REVISTA DA FACULDADE DE DIREITO MAURÍCIO DE NASSAU REVISTA DA FACULDADE DE DIREITO MAURÍCIO DE NASSAU Recife, 2010 - n. 05 © 2008 Faculdade Maurício de Nassau Conselho Editorial da Revista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau João Maurício Adeodato (editor responsável) Geraldo de Oliveira Santos Neves George Browne Rego Roque de Brito Alves Larissa Leal (Universidade Federal de Pernambuco) Alexandre Freire Pimentel (Universidade Católica de Pernambuco) Raymundo Juliano do Rêgo Feitosa (Universidade Federal de Pernambuco e Faculdade de Direito de Caruaru) Eduardo Carlos Bianca Bittar (Universidade de São Paulo) Cláudia Lima Marques (Universidade Federal do Rio Grande do Sul) José Luiz Bolzan de Moraes (Universidade do Vale dos Sinos) Antonio Carlos Wolkmer (Universidade Federal de Santa Catarina) Fernando Facury Scaff (Universidade Federal do Pará) Martonio Mont’Alverne Barreto Lima (Universidade de Fortaleza) Antonio Carlos Cavalcanti Maia (Universidade do Estado do Rio de Janeiro) Stephan Kirste (Ruprecht-Karls-Universität Heidelberg) Raúl Madrid (Universidad Católica de Chile) Renato Rabbi-Baldi Cabañillas (Universidad de Buenos Aires) Oscar Sarlo (Universidad de Montevideo) Jack Rooney (Thomas Cooley University, Michigan, U.S.A.) REVISTA DA FACULDADE DE DIREITO MAURÍCIO DE NASSAU Recife: Faculdade de Nassau, a.5, n.5, 2010. 236p. 1. DIREITO. 2. DIREITO ROMANO. 3. DIREITO – BRASIL. 4. CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL – BRASIL. 5. RESPONSABILIDADE CIVIL – BRASIL. 6. ESTADO E INDÍVIDUO. 7. DIREITO – FILOSOFIA. 8. DIREITO DO TRABALHO – BRASIL. 9. JUIZES – PRÁTICA PROFISSIONAL. 10. IMPOSTO SOBRE CIRCULAÇÃO DE MERCADORIAS E SERVIÇOS. 11. BRASIL – CONSTITUIÇÃO. PeR – BPE 09-105 CDU 34 CDD 340 ISSN: 1809-9424 Endereço: Rua Guilherme Pinto, 114, Graças, 52010-210 Recife, pernambuco, Brasil Telefone: (81) 3413-4611 - Fax: (81) 3413-4612 E-mail: [email protected] Site: www.mauricionassau.com.br EDITORIAL A Faculdade de Direito Maurício de Nassau publica agora o quarto exemplar anual de sua Revista da Faculdade de Direito, com artigos oriundos dos grupos de pesquisa de seus professores e de professores de outras unidades e instituições, animada pela perspectiva de mudanças significativas. Isso porque parecem finalmente estar se delineando os parâmetros para inserção de uma publicação universitária no sistema Qualis da CAPES/MEC, o qual objetiva ser um indicador de excelência acadêmica e indexação científica. Claro que este exemplar ainda não está totalmente adequado a esses parâmetros, mesmo porque não se encontram definitivamente decididos. Tudo indica que um parâmetro de excelência, por polêmico que seja, vai ser que quanto mais artigos de pesquisadores externos uma revista contiver, mais alta será sua classificação no Qualis, dentro desse item. Outro critério a ser perseguido é a semestralidade, pois a Revista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau tem sido anual. Muitos desses parâmetros sinalizados pela CAPES, porém, sobretudo aqueles que têm mais tradição na academia brasileira, já estão satisfeitos aqui, tais como a rigorosa uniformização no formato, a presença obrigatória de resumo, de abstract e de sumário etc. Mas não somente critérios formais mais exigentes foram acrescidos a este quarto número. Além dos cuidados com o conteúdo dos artigos, procurando ir além dos meros relatos descritivos do direito positivo que tanto prejudicam a área de direito no Brasil, a tarefa mais árdua foi certamente conseguir um Conselho Editorial qualificado e comprometido, distribuído por instituições de prestígio em diversas regiões do Brasil, da América Latina, Estados Unidos e Europa, sem esquecer instituições do próprio Recife. Esse Conselho de avaliadoras e avaliadores, formado por 20 membros, trabalhará pelo sistema twofold blind review, isto é, com avaliação anônima de ambas as partes. Vários outros parâmetros de excelência continuarão sendo perseguidos, do que são exemplos uma melhor distribuição e envio a instituições nacionais e estrangeiras, a indexação nas melhores bases de dados (Ulrich’s Periodicals Directory e RVBI-Periódicos do Senado Federal) e inclusão no Catálogo Coletivo Nacional do IBCT. Como a Instituição de Ensino Superior que mais cresceu no Brasil nos últimos cinco anos, hoje presente em sete estados do Norte e do Nordeste, a Faculdade Maurício de Nassau não vai descuidar da qualidade de seus projetos de pesquisa na área de direito. Esta Revista pretende dar uma amostra disso. Recife, janeiro de 2009 José Janguiê Bezerra Diniz (Diretor Geral) João Maurício Adeodato (Editor Responsável) SUMÁRIO Filiação socioafetiva: os novos paradigmas da filiação Clever Jatobá ������������������������������������������������������������������ 23 Cidade ideal e cidade visível: o paradigma grego em revista. Aproximação à crítica de lewis mumford. Delor Gerbase Gramacho������������������������������������������������ 45 Direito e retórica na construção do ordenamento jurídico da união soviética a partir da análise do texto de andrej vysinskij intitulado problemi del diritto e dello stato in marx Fernando Joaquim Ferreira Maia����������������������������������� 53 Fenomenologia como paradigma de reestruturação da ciência jurídica José Arlindo de Aguiar Filho������������������������������������������������� 9 O brasil realmente precisa da cpmf ou de qualquer outro tributo que informe ao estado o sigilo bancário? Luiz Edmundo Celso Borba �������������������������������������������� 95 Noções históricas do sincretismo processual Paulo Hemetério Aragão Silva�������������������������������������� 107 A importância do código de nuremberg para o biodireit Renata Oliveira Almeida Menezes��������������������������������� 121 Neoconstitucionalismo e juspositivismo: superação ou complementaridade? Rodrigo Andrade de Almeida ���������������������������������������� 161 Sobre a prova na reforma processual penal Roque de Brito Alves������������������������������������������������������ 205 Constitucionalização dos direitos dos animais Tagore Trajano de Almeida Silva����������������������������������� 217 Fenomenologia como paradigma de reestruturação da ciência jurídica 9 FENOMENOLOGIA COMO PARADIGMA DE REESTRUTURAÇÃO DA CIÊNCIA JURÍDICA José Arlindo de Aguiar Filho Doutor em Filosofia pela Universidade Federal de Pernambuco, professor de Filosofia e Ética da Faculdade Maurício de Nassau. RESUMO A proposta deste trabalho é partir da semelhança entre a abordagem crítica fenomenológica de Heidegger em seus escritos sobre Kant, principalmente Phänomenologishe Interpretation von Kants Kritik der Reinen Vernunf, e Kant und das Problem der Metaphysik e, a partir da crítica heideggeriana, demonstrar a similitude dos caminhos tomados pelo direito positivo com a trajetória neokantiana de apropriação do pensamento de Kant. A analogia resultará em possíveis soluções fenomenológicas para a crise de fundamento por que passa a ciência do Direito, já em processo de superação de um positivismo jurídico insustentável epistemologicamente. Palavras-chave: Fenomenologia, Kant, Heidegger, Positivismo Jurídico. Revista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau – Recife – ano 5 – n. 5 – p. 09-21 – 2010 10 José Arlindo de Aguiar Filho ABSTRACT The task we propose here is to demonstrate the similarity relation between the Heidegger’s phenomenological approach in his writings about Kant, mainly Phänomenologishe Interpretation von Kants Kritik der Reinen Vernunf and Kant und das Problem der Metaphysik, and the paths taken by positive law trough the neokantian understanding trajectory of Kant’s philosophy. The analogy shall result in possible phenomenological basis solutions to the science of law’s crisis, already in overcoming process of the legal positivism, epistemologically unsustainable. Keywords: Phenomenology, Kant, Heidegger, Legal Positivism. SUMÁRIO: Introdução: a questão filosófica subjacente à problemática do positivismo jurídico. 1. Jus-positivismo e história da metafísica. 2. A interpretação fenomenológica e o direito positivo. INTRODUÇÃO: A QUESTÃO FILOSÓFICA SUBJACENTE À PROBLEMÁTICA DO POSITIVISMO JURÍDICO Para fazer uma análise de possibilidades de contribuição da fenomenologia às ciências jurídicas em nosso tempo é preciso estabelecer o campo a que o pensamento jurídico Revista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau – Recife – ano 5 – n. 5 – p. 09-21 – 2010 Fenomenologia como paradigma de reestruturação da ciência jurídica 11 está circunscrito no ordenamento legal atual. O sistema jurídico em que vivemos, no Brasil, como em Portugal e a maioria dos países europeus, se formou a partir do direito romano em paralelo com a common law anglo-saxã, e evoluiu numa mudança de direito natural para direito positivo. Neste trabalho queremos ligar esta mudança a um momento específico da história da filosofia, que em nossa hipótese permitiu e inspirou o surgimento do jus-positivismo, para a luz da Destruktion da história da metafísica tentada por Martin Heidegger criticar no direito positivo os elementos filosófico-metafísicos que o constituem. Assim pretende-se mostrar os limites da teoria pura do direito e sua possível superação em termos fenomenológicos a partir da crítica heideggeriana a história da metafísica, na qual o direito está, ao menos indiretamente, inserido. Delineados estão os dois passos a serem vencidos nesta empreitada: estabelecer uma analogia entre o direito positivo e um período específico da história da metafísica; e através de uma instanciação da crítica heideggeriana a esse período atingir os elementos filosóficos jus positivistas e procurar de dentro desta perspectiva fenomenológica a possibilidade de sua superação. Se bem caracterizado está o projeto faltamos em não explicitar-lhe a importância. Hoje se vive uma crise no positivismo jurídico. Poucos são os juristas que admitem a doutrina de Kelsen como suficiente para suprir o ordenamento legal de um país de justificação e legitimidade. Escolas de filósofos do direito se esforçam para superar esta insuficiência em várias direções. Exemplos não faltam para ilustrar este esforço de pensadores escandinavos (ROSS, 2003) aos de herança latina como Norberto Bobbio (BOBBIO, 1999, Revista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau – Recife – ano 5 – n. 5 – p. 09-21 – 2010 12 José Arlindo de Aguiar Filho 2005) até o Recife, onde a discussão se acirra entre dois pólos são a superação por via do pragmatismo1 e a nova escola retórica (ADEODATO, 2006). 1. JUS-POSITIVISMO E HISTÓRIA DA METAFÍSICA O positivismo na filosofia é conhecido como movimento intelectual surgido na França por ocasião das obras de Auguste Comte, principalmente seu Curso de filosofia positiva, de 1839/42. Sua penetração nas ciências, em processo de consolidação em seu papel institucional, transformou o sistema de Comte em um valioso instrumento de defesa e difusão do pensamento científico; pensamento da ciência enquanto “ordenada para o progresso”. A idéia de ciência que se cristalizava como modelo de conhecimento para o século por vir, retirava suas bases de uma experiência anterior e de maior aspecto filosófico: Kant e a Crítica da Razão Pura. É o impacto que o pensamento de Kant tem sobre o cenário do pensamento ocidental que, em uma perspectiva particularmente ligada ao neokantismo, foi absorvida pelos juristas europeus do início do século XX através do positivismo. Está colocada nossa posição quanto ao primeiro passo do trabalho: a analogia que há entre o jus-positivismo e a história da metafísica deve remeter ao seu ponto de origem comum no pensamento kantiano e sua versão neokantiana2. 