na realização de atividades diárias (DESAI et al, 2010). Dentre as doença ou mesmo para a adoção de medidas profiláticas cabí- diversas causas de demência, a Doença de Alzheimer (DA) é a veis visando retardar o aparecimento da mesma. Muita atenção principal, sendo responsável por, pelo menos, metade dos casos. deve ser prestada aos fatores de risco ambientais, uma vez que A DA é considerada um distúrbio poligênico e multifatorial. estes podem ser modificados, o que reverterá indubitavelmente Diversos genes têm sido associados à doença, como o gene em algum beneficio às pessoas que apresentam a predisposi- da proteína precursora amilóide (APP) e das presenilinas 1 e 2 ção genética. (PS1 e PS2), com grande importância nos casos de DA familiar. No entanto, é o gene da apolipoproteína E (ApoE), que codifica A GENÉTICA DA DOENÇA DE ALZHEIMER uma glicoproteína envolvida no metabolismo e transporte de li- A etiologia da DA é multifatorial, devido a uma complexa pídios no organismo, que tem sido relatado como o principal combinação de fatores genéticos, pessoais e ambientais. Na fator de risco genético para a doença de instalação tardia, parti- sua forma familiar, é transmitida sob um padrão de herança au- cularmente nos indivíduos que possuem o alelo ε4 (OJOPI et al, tossômico dominante, mas a forma familiar representa apenas PÓS EM REVISTA DO CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA 2012/2 - EDIÇÃO 6 - ISSN 2176 7785 l 171 5% dos casos. Aproximadamente 50% das pessoas com história colesterol em diferentes tecidos (OJOPI et al, 2004). Esse gene familiar de DA acabam por desenvolver a doença. Os casos he- é composto de três alelos comuns (ɛ2, ɛ3 e ɛ4). Esses alelos são reditários têm tendência para se manifestarem particularmente definidos por 2 polimorfismos de nucleotídeo único (SNPs) nos cedo, na meia-idade, e não na velhice. Contudo, a patologia é in- resíduos 7412 e 429358 (BARBER, 2010; BEKRIS et al, 2010). distinguível clinicamente dos casos esporádicos. Apesar dos ca- As isoformas protéicas produzidas por esses alelos diferem na sos hereditários e dos esporádicos terem origem nos mesmos composição de aminoácidos nas posições 112 e/ou 158. O alelo ε2 processos biológicos, a ocorrência de mutações pode provocar possui o aminoácido cisteína em ambas as posições da proteína; acelerações na patogênese (MONTE et al, 1997). o ε3, cisteína na posição 112 e arginina na 158 e o alelo ε4 possui Do ponto de vista anatomopatológico, os achados na DA in- arginina nas duas posições (OJOPI et al, 2004). Essa substituição cluem perda neuronal com atrofia cerebral; degeneração sinápti- cisteína-arginina afeta a estrutura tridimensional e as propriedades ca; placas neuríticas (ou senis) contendo depósitos extracelulares de ligação aos lipídios entre as isoformas (BERKIS et al, 2010). de proteína beta-amilóide (Aβ), originados da clivagem anormal A ApoE é também a principal apolipoproteína encontrada no da proteína precursora beta-amilóide (APP); além de emaranha- cérebro (OJOPI et al, 2004). Ela coordena a mobilização e a re- dos neurofibrilares localizados normalmente no citoplasma peri- distribuição do colesterol da mielina e das membranas neuronais nuclear e composto de proteínas “tau” anormalmente fosforiladas (LEDUC et al, 2010). Além disso, está envolvida no reparo sináp- (SAMAIA & VALLADA FILHO, 2000; BARROS et al., 2009). tico em resposta à injúria tecidual, na manutenção da estrutura Segundo a hipótese da cascata amiloidal, a APP é uma pro- neuronal e na função colinérgica (MUNOZ & FELDMAN, 2000). teína transmembrana que sofre clivagem por α-, β- e γ-secretases, As combinações dos três alelos dão origem a seis genó- produzindo o fragmento peptídico Aβ, cuja forma mais comum é tipos diferentes e sua frequência varia entre diferentes grupos um fragmento de 40 aminoácidos. A neurodegeneração na DA étnicos. O alelo mais comumente encontrado na população é causada pela clivagem proteolítica anormal da APP, determi- caucasiana é ε3, correspondendo a aproximadamente 78% nada por β- e γ-secretases, que favorecem a produção de um dos indivíduos. A frequência dos alelos ε2 e ε4 é aproximada- fragmento de 42 aminoácidos. Esse fragmento apresenta maior mente de 8% e de 14%, respectivamente na mesma popula- capacidade de agregação e deposição na parte extracelular dos ção (MUNOZ & FELDMAN, 2000). neurônios, levando consequentemente à formação de fibras Um estudo feito na região sul do Brasil identificou uma forte amilóides e placas senis (LUCATELLI et al, 2009; BEKRIS et al, associação entre ApoE ε4 e DA, tendo sido o alelo ε4 encontrado 2010). Além disso, ocorre a formação de novelos neurofibrilares, com uma frequência de 39% em portadores da DA, valor