Sobre o papel do espaço
Vinicius Netto e Cláudia Boal
Um diálogo entre dois arquitetos, iniciados em teoria sócio-espacial, sobre o papel do espaço em
nossa vida e experiência social.
V: Se supormos que nossas práticas (nossas ações, vidas) ocorrem no espaço, se elas tem uma
“espacialidade” intrínseca... qual é a ultima “conexão” que mantem “prática” e “espaço” intrinsicamente
ligados? Eu tento demonstrar como é de fato tal conexão.
C: Se tu me permites, acho que a relação do espaço com as ações tem dimensões múltiplas, e que tu
nem sempre tratas desse assunto desta forma. Tu, pelo que me parece pelas nossas conversas,
queres achar uma fórmula, descobrir esse segredo... mas essa multiplicidade de fatores é muito mais
intrínseca ao observador ou experienciador do lugar do que ao próprio espaço.
V: Só quero descobrir o mistério dessa ligação tão improvável entre duas coisas que são inteiramente
diferentes: como duas coisas de materialidades tão diferentes podem ser “intrinsicamente” ligadas?
Ainda assim existe uma conexão - ela está sim sujeita à posição do sujeito... mas existem traços em
comum.
C: Não é algo tão misterioso. O edifício ou a cidade não são os lugares onde a vida ocorre, mas parte
dessa existência, e um mesmo lugar ou edifício imprime ou provoca comportamentos distintos de
acordo com o que o Vicente del Rio chama de “filtros comportamentais.”
V: Uma ligação intrínseca é o fundamento na "relação forma-função," por exemplo. Ela assume que há
uma ligação intrínseca, ainda que raramente tenha sido demonstrado em teoria "onde" ela está.
C: Mas uma forma não determina comportamentos padrão. Talvez os padrões possam se identificar
em grupos sociais semelhantes.
V: Claro que não determina. Mas qual o limite? Até onde ela "determina"? ela não "determina"
linearmente... mas ela não determinaria nada?
C: Determina percursos.
V: Não so percursos.
C: Encontros?
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V: Ou encontros com outros ao longo desses percursos.
C: Mas aí tem outros n fatores. Um percurso é mais facilmente provocado que um encontro
porque o encontro tem que ganhar do acaso, e o percurso, não.
V: Percursos mais utilizados aumentam a concentração de encontros, e a partir daí, interações
acontecem.
C: Mas um encontro só o é com indivíduos que se conhecem. Senão, um passa pelo outro e segue
seu percurso.
V: Eu não falo só nessa condição de co-presença para que aconteca encontros edificios estruturam
percursos – correto. E percursos mais utilizados geram co-presença mais intensa. Cidades também,
ruas, estruturas físicas. Mas voltemos à coisa pedestre - a co-presença de “corpos” no espaço. O que
seria de uma sociedade sem encontros no espaço? Pode-se imaginar isso? Sociedades precisam se
“concretizar” através de encontros - mesmo que eles tenham que ser criados “ritualisticamente,” como,
por exemplo, o casamento entre pessoas de tribos diferentes. Então existe uma presença fundamental
do espaço (da “estrutura física” do espaço) na vida social, ou para que uma sociedade se reproduza.
Sem encontros, sem reprodução. Agora, existem outras formas de interação, naturalmente - internet,
telefone, etc. Porém, boa parte da substância que liga as pessoas vem dessa co-presença espacial. E
a conexão do espaço com o “social” não termina aí. Vamos deixar de ser tão pragmáticos.
C: Como tu separas espaço e sociedade? Um não se desvincula do outro. Um precisa do outro. Não
tem como falar de um separadamente do outro.
V: Os sociólogos falaram de sociedade por mais de 100 anos sem o espaço. Tento entender como
duas coisas tão diferentes podem ser vinculadas...
C: Então, sem o encontro. Aí tu já te contradisseste (porque afinal de contas é o espaço que promove
o encontro, não?)
V: Não, (como diz Hillier) o espaço não move as pessoas - ele distribui, ele “atrai”... Falo de práticas
sociais - minha ação ocorre no espaço. Eu posso ver meu gesto e minha fala em si, como “fala,”
“gesto,” etc. Então como entender que ligação é essa... se ela não acaba no movimento do corpo?