1 Há grupo de pesquisa atuante sobre o tema sob liderança do professor Dr. George Browne Rego 2 Notadamente as versões de Carnap, Nartop e Cohen, apontados mesmo por Heidegger nas disputas de Davos com Cassirer, como os neokantistas a quem se refere em suas críticas. Revista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau – Recife – ano 5 – n. 5 – p. 09-21 – 2010 Fenomenologia como paradigma de reestruturação da ciência jurídica 13 Para defender tal aproximação, primeiro é necessário afastar as possíveis oposições, das quais uma facilmente perceptível é o lapso que existe entre o pensamento kantiano e o surgimento das primeiras obras jurídicas positivas. Aproximadamente 150 anos transcorreram entre 1781, ano da primeira edição da Crítica, e a década de 30 já no século XX quando Kelsen elaborava sua teoria pura. Se o juspositivismo está ligado ao pensamento de Kant por que não surgiu durante o século XIX? A resposta está ligada a natureza mesma como o fenômeno jurídico tem sua dinâmica dentro da sociedade. O direito é lento, a filosofia é rápida. O filósofo pode ser considerado a vanguarda do pensamento de um povo. Sua produção é livre e desembaraçada da maioria das barreiras sociais e instituições que retém o poder e divulgação das idéias de cada época. Qualquer que seja a perseguição ao pensamento ela sempre será uma prevenção para que o mesmo não se torne uma manifestação concreta em termos de demanda e ação popular, como na sua consolidação em uma jus-filosofia. As ciências jurídicas por seu lado estão profundamente enraizadas na experiência legal de cada população e seu desenvolvimento só é possível dentro de certos limites impostos pela utilização e adequação dos sistemas às possibilidades de organização do poder. O pensador do Direito tem ao seu lado todo um processo de legitimação e um poder envolvido em sua teorização, o objeto de estudo do jurista está atrelado à organização da sociedade mesma. O direito corre atrás da filosofia. Enquanto as idéias filosóficas surgem e posteriormente se espalham pelos outros âmbitos culturais, excetuando talvez a arte como um todo única expressão tão vanguardista quanto o pensamento filosófico, o mundo das relações sociais as absorve de forma Revista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau – Recife – ano 5 – n. 5 – p. 09-21 – 2010 14 José Arlindo de Aguiar Filho comedida até que sua aceitação não mais seja um desafio e sim uma necessidade. A dinâmica das idéias dentro das diferentes culturas é o fator que explica a diferença temporal entre o surgimento das bases científicas nos termos kantianos da primeira Crítica e seu emprego nas ciências particulares, especialmente na ciência jurídica apenas um bom século depois. Existem exemplos para comprovar esta disparidade em vários ordenamentos pelo mundo afora: o código civil brasileiro vigente até o ano de 2003 foi instituído em 1916, e inspirado no código napoleônico de 1804; ainda mais distante a famosa constituição americana de 1776 ainda em vigor. Há um saudável equilíbrio na sociedade quando as leis se mantém estáveis e duradouras, até porque assim chegam ao senso comum da população. Neste aspecto reside a resistência que o direito levanta contra a rápida absorção das revolucionárias idéias filosóficas de seu próprio tempo. Sua dinâmica é deixar a vanguarda tornar-se conhecida e aceita antes de subsumi-la em sua formação. Ultrapassada a objeção do lapso temporal procedemos à aproximação entre o pensamento do jus-positivismo em confronto com o neokantismo. O guia que tomamos na consideração do sistema jurídico positivo não poderia ser outro que não Hans Kelsen e sua Teoria Pura do Direito. Nesta obra encontramos ao menos quatro características que permitem uma aproximação com Kant: proeminência do formalismo, ambição de completude, ambição de coerência, e abordagem heteronômica das leis. O formalismo é entendido em Kant nos termos de sua ética subordinada ao imperativo categórico. Esta ligação entre a ação humana e uma derivação formal de suas conseqüências frente à lei moral interna representa uma formaRevista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau – Recife – ano 5 – n. 5 – p. 09-21 – 2010 Fenomenologia como paradigma de reestruturação da ciência jurídica 15 lização do critério moral numa regra potencial para a coletividade. Se a ação pode ser generalizada será eticamente aceita. Seguindo este sistema temos uma forma que instrui ao homem sobre a moralidade da ação segundo uma derivação da regra moral categórica. Este sistema será transportado por Kelsen na formulação da norma fundamental que fundamenta o ordenamento jurídico. Junto com a norma fundamental, seu análogo jurídico do imperativo categórico, Kelsen transporta para o direito duas conseqüências e ambições desta formalização: a ambição de completude e de coerência. Neste ponto da investigação o paradigma das ciências naturais aparece e ganha força na interpretação das ciências jurídicas. A completude a que o direito deve tender é a característica de um ordenamento no qual não existem lacunas. Lacuna é o fato do mundo da vida que não possui previsão legal, o fato para o qual o direito não tem uma regra e que desta falta retira seu nome: é um vazio de ordenamento legal, uma lacuna no sistema. No direito como compreendido pela teoria pura não existem lacunas. Há normas de superação que disciplinam o comportamento do ordenamento no caso de falta de legislação específica. O mais conhecido exemplo é a disposição “aquilo que não é proibido é permitido.” Este tipo de norma garante ao ordenamento abrangência sobre todos os fatos que já proíbe e ainda regula todo e qualquer outro fato que aconteça como permitido. No Brasil temos a Lei de Introdução o Código Civil cujo artigo 4° cuida da superação de lacunas amparado na Constituição Federal que positivou princípio do non liquet (art. 5°, XXXV). Mas a completude tem sua caracterização original nas ciências exatas. A matemática é o exemplo guia para esta Revista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau – Recife – ano 5 – n. 5 – p. 09-21 – 2010 16 José Arlindo de Aguiar Filho característica. Não pode haver uma conta, uma operação impossível no campo da aritmética. Não encontraremos dois números naturais cuja soma seja impossível, todos estão devidamente englobados pelas regras de adição. Segunda característica a ambição de coerência. A matemática também aqui é o norte da teorização jurídica. Coerente é o pensamento cujas conclusões são derivadas formalmente dos axiomas. É o caso da geometria. Nela os axiomas se desdobram em teoremas seguindo uma dedução formal. A norma fundamental kelseniana deve ser o axioma do qual derivam a legislação de um ordenamento numa estrutura formal. Se tal ocorre não surgirão as chamadas antinomias ou choques entre as leis. Também aqui existem dispositivos de solução de antinomias em diferentes ordenamentos para assegurar a coerência do sistema. Os critérios da hierarquia, especialidade e temporalidade apresentados por Bobbio são bom exemplo das garantias de coerência dos ordenamentos jurídicos. Ainda antes de darmos o próximo passo um último ponto deve ser abordado na aproximação da estrutura positiva do direito das raízes kantianas: a separação entre normas autônomas e heterônomas. A dicotomia entre ações por dever e ações conforme o dever da moral kantiana serve com perfeição para uma definitiva separação entre direito e moral. Apenas com esta distinção elaborada poderia Kelsen desenvolver seu conceito de sanção e sua posição dentro de um ordenamento jurídico. Enfim chegamos ao segundo ponto da aproximação. A estrutura paradigmática das ciências naturais desenvolvese num plano dinâmico compartilhado por Kant (no viés neokantiano) e Kelsen: a rejeição à metafísica. Enquanto a Revista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau – Recife – ano 5 – n. 5 – p. 09-21 – 2010 Fenomenologia como paradigma de reestruturação da ciência jurídica 17 Crítica da Razão Pura descarta a metafísica como ciência a Teoria Pura do Direito descarta o direito natural. Esta é a analogia mais importante a ser tecida, pois é através da interpretação do papel da metafísica no pensamento de Kant que a fenomenologia pode ser aplicada ao pensamento de Kelsen numa tentativa de superação. 2. A interpretação fenomenológica e o direito positivo A fenomenologia heideggeriana interpreta a obra kantiana num sentido oposto ao neokantismo. Esta oposição, portanto se aplica ao positivismo inspirados neste mesmo neokantismo e por extensão ao positivismo jurídico. Mas em que medida é a interpretação fenomenológica de Heidegger oposta ao pensamento neokantiano? Na medida em que inverte a posição da metafísica na estrutura da Crítica da Razão Pura. Heidegger afirma que a Crítica da Razão Pura não apenas não desautoriza a metafísica como conhecimento como a fundamenta enquanto tal. Assim a rejeição ao pensamento metafísico por parte dos positivistas e do direito natural não passariam de uma má leitura de sua importância epistemológica causada pela confusão das idéias acerca de Kant. Há neste caso uma sobrevalorização da aproximação do conhecimento puro com o paradigma das ciências naturais, notadamente física e matemática. Mas nem Kant descarta a metafísica nem o direito. A estes campos do saber dá uma nova perspectiva, são regiões destinadas à razão prática e à ontologia, não ao paradigma científico naturalisRevista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau – Recife – ano 5 – n. 5 – p. 09-21 – 2010 18 José Arlindo de Aguiar Filho ta. Tentar transformar algo que não a física e a matemática em objeto da razão pura, como parece pretender a ambição neokantiana-kelseniana já é desde o princípio afrontar o pensamento e estrutura epistemológica da Crítica. Colocar a metafísica e suas questões como fundada pela possibilidade de buscar o conhecimento, como projeção da transcendência e nesta perspectiva perceber seu papel é a melhor opção de um bom intérprete de Kant, não a rejeição. Mesmo se dá então para com o direito natural, este não pode ser descartado, como a metafísica que faz parte da própria busca pelo conhecimento, este direito faz parte da própria formação do direito em sua origem. Não há sistema formal que esgote o direito, sua raiz estará sempre associada ao homem que o elabora, em sua vida, em sua contingência. Aqui está a primeira contribuição da fenomenologia a recuperação do lugar de origem da estrutura jurídica sem o movimento de repulsa contra o direito natural. É possível trabalhar o ordenamento com valores sociais sem cometer um erro formal. O segundo passo que apontamos diz respeito a uma teoria jurídica que em sua base realiza esta desvinculação do sistema positivo e traz consigo uma forte semelhança com a fenomenologia heideggeriana: a sociologia jurídica de Niklas Luhmann3. Heidegger (1997, p.125) afirma estar a Crítica da Razão Pura presa ao “logos” da modernidade. Kant compartilha então da dicotomia metafísica entre sujeito e objeto absolutamente insuperável e de um conceito correspondentista de verdade. Estaria Kant na linha metafísica traçada 3 Há excelente trabalho de apropriação do pensamento de Luhmann e aproximação da filosofia heideggeriana em O Pensamento de Niklas Luhmann (SANTOS, 2005). Revista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau – Recife – ano 5 – n. 5 – p. 09-21 – 2010 Fenomenologia como paradigma de reestruturação da ciência jurídica 19 no medievo da verdade enquanto adequatio, defendida por Tomás de Aquino (1996, p.71) “Com efeito, o conceito de verdade consiste na concordância entre a coisa e o conhecimento”, de origem ainda mais antiga, o pensamento grego: “Negar aquilo que é e afirmar aquilo que não é, é falso, enquanto afirmar o que é e negar o que não é, é a verdade” (ARISTÓTELES, Metafísica, IV, 7, 1011 b 26 ss.). Este conceito é transformado na teoria de Luhmann (1980, p. 25): A verdade, assim como o direito, é avaliada enquanto fator de diminuição da complexidade social. A perspectiva acerca daquilo que a verdade representa no pensamento de Luhmann está bem além da caracterização positivista de origem neokantiana de verdade enquanto adequação. Nisto remete para a superação do “logos” moderno de que fala Heidegger. Antes de Luhmann o filósofo já mostrara a insuficiência da verdade enquanto atributo da proposição. Desta insuficiência deriva a insuficiência da verdade enquanto atributo das proposições científicas. O Lebenswelt em sua estrutura irredutível de significância é o ponto de origem, no pensamento de Luhmann o análogo é o sistema, no qual a verdade pode repercutir como diminuição de complexidade, como atributo da proposição ou como revelação sagrada. Seja qual for sua concepção há uma perspectiva mais profunda que a fundamenta e enraíza, tal qual no direito o formalismo positivista é apenas uma manifestação contingente de um momento da história da metafísica. Direcionada a dinâmica do positivismo jurídico como uma repulsa ao direito natural e progressiva esterilização de uma forma perfeita estaremos dando um passo para o empobrecimento da ciência jurídica. Prover-nos esta percepção, nos alertar sobre suas limitações é lição valiosa que a fenomenologia tem a dar para a jus filosofia. Revista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau – Recife – ano 5 – n. 5 – p. 09-21 – 2010 20 José Arlindo de Aguiar Filho REFERÊNCIAS ADEODATO, João Maurício. Ética e Retórica: para uma teoria da dogmática jurídica. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2006. AQUINO, São Tomás de. Questões discutidas sobre a verdade. in Pensadores. São Paulo: Nova Cultural, 1996. BOBBIO, Norberto. Teoria da Norma Jurídica. Tradução de Fernando Pavam Baptista e Ariani Bueno Sudatti. 3. ed. Bauru: EDIPRO, 2005. ______. Teoria do Ordenamento Jurídico. 10. ed. Brasília: Universidade de Brasília, 1999. HEIDEGGER. Phenomenological Interpretation of Kant’s Critique of Pure Reason. Traduzido por Parvis Emand, e Kenneth Maly. Bloomington: Indiana University Press, 1997. ______. Kant y el Problema de la Metafísica. Traduzido por Gred Ibscher Roth. México: Fondo de Cultura Económica, 1996. KANT, Immanuel. Crítica da Razão Pura. Traduzido por: Manuela Pinto dos Santos e Alexandre Fradique Morujão. 4.ed. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1997. KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito: versão condensada pelo próprio autor. 3.ed. Tradução de J. Cretella Jr. e Agnes Cretella. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003. Revista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau – Recife – ano 5 – n. 5 – p. 09-21 – 2010 Fenomenologia como paradigma de reestruturação da ciência jurídica 21 LUHMANN, Niklas. A Legitimação pelo Procedimento. Brasília : editora Universidade de Brasília, 1980. ROSS, Alf. Direito e Justiça. Tradução de Edson Bini. Bauru: Edipro, 2003. SANTOS, José Manuel (org.). A Complexidade do Mundo. In: O Pensamento de Niklas Luhmann. Covilhã: Ta Pragmata, 2005. Revista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau – Recife – ano 5 – n. 5 – p. 09-21 – 2010 Filiação socioafetiva: os novos paradigmas da filiação 23 FILIAÇÃO SOCIOAFETIVA: OS NOVOS PARADIGMAS DA FILIAÇÃO Clever Jatobá Advogado e Consultor Jurídico; Especialista em Direito do Estado e em Direito Civil e Consumidor pelo Juspodivm e Faculdade Baiana de Direito (Salvador-Ba); Professor de Direito da Faculdade Maurício de Nassau, Unijorge, e da Faculdade Apoio. Membro do IBDFAM – Instituto Brasileiro de Direito de Família. RESUMO O presente Artigo objetivou apreciar e comprovar a pluralidade dos vínculos originários da filiação, atentando aos seus novos paradigmas, partindo da noção geral acerca da filiação, valorizando seu conceito e suas formas de concepção, distinguidas pelos vínculos originários, quais sejam, o jurídico – atentando às presunções legais, assim como à adoção – o biológico, até alcançar a relação socioafetiva. Palavras-chave: Filiação; paternidade; vínculos originários; biológica; socioafetividade. Revista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau – Recife – ano 5 – n. 5– p. 23-43 – 2010 24 Clever Jatobá ABSTRACT This paper aimed to asses and verify the number of links from the membership, paying attention to its new paradigm, based on the general notion about the membership, promoting the concept and forms of design, distinguished from the links, which are the legal - considering the legal presumptions, and the adoption - the biological, to achieve the socio affection relationship. Keywords: affiliation; paternity; links originate, biological, socio affection. SUMÁRIO 1. Introdução: Da Filiação. 1.1 Do Conceito de Filiação. 1.2. Da Filiação e seus vínculos. 1.2.1 Do Vínculo Jurídico. 1.2.1.1 Da Presunção Legal pater is est 1.2.1.2 Da Presunção Legal nas Inseminações Artificiais. 1.2.1.3 Do Vínculo Jurídico por Adoção. 1.2.2 Do Vínculo Biológico. 1.2.3 Do Vínculo Socioafetivo. 1.2.3.1 Posse do Estado de Filho. 1.4 Da Constatação do Vínculo Socioafetivo. 1.5 Considerações Finais. 2. Referências Bibliográficas. 1- INTRODUÇÃO: DA FILIAÇÃO A magia principal da existência humana reside no sopro da vida, advento natural decorrente da procriação, ou seja, da condição espontânea da fecundação, por meio da qual dois seres humanos podem gerar, produzir, ou dar origem a um descendente da sua própria espécie. Revista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau – Recife – ano 5 – n. 5 – p. 23-43 – 2010 Filiação socioafetiva: os novos paradigmas da filiação 25 Segundo Eduardo dos Santos (1999, p.435) “a procriação é, assim, um facto natural. E, transplantada ela para o plano do direito, dá lugar ao instituto da filiação”, que na mesma linha de pensamento, Silvio de Salvo Venosa (2003, p.265), completa ser, esta (filiação) “um fato jurídico do qual decorrem inúmeros efeitos”. Destarte, a Filiação, na condition ratio de fato jurídico, mesmo que, de forma natural decorra da procriação, como vários doutos didaticamente relacionam, atenta, de fato, aos inúmeros efeitos jurídicos que dela decorrem, não se restringindo a tal origem genética, mas, sim, transcendendo a tais limites, manifestando-se como fenômeno jurídico de origem legal (tendo nas presunções e na adoção espécies de filiações jurídicas), médico-científica (nas inseminações artificiais) e socioafetivas. 1.1 Do Conceito de Filiação Segundo o ensinamento de Edmilson Villaron Franceschinelli (1997, p.13), “filiação, derivado do latim filiatio, é a relação de parentesco que se estabelece entre os pais e o filho, na linha reta, gerando o estado de filho, decorrente de vínculo consangüíneo ou civil, e criando inúmeras conseqüências jurídicas”. Destarte, Luiz Edson Fachin (1992, p.34) alerta que “para apreender a verdadeira paternidade, exige mais que a observação do vínculo biológico, emergindo daí a valorização da realidade sócio-afetiva que liga um filho a seu pai”. Por fim, cabe-nos acrescentar que, segundo Paulo Lôbo (2008, p.192), filiação “é a relação de parentesco que se estabelece entre duas pessoas, uma das quais nascida da Revista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau – Recife – ano 5 – n. 5– p. 23-43 – 2010 26 Clever Jatobá outra, ou adotada, ou vinculada mediante posse de estado de filiação ou por concepção derivada de inseminação artificial”. Diante de tal amplitude conceitual atualmente adotada, uma coisa é certa, é que a filiação se manifesta de formas distintas, ou seja, por diversos vínculos, quais coexistem diante do ordenamento jurídico vigente. 1.2 Da Filiação e seus Vínculos Hodiernamente, não se pode restringir a filiação sob o prisma da procriação, mas, em verdade, torna-se indispensável apreciar a amplitude da sua concepção, permitindo esmiuçar as facetas da sua origem, posto que, doravante, atentaremos à filiação e seus vínculos. Como a Constituição Federal de 1988 estabeleceu a igualdade entre os filhos, extirpando em absoluto preocupações acerca da legitimidade ou não da filiação, independentemente da sua origem, não há que se falar em qualquer espécie de distinção. Entretanto, muitos doutrinadores mais tradicionais – a exemplo de Silvio de Salvo Venosa (2003, p.266) e Maria Helena Diniz (1997, p. 310) – insistem ainda na classificação da filiação sob a égide da distinção acerca da legitimidade, tratando de temas como filiação legítima, ilegítima, natural, adulterina, espúria, ou até sobre legitimação, porém pedimos a Maxima Vênia para discordar que tais aspectos sejam didáticos, visto que não mais correspondem à realidade, como não podem mais subsistir por conta da vedação constitucional expressa, assim, acreditamos que tais enfoques apenas possam ser relatados como mera evolução histórica acerca do tema. Revista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau – Recife – ano 5 – n. 5 – p. 23-43 – 2010 Filiação socioafetiva: os novos paradigmas da filiação 27 Ante a necessidade didática, Fábio Ulhoa Coelho (2006, p.146) assevera que “a finalidade da classificação é ilustrativa, destina-se unicamente a delimitar a extensão do conceito, porque, independente do tipo de filiação, os direitos e deveres associados à relação vertical são absolutamente idênticos”. Destarte, a concepção moderna acerca da família e suas relações verticais de parentesco atestam, didaticamente, à divisão da filiação em um binômio: a filiação biológica e a não biológica. Contudo, mais abrangente, parece-nos, atentarmos aos vínculos que norteiam a filiação, quais sejam: o vínculo jurídico, o vínculo biológico e o vínculo socioafetivo. 1.2.1 Do Vínculo Jurídico No horizonte jurídico, a preocupação em relacionar pais aos filhos sob a égide dos efeitos na ordem jurídica vem se protraindo no tempo desde a antiguidade. Atualmente, encontram-se sedimentados três expoentes dos vínculos jurídicos: A Presunção legal; a Adoção e a Inseminação Artificial Heteróloga. 1.2.1.1Da Presunção Legal pater is est A ânsia jurídica de tutelar o parentesco da filiação criou a presunção legal de paternidade, calcada na preconização do direito romano, que em face da certeza da maternidade contraposta à incerteza da paternidade (mater is semper certus, pater incertus), sob a concepção de legitimidade da Revista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau – Recife – ano 5 – n. 5– p. 23-43 – 2010 28 Clever Jatobá 28 filiação decorrente da preexistência do casamento1, instituiu a presunção legal do “pater is est quem justae nuptiae demonstrant”, ou seja, a figura paterna subsumia-se à presunção de que o pai estaria resumido à mera condição de marido da mãe. Portanto, elucida Maria Alice Zaratin Lotufo (2002, p. 187), que “Se o filho é da mulher casada, presume-se que seja do marido”2, já que “a fidelidade é um dos deveres do casamento”. É neste contexto axiológico que, segundo Flávia Lages de Castro (2007, p.99), desde o Direito de Família Romano, fora instituída a presunção legal, onde “A filiação legítima era presumida se o parto acontecesse, no mínimo, cento e oitenta dias da data em que o matrimônio fosse contraído ou, no máximo, trezentos dias após a dissolução do mesmo.” Foi calcado nesta baliza romana que o Código Civil Brasileiro3, manteve nestes moldes a previsão da presunção legal calcada no tempo da gestação. 1.2.1.2 Da Presunção Legal nas Inseminações Artificiais Outra faceta em que a presunção legal se manifesta no Novo Código Civil pátrio, adequando 1 Sob a bússola anterior à dicção constitucional vigente, onde ainda se previa a legitimidade da filiação como fator discriminatório entre a origem dos filhos, cabe-nos reportar ao ensinamento de Orlando Gomes (2001, p.325), para chancelar tal entendimento: “Provase a paternidade legítima estabelecendo-se o casamento dos pais”. 2 Neste diapasão, arremata Silvio de Salvo Venosa (2003, p. 270) que a legislação presume “que o filho da mulher casada foi concebido pelo marido”. 3 A presunção legal abarca o aspecto temporal para a filiação advinda do casamento, além de agasalhar, também sob o prisma temporal, as fecundações por inseminação artificial (vide art. 1597 do CC-02). Revista Revista do Curso da Faculdade de Direito deda Direito Faculdade Maurício Maurício de Nassau de Nassau – – Recife – ano 53 – n. 53 – p. 23-43 27-84 – 2010 2008 Filiação socioafetiva: os novos paradigmas da filiação 29 à modernidade e aos avanços científicos, alude às inseminações artificiais, ao que tange à expressão temporal da filiação gerada pelas técnicas de reprodução assistidas. Como ponto de partida, Leila Donizetti (2007, p.93), de forma elucidativa esclarece que a inseminação artificial4: “é um processo através do qual se colhe o material genético do homem por meio de masturbação em laboratório, congelandose o esperma colhido em solução de azoto líquido para posterior implantação na mulher”. Assim, faz-se necessário, a priori, traçar de forma sucinta a distinção entre as duas espécies de inseminação artificial: a homóloga e a heteróloga. A concepção homóloga diz respeito à técnica de fertilização artificial que utiliza o próprio material genético dos futuros pais; ao tempo em que a concepção heteróloga5 alude à possibilidade da utilização do material genético doado por outrem, ou seja, distinto do casal (de um ou de ambos) de futuros pais. Destarte, a disposição legal gera presunção no processo de fertilização artificial homóloga, visto que a contratação deste serviço médico por si só certifica a anuência de ambos os contratantes, assim, 4 A própria Leila Donizetti (2007, p.94-95) distingue a inseminação artificial da fecundação artificial in vitro, esclarecendo que nesta técnica (in vitro) “a manipulação do óvulo e do espermatozóide é feita fora do útero, ou seja, a junção das duas células é realizada no tubo de ensaio e, só posteriormente, após a construção da fecundação, é feita a implantação do embrião no útero da mulher”. 5 Fábio Ulhoa Coelho (2006, p.147) chama a filiação decorrente de inseminação artificial heteróloga de “filiação por substituição”, atentando à substituição do material genético dos pais (um, ou ambos) pelo fornecimento de gametas por terceiros. Revista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau – Recife – ano 5 – n. 5– p. 23-43 – 2010 30 Clever Jatobá não há que se esquivar das responsabilidades futuras decorrentes da geração de um filho. É neste sentido, que o texto da lei determina que a vontade dos contratantes seja válida mesmo após o falecimento do marido. Por outro lado, há também presunção6 legal na paternidade heteróloga em face da “prévia autorização do marido”, entendemos, porém, ser desnecessária tal previsão legal desta presunção, visto que a prévia autorização documenta a aquiescência dos propensos pais, servindo, assim, de prova pré-constituída do reconhecimento espontâneo desta paternidade. 1.2.1.3Do Vínculo Jurídico por Adoção Segundo a lição de Orlando Gomes (2001, p.369), “Adoção é o ato jurídico pelo qual se estabelece, independentemente do fato natural da procriação, o vínculo da filiação. Trata-se de ficção legal, que permite a constituição, entre duas pessoas, do laço de parentesco do primeiro grau na linha reta”. Destarte, a adoção como instituto jurídico deságua na quebra da hegemonia biológica atendendo aos dispositivos legais que instituem uma filiação sob o prisma do vínculo civil, contudo, dependente de um ato solene de repercussão jurídica. 6 Trata-se de presunção júris tantum, pois se ressalvam as hipóteses em que poderiam incidir em responsabilidade civil por erro médico na situação onde equivocadamente ocorresse a troca do material genético dos propensos pais pelos manipuladores geneticistas. Revista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau – Recife – ano 5 – n. 5 – p. 23-43 – 2010 Filiação socioafetiva: os novos paradigmas da filiação 31 Neste sentido, Roberto Senise Lisboa (2004, p.336) esclarece que a “Adoção é o ato jurídico solene pelo qual um sujeito estranho é introduzido como filho na família do adotante, passando a ter os mesmos direitos decorrentes da filiação”. Assim, a adoção reflete no âmbito jurídico como um instituto legítimo, sedimentado pelo tempo, onde ratifica os vínculos afetivos e os valores do convívio social, estando, todavia, vinculada sua constituição às formalidades legais, pois não decorre de mera situação de fato, mas, sim, de um procedimento judicial. 