Projetos de pesquisa, fundamentos lógicos: a dialética entre perguntas e respostas Silvio Sánchez Gamboa Silvio Sánchez Gamboa Projetos de pesquisa, fundamentos lógicos: a dialética entre perguntas e respostas Chapecó, 2013 Reitor Odilon Luiz Poli Vice-Reitora de Ensino, Pesquisa e Extensão Maria Aparecida Lucca Caovilla Vice-Reitor de Planejamento e Desenvolvimento Claudio Alcides Jacoski Vice-Reitor de Administração Antônio Zanin Diretora de Pesquisa e Pós-Graduação Stricto Sensu Valéria Marcondes Este livro ou parte dele não podem ser reproduzidos por qualquer meio sem autorização escrita do Editor. 001.42 Sánchez Gamboa, Silvio S211p Projetos de pesquisa, fundamentos lógicos: a dialética entre perguntas e respostas / Silvio Sánchez Gamboa – Chapecó : Argos, 2013. 159 p. ; 23 cm – (Didáticos ; 6) Inclui bibliografia ISBN 978-85-7897-116-8 1. Projetos de pesquisa. 2. Pesquisa – Metodologia. I. Título. II. Série CDD 001.42 Catalogação elaborada por Caroline Miotto CRB 14/1178 Biblioteca Central da Unochapecó Todos os direitos reservados à Argos Editora da Unochapecó Av. Atílio Fontana, 591-E – Bairro Efapi Chapecó (SC) – 89809-000 – Caixa Postal 1141 (49) 3321 8218 – [email protected] – www.unochapeco.edu.br/argos Coordenador Dirceu Luiz Hermes Conselho Editorial Rosana Maria Badalotti (presidente), Carla Rosane Paz Arruda Teo (vice-presidente), André Onghero, Lilian Beatriz Schwinn Rodrigues, Dirceu Luiz Hermes, Maria Aparecida Lucca Caovilla, Murilo Cesar Costelli, Tania Mara Zancanaro Pieczkowski, Valéria Marcondes Para Marcita, nos seus sete meses de idade. A filhinha que com sua presença recria nossas vidas e estimula nossa curiosidade e nossa capacidade de perguntar. Maceió, 20 de março de 2013 Para o espírito científico qualquer conhecimento é uma resposta a uma pergunta. Se não tem pergunta não pode ter conhecimento científico. Nada se dá, tudo se constrói. (G. Bachelard) Agradecimentos Ao professor Josealdo Tonholo, pró-reitor de Pós-Graduação e Pesquisa da Universidade Federal de Alagoas (ufal), pelo incentivo que deu origem às oficinas sobre projetos de pesquisa, hoje transformadas nesta obra. À Márcia Chaves-Gamboa, incentivadora permanente na gestão desta publicação, acompanhando os registros, transcrevendo as gravações e revisando as várias versões que culminaram neste livro. Ao grupo Paideia, da Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), que aceitou nas suas programações a oferta das oficinas, na forma de cursos de extensão durante e a partir de 2005. Oficinas que até 2012 ofereceram 12 versões. À Secretaria de eventos da FE/Unicamp, pela infraestrutura oferecida na realização das oficinas. Ao setor de audiovisuais da FE/Unicamp, pela excelente gravação das várias versões que permitiram a reprodução das oficinas, facilitando esta publicação, particularmente ao engenheiro mestre Gilberto Oliani, coordenador da sala de Videoconferência da FE. Com base nessas gravações, localizadas na página do grupo Paideia, sob o título de Seminário: Projeto de Pesquisa Científica: Fundamentos Lógicos, disponível em: <http://www.fe.unicamp.br/ videoconferencia/fe/paideia.html>, é possível acessar os principais conteúdos desta publicação, localizados nos seguintes arquivos: <http://cameraweb.ccuec.unicamp.br/video/76S67RG2A4NN/>; <http://cameraweb.ccuec.unicamp.br/video/43NO45963YKR/>; <http://cameraweb.ccuec.unicamp.br/video/NUYRNWK91BUK/>; <http://cameraweb.ccuec.unicamp.br/video/O4HHN8H85XYH/>. À professora Rosana Helena Nunes, pela revisão da versão final e suas valiosas sugestões. Ao professor Maurício Roberto da Silva, pelo incentivo para a publicação deste material e pelo prefácio altamente estimulador, tanto para o autor quanto para os leitores. Sumário Prefácio 13 Maurício Roberto da Silva Introdução 29 Capítulo 1. A necessidade histórica do conhecimento científico: a importância da lógica e do método geométrico 41 Capítulo 2. A construção das perguntas 87 Capítulo 3. A elaboração das respostas 113 Capítulo 4. A apresentação dos projetos de pesquisa: a forma de exposição 129 Conclusões 151 Referências 155 Prefácio Antes mesmo de apresentar este novo livro de Silvio Sánchez Gamboa, intitulado Projetos de pesquisa, fundamentos lógicos: a dialética entre perguntas e respostas, gostaria