cerca que consistem em filamentos helicoidais da proteína tau hiper- de quatro vezes maior que o encontrado nos indivíduos saudá- fosforilada que se acumulam no citoplasma neuronal (MUNOZ & veis da mesma localidade (DE-ANDRADE et al., 2000). Outro FELDMAN, 2000). A função normal dessa proteína é estabilizar estudo com 126 indivíduos brasileiros (SOUZA et al., 2003) mos- os microtúbulos neurais, papel que, na DA, estaria prejudicado trou que a frequência do alelo ε2 foi consideravelmente menor (PARIHAR & TARUNA, 2004; RUDY et al, 2010). no grupo de pacientes com DA (1%; n = 68); as frequências Já segundo a hipótese colinérgica, a DA ocorre devido à de- do alelo ApoE ε3 e do genótipo ApoE ε3/ε3 foram maiores nos generação dos neurônios colinérgicos no prosencéfalo basal e controles (84% e 72%, respectivamente; n = 58), enquanto as déficit dos marcadores colinérgicos devido à: inibição da libera- frequências do alelo ApoE ε4 e do genótipo ApoE ε3/ε4 foram ção de acetilcolina, redução da captação da colina, e diminuição maiores nos indivíduos com DA (25% e 41%, respectivamente). da concentração intracelular de acetilcolina e da atividade da co- Independentemente da etnia, o alelo ε4 é mais frequente- lina acetiltransferase. O declínio da neurotransmissão colinérgica mente encontrado em pacientes com DA, quando comparado resultante desses fatores causa deterioração da função cognitiva ao grupo controle, tendo sido associado a um maior risco do de- e manifestações neuropsiquiátricas da doença (AULD et al, 2002). senvolvimento da doença, com idade menor para início dos sintomas em ambas as formas familiar e esporádica e com maior O GENE DA APOLIPOPROTEÍNA E déficit cognitivo (DURON & HANON, 2008; BEKRIS et al, 2010). O gene humano ApoE, localizado no braço longo do cromos- A presença do alelo ε4 demonstrou uma maior associação somo 19 (19q13.2), codifica uma glicoproteína de 317 aminoáci- com o número de placas senis e placas vasculares, além de dos, que constitui uma das muitas classes de apolipoproteínas uma redução da função colinérgica em cérebros de pacientes que transportam lipídios no plasma e em outros fluidos corpóreos. portadores de DA (SAMAIA & VALLADA FILHO 2000; OJOPI et Seu papel é fundamental na redistribuição de triglicerídios e de al., 2004). Além disso, os portadores do alelo ɛ4, conforme dito 172 | PÓS EM REVISTA DO CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA 2012/2 - EDIÇÃO 6 - ISSN 2176 7785 anteriormente, tendem a desenvolver os sintomas de DA mais idades, embora a força de associação pode varia dependendo precocemente, efeito ainda mais evidente nos homozigotos. Em destes fatores (MUNOZ & FELDMAN 2000). A idade possui um contraste, o alelo ɛ2 pode conferir um discreto efeito protetor por- papel particularmente importante no desenvolvimento de DA, que sua frequência é menor entre indivíduos com DA quando uma vez que o risco de desenvolver a doença parece aumentar comparado à população geral, mas este resultado não tem se com a idade até certo ponto, a partir do qual cai vertiginosamen- reproduzido sistematicamente. Quando indivíduos com alelos te. A presença de dois alelos ε4 é responsável por uma grande ɛ2/ɛ3 apresentam DA, a idade de início é mais avançada que nos diminuição na idade de início da doença, enquanto que a pre- carreadores de ɛ4 (TSAI et al., 1994; OJOPI et al., 2004; VALE, sença de apenas um alelo ε4 é responsável por uma diminuição 2006; SERENIKI & VITAL, 2008; HUEB, 2009). menos acentuada (PANZA et al., 2002). Um estudo recente ava- Estudos epidemiológicos demonstraram que, em indivíduos liou o grau de risco conferido pelos diferentes genótipos de apoE com DA, a frequência do alelo ε4 é desproporcionalmente elevada, entre indivíduos da mesma faixa etária. Os resultados mostram com valores geralmente situados entre 25% e 40%. Pessoas com que indivíduos com idade de 80 anos que apresentam ε3/ε4 pos- um alelo ε4 têm entre 2,2 e 4,4 mais chance de desenvolver DA que suem uma taxa de incidência de DA aumentada em 3,4 vezes pessoas com alelos ε3/ε3, enquanto os homozigotos para o alelo ε4 em relação a indivíduos ε3/ε3. Indivíduos que são ε4/ε4 possuem têm de 5,1 a 34,3 maior chance (FARRER et al, 1997; OJOPI et al., taxa de incidência aumentada 9,4, enquanto os que possuem a 2004; VALE, 2006; SERENIKI & VITAL, 2008; HUEB, 2009). isoforma ε2 apresentam redução de 43% no risco apresentado Schachter e colaboradores (1994) demonstraram que pessoas que possuem o alelo ɛ2 têm maior probabilidade de se tornarem centenárias que aquelas com o alelo ɛ3, que, por sua vez, parecem ter maior sobrevida que pessoas com o alelo ɛ4. por um indivíduo ε3/ε3, sugerindo um papel protetor do alelo ε2 (EWBANK, 2002). Diversos