1.2.2 Do Vínculo Biológico O vinculo biológico consiste na identidade genética que une dois indivíduos pelos laços do parentesco, neste prisma, ao que diz respeito à filiação, trata-se de uma relação genética ou consangüínea entre os pais e os filhos. Consonante a esta linha de pensamento, Maria Helena Diniz (1997, p. 308), assevera que “Filiação é o vínculo existente entre pais e filhos; vem a ser a relação de parentesco consangüíneo em linha reta de primeiro grau entre uma pessoa e aqueles que lhe deram vida”. Por incrível que pareça, os vínculos de filiação sedimentados no tempo não estiveram atrelados à realidade biológica, visto que não havia como ser provado, assim, o ordenamento jurídico buscava socorrer-se nas presunções legais. Ocorre que, com o passar do tempo, as Revista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau – Recife – ano 5 – n. 5– p. 23-43 – 2010 32 Clever Jatobá coisas mudaram, a sociedade evoluiu, a ciência avançou de tal maneira que o vínculo consangüíneo tornou-se uma realidade submetida a critérios probatórios cientificamente garantidos 7, onde, por meio do exame de DNA8 atesta-se a inequívoca existência de tal laço biológico, conseguindo provar quando um filho carrega a herança genética dos seus pais. 1.2.3 Do Vínculo Socioafetivo Em contraposição aos avanços da biogenética, que tem no exame de DNA a condição de afirmar com 99% de certeza a verdadeira origem genética de um indivíduo, passou a ser tutelada uma verdade além da consangüinidade, pautada nas afinidades, na convivência, na troca de afeto e no exercício das responsabilidades típicas de um pai perante seu filho, emanando das relações fáticas o vínculo socioafetivo. A concepção de uma filiação socioafetiva parte da idéia da construção da paternidade de fato, construída no convívio cotidiano com base no afeto, na garantia de uma criação digna, preocupada com a saúde e a educação típica das relações domésticas familiares inerentes ao vínculo entre pais e filhos. Luiz Edson Fachin (1996, p. 36-37), entende que, “Se o liame biológico que liga um pai a um filho é um dado, a paternidade pode exigir mais do que apenas laços de sangue. Afirma-se aí a paternidade socioafetiva que se capta juridicamente na expressão de posse de estado de 7 O exame de DNA tem sido uma prova pericial de relevante importância na investigação da paternidade. 8 Ácido desoxirribonucléico é traduzido para o português por meio da sigla ADN, contudo, a sigla internacionalmente auferida (DNA), terminou por ser a mais popularizada. Revista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau – Recife – ano 5 – n. 5 – p. 23-43 – 2010 Filiação socioafetiva: os novos paradigmas da filiação 33 filho”. Assim, aquele que age como um pai perante seu filho, assumindo as responsabilidades inerentes à criação, educação, cuidados e amparo afetivo, mesmo desatrelado do liame genético, demonstra conviver diante da posse de estado de filiação, sendo, assim, por conta das circunstâncias fáticas, é tido como pai, pois o provérbio popular há muito já prenuncia que “pai é quem cria”. Nesta concepção sociológica de filiação decorrentes da função paterna na formação da sua personalidade, o pai desempenha sua função, sendo, pelo filho, reconhecido e identificado como tal. Neste sentido, Rodrigo da Cunha Pereira (2004, p.387) afirma que: a paternidade não é um fato de natureza, mas, antes, um fato cultural. Em outras palavras, paternidade é uma função exercida, ou um lugar ocupado por alguém, não necessariamente o pai biológico. Neste sentido, o lugar ocupado por outra pessoa como o irmão mais velho, o avô, o namorado, etc. Finalmente, esclarecemos que a filiação socioafetiva, como um vínculo de fato, decorre da compreensão da “posse do estado de filho” em que se encontrará atrelada a relação familiar típica entre pais e filhos. 1.2.3.1 Posse do Estado de Filho O lastro que ampara a existência da paternidade construída no convívio diário pelos laços afetivos Revista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau – Recife – ano 5 – n. 5– p. 23-43 – 2010 34 Clever Jatobá repousa sobre a “Posse do Estado de Filho”, uma temática oriunda da antiguidade, sustentada desde a Roma antiga, que agasalha a situação fática do convívio pela aparência9 correspondente a relação entre os pais e seus filhos. É cediço na doutrina a existência de circunstâncias que atestem a posse de estado de filho, qual sejam, o nome, o tratamento e a reputação. Assim, esclarece Luiz Edson Fachin (1992, p.54): Por posse de estado de filho, entende-se a reunião de três elementos clássicos: a nominatio, que implica a utilização pelo suposto filho do patronímico, a tractatio, que se revela no tratamento a ele deferido pelo pai, assegurando-lhe manutenção, educação e instrução, e a reputatio, representando a fama ou notoriedade social de tal filiação. Não obstante ser pacificamente sustentado na doutrina a idéia de “posse do estado de filho” nos moldes do direito romano, estando atrelado aos elementos clássicos de nome, tratamento e reputação (nominatio, tractatio e reputatio), cabe-nos esclarecer que tais elementos precisam ser interpretados em consonância com os prismas jurídicos da atualidade, sendo assim, compreendidos nos moldes em que vivemos, estando adequados à atual realidade, pois, com o passar dos tempos, diante do decurso da história e da evolução da sociedade, não se pode ficar vinculado a interpretá-los nos moldes de outrora, pois o mundo moderno não é 9 Maria Berenice Dias (2006, p.306) sinaliza o empréstimo de juridicidade pela tutela da aparência. Revista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau – Recife – ano 5 – n. 5 – p. 23-43 – 2010 Filiação socioafetiva: os novos paradigmas da filiação 35 (nem pode ser) mais o mesmo regulado pelo direito romano. Neste diapasão, cabe-nos reportarmos à lição de Roxana Cardoso Brasileiro Borges (2007, p.80), qual esclarece que: [...] a distância entre o direito civil atual e o direito romano é de dois milênios. E a intrpretação do direito atual tendo como base o direito romano não tem lugar, pois as sociedades são diferentes, as épocas não têm ligação entre si e, apesar da coincidência terminológica de alguns institutos, os direitos são diferentes. Desta forma, entendemos que para caracterização da “posse do estado de filho”, exige-se, nos moldes jurídicos atuais, apenas e tão somente dois elementos, quais sejam, a reputação e o tratamento, cuja consolidação será manifestada perante o seio social de um relacionamento típico de um pai perante o seu filho, onde o pai trata-o como filho, ao tempo em que o filho assim o reconhece como pai. Neste diapasão, José Bernardo Ramos Boeira (1999, p.60) entende a configuração da posse de estado de filho, como sendo “uma relação afetiva, íntima e duradoura, caracterizada pela reputação frente a terceiros como se filho fosse, e pelo tratamento existente na relação paterno-filial, em que há o chamamento de filho e a aceitação do chamamento de pai.” Na conjuntura jurídica da atualidade não se pode exigir a contemplação do elemento nominatio, pois, Revista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau – Recife – ano 5 – n. 5– p. 23-43 – 2010 36 Clever Jatobá uma vez registrado com o patronímico dos pais não biológicos, estar-se-ia diante, não de uma filiação socioafetiva pura, no que concerne à realidade sociológica de fato, mas, sim, da manifestação do vínculo de sócio-afetividade identificado numa filiação civil devidamente regularizada pelo registro, independentemente de se perfazer por meio da adoção judicial, adoção à brasileira ou do simples reconhecimento da filiação. Ademais, o nome de família nos moldes romanos não tinha a mesma regularidade formal dos nossos tempos, visto que os nascimentos não eram lavrados obrigatoriamente no registro civil de forma oficial, mas, tão somente, atentava-se ao sobrenome como identificador da descendência das pessoas perante o seio social. Além do mais, cabe-nos acrescentar que o registro formal ocorria, em regra, diante da contagem demográfica censitária, momento onde as famílias eram registradas perante o Estado. Atestando nossa assertiva, temos a incontestável referência bíblica acerca do nascimento de Cristo (Lucas cap. 2, versículo 1-7)10, qual esclarece que: Naquele tempo o imperador Augusto mandou uma ordem para todos os cidadãos do Império se registrarem, a fim de ser feita uma contagem da população. Quando foi feito esse primeiro recenseamento, Cirênio era governador da Síria. Então todos foram se registrar, cada um na sua própria cidade. Por isso José foi de Nazaré, na Galiléia, para 10 A Bíblia na Linguagem de Hoje. São Paulo: Sociedade Bíblica do Brasil, 1988. Revista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau – Recife – ano 5 – n. 5 – p. 23-43 – 2010 Filiação socioafetiva: os novos paradigmas da filiação 37 a região da Judéia, a uma cidade chamada Belém, onde tinha nascido o rei Davi. José foi lá porque era descendente de Davi. Foi registrar-se com Maria, com quem tinha casamento contratado. Assim, em que pese o registro histórico cediço na doutrina com base no direito romano, asseveramos que os requisitos não são cumulativos, destarte, entendemos como essencial à consolidação da posse do estado de filiação, que seja levado em conta o apreço dos elementos fáticos do tratamento e da reputação, indispensáveis à configuração deste vínculo de parentesco como corolário da teoria da aparência. Outrossim, diante da não regularidade formal do assento registral do nome, pode-se conceber que o mesmo teria o condão apenas de reforçar a reputação da relação de parentesco, identificando no seio social de quem aquela pessoa era filho. Assim, cabe-nos asseverar que a posse do estado de filho torna-se tema relevante, sempre que houver a constatação dos atributos funcionais dos pais que assumem suas responsabilidades concernentes aos cuidados, a educação, a preocupação com o desenvolvimento físico e psicológico de um filho, estando dissociado do vínculo biológico, ou da paternidade jurídica, para, assim, ser compreendido que a verdadeira paternidade transcende às limitações dos conceitos restritivos de filiação, para desembocar na construção fática de vínculo afetivo construído no Revista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau – Recife – ano 5 – n. 5– p. 23-43 – 2010 38 Clever Jatobá cotidiano com de importância e repercussão social. 1.3 DA CONTASTAÇÃO DO VÍNCULO SOCIOAFETIVO Diante da necessidade de concretização da verdade socioafetiva na sociedade e sua repercussão no âmbito jurídico, faz-se mister atentarmos à manifestação do vínculo socioafetivo na configuração da filiação, qual identificamos claramente no filho de criação; na adoção à brasileira; na adoção judicial; bem como na inseminação artificial heteróloga. A constatação mais flagrante do vínculo socioafetivo pode ser verificada nos casos dos filhos de criação, atentando àquela situação em que uma pessoa cria uma criança ou adolescente, educando, assistindo a sua formação, contribuindo com seu desenvolvimento físico e psíquico, sem que estejam vinculados pelos laços consangüíneos. Ao que tange à adoção, é pacífica a idéia do laço socioafetivo no estabelecimento da filiação, pois se encontra nesta, a ausência da informação genética suplantada pela configuração de um vínculo civil, estabelecido por um processo formal e solene que determina e acarreta todos os efeitos jurídicos pertinentes a filiação. Outra circunstância que merece destaque alude aos casos em que a pessoa, mesmo tendo consciência de não ser o pai (ou mãe) biológico, decide registrar a criança como seu filho e construir no convívio o vínculo afetivo de filiação. Esta circunstância ficou conhecida na doutrina como “adoção à brasileira”, pois, mesmo desatrelado da verdade biológica, agasalha o aspecto registral dando status Revista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau – Recife – ano 5 – n. 5 – p. 23-43 – 2010 Filiação socioafetiva: os novos paradigmas da filiação 39 de filiação civil, o que, analogicamente, tem-se reportado à adoção11 sem atender às suas solenidades legais do respectivo processo judicial. Acrescentamos que tal conduta encontra-se tipificada como crime prescrito no artigo 242 do Código Penal brasileiro, entretanto, no parágrafo único deste artigo12 está disposto a forma privilegiada do tipo, permitindo, não apenas a redução da pena, como a possibilidade da mesma não ser aplicada, sempre que decorrer de um motivo de reconhecida grandeza. Em regra, tem sido a postura adotada pela jurisprudência. Nos casos de reprodução assistida, quais decorram da utilização de material genético de doadores anônimos, ou seja, material distinto dos pais contratantes da técnica fica translúcido o entendimento do desatrelamento genético que une pais e filhos. Assim, asseguramos que a verdadeira filiação, sob o prisma afetivo, será construída no dia-dia, ou seja, na convivência familiar (a fortiori, social). 