de fazer algumas considerações sobre como o conheci, sua trajetória, sua obra e os impactos dela na minha vida acadêmica. Minha aproximação com as reflexões filosóficas de Silvio Sánchez Gamboa começou em 1994, a partir do convite formulado a ele para escrever o texto para a revista Motrivivência sob a temática “Educação Física: Teoria e Prática”1, cujo texto se denominou “Teoria e prática: uma relação dinâmica e contraditória” (1995). Mais tarde, em 1997, tive a oportunidade de conhecê-lo, pessoalmente, durante o “Encontro de História do Esporte, Lazer e Educação Física”, em Maceió. Naquela altura, já havia aproximado-me dos seus escritos sobre epistemologia, pesquisa e educação. Foi então que o convidei para escrever mais 1 Motrivivência, ano 7, n. 8, dez. 1995. um texto para a revista Motrivivência (1994)2, sobre a temática “Pesquisa em Educação Física”, e título: “Pesquisa em Educação Física: as inter-relações necessárias”. Deste então, tive a oportunidade de acompanhar um pouco da trajetória da produção do Gamboa, principalmente a leitura de sua primeira publicação em espanhol: Fundamentos para La investigación educativa: presupuestos epistemológicos que orientan al investigador. Também tive a oportunidade de apreciar a segunda publicação, também em espanhol, cujo teor foi Investigación e innovación educativa. Posteriormente, estes dois livros se fundem e se transformam em uma importantíssima referência sobre as relações imbricadas entre pesquisa e epistemologia, a saber: o livro editado pela Argos, que teve como título Pesquisa em Educação: métodos e epistemologias, primeira edição datada de 2007. Em razão da grande citação do livro em trabalhos científicos, foi reeditado em 2012 (2. ed.). Esta obra tem como escopo problematizar os métodos na pesquisa em educação, articulados com a análise epistemológica. Nesse livro, o autor já havia trazido reflexões sobre a relação dialética entre a pergunta e a resposta nos processos de investigação educacionais. Aliado a essa produção, ele vem escrevendo e orientando iniciantes na pesquisa, mestres e doutores, sobre a necessidade de se buscar as tendências da pesquisa em educação à luz de um enfoque epistemológico. Quando observo toda essa produção de Silvio Sánchez Gamboa, lembro-me de que seus livros me fizeram repensar a chamada “metodologia da pesquisa”, até então compreendida por mim como métodos e técnicas reproduzidas dos manuais de pesquisa. No contato com sua obra, fui, 2 Motrivivência, ano 5, n. 5, 6 e 7, dez. 1994. 14 Projetos de pesquisa, fundamentos lógicos paulatinamente, saindo da “zona de conforto” do conservadorismo positivista da metodologia da pesquisa e tentando não dissociar do labor investigativo as relações entre ciência e filosofia, teoria e prática, teoria e empiria, método e teoria, sujeito e objeto e outros pares dialéticos. Portanto, apresentar uma nova obra de Silvio Sánchez Gamboa é um desafio e um aprendizado, devido à densidade de suas reflexões e abordagens filosóficas forjadas em referências analíticas relacionadas às teorias do conhecimento na confluência das ciências humanas e sociais. Seus livros e textos, em geral, ancorados no materialismo histórico-dialético, versam sobre as relações entre epistemologia e pesquisa, principalmente, no que se refere à sua proposição de uma “matriz paradigmática”, com vistas à realização de análises epistemológicas das pesquisas ou “pesquisa das pesquisas”. Em seus aportes teórico-metodológicos, é notória a ideia de que todo método implica uma teoria da ciência, que, consequentemente, requer uma teoria do conhecimento, envolvendo necessariamente uma concepção do real, um fundamento ontológico.3 Após fazer essas considerações iniciais sobre a pertinência do livro, passo a falar sobre o escopo do livro, a partir das palavras do próprio autor. Segundo ele, [...] tem uma pretensão didática e um conteúdo básico sobre os fundamentos lógicos da pesquisa científica e elaboração de projetos, e está dirigido a alunos de iniciação científica e pesquisadores interessados em uma perspectiva epistemológica dos elementos básicos do conhecimento e na apropriação das eficientes ferramentas oferecidas pela lógica e pela filosofia. (p. 29, grifo nosso). 