C: Mas são as pessoas que constróem o espaço. Só se pode falar assim, separadamente, de uma
ruína. E aí a percepção é de um defunto. Porque quando se vê um defunto, no cemitério, no velório,
está claro que aquilo ali não é mais “gente,” que a vida se foi. Porque se se vai, por exemplo, a Priene,
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e se vê aquela cidade toda destruída e sem ninguém (como eu visitei - depois de fecharem o sítio
arqueológico). Aí a gente vê que não tem mais vida. Fui a Éfesus também. Mesma coisa. Uma cidade
que era viva, cheia de gente que produziu aquelas edificações.
V: O que eu quero dizer é: se eu posso identificar meu gesto como “gesto” em si, eu tenho que admitir
que meu gesto não é “espaço" – assumindo o espaço como o construído, a rigidez do espaço em volta.
Então o “gesto,” ainda que ocorra nesse espaço, seja “moldado” como ocorrência nesse espaço, não
é "espaço". E a questão continua: se gesto não é "espaço," e espaço não é formado de movimentos
que evanescem, como pode haver essa ligação intrinseca? Tem duas ligações que vejo, entre outras;
duas fundamentais, que são base para todas as demais.
C: Mas tu não acha exagero atribuir ao espaço o poder de determinar os teus gestos?
V: Pelo contrário. Existe uma independência “ontológica” como fenômenos. Uma aparente
independência, aliás.
C: E é por isso que existe a relação.
V: Sim, mas onde está a relação - onde está a ligação entre elas, a “ponte” entre essas duas
materialidades - coisas tão distintas?
C: Porque os espaços produzidos pela gente são, como os talheres, como o automóvel ou a cadeira,
extensões do nosso próprio corpo.
V: Sim, mas não são o corpo. A primeira ligação vem dessa influência do espaço físico sobre o
movimento dos corpos no espaço. A segunda vem de um “software,” esse que está na cabeça das
pessoas, que é “lido” pelas pessoas no próprio espaço e que é produzido por elas no espaço. Esse
“software” é o próprio significado que emprestamos ao espaço, porque atuamos nele e nos
apropriamos dele para tanto... e a partir desse espaço urbano-arquitetônico, um espaço estruturado
semanticamente e praticamente, conectamos nossas ações.
C: Mas pensa numa floresta. Teus movimentos vão ser igualmente determinados pela disposição das
árvores, e elas não foram determinadas ou construídas por mãos humanas.
V: Perfeito. Isso mostra que a fisicalidade do espaço tem seu impacto sobre o corpo em movimento.
Mas as florestas não foram produzidas para provocar esse efeito. Agora, será que as cidades e a
arquitetura não o são? E se o são, por que seriam? E como produzimos isso? Cidades são
construções coletivas, no tempo... Ninguem as projeta como um “sistema de impactos sobre o corpo
em movimento.” [Mas conhecemos, pré-sabemos do papel do espaço que produzimos para nos
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relacionarmos]. Temos então as duas conexões: o movimento do corpo, e os significados que nossas
práticas produzem no espaço, que vão ser lidos como um “campo semântico” que vai estruturar
nossas interações nesse espaço. Cidades então são máquinas para gerar conexões entre pessoas um sistema de ligação, assim como a língua. Só que [palavras ditas em uma] língua some no tempo e
no espaço. Temos assim um terceiro dado - na verdade três sistemas ontológicos [que garantem
relacionalidade em nossa vida social]: o corpo e o corpo em movimento (que permite nos
aproximarmos e assim construir uma sociedade, viver coletivamente); a língua (que permite nossa
aproximação efetiva e trocas complexas de práticas e informação); e o espaço (que é produzido como
um sistema de aproximação e trocas complexas de práticas e informação). Aparentemente....
C: Qual é o mistério? o que faz o espaço determinar ações? Isso não são respostas. Falta o principal.
V: Há mais mistérios: Como produzimos o espaço para que esse sistema seja de fato um sistema que
aproxime pessoas? De onde vem esse pré-conhecimento sobre como o espaço urbano-arquitetônico
trabalha, para que geremos cidades assim e tenhamos esses efeitos sociais?
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