1.4 CONSIDERAÇÕES FINAIS Ao atentarmos à filiação como instituto jurídico que liga os pais e as mães aos seus filhos, chegamos a compreender que a filiação pode se materializar de diversas formas, todavia, filiamo-nos à idéia de que independentemente da gênese da filiação, todos são iguais perante a lei, quanto 11 Belmiro Pedro Welter (2004, p.81) exemplifica: “o caso da gestante que entrega seu filho, voluntariamente, a um casal, o qual faz o registro de nascimento de recém-nascido em nome deles, como se fossem os pais genéticos”. 12 Há quem faça alusão ao tipo penal da “Falsidade ideológica”, como o próprio Belmiro Pedro Welter (2003, p.150), aludindo ao artigo 299, parágrafo único do CP. Contudo, na esfera penal a adequação típica é requisito fundamental para imposição penal, de modo que, havendo tipo penal específico, não há que atentar aos reclames de outra prescrição mais genérica, assim, o mesmo se adéqua ao art. 242 do CP. Revista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau – Recife – ano 5 – n. 5– p. 23-43 – 2010 40 Clever Jatobá aos direitos e deveres, gozando das mesmas garantias, sem submeter-se a valorações hierárquicas discriminatórias entre os distintos tipos de vínculo, pois estes se manifestam em pé de igualdade. Cientes das distinções entre o vínculo biológico – onde os filhos descendem geneticamente dos seus pais – e o vínculo socioafetivo – construído basicamente no convívio cotidiano, calcado nas amplas expressões da voz do amor, bem como no cuidado com a criação, sustento, educação e desenvolvimento físico e psicológico – entendemos, que a manifestação do afeto, eixo central das relações familiares, encontra-se enraizada em todas as espécies de filiação, sendo indiferente às distinções entre os vínculos, pois o papel dos pais desempenhado na sua função familiar é de contribuir com o bem-estar e desenvolvimento da sua prole, garantindo que os laços afetivos são a manifestação natural indispensável às relações familiares. Finalmente, alerta Cristiano Chaves de Farias (2007, p.207), que apesar do exame de DNA permitir “com precisão, a determinação da paternidade, a partir das influências genéticas” [...] “não constitui prova única a ser utilizada na investigação de paternidade”, uma vez que se trata apenas de prova pericial e em nosso sistema jurídico inexiste hierarquia entre os meios de prova. Assim, entendemos ser necessário debruçarmos sobre o caso concreto para verificarmos qual o critério deve ser determinante à consolidação da filiação, pois uma coisa é certa, independente da espécie de vínculo, todos são originários da filiação e nenhum é mais importante que o outro, mas, sim, coexistem pacificamente na ordem constitucional vigente, sob o manto da isonomia da filiação, Revista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau – Recife – ano 5 – n. 5 – p. 23-43 – 2010 Filiação socioafetiva: os novos paradigmas da filiação 41 pois, atestamos que um filho pode surgir na vida das pessoas de várias formas, mas seu desenvolvimento e a formação da sua personalidade depende dos cuidados, carinho e amor indispensáveis às relações familiares. REFERÊNCIAS BOEIRA, José Bernardo Ramos. Investigação de Paternidade. Posse de Estado de Filho: Paternidade Socioafetiva. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1999. BORGES, Roxana Cardoso Brasileiro. 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Revista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau – Recife – ano 5 – n. 5 – p. 23-43 – 2010 Filiação socioafetiva: os novos paradigmas da filiação 43 ______. Relativização do Princípio da Coisa Julgada na Investigação da Paternidade. In: PEREIRA, Rodrigo da Cunha. (Coord.). Afeto, Ética, Família e o Novo Código Civil.Belo Horizonte: Del Rey e IBDFAM, 2004. BIBLIA SAGRADA. A Bíblia na Linguagem de Hoje. São Paulo: Sociedade Bíblica do Brasil, 1988. Revista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau – Recife – ano 5 – n. 5– p. 23-43 – 2010 Cidade ideal e cidade visível: o paradigma grego... 45 CIDADE IDEAL E CIDADE VISÍVEL: O PARADIGMA GREGO EM REVISTA. APROXIMAÇÃO À CRÍTICA DE LEWIS MUMFORD. Delor Gerbase Gramacho Professor de Filosofia e Ética da Faculdade Maurício de Nassau, Especialista em Gestão de Pessoas RESUMO Este artigo tem por objetivo oferecer uma aproximação crítica da idéia grega de cidade do século V a.c que se funda no cidadão e na divindade formal da acrópole, demonstrando a diferença entre a cidade organizada (polarizada entre o templo e a ágora, simbolizada pela acrópole perfeita, sempre equidistante e altiva) e a verdadeira cidade visível como conjunto de imperfeições tão próximas de nós. Tentamos expor essa diferença para contribuir com uma visão menos simplista e até mesmo inverossímil o edifício da cidade grega. Palavras-chave: Cidade. Pólis. Grécia. Ideal. Revista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau – Recife – ano 5 – n. 5 – p. 45-51 – 2010 46 Delor Gerbase Gramacho ABSTRACT This paper intends to offer a critical approach of the Greek idea of the city in the 5th century BC that is founded on the citizen and the divinity of formal acropolis, demonstrating the difference between the city organized (polarized between the temple and agora, symbolized by the perfect acropolis always equidistant and proud) and the real city as a set of visible imperfections so close to us. We tried to explain that difference to contribute for a less simplistic and even unlikely comprehension towards the Greek city building. Key words: City. Polis. Greek. Ideal. INTRODUÇÃO A história e a literatura nos trazem uma Grécia perfeita e erudita, que acompanha em uníssono a forma idealizada por Platão e Parmênides. A idéia de cidade do século V a.c se funda no cidadão e na divindade formal da acrópole. Uma cidade organizada, polarizada entre o templo e a ágora, simbolizada pela acrópole perfeita, sempre equidistante e altiva. Essa idéia, que se fez ideal, não só nos legou as noções de justiça, cidadania e democracia, mas, acima de tudo, nos levou, não poucas vezes, a considerar de maneira simplista e até mesmo inverossímil o edifício da cidade grega. Tomamos como base o ponto de vista de Lewis Mumford que vem numa contramão não desvairada, exercer a sua habilidade na crítica ao ideal platônico da cidade que muitas vezes se confundiu com a própria história da Grécia, Revista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau – Recife – ano 5 – n. 5 – p. 45-51 – 2010 Cidade ideal e cidade visível: o paradigma grego... 47 para tecer nesse artigo uma aproximação e uma exposição ainda que preliminar, da cidade ideal e da cidade visível. Nunca a vida dos homens das cidades fora tão significativamente animada, tão variada e compensadora, jamais fora tão pouco arruinada por mecanismos e compulsões exteriores. (...) O trabalho e o lazer, a teoria e a prática, a vida privada e a vida pública, achavam-se em intercurso rítmico, enquanto que a arte, a ginástica, a música, a conversa, a especulação, a política, o amor, a aventura e mesmo a guerra abriam cada aspecto da existência e o colocavam dentro do âmbito da cidade. (MUMFORD, 1965, p.223).1 CIDADE IDEAL E CIDADE VISÍVEL A cidade grega é, para a história ocidental, um marco de civilização, uma experiência suprema do espírito, que proporcionou a nós, via Europa por França e Alemanha, os instrumentos possíveis para o desenvolvimento da razão e da cidadania nos termos em que a concebemos. O que não se vê, todavia numa leitura rápida da tradição, é que esta cidade grega — reta e justa como o mármore — nuca perdeu o elán da aldeia e sua vida foi, não obstante a glória do espírito, tão comum e visceral como a de qualquer povoação construída a partir do templo, do ritual e do simbólico. A cidade visível era um belo conjunto de imperfeições. 1 A edição desse fragmento é de responsabilidade nossa. Revista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau – Recife – ano 5 – n. 5 – p. 45-51 – 2010 48 Delor Gerbase Gramacho Nesta cidade visível, a beleza se colocava para a ordem social em detrimento das mais comuns preocupações com a higiene ou a qualidade das habitações. Não se verifica, no estudo detido, uma organização austera e compartimentada quer seja na vida privada, quer seja na vivência pública. Em relação aos trabalhos, por exemplo, os cidadãos, os escravos e as mulheres desempenhavam as suas funções junto com os livres. Não fosse assim a tragédia não floresceria. As atividades estéticas exerciam tanta importância e demandavam tanta dedicação quanto ás atividades políticas e sociais, e se podia perceber ¾ a despeito dos relatos “construídos á pá” ¾ que entre as casas de madeira e palha e as ruas apertadas e sujas, fervilhava uma vida de aldeia nada confinada ou setorizada. “Os monumentos de arte grega que hoje apreciamos foram expressões vagas desta vida em seus momentos mais altivos. Mas, em parte, foram igualmente substitutos por materiais de um espírito que, caso conhecesse o segredo de sua própria perpetuação, poderia ter prestado uma contribuição ainda mais valiosa ao urbanismo e ao desenvolvimento urbano.” (MUMFORD, 1965) 2 As tão veneradas atividades relativas ao ágora (mercado) ou à ágora (praça pública)3 eram realizadas na medida do revezamento dos grupos de cidadãos livres, num ambiente de deliberação que previa uma atividade política imediata, quase trivial. E esse caráter imediato ¾ que parece 2 A edição desse fragmento é de responsabilidade nossa. 3 Essa distinção é um recurso didático e não se verifica na língua grega. Revista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau – Recife – ano 5 – n. 5 – p. 45-51 – 2010 Cidade ideal e cidade visível: o paradigma grego... 49 excluir-se da cidade ideal que pensa homem e mundo como se gestasse conscientemente o futuro do ocidente ¾ é, sem dúvida mais marcante no espírito grego, que não concebia nem mundo nem homem como categorias universais, e sim o ateniense, o espartano, Atenas, Esparta, etc. como categorias particulares. Com efeito, a cidade grega viveu o sec. V como uma genuína experiência de civilização, jamais como a materialização de uma cidade ideal, feita de homens ideais, que se existiu como esforço intelectual, “ficou latente como idéia, porém jamais foi adequadamente realizada em tijolos ou mármore.” (MUMFORD, 1965 p.220). O período chamado helênico, muito bem demarcado e merecidamente apropriado pela história da filosofia, foi antes de decadente, uma tentativa de os filósofos da escola e da academia retomarem o telos (finalidade) ideal da civilização para o transformarem, definitivamente na verdadeira face da Grécia, materializando a cidade ideal na vida da cidade visível. Mas jamais conseguiram com que Atenas refletisse tal intento. Pelo contrário, a Guerra do Peloponeso levou a cidade grega a uma crise de desenvolvimento que reduziu muito a concretização do ideal. Faltou à polis, mais do que as características físicas de defesa e proteção contra os invasores, reconhecer-se na cidade ideal confirmando esse paradigma que lhe possibilitaria continuar no seu caminho de desenvolvimento. Por isso, Mumford chama de “regressão à utopia” a organização proposta por Sócrates na Política — uma cidade dividida em três partes artistas, agricultores e defensores, em número total de 10 mil, onde as atividades de culto, defesa e provisão se apresentariam logicamente divididas; ou, Aristófanes em As aves — uma cidade formada por um quadrado inscrito Revista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau – Recife – ano 5 – n. 5 – p. 45-51 – 2010 50 Delor Gerbase Gramacho em um círculo cujo centro seria o mercado para onde convergem todas as ruas, em forma de estrela. Todos esses engenhosos planos (o primeiro praticado na Jônia) refletem a noção inaugural grega de que a forma da cidade deveria ser definitivamente a forma de sua sociedade, (noção esta que vai além da mera organização estrutural) com estruturas que nunca fossem herméticas e para as quais qualquer alteração demandaria uma mudança global. Mas foi por Platão que conhecemos esta cidade ideal, essa maneira de pensar a organização da pólis, onde vemos a aceitação do princípio da perfeição funcional, e da sociedade organizada em castas sob a regência do rei-filósofo na qual cada um deveria seguir (diferente da real vida da cidade) o caminho para o qual demonstra aptidão inata, e onde o guerreiro teria notado destaque. Comparada com a cidade visível, a pólis de Platão “poderia ser descrita como uma prisão murada sem lugar para as verdadeiras atividades da cidade dentro do seu pátio interno.” (MUMFORD, 1965, p.225) Onde está, portanto o mérito da dialética grega, mãe da cidade ideal, uma vez que Platão subestima os desafios do crescimento confundindo a estrutura viva da cidade com uma forma a ser friamente modelizada? Porque a cidade visível, de fato carecia do entendimento e da noção de um corpo arquitetônico capaz de julgar e de condicionar os homens. CONCLUSÃO Torna-se indigesto, portanto, considerar a existência de fato da cidade ideal. Mais incômodo ainda é colocar os nossos paradigmas lá, como se pudéssemos hoje construir o que se foi a muito. Mais sensato é acreditar que, o que existiu e Revista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau – Recife – ano 5 – n. 5 – p. 45-51 – 2010 Cidade ideal e cidade visível: o paradigma grego... 