3 Severino, Antonio Joaquim. Prefácio. In: Sánchez Gamboa, Silvio. Pesquisa em Educação: métodos e epistemologias. 2. ed. Chapecó: Argos, 2012. Prefácio 15 Os projetos de pesquisa se caracterizam por organizarem os procedimentos necessários para a elaboração do conhecimento científico sobre os objetos, fenômenos e problemas concretos, localizados no mundo da necessidade humana. (p. 29, grifo nosso). Em termos de contribuição para repensar os projetos de pesquisa e a construção de perguntas e respostas, Gamboa espera “[...] que esta breve apresentação desses fundamentos lógicos contribua para a compreensão da especificidade do conhecimento científico e para o aprimoramento das fases iniciais do planejamento da investigação científica.” (p. 40, grifo nosso). Na conclusão do livro, o autor, preocupado com a pesquisa como processo formativo e cognitivo, tem as seguintes expectativas: “[...] espera-se que esta publicação incentive novas práticas pedagógicas, visando a formação de futuros pesquisadores, valorizando as pedagogias da pergunta, o incentivo à curiosidade e o desenvolvimento da capacidade de duvidar e perguntar sem precisar desprezar os saberes acumulados e os conteúdos clássicos.” (p. 152-153, grifos nossos). Mais adiante Gamboa acentua: “A formação básica para a pesquisa aqui pretendida não se limita apenas à compreensão das estratégias de elaboração de projetos, destacando os fundamentos lógicos e metodológicos, mas deve compreender também a própria preparação do pesquisador, começando pela mudança dos sistemas pedagógicos, no sentido de privilegiar o desenvolvimento da capacidade de problematizar e de perguntar.” (p. 153, grifos nossos). Projetos de pesquisa, fundamentos lógicos: a dialética entre perguntas e respostas, segue a trilha dos livros anteriores e tem como objetivo refletir e desvendar os princípios, hipóteses e resultados das ciências com vistas a compreender e problematizar a lógica, o alcance, o objeti16 Projetos de pesquisa, fundamentos lógicos vo e a relevância dos projetos de pesquisa, que estão subjacentes no processo de investigação. Primordialmente, o foco está direcionado para recuperar a lógica essencial da pesquisa científica, que tem como centralidade a relação básica entre uma pergunta (P) e uma resposta (R), cujos procedimentos podem ser realizados a partir de dois passos: 1) a construção da pergunta (mundo da necessidade, problema, indagações múltiplas, quadro de questões) e 2) a construção da resposta (níveis: técnico, metodológico, teórico, epistemológico, gnosiológico, ontológico). Esse processo investigativo e formativo deve ter como premissa as mudanças nos sistemas pedagógicos e o privilégio do desenvolvimento da capacidade de problematizar e de perguntar. Como se pode perceber, com esta obra Gamboa alarga o conceito de projeto de pesquisa, tirando-o das amarras da lógica formal, sem, contudo, desdenhar dela, mas a retomando à luz da lógica dialética4. Isto é importante reconhecer, pois, todos nós que orientamos pesquisas com iniciantes ou iniciados, temos com frequência a sensação de que a ideia de “projeto” de pesquisa ainda está impregnada dos pressupostos positivistas e cartesianos, culminando em visão utilitária de ciência. Ao que parece, o termo “projeto de pesquisa” justifica-se por si só, sem levar em conta suas possibilidades de intervenção no real, desdobramentos, impactos e relevância social. Tanto é verdade que, quando se fala em relevância social e acadêmica do projeto de pesquisa, no sentido das lacunas que porventura os projetos possam cobrir, lacunas na produção do conhecimento existente, em termos das perguntas e respostas que dele se originam, há quase sempre um mal4 Lefebvre, H. Lógica formal/lógica dialética. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1975. Prefácio 17 -estar acadêmico. O questionamento sobre a atualidade e pertinência das perguntas formuladas, na maioria das vezes, é subestimado, pois o que importa é ir direto para as partes que compõem os conteúdos que compõem as diversas etapas do projeto (referencial teórico, metodologia etc.). Assim, deixa-se pouco tempo para reflexão, aprofundamento e delimitação da pergunta-síntese e das questões de pesquisa. Considerando a relevância do livro, uma pergunta que urge é: o que suscita o livro? O debate sobre “projetos de pesquisa, fundamentos lógicos e a dialética entre perguntas e respostas” traz subjacente a ideia de “método científico”, normalmente concebido como sinônimo de “metodologia da pesquisa”. Todavia, quando se fala de método científico, poder-se-ia agregar outras dimensões do exercício da pesquisa, compreendendo a pesquisa “como um fazer além das técnicas”.5 Trata-se de buscar as articulações entre os elementos propriamente epistêmicos, técnicos, metodológicos, ontológicos e gnosiológicos. Tudo conspira para a necessidade da articulação dessas diversas dimensões do método científico e suas articulações eficazes na produção do conhecimento dentro de um determinado campo real6. A ideia de método e metodologia sob o ponto de vista das ciências humanas e sociais pode ser compreendida como o caminho do pensamento, uma prática teórica que se faz com segurança, intencionalidade, teorias, críticas e técnicas no âmbito da abordagem da realidade. O objeto da metodologia é estudar as possibilidades explicativas 5 Oliveira, Paulo Sales de (Org.). Metodologia das Ciências Humanas. São Paulo: Unesp; Hucitec, 1996. 6 Severino, Antonio Joaquim. Prefácio. In: Sánchez Gamboa, Silvio. Pesquisa em Educação: métodos e epistemologias. 2. ed. Chapecó: Argos, 2012. 18 Projetos de pesquisa, fundamentos lógicos dos diferentes fenômenos sociais e os diferentes modos de abordar a realidade, e a “pesquisa” como a atividade básica da ciência na sua indagação e construção da realidade.7 Isto implica na realização de uma prática teórico-metodológica capaz de elaborar conhecimentos que não sejam apenas capazes de dar explicações consistentes sobre determinadas questões sociais, mas que possam, sobretudo, ser aplicados para interferir nos processos de mudanças sociais. Tais processos devem ser mediados pela “pesquisa como estratégia de inovação educativa”, pela pesquisa como estratégia de reflexão-ação, a partir da relação dialética entre pergunta e resposta. Nas páginas do livro, outra questão ganha destaque: a noção de “problema” e “pergunta problemática” na elaboração do projeto de pesquisa. Neste sentido, a construção da pergunta deve originar-se de um “problema concreto”, situado e ativo. O problema é traduzido, reduzido ou racionalmente “aprendido” em forma de indagações e de questões (pergunta-síntese e questões de pesquisa), que ganham clareza e possibilidade de serem respondidas quando elaboradas em forma de perguntas claras e específicas. Isto significa que, uma vez formuladas as indagações que orientam o processo de pesquisa (momento do projeto), são produzidas as respostas (momento da realização da pesquisa). Após o processo de conclusão do relatório de pesquisa (monografia de iniciação científica, dissertação de mestrado ou tese de doutorado), pode-se realizar então uma análise epistemológica para além de um mero “estado da arte” ou “estado do conhecimento”. Assim, para se realizar uma análise epistemológica, torna-se 7 Minayo, Maria Cecília Souza. O desafio do Conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. São Paulo: Hucitec, 2010. Prefácio 19 fundamental recuperar a estrutura lógica da investigação realizada e, a partir daí, desenvolver a lógica entre a pergunta que sintetiza as indagações e questões sobre o problema abordado e as respostas. Essas reflexões apontam para a necessidade da imersão no processo de construção do projeto de pesquisa, com ênfase na relação dialética entre pergunta e resposta. Como se sabe, o ponto de partida de uma pesquisa ou investigação é uma “questão”, que se coloca como “problema” a resolver. Elaborar uma pergunta norteadora (pergunta-síntese, pergunta-problema) significa o mesmo que construir o problema da pesquisa em toda a sua complexidade, delimitação e abrangência do recorte do objeto. A pergunta deve conter uma tensão interna, ser “problemática” e estar calcada no mundo das necessidades humanas, contradições, concreticidade e possibilidades de mudanças, tanto na academia quanto na vida cotidiana. A dialética entre pergunta e resposta tem como premissa a ideia de que sem uma pergunta qualificada (pergunta-síntese), uma pergunta-problemática, historicamente situada na concreticidade dos problemas educacionais, não há problema “problemático”. Sendo assim, perguntas “requentadas” tendem a resultar em respostas repetitivas que pouco acrescentam para o avanço científico para a área da educação. Esses comentários foram suscitados a partir da própria epígrafe de Bachelard que inaugura o livro: “Para o espírito científico qualquer conhecimento é uma resposta. Se não tem pergunta não pode ter conhecimento científico. Nada se dá, tudo se constrói.” Contudo, não se trata de qualquer pergunta, pois perguntas abstratas poderão engendrar respostas metafísicas, mantenedoras do status quo e reprodutoras da lógica do capital. 