estudos confirmam que a simples presença da isoforma ε4 de ApoE não é suficiente para o desenvolvimento da Os mecanismos pelos quais o alelo ε4 poderia influenciar na DA. No entanto, os alelos da apoE são fatores importantes que, patologia da DA são incertos. No entanto, têm sido sugeridos: de acordo com sua variação, têm o efeito de induzir ou proteger atuação no metabolismo da APP e no acúmulo do peptídeo Aβ contra a doença no processo de instauração da doença. Neste em placas senis e vasculares, aumento da hiperfosforilação da sentido, alguns grupos vêm estudando o papel dos polimorfismos proteína tau e formação de novelos neurofibrilares, redução da da região promotora do gene ApoE e sua influência no desen- função colinérgica cerebral, aumento de processos oxidativos, volvimento da DA. Polimorfismos na região promotora dos genes inflamatórios ou de apoptose neuronal e alteração do metabo- podem alterar a sua transcrição, gerando diferentes quantidades lismo e do transporte lipídicos, assim como da biossíntese de do RNA mensageiro e da respectiva proteína. Na região promo- membranas neuronais (CORDER et al., 1998; CZYZEWSKI et al., tora do gene da apoE, já foram identificados polimorfismos nas 1998; CACABELOS, 2007b; DURON & HANON, 2008). regiões -219 G/T, -427 C/T e -491 A/T (OJOPI et al., 2004). Além da influência exercida na DA, essas isoformas têm Embora o estudo da genética da DA já esteja avançado, sido relacionadas com os níveis plasmáticos de lipídios e com muitas lacunas ainda existem sobre os seus mecanismos de o risco de doença cardiovascular, sendo que os alelos ε2 e ε4 instauração, desenvolvimento e fatores de risco associados, frequentemente têm exercido efeitos opostos (DE-ANDRADE et quer sejam eles genéticos ou ambientais. Os futuros avanços e al, 2000). O alelo ε4 tem sido associado com altos níveis plasmá- achados da genética poderão ser utilizados no diagnóstico pre- ticos de colesterol total e de LDL, ambos considerados fatores coce da doença, no seu tratamento ou mesmo na elaboração de de risco para o desenvolvimento da aterosclerose. É também estratégias de prevenção. Deve-se ressaltar que há um consen- provável que esse polimorfismo influencie o desenvolvimento de so na comunidade científica: a determinação das isoformas de demência por meio de processos neurodegenerativos e de ate- ApoE ainda é insuficiente como método diagnóstico. rogênese (JASINSKA-MYGA et al, 2007). Um estudo realizado por de-Andrade e colaboradores (2000) no sul do Brasil demonstrou a associação do alelo ε2 com baixos níveis de triglicérides e de colesterol total e não-HDL em homens e mulheres. Inversamente, o alelo ε4 foi associado com altos níveis desse lipídio, mas a relação só foi observada em mulheres. A contribuição da presença do alelo ε4 no desenvolvimento da DA está presente em ambos os sexos, etnias e em todas as CONSIDERAÇÕES FINAIS A Doença de Alzheimer (DA) está relacionada a alguns fatores genéticos, sendo a associação com os polimorfismos da apolipoproteína E (ApoE) bem caracterizada em várias populações. A presença do alelo ε4 é um fator de risco para o desenvolvimento da doença. Seja qual for o mecanismo pelo qual a PÓS EM REVISTA DO CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA 2012/2 - EDIÇÃO 6 - ISSN 2176 7785 l 173 presença de ɛ4 leva ao desenvolvimento da DA, ao menos um ponto já está claramente estabelecido: indivíduos carreadores do alelo ε4 apresentam risco aumentado de desenvolvimento da doença. Entretanto, algumas questões sobre seus efeitos neurotóxicos ainda precisam ser comprovadas, podendo-se destacar o papel específico da ApoE na formação de placas amiloides S. M.; GASTALDO, G.; HUTZ, M. H. 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E-mail: [email protected] 5 Karina Braga Gomes: Professora Adjunta do Departamento de Análises Clínicas e Toxicológicas da Universidade da Faculdade de Farmácia da Universidade Federal de Minas Gerais. E-mail: [email protected] 6 Josianne Nicácio Silveira: Professora Adjunta do Departamento de Análises Clínicas e Toxicológicas da Universidade da Faculdade de Farmácia da Universidade Federal de Minas Gerais. E-mail: josianne. [email protected] 7 Maria das Graças Carvalho: Professora Titular do Departamento de Análises Clínicas e Toxicológicas da Universidade da Faculdade de Farmácia da Universidade Federal de Minas Gerais. E-mail: mgcarvalho@ farmacia.ufmg.br 30 SCHACHTER F., FAURE-DELANEF L, GUENOT F et al. Genetic associations with human longevity at the Apo E and ACE loci. Nature Genetics, v. 6: p. 29-33, 1994. 31 SERENIKI, A., VITAL, M. A. B. F. A doença de Alzheimer: aspectos fisiopatológicos e Farmacológicos. 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