51 ainda existe é um imenso desafio de unir o desenvolvimento da cidade ao desenvolvimento da sociedade pra um fim específico, isto é, construir a morada do cidadão livre, embora isso seja ainda mais ideal. Essa crítica é, acima de tudo, um esforço opinativo sobre o direito, a política, a história da arte e, especialmente da filosofia juntamente com as suas respectivas tradições. A crítica ao ideal platônico da pólis que hoje é lugar comum, nunca foi tão suficientemente discutida a ponto de deslocar o nosso olhar para aprender dos gregos do sec. V, como viver na cidade e avançar como cidadãos de uma cidade tangível. Aprender como fortalecer a cultura a partir das vivências da própria cidade e desenvolver justiça e cidadanias reais, para pessoas reais. Ainda hoje, a cidade ideal realmente contrasta com a cidade visível na medida em que determina o cidadão segundo suas características mais estáticas e o coloca como um autômato. Vale lembrar que por mais pensada que a acrópole pudesse ser, ainda assim, a vemos aplicada de maneira intuitiva nas encostas escarpadas e irregulares do Pireu, com seus templos e muros. Lá como aqui, o que sempre prevalece é o componente estético ritualístico que deu à vida da cidade o seu motivo. Desse modo, o paradigma da cidade grega é mais belo pelo odor e pela cor dos seus seres, pelo extrato das suas vivências, do que pelo frio e austero mármore incrustado dos valores que nos chegam representados nos discursos idealizados. REFERÊNCIAS MUMFORD, Lewis. Trad. Neil R. da Silva. A cidade na história. Belo Horizonte: Editora Itatiaia, 1965. Revista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau – Recife – ano 5 – n. 5 – p. 45-51 – 2010 Direito e retórica na construção do ordenamento jurídico... 53 DIREITO E RETÓRICA NA CONSTRUÇÃO DO ORDENAMENTO JURÍDICO DA UNIÃO SOVIÉTICA A PARTIR DA ANÁLISE DO TEXTO DE ANDREJ VYSINSKIJ INTITULADO PROBLEMI DEL DIRITTO E DELLO STATO IN MARX Fernando Joaquim Ferreira Maia Doutorando e Mestre em Direito pela UFPE; professor assistente da UFRPE; Especialista em Direito Processual Civil pela UFPE. RESUMO Neste trabalho, analisar-se-á a questão do direito e de suas relações com a retórica na construção do ordenamento jurídico da União Soviética a partir da análise do texto de Andrej Vysinskij, intitulado Problemi del diritto e dello Stato in Marx. O pensamento jurídico de Vysinskij revestiu-se de construções retóricas próprias, voltadas não só para a persuasão a partir do senso comum, como também para a busca do consenso. Vysinskij reinterpreta a base jurídica do pensamento de Marx, direcionando-a, por meio de técnicas persuasivas, com fins eminentemente políticoRevista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau – Recife – ano 5 – n. 5 – p. 53-93 – 2010 54 Fernando Joaquim Ferreira Maia sociais e jurídicos, para a legitimação de um direito do tipo proletário e de uma teoria marxista do direito. Neste sentido, o pensamento jurídico de Vysinskij foi um desenvolvimento das concepções jurídicas incipientes de Marx, Engels e Lênin, reinterpretadas à luz dos condicionantes históricos e materiais da União Soviética. Assim sendo, sustentar-se-á que Vysinskij, através de uma releitura da retórica aristotélica pelas formulações de João Maurício Adeodato, construiu estratégias persuasivas próprias, à base do emprego de metáforas, diferenciando-se dos demais teóricos de sua época. Por fim, objetiva-se compreender como Vysinskij concebe a sua retórica, bem como quais as estratégias de persuasão ele vai adotar para fazer prevalecer as suas teses. Palavras-chaves: vysinskij, retórica, direito ABSTRACT This paper will analyze Law and its relationship with the rhetoric in the construction of juridical ordainment in the Soviet Union, taking into account the analysis of a text written by Andrej Vysinskij, entitled Problemi del diritto e dello Stato in Marx. Vysinskij´s juridical thought was composed by its own rhetoric constructions, in order to be not only persuasive from a common sense but also searching for a consensus. Vysinskij reinterprets the juridical basis of Marx´s thought, directing it via persuasive techniques in order to legitimate the proletarian Law and a Marxist theory of Law, with social political and juridical aims. Then, Vysinskij´s juridical thought was Revista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau – Recife – ano 5 – n. 5 – p. 53-93 – 2010 Direito e retórica na construção do ordenamento jurídico... 55 considered a development of juridical conceptions which were incipient to Marx, Engels and Lenin, all reinterpreted according to the conditions of historical and material aspects of Soviet Union. Though, it will be considered that Vysinskij, by rereading the Aristotelian rhetoric via João Maurício Adeodato´s formulations, built up his own persuasive strategies, by using metaphors, differentiating himself from other theorist from his time. Last, we aim to understand how Vysinskij conceived his rhetoric, as well as which persuasive strategies he will adopt in order to make his theses prevail. Keywords: Vysinskij, rhetoric, law SUMÁRIO 1. Introdução: um novo enfoque sobre a teoria marxista do direito: a desconstrução dos seus argumentos a partir de uma abordagem jurídica e retórica. 2. A retórica a partir das formulações de João Maurício Adeodato. 3. O ambiente retórico em que Vysinskij estava inserido. 4. Da retórica dos métodos à retórica metodológica nas teses de Andrej Vysinskij. 5. A desconstrução dos mecanismos de persuasão presentes no pensamento de Vysinskij, mediante a aplicação da retórica metódica. 5.1. A utilização da metáfora para a estruturação da realidade, objetivando unir dois elementos diferentes, destacando uma semelhança. 5.2. A prevalência de argumentos de autoridade preponderantemente sobre as posições de Karl Marx, Josef Stálin e Lênin. 6. Andrej Vysinskij e a função do direito na sociedade de paradigma marxista. 7. Referências. Revista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau – Recife – ano 5 – n. 5 – p. 53-93 – 2010 56 Fernando Joaquim Ferreira Maia 1. INTRODUÇÃO: UM NOVO ENFOQUE SOBRE A TEORIA MARXISTA DO DIREITO: A DESCONSTRUÇÃO DOS SEUS ARGUMENTOS A PARTIR DE UMA ABORDAGEM JURÍDICA E RETÓRICA Neste trabalho, analisar-se-á a questão do direito e de suas relações com a retórica na construção do ordenamento jurídico da União Soviética a partir da análise do texto de Andrej Vysinskij, intitulado Problemi del diritto e dello Stato in Marx. Aqui, utiliza-se a versão traduzida em italiano por Umberto Cerroni (VYSINSKIJ, 1964, pp. 239-297). Ademais, o nome do autor, pela tradução italiana, aparece como Andrej Jamrjevich Vysinskij (em russo). O pensamento jurídico de Vysinskij revestiu-se de originalidade, com construções retóricas próprias, voltadas não só para a persuasão a partir do senso comum, como também para a busca do consenso. Vysinskij reinterpreta a base jurídica do pensamento de Marx, direcionando-a, por meio de técnicas persuasivas, com fins eminentemente político-sociais e jurídicos, para a legitimação de um direito do tipo proletário e de uma teoria marxista do direito. Neste sentido, o pensamento jurídico de Vysinskij foi, de certo modo, um desenvolvimento das concepções jurídicas incipientes de Marx, Engels e Lênin, reinterpretadas à luz dos condicionantes históricos e materiais da União Soviética. Assim sendo, nestas linhas, tentar-se-á oferecer ao leitor um outro prisma sobre a problemática do direito no marxismo, sustentando que Vysinskij, na obra a ser examinada, quanto à retórica e argumentação no direito, através de uma releitura da retórica aristotélica pelas formulações Revista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau – Recife – ano 5 – n. 5 – p. 53-93 – 2010 Direito e retórica na construção do ordenamento jurídico... 57 de João Maurício Adeodato, construiu estratégias persuasivas próprias, à base do emprego de metáforas, diferenciando-se dos demais teóricos de sua época. Por fim, o fulcro deste trabalho objetiva auxiliar na compreensão de como Vysinskij concebe a sua retórica, bem como quais as estratégias de persuasão ele vai adotar para fazer prevalecer as suas teses, a partir das exigências da afirmação da ordem jurídica socialista. 2. A retórica a partir das formulações de João Maurício Adeodato Em Aristóteles, a retórica aparece como a articulação do discurso para a persuasão, mas não só para isto; fundamentalmente é voltada para a descoberta da capacidade de persuasão de dado argumento ou assunto. Aristóteles procurou construir uma teoria retórica que residisse na opinião geral, provável, dos homens e no local das atividades onde estes se relacionam. Aqui se deve partir de noções comuns, estar em acordo com o auditório ao qual se direciona o discurso. Neste sentido, Aristóteles (1998, pp. 46-47) considera que é mais fácil persuadir pela verossimilhança. Sobre isto, vale ressaltar que, para Adeodato, a retórica concebe a verdade como uma ilusão, sendo a linguagem o único acordo possível entre os homens. De fato, o sistema retórico defendido por Adeodato (2009, pp. 16, 17) parte da idéia de que o ser humano é incapaz de perceber quaisquer verdades, mesmo com a linguagem, única realidade possível com a qual o homem é capaz de lidar. Assim, não existe uma verdade absoluta com que se preocupar e sim verdades relativas. Revista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau – Recife – ano 5 – n. 5 – p. 53-93 – 2010 58 Fernando Joaquim Ferreira Maia Desta forma, a retórica serve também como instrumento de ação do homem na realidade em que vive (ADEODATO, 2009, pp. 17-18). O fato é que, o desenvolvimento da luta de classes vai exigir o domínio da palavra e da escrita com objetivos persuasórios, o que só a retórica poderá proporcionar. Aqui, o conteúdo do discurso só interessa à retórica porque é útil à persuasão do auditório, sendo suficiente que o retor tenha domínio do discurso (CICERÓN, 1943, pp. 22, 81, 83, 106). Daí a necessidade da utilização de noções comuns, topoi, acessíveis a toda a população (ARISTÓTELES, 2001, p. 18). É a partir dessas formulações que o interesse pela retórica é retomado pelos ventos pós-positivistas que atingem o direito ocidental desde a segunda metade do século XX. De fato, no século XX, a retórica vai ser marcada pelo avanço teórico do paradigma da linguagem. Aqui, o sentido da persuasão depende da interação flexível entre orador e auditório. É neste contexto que João Maurício Adeodato vai expor suas teses. Adeodato (2009, pp. 20, 32, 40, 43, 45), a partir da contribuição de Otomar Ballweg, vai construir três níveis para a retórica: a retórica dos métodos, a retórica metodológica e a retórica metódica. A retórica dos métodos é a maneira pela qual os seres humanos efetivamente se comunicam, suas artes e técnicas sobre como conduzir-se diante dos demais, construindo o próprio ambiente em que acontece a comunicação. Desta forma, a retórica dos métodos envolve a própria linguagem, no sentido de que o homem está sempre ordenando, orientando, vinculando, regulando, se posicionando, ao intervir na sociedade (BALLWEG, 1991, pp. 176-177). A retórica dos métodos é desenvolvida segundo a percepção individual do homem, mas em sua interação com o Revista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau – Recife – ano 5 – n. 5 – p. 53-93 – 2010 Direito e retórica na construção do ordenamento jurídico... 59 outro, no discurso. Aqui, segundo Adeodato (2009, pp. 32, 35, 36), isto corresponde ao método, este composto por discursos retoricamente articulados na intervenção do homem na sociedade. Em relação à retórica metodológica, esta envolve aquele conjunto de regras construídas a partir da observação da retórica dos métodos, tendo por objetivo alterar a realidade, possibilitando que o sujeito-retor atinja seus objetivos. Assim, a retórica metodológica se projeta sobre a retórica dos métodos, verificando fórmulas para a persuasão (BALLWEG, 1991, p. 178). Assim se comportando, a retórica metodológica funciona como uma metodologia composta de observações, experiências e reflexões sobre o ambiente da retórica dos métodos. Já no que diz respeito à retórica metódica, esta estuda a relação entre como se processa a linguagem humana e como o homem acumula experiências e desenvolve estratégias de modo eficiente (ADEODATO, 2009, p. 38). A retórica metódica não impõe ao sujeito-retor a obrigatoriedade de estabelecer normas, de decidir, de fundamentar e de interpretar. A retórica metódica tem caráter formal, descritivo e zetético, dando igual atenção aos seguintes elementos no sistema lingüístico: signo, objeto e sujeito. Aqui, ela analisa a relação entre a retórica dos métodos e as retóricas metodológicas para também exercer o controle sobre estas, se ocupando tanto da aplicação das estratégias de persuasão sobre o ambiente comunicativo humano, como do próprio conhecimento obtido pelo homem. Por fim, a retórica metódica permite maior controle da linguagem, legitimando, desse modo, as regras da convivência humana e servindo de suporte à aceitação de decisões. Desta forma, a retórica metódica admite a cateRevista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau – Recife – ano 5 – n. 5 – p. 53-93 – 2010 60 Fernando Joaquim Ferreira Maia goria sujeito/objeto e as contradições decorrentes disto nas relações humanas, limitando-se apenas ao registro e análise dessas relações. 