20 Projetos de pesquisa, fundamentos lógicos Quando se está em pauta o debate sobre fundamentos lógicos da relação entre pergunta e resposta no processo de construção do conhecimento, a noção de problema está sempre norteando os caminhos científicos. Nesse limiar, existem diferentes concepções da palavra “problema”, que podem ser compreendidas a partir da lógica formal e da lógica dialética. Na lógica formal, o problema tem um caráter subjetivo e pseudoconcreto. No mundo da pseudoconcreticidade, [...] o complexo dos fenômenos que povoam o ambiente cotidiano e a atmosfera comum da vida humana, que, com a regularidade, imediatismo e evidência, adentram na consciência dos indivíduos agentes, assumindo um aspecto independente e natural.8 Na lógica formal, [...] os termos contraditórios mutuamente se excluem (princípio da não contradição), inevitavelmente entram em crise, postulando a sua substituição pela lógica dialética. Nesta, os termos contraditórios mutuamente se incluem (princípio da contradição, ou lei dos contrários).9 O debate sobre a dialética na construção da pergunta e da resposta no processo investigativo sugere a necessidade de se recuperar a “problematicidade do problema”, buscando captar a verdadeira essência do fenômeno, para além dos “pseudoproblemas” da lógica formal. Na lógica dialética, a essência e a nota definitória e fundamental 8 Kosik, Karol. Dialética do Concreto. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976. 9 Saviani, Dermeval. Educação: do Senso Comum à Consciência Filosófica. Campinas: Autores Associados, 2002. p. 16. Prefácio 21 do problema são a “necessidade”. Nesta linha de raciocínio, o problema é, nesse caso, o problema de investigação, pensado na perspectiva da relevância social e acadêmica, “[...] possui um sentido profundamente vital e altamente dramático para a existência humana, pois indica uma ‘situação de impasse’.”10 Na esteira da questão da noção de problema de pesquisa, inclui-se a necessidade de se pensar a relação imbricada entre problemas filosóficos e problemas científicos. Essa relação exige uma noção de problema filosófico-científico que tenha como leitmotiv a concepção de problema de investigação, podendo constituir-se em uma reflexão “rigorosa, radical e de conjunto sobre os problemas sociais que a realidade apresenta”. Nesses termos, a Filosofia da Educação não seria outra coisa senão uma reflexão (radical, rigorosa e de conjunto) sobre os problemas que a realidade educacional apresenta.11 Pensar a construção do problema de investigação à luz da dialética entre pergunta e resposta carece que evoquemos o papel da criatividade, da inovação e do rigor da ciência, que se soma ao compromisso político do pesquisador com o “mundo da necessidade” e com as “situações de impasse” que surgem no real-social. Contudo, não se trata de uma criatividade abstrata, mas sim da “imaginação sociológica”, que segundo Wright Mills é [...] a qualidade intelectual de natureza crítica que prevê a sintonia do cientista social com os problemas individuais ligados às realidades mais amplas e aos problemas de relevância pública. 10Saviani, Dermeval. Educação: do Senso Comum à Consciência Filosófica. Campinas: Autores Associados, 2002. p. 16. 