3. O ambiente retórico em que Vysinskij estava inserido A vitória dos bolcheviques na guerra civil que se travou na Rússia entre os anos de 1918 e 1921 foi acompanhada pelo fracasso das revoluções socialistas européias, em fins da década de 10 e início da de 20, levando a um quadro internacional desfavorável à URSS. O período do comunismo de guerra não tinha conseguido atender plenamente às necessidades e anseios da população, pois ainda inexistiam condições objetivas para que a União Soviética se lançasse na construção plena do socialismo (LÊNIN, 1978a, p. 223). Outrossim, diante da necessidade de se conter e neutralizar a influência, ainda presente, do capital sobre as outras camadas sociais não proletárias, era imperioso que o Estado soviético satisfizesse as necessidades econômicas destas classes, o que, naturalmente só um prévio e elevado nível de progresso capitalista poderia oferecer esta possibilidade (LÊNIN, 1975a, p. 143). Desta forma, uma nova política econômica se fazia necessária. Esta nova política econômica, denominada NEP, iniciou-se em 1921, consistindo no restabelecimento das relações capitalistas de produção, em convivência com as relações socialistas de produção, sob a direção do Estado, baseando-se no restabelecimento da propriedade privada dos meios de produção, no desenvolvimento do capital nacional privado e estrangeiro associado ao capital estatal Revista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau – Recife – ano 5 – n. 5 – p. 53-93 – 2010 Direito e retórica na construção do ordenamento jurídico... 61 (ACADEMIA DE CIÊNCIAS DA URSS, 1961, p. 367), ao incentivo das formas capitalistas de produção no campo, com o crescimento das pequenas e médias propriedades privadas (ELLEINSTEIN, 1976, pp. 59-62). Consistiu, também, na privatização de empresas estatais e excedentes de produção, ao incentivo do comércio privado, a manutenção de relações comerciais com o exterior, bem como em outras formas de produção capitalistas, tudo sob o controle estatal e com prazos determinados (LÊNIN, 1978b, pp. 30-32). As medidas adotadas pela NEP surtiram os efeitos esperados pelos dirigentes soviéticos e, ao final de 1927, o sistema produtivo do país tinha alcançado níveis de desenvolvimento suficientes, com grande recuperação da produção de riquezas ao nível de 1913. A partir desta época, quando as forças produtivas estavam restabelecidas, começava-se a observar certo esgotamento da correspondência obrigatória das relações de produção com o caráter das forças produtivas, notadamente o aparecimento de sintomas nocivos ao regime, como a formação de uma grande classe de produtores capitalistas rurais, os kulaks, movida pela relativa concentração da terra, a associação destes com os capitalistas da cidade, o aumento das contradições sociais, indícios de descontrole por parte do Estado das formas capitalistas de produção, bem como a conclusão da base econômica necessária para o prosseguimento da construção do socialismo. A estes fatores impunham o fim das formas de produção capitalistas no campo e pediam a coletivização agrícola como forma de alavancar a produção de alimentos (DAVID; HAZARD, 1978, pp. 172-173). Ao final de 1931, as medidas da NEP já não existiam e a produção estava praticamente toda socializada. Com o fim da NEP, iniciava-se a fase propriamente dita da edificaRevista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau – Recife – ano 5 – n. 5 – p. 53-93 – 2010 62 Fernando Joaquim Ferreira Maia ção plena do socialismo na URSS, com a extinção de todas as formas de produção capitalistas e com a socialização geral de praticamente todos os meios de produção. Neste sentido, tal qual defendia Vysinskij, o sistema jurídico passa a ser orientado para proteger e reproduzir as relações sociais e leis econômicas mais vantajosas ao grupo dominante, garantindo a transição socialista, o que vai afirmar o caráter proletário do direito na URSS, propiciando a consolidação de uma teoria marxista do direito. O fato é que este contexto vai permitir que Vysinskij defenda a necessidade do uso do direito e do Estado na União Soviética para assegurar os objetivos da transição socialista rumo ao comunismo. 4. Da retórica dos métodos à retórica metodológica nas teses de Andrej Vysinskij Vysinskij (1964, p. 244) defende que o marxismo resolveu, em geral, todos os problemas do direito, ao possibilitar um estudo acabado do processo de origem, desenvolvimento e decadência das formações econômico-sociais, considerando o conjunto de todas as tendências opostas, bem como as reconduzindo às condições determinadas de vida e de produção das diversas classes sociais da sociedade. As fontes do direito são as relações de produção. Aqui, as relações jurídicas têm suas origens nas relações materiais de existência. Desta forma, direito e Estado são formas da superestrutura social, regidos pelo processo de produção de riquezas, estando influenciados pela luta das classes sociais pela transformação das relações de produção. Assim sendo, Revista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau – Recife – ano 5 – n. 5 – p. 53-93 – 2010 Direito e retórica na construção do ordenamento jurídico... 63 a superestrutura jurídica e política repercutem sobre a base dos fatos históricos (MARX, 1978, pp. 112-113, 118). De fato, por trás do direito há sempre a luta pela emancipação econômica, visto que o direito só adquire vigência formal por vontade do Estado, tendo o seu conteúdo legitimador derivado do desenvolvimento das forças produtivas e das condições de distribuição, pela qual as relações de produção se expressam nas correspondentes formas de direito. Ao chegar a uma determinada fase de desenvolvimento, as forças produtivas chocam-se com as relações de produção, dentro das quais se haviam desenvolvido até aqui. A relação jurídica passa a refletir a relação econômica. Trata-se, aqui, de um condicionamento sobre a base de relações reais, entre as quais as econômicas que, embora possam vir influenciadas por outras relações, são decisivas (MARX; ENGELS, 1987, pp. 26-28, 35-39). Assim, a relação jurídica oferece uma desigualdade econômica mascarada por uma igualdade jurídica, pela qual a forma da superestrutura não tem valor enquanto não se reduza à forma do conteúdo. A forma e o conteúdo constituem uma unidade indissolúvel e demonstrar tal nexo é o objeto da análise científica do direito. O direito encobre relações de dependência e desigualdade apresentadas como formas jurídicas de legalidade (MARX, 1977, pp. 230-232). Logo, os critérios relativos de justiça ou de direito estão subordinados à visão que dada classe social têm do mundo. A norma jurídica, neste caso, sempre vai beneficiar e contrariar, ao mesmo tempo, os interesses de determinadas camadas na sociedade em favor ou em detrimento de algumas (MAIA, 2003, p. 66). Revista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau – Recife – ano 5 – n. 5 – p. 53-93 – 2010 64 Fernando Joaquim Ferreira Maia A extinção do direito equivale a uma afirmação prévia à práxis da libertação da superestrutura jurídica, só possível pela revolução proletária, tendo como passo inicial a socialização geral dos meios de produção e a extinção gradativa do Estado, de forma que, quando o Estado se extinguir, extinguir-se-á o direito. No período do socialismo, o Estado proletário utilizaria o direito, mudando o seu conteúdo de classe, para reproduzir a ideologia proletária na sociedade, institucionalizar e legitimar o poder político do proletariado e regular o sistema socialista (ENGELS, 1989, pp. 69-73, 79). De certo, isto só poderia ser conseguido com a socialização geral dos meios de produção e a ruptura com a divisão do trabalho que levariam ao advento da sociedade comunista e a superação da sociedade de classes. Assim, o marxismo não aceita a legalidade como essência do direito, mas antes procura superar o formalismo jurídico mediante a revelação do conteúdo de opressão e contradição social inserido nas normas jurídicas, tendo por base as estruturas econômicas reais (FERNANDEZ-LARGO, 1983, pp. 444-445). O direito é usado para desumanizar o homem, tendo como função a implantação de um tipo de produção. Outrossim, Vysinskij define a natureza socialista do direito, nas condições de um Estado socialista, ao conceber que o poder político operário-camponês pressupõe necessariamente uma regulação jurídica das relações sociais. Aqui, este jurista soviético, sustenta o caráter proletário do direito sob a transição socialista. Vysinskij busca eliminar a incompatibilidade entre um poder estatal opressor e a necessidade de se assegurar a legalidade, modificando a realidade que separa esses termos. A solução adotada é a utilização da idéia Revista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau – Recife – ano 5 – n. 5 – p. 53-93 – 2010 Direito e retórica na construção do ordenamento jurídico... 65 de legalidade como pressuposto para o poder político proletário. Então, no Estado socialista, o direito constitui um meio específico de controle sobre a medida do trabalho e do consumo por parte da classe dominante na sociedade. E é justamente numa sociedade socialista que se torna inevitável a presença do direito como instrumento de proteção e reprodução das relações sociais socialistas. Outrossim, Vysinskij procura amparar suas ilações acerca da natureza do direito, durante a transição socialista ao comunismo, no pensamento de Karl Marx. Aqui, ele cita a obra Crítica ao programa de Gotha, sustentando que Marx, ao defender o caráter similar do direito socialista com o burguês, no socialismo, o faz apenas em relação à força comum destes na origem e no desenvolvimento histórico, pelo qual ambos desenvolvem grande função criativa e organizativa (VYSINSKIJ, 1964, pp. 251-252). Entretanto, Marx afirma também que o direito regula as formas de opressão social, particularmente do capital sobre o trabalho, e que as formas jurídicas são condicionadas pela infraestrutura social, recebendo conteúdo dos condicionantes históricos e materiais em que estão inseridas (MARX, 1977, p. 230). É com este fundamento que Vysinskij vai sustentar que, enquanto não advier o comunismo, o direito é ainda necessário. Neste sentido, Vysinskij concebe que o direito vigente na transição socialista é um direito de um período de transição, direito socialista gerado pelo novo Estado proletário. Revista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau – Recife – ano 5 – n. 5 – p. 53-93 – 2010 66 Fernando Joaquim Ferreira Maia 5. A desconstrução dos mecanismos de persuasão presentes no pensamento de vysinskij, mediante a aplicação da retórica metódica 5.1. A utilização da metáfora para a estruturação da realidade, objetivando unir dois elementos diferentes, destacando uma semelhança Vysinskij, no afã de sustentar a existência de uma teoria marxista do direito, condensando os escritos de Marx, Engels, Lênin e Stálin que servissem de base para a mesma, vai fazer variado emprego da metáfora, ora para afirmar suas teses, ora para desqualificar as teses adversárias e os próprios adversários. Neste sentido, Vysinkij vai argumentar metaforicamente vinte e sete vezes ao longo da sua obra em exame, seja para realçar seus argumentos à base das posições de Marx, Lênin e Stálin, seja para contrapô-los em relação às teorias de Pasukanis, Stucka e Reisner. Aqui, ora Vysinskij vai utilizar metáforas explícitas, ora vai proceder com metáforas implícitas, estas ditas “adormecidas”. Objetivando uma melhor compreensão da temática, vale, brevemente, discorrer aqui sobre a significação da metáfora. A metáfora é uma analogia condensada que expressa certos elementos do que se quer provar ou do que serve para provar algo (REBOUL, 2000, p. 187). Em outras palavras, na metáfora, vai-se transferir o significado de um termo comum para outro termo, este estranho, diferente (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 2005, p. 453). Neste sentido, Vysinskij fornece um exemplo: “A vastidão e completitude do gênio de Marx se explicam porque Revista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau – Recife – ano 5 – n. 5 – p. 53-93 – 2010 Direito e retórica na construção do ordenamento jurídico... 67 ele produziu inegáveis obras de ciência nos vários campos do conhecimento, compreendida a ciência do direito e do Estado”1. Aqui, o termo “vastidão” tem por objetivo passa a idéia de que a pessoa de quem se fala, Marx, é preparada, com um grande acúmulo teórico, o que justifica que ele, mesmo não sendo um jurista, tenha tido competência para tratar de temas jurídicos. Segundo Aristóteles (1998, pp. 196-197) (2007, pp. 96-101), a metáfora é composta por palavras agradáveis, com determinado significado, que permitem ao homem conhecer o seu sentido apropriado, proporcionando também conhecimento, pela qual vai se deslocar o sentido de uma palavra comum para uma palavra estranha, de ornamentação, alterada em sua forma. Em Aristóteles, essa transferência de sentido se dá da espécie ao gênero, do gênero à espécie, da espécie à espécie e por analogia (BERISTAIN, 1995, p. 311). É por isto que Perelman vai definir a metáfora como uma analogia condensada, na qual ocorre uma união entre “o que se quer provar” e “o que serve para provar” (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 2005, p. 453). As formulações acima, conduzem à conclusão de que a metáfora deriva da analogia, o que é admitido pelo próprio Aristóteles (1998, p. 199) (2007, pp. 96-97). Vale ressaltar que a analogia constrói a realidade que permite encontrar e provar uma verdade por meio de uma semelhança de relações, ou seja, por meio de comparações (REBOUL, 2000, p. 185). Então, a analogia vai ligar um termo anterior, já aceito, com um termo posterior, ainda não aceito, mas que se quer evidenciar. Para tanto, utilizar-se-á expressões do tipo “assim como”, “também”, “como”, an1 “La vastità e completezza del genio di Marx spiega perchè egli abbia creato immortali opere di cienza nei vari campi dello scibile, compresa la scienza del diritto e dello Stato” (VYSINSKIJ, 1964, p. 241). Revista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau – Recife – ano 5 – n. 5 – p. 53-93 – 2010 68 Fernando Joaquim Ferreira Maia tecedendo a descrição (SOUZA, 2008). Neste sentido, Vysinskij (1964, p. 276), ao longo do texto, emprega várias analogias. Aqui, como exemplo, citase o seguinte trecho: No artigo Sobre a questão hebraica, Marx exprime ainda o seu consenso como a definição hegeliana do Estado como ‘a realidade moral autoconsciente do espírito’, mas aqui Marx denuncia o direito burguês como direito do proprietário privado, dizendo que ‘a utilização prática do direito do homem à liberdade é o direito do homem à propriedade privada’, é o direito do egoísmo2. Na citação acima, embora o referido jurista soviético utilize uma metáfora, o certo é que ele, citando Marx, vai fazer também duas analogias. Uma, reduzindo a definição hegeliana do Estado a uma moral intrínseca ao homem, autoconsciente. Outra, reduzindo o direito burguês ao direito do proprietário, tentando provar que esse direito marginaliza as demais camadas sociais. De certo, o objetivo de Vysins-kij é anular tudo o que a relação exclui e reforçar a sua própria tese de que, modificando-se a natureza da acumulação da riqueza e da propriedade, modifica-se a natureza do direito. De fato, essas importantes considerações sobre a analogia, são fundamentais para a compreensão da questão metafórica no texto de Vysinskij, pois, conforme já dito, a 2 “Nell’articolo Sulla questione ebraica Marx esprime ancora il suo consenso come la definizione hegeliana dello Stato come ‘la realità morale autocosciente dello spirito’, ma qui Marx denuncia il diritto borghese come diritto dell’uomo alla libertà è il diritto dell’uomo alla proprietà privata’, è il diritto dell’egoismo” (VYSINSKIJ, 1964, p. 276). Revista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau – Recife – ano 5 – n. 5 – p. 53-93 – 2010 Direito e retórica na construção do ordenamento jurídico... 69 metáfora condensa a analogia, misturando “o que se quer provar” e “o que serve para provar”, tornando perceptível termos muito diferentes, que não se vinculam no dia-a-dia. Por isto mesmo, a metáfora é mais persuasiva que a analogia, pois além de ser redutora, ela transforma comparação em identidade, anulando as próprias diferenças entre os termos, dentro, é claro, do contexto do discurso. Seguindo este raciocínio, a metáfora vai utilizar outras expressões antes de introduzir os termos, tais como “é” e “tem”, sempre com afirmações definitivas (REBOUL, 2000, p. 188). Assim, Vysinskij (1964, p. 242) argumenta com a seguinte passagem: As previsões de Lênin se confirmaram plenamente. A época presente – a luminosa época staliniana do socialismo florescente – é a época de um triunfo jamais visto das idéias marxistas, da teoria marxista desenvolvida e erguida pelas obras de Lênin e de Stálin a uma altura sem precedentes3. Na citação acima, observa-se que o jurista marxista estabelece relações no texto, ligando os termos heterogêneos “luminosa”, “época”, “socialismo”, “fluorescente” e “altura” para potencializar os efeitos persuasivos do seu discurso. O objetivo de Vysinskij é mostrar ao auditório que, considerando o crescimento da economia soviética, as formulações de Lênin se revelaram acertadas e que as idéias de Stálin não passam de continuação das concepções 3 “Le previsioni di Lenin si sono pienamente avverate. L’epoca presente – la luminosa epoca staliana del socialismo fiorente – è l’epoca di un trionfo mai visto delle idee marxiste, della teoria marxista sviluppata e sollevata dalle opere di Lenin e di Stalin ad una altezza senza precedenti” (VYSINSKIJ, 1964, p. 242). Revista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau – Recife – ano 5 – n. 5 – p. 53-93 – 2010 70 Fernando Joaquim Ferreira Maia leninistas. Ademais, como as teses do autor se baseiam neste legado, isto acaba por reforçar as posições de Vysinskij. A argumentação metafórica deste jurista busca reduzir todos os termos envolvidos, anteriormente citados, a um elemento comum, mascarando as diferenças entre eles. Esse elemento comum é a edificação da sociedade socialista e os êxitos alcançados pela nova sociedade. Agora, como Vysinskij aproxima termos diferentes, ele acaba por criar um movimento nas próprias metáforas, invocando, no final, um outro termo, “altura”, aqui revelando que o desenvolvimento da sociedade socialista conduz a grandes elaborações teóricas e ao próprio aprimoramento do marxismoleninismo. Veja que a fusão dos termos se deu, aqui, pelos adjetivos “luminosa” e “fluorescente”, mas, como ressalta Perelman, podia ser por verbos, identificações etc, pois o que importa é que a fusão operada pela metáfora se dê a partir da analogia, esta envolvendo relações associativas entre expressões (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 2005, pp. 456-457). Voltando a Aristóteles, nos termos já postos, a metáfora é um instrumento de conhecimento, de natureza associativa, que nasce do raciocínio, mas que é empregado conforme as necessidades da retórica dos métodos e metodológica. Nestes termos, quando Vysinskij emprega a metáfora, ele não pode seguir fielmente as regras da lógica, pois o jurista soviético vai sempre produzir, com o manuseio das metáforas, uma mudança de significado ou mesmo um sentido dito “figurado” na argumentação empregada, opondose ao significado literal, oferecendo um sentido conotativo ao argumento. Isto fica evidente na seguinte passagem da obra de Vysinskij (1964, p. 249): Revista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau – Recife – ano 5 – n. 5 – p. 53-93 – 2010 Direito e retórica na construção do ordenamento jurídico... 71 Para Rejsner não existem fenômenos jurídicos reais, come fenômenos de mediação das relações sociais. Fonte do direito são, para Rejsner, não as relações de produção, mas a psiquique, o sentimento, as emoções, as idéias. A cerca de 80 anos, na prefaciação a Para a crítica da economia política, Marx escreve que ‘tanto as relações jurídicas quanto a forma do Estado não podem ser compreendidas nem por si mesmas, nem pela, assim dita, evolução geral do espírito humano, mas têm as suas raízes, ao contrário, nas relações materiais de existência, o qual o conjunto vem abraçado por Hegel, seguindo o exemplo dos ingleses e dos franceses do século XVIII, sob o termo de ‘sociedade civil’; e [...] a anatomia da sociedade civil está por investigar na economia política’. Para Marx, as relações jurídicas e, portanto, também o direito, têm as suas raízes nas condições materiais da vida e não podem ser nem deduzi dos, nem compreendidos, em si, com refe rência à evolução geral do espírito humano4. 4 “Per Rejsner non esistono fenomeni giuridici reali, come fenomeni di mediazione dei rapporti sociali. Fonte del diritto sono per Rejsner non i rapporti di produzione, ma la psiche, il sentimento, le emozioni, le idee. Circa 80 anni fa nella prefazione a Per la critica dell’economia politica Marx scrisse che ‘tanto i rapporti giuridici quanto le forme dello Stato non possono essere compresi nè per se stessi, nè per la cosidetta evoluzione generale dello spirito umano, ma hanno le loro radici, piuttosto, nei rapporti materiali dell’esistenza il cui complesso viene abbracciato da Hegel, seguendo l’esempio degli inglesi e dei francesi del secolo XVIII, sotto il termine di ‘società civile’; e [...] l’anatomia della società civile è da cercare nell’economia política’. Per Marx i rapporti giuridici e quindi anche il diritto hanno le loro radici nelle condizioni materiali della vita e non possono essere nè dedotti nè compresi in sé com riferimento alla evoluzione generale dello spitito umano”(VYSINSKIJ, 1964, p. 249). Revista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau – Recife – ano 5 – n. 5 – p. 53-93 – 2010 72 Fernando Joaquim Ferreira Maia Observa-se que Vysinskij procura amparar as suas posições no pensamento de Karl Marx, para quem a “anatomia” da sociedade civil deve ser procurada na economia política (MARX, 1978, pp. 112-113, 118). Neste sentido, o jurista soviético, ao reempregar a palavra anatomia (VYSINSKIJ, 1964, p. 249), se vale, mais uma vez, da utilização da metáfora, objetivando unir dois elementos diferentes (sociedade civil e ser humano), para destacar uma semelhança (a idéia de base, fundamento). Anatomia, nesse contexto, é empregada como ilação à idéia de que a economia política é a base da constituição da sociedade, tal qual a anatomia é a base da constituição do ser humano. Desta forma, direito e Estado são formas da superestrutura social, “anatomia da sociedade”, regidos pelo processo de produção de riquezas, estando influenciados pela luta das classes sociais pela transformação das relações de produção. Ao que parece, Vysinskij se aproveita do fato de que a maioria dos auditórios constroem sua opinião tendo por base imagens, muitas vezes nunca vistas, apenas imaginadas para empregar metáforas, com o intuito de clarear as idéias e despertar emoções nos ouvintes (SKINNER, 1999, pp. 251, 253-255). Entretanto, não é qualquer metáfora que Vysinskij vai empregar. Ele vai utilizar metáforas que retratem imagens claras, proporcionais ao contexto do discurso, ligando de forma arrojada termos estranhos, de forma a ampliar o efeito persuasivo do seu discurso, o que as linhas citadas acima constituem um exemplo. De certo, o fato de o Estado burguês ter se consolidado ao longo do tempo, ter desenvolvido uma superestrutura ideológica e da ideologia do capital ter se enraizado na sociedade, além da insuficiência no desenvolvimento das novas relações de produção e leis econômicas, impedia uma Revista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau – Recife – ano 5 – n. 5 – p. 53-93 – 2010 Direito e retórica na construção do ordenamento jurídico... 73 transição direta do capitalismo ao comunismo na Rússia e colocava a questão da natureza do direito e do Estado na sociedade soviética centrada no problema da transição no socialismo. Neste sentido, o uso do Estado como aparelho de opressão de classe era necessário transitoriamente em função dos resquícios subjetivos e objetivos herdados do capitalismo, seja para conter a progressão da burguesia rumo ao poder político, seja para eliminar a ideologia burguesa remanescente, seja para viabilizar a construção da nova sociedade, reproduzindo as relações sociais e auxiliando na transição rumo ao comunismo (STÁLIN, [ca.1986], p. 46-49). De fato, era evidente que o novo regime, ainda incipiente, era carente de mecanismos retóricos suficientes capazes de não só reproduzir a ideologia dominante como neutralizar e destruir os resquícios ideológicos do velho regime. Desta forma, havia a preocupação, sobretudo por parte de Vysinskij, com a questão da superestrutura ideológica do Estado, buscando construir mecanismos retóricos suficientes para otimizar essa superestrutura, universalizando a ideologia dominante, neutralizando e eliminando a ideologia burguesa. Aqui, o uso das metáforas, alterando e distorcendo significados, cumpria grande papel persuasivo no discurso, pois permitia conduzir melhor a população na consecução dos objetivos postos pelo Estado na transição socialista rumo ao comunismo. 5.2. A prevalência de argumentos de autoridade preponderantemente sobre as posições de Karl Marx, Josef Stálin e Lênin Como já dito, Vysinskij vai empregar ao longo de sua obra, aqui em exame, argumentos de autoridade para Revista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau – Recife – ano 5 – n. 5 – p. 53-93 – 2010 74 Fernando Joaquim Ferreira Maia justificar suas principais teses: 1) de que existe uma teoria marxista do direito, tendo por base os princípios fornecidos por Marx, Engels e Lênin; 2) de que esta teoria se fundamenta na união indissolúvel entre direito e Estado, união esta erigida sobre as relações de produção e leis econômicas socialistas, materializando o caráter proletário do direito e