11 Idem. 22 Projetos de pesquisa, fundamentos lógicos Ela prevê, ainda, [...] a sensibilidade para captar a necessidade da fusão da nossa vida individual com os problemas do tempo conturbado em que vivemos [...] e, eu diria, sob a vigência do processo de destruição da coletividade, trabalho, meio ambiente, enfim, das relações sociais engendradas pelo capital.12 De acordo com Mills, a tarefa intelectual e política do cientista social é deixar claros os elementos de inquietação e indiferença, frente aos problemas sociais que assolam a humanidade no mundo contemporâneo13. Além do mais, [...] a tarefa dos intelectuais (educadores-investigadores) deveria ser promover a liberdade humana e o conhecimento, além de ‘questionar’ o nacionalismo patriótico, o pensamento corporativo e um sentido de privilégio de classe, raça ou sexo.14 No ponto de vista de uma “educação crítica”, deveriam aprender as lições gramscianas do “intelectual orgânico”, apoiando e participando dos movimentos sociais, reconhecendo o conhecimento destes e ao mesmo tempo socializando o conhecimento especializado das universidades “[...] com esses movimentos que se voltam às lutas por uma política de redistribuição e por uma política de reconhecimento.”15 A ideia de “problema concreto” pode ser compreendida à luz da reflexão sobre a natureza do labor investigati- 12 Mills, Wright. A imaginação sociológica. Rio de Janeiro: Zahar, 1982. 13Said, Edward W. Representações do Intelectual: as conferências Reith de 1993. São Paulo: Companhia das Letras, 2005. 14Idem. 15 Apple, Michael W.; Wayne, A. U.; Gandin, Luis Armando (Orgs.). Educação Crítica: Análise Internacional. Porto Alegre: Artmed, 2011. Prefácio 23 vo na universidade. A pesquisa na universidade tem como centralidade o trabalho teórico e o uso dos conceitos16; a universidade é o lócus privilegiado para, criticamente, a partir de uma linguagem filosófica desdobrada em “conceitos”, realizar as mediações relevantes e necessárias com a realidade objetiva e seus problemas macro e microssociais. Essa tarefa implica em um comprometimento político-pedagógico do pesquisador com os “problemas de relevância pública”, isto é, dos “problemas da realidade” ou, de acordo com Marx (1987, p. 49), do “real pensado” ou “concreto pensado”. De acordo com o autor, [...] o concreto é concreto porque é síntese de múltiplas determinações, isto é, unidade do diverso. Por isso o concreto aparece no pensamento como o processo de síntese, como resultado, não como ponto de partida, ainda que seja o ponto de partida efetivo e, portanto, o ponto de partida também da intuição e da representação.17 Um ponto digno de destaque na escrita deste livro é a preocupação do autor para a formação de professores-investigadores, cujos processos formativos carecem de mais reflexão e maior aprofundamento sobre as relações entre práticas de formação e questões teórico-metodológicas no campo da investigação. Nessa dimensão, a obra se destina tanto aos “iniciantes” quanto aos “iniciados” na pesquisa. Para os iniciantes de cursos de formação inicial, destina-se aos que estão começando na pesquisa, principalmente, aos estudantes de graduação envolvidos nos projetos de pes- 16 Jantsch, Ari Paulo. Os conceitos no ato teórico-metodológico do labor científico. In: Bianchetti, Lucídio; Meksenas, Paulo. A trama do conhecimento: teoria, método e escrita em ciência e pesquisa. Campinas: Papirus, 2008. 17 Marx, K. Para a Crítica da Economia Política. São Paulo: Nova Cultural, 1991. p. 49. (Os pensadores, v. I). 24 Projetos de pesquisa, fundamentos lógicos quisa de conclusão de curso (TCC), projetos de iniciação científica, estudantes que estão desenvolvendo projetos de pós-graduação latu sensu (especialização) e professores que estão em processo de formação continuada. Neste sentido, o livro veicula conteúdos que podem ser de grande valia para os iniciados na pesquisa: mestres e doutores, pois são frutos da trajetória acadêmica do autor no âmbito da graduação e pós-graduação em ciências humanas e sociais na perspectiva da produção de pesquisas, bancas, livros, artigos em periódicos, orientações, participação em intercâmbios acadêmicos nacionais e internacionais, participação em entidades científicas e comitês científicos. O livro traz experiências concretas desenvolvidas na formação de professores-pesquisadores em convênios do Grupo de Pesquisa Paideia (Faculdade de Educação/Unicamp) com universidades de São Paulo, do Brasil e outras instituições internacionais. O debate instaurado poderá constituir-se em um convite para se repensar a relevância das pesquisas. Outra contribuição do livro é a de atentar para uma mudança na concepção “metodologia” compreendida como labor meramente instrumental nos manuais de metodologia da pesquisa, que desprivilegiam um processo mais lento e indagativo sobre a pertinência das perguntas e, consequentemente, das respostas. Os manuais terminam por não permitir que “o pesquisador possa ser o seu próprio teórico e o seu próprio metodólogo”18. Os manuais ainda são a bíblia de muitos pesquisadores, talvez porque eles signifiquem, no dizer irônico e crítico de Corazza, um “Manual infame... mas útil, para escrever uma boa proposta de 18 Mills, Wright. A imaginação sociológica. Rio de Janeiro: Zahar, 1982. Prefácio 25 tese ou dissertação.”19 Esses manuais prescritivos e técnico-instrumentais, sob a designação de “metodologia” ou “manuais de métodos e técnicas”, terminam por inculcar uma cultura da pesquisa descontextualizada de um fazer teórico-metodológico em sua integralidade e complexidade, articulada com os problemas objetivos da realidade investigada. É na contramão dos manuais e dessa tendência à instrumentalização da metodologia da pesquisa que se insurge este livro. Ele se apresenta como alternativa ao conservadorismo metodológico, como uma profunda reflexão filosófica à luz das análises epistemológicas. A obra é relevante porque sinaliza para a prática da pesquisa, compreendida como princípio educativo, formativo e cognitivo na docência.20 Além de problematizar o conhecimento no processo, com vistas a proceder a mediação entre o significado do saber no mundo atual e aqueles dos contextos em que foram produzidos. Diante de tudo que aprendemos com Gamboa, fica subentendido o desafio, no sentido da necessidade de que os pesquisadores formulem perguntas à realidade, tomando como eixo ontológico, epistemológico e gnosiológico a imaginação sociológica. Essa postura coloca mais um desafio: “transformar problemas sociais em problemas sociológicos”.21 Isso implica, por sua vez, transformar problemas sociais em problemas de investigação, com base no concreto pensado, cujas pesquisas possam abarcar problemas concretos da educação formal (escolas), não 19 Corazza, Sandra. Manual infame... mas útil para escrever uma boa proposta de tese ou dissertação. In: Bianchetti, Lucídio; Machado, Ana Maria Netto. A Bússola do Escrever. Florianópolis: UFSC; São Paulo: Cortez, 2006. 20 Severino, Antonio Joaquim. Prefácio. In: Sánchez Gamboa, Silvio. Pesquisa em Educação: métodos e epistemologias. 2. ed. Chapecó: Argos, 2012. 21 Pais, José Machado. Vida Cotidiana: Enigma e Revelações. São Paulo: Cortez, 2003. 26 Projetos de pesquisa, fundamentos lógicos formal (movimentos sociais) e informal (grupos não organizados e espontâneos); que possam abarcar os problemas sociais universais e específicos, macro e microssociais da vida cotidiana das instituições escolares e não escolares. Em síntese, o livro que temos nas mãos nos faz perspectivar uma outra lógica na reflexão de problemas de pesquisa e a relação dialética entre pergunta e resposta nos projetos de pesquisa. Faz-nos refletir criticamente sobre o processo investigativo em termos dos pseudoproblemas. Faz-nos pensar na enorme quantidade de pesquisas, produzidas com perguntas óbvias e respostas repetitivas e sem impacto na vida acadêmica e social. Pesquisas, muitas vezes, cujas perguntas já trazem em seu bojo respostas a priori, indicando, assim, os chamados “resultados esperados”. Desejo uma boa leitura de mais um livro do mestre Silvio Sánchez Gamboa e a reflexão da música “A seta e o alvo”, de Paulinho Moska: Então me diz qual é a graça De já saber o fim da estrada, Quando se parte rumo ao nada? Sempre a meta de uma seta no alvo, Mas o alvo, na certa, não te espera. Então me diz qual é a graça De já saber o fim da estrada, Quando se parte rumo ao nada? Florianópolis, outono/abril de 2013 Maurício Roberto da Silva Professor do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Educação (Mestrado) da Unochapecó. Prefácio 27 Sobre o autor SILVIO SÁNCHEZ GAMBOA: Licenciado em Filosofia (Universidad San Buenaventura, Colômbia), especializado em Orientação escolar (Universidad Pedagógica y tecnológica de Colômbia), mestre em Educação (UnB), doutor em Filosofia e História da Educação (Unicamp), livre-docente e titular em Filosofia da Educação (Unicamp). Professor de Filosofia da Educação, Epistemologia da pesquisa educacional e Teorias do Conhecimento, na Faculdade de Educação da Unicamp. Professor visitante nas Universidades Católica de Chile (UCC), Estadual de Maringá (UEM), Federal de Santa Maria (UFSM), Federal de Alagoas (UFAL), Federal da Bahia (UFBA), Facultad Latino-americana de Ciências Sociais (FLACSO), Nacional de Córdoba (Argentina) e Universidade de Ca- çador (UNC). Coordenador do curso de Pedagogia da Unicamp (1990-1992), coordenador do Mestrado em Edu- cação da PUC-Campinas (1994-1997). Líder do grupo de pesquisa Paideia (FE/Unicamp). Autor de vinte livros e mais de quarenta artigos científicos e capítulos de livros nas áreas da Pesquisa Educacional, Filosofia da Educação e Epistemologia da Educação Física. Dentre eles destacam-se: - Dialética na Pesquisa em Educação: elementos de Contexto (São Paulo: Cortez, 2010, p. 91-115); - Epistemologia da pesquisa em educação (Campinas: Práxis, 1996); - Pesquisa Educacional: Quantidade – Qualidade (São Paulo: Cortez, 2013); - Epistemologia da Educação Física: as inter-relações necessárias (Maceió: edUFAL, 2011); - Pesquisa em educação: métodos e epistemologias (Chapecó: Argos, 2012). - Coautoria com: CHAVES, M.; TAFFAREL, C. (Orgs.). Prática pedagógica e produção do conhecimento na Educação Física & Esporte e Lazer (Maceió: edUFAL, 2003); - CHAVES, M.; TAFFAREL, C. Prática de Ensino: formação profissional e emancipação (Maceió: edUFAL, 2003); - CHAVES, M.; SÁ, K. Lazer e Recreação no currículo de Educação Física (Maceió: edUFAL, 2003); - Retomando o debate sobre a pedagogia do movimento (Maceió: edUFAL, 2004). Título: Projetos de pesquisa, fundamentos lógicos: a dialética entre perguntas e respostas Autor: Silvio Sánchez Gamboa Coleção: Didáticos, n. 6 Coordenador: Dirceu Luiz Hermes Secretaria: Leonardo Favero Vendas e distribuição: Neli Ferrari, Andressa Cazalli Projeto gráfico e capa da coleção: Alexsandro Stumpf Capa desta edição: Alexsandro Stumpf Diagramação: Caroline Kirschner Preparação dos originais: Marina Gabriela Fávero Revisão: Carlos Pace Dori, Marina Gabriela Fávero, Rodrigo Junior Ludwig Formato: 16 x 23 cm Tipografia: Sabon LT Papel do miolo: offset 90g Papel da capa: supremo 300g Número de páginas: 159 Tiragem: 1000 Impressão e acabamento: Gráfica e Editora Pallotti Santa Maria (RS) Argos Editora da Unochapecó Av. Atílio Fontana, 591-E – Bairro Efapi Chapecó (SC) – 89809-000 – Caixa Postal 1141 Telefone: (49) 3321-8218 – e-mail: [email protected] Site: www.unochapeco.edu.br/argos Este livro está à venda: www.travessa.com.br www.livrariacultura.com.br ISBN 978-85-7897-116-8 Este livro tem uma pretensão didática e um conteúdo básico sobre os fundamentos lógicos da pesquisa científica e da elaboração de projetos. Está dirigido a alunos de iniciação científica, a orientadores e a pesquisadores em nível de pós-graduação, interessados na compreensão dos elementos básicos do conhecimento e na apropriação das eficientes ferramentas oferecidas pela lógica e pela filosofia. Os conteúdos sobre os fundamentos lógicos da pesquisa científica e, em particular, das fases iniciais do planejamento da investigação científica buscam desmitificar, sem reduzir e sem empobrecer a diversidade e complexidade dos procedimentos necessários para a elaboração do conhecimento científico. Repensar os projetos de pesquisa, sob a ótica da lógica dialética que revela a dinâmica entre perguntas e respostas, poderá trazer novas perspectivas de compreensão da pesquisa e tornar simples, eficientes e criativos os complexos processos de produzir respostas para as necessidades e os problemas históricos da sociedade. Espera-se que esta publicação incentive novas práticas pedagógicas, visando à formação de futuros pesquisadores, valorizando a pedagogia da pergunta, o incentivo à curiosidade e o desenvolvimento da capacidade de duvidar e perguntar, que precedem às tentativas da produção do conhecimento, entendido este como a resposta a uma pergunta. Nesse sentido, o resgate da relação dialética entre as duas dimensões da produção do conhecimento – a construção de perguntas e a produção de respostas – poderá sinalizar significativas mudanças na preparação do pesquisador, começando pela mudança dos sistemas pedagógicos, visando ao desenvolvimento da capacidade de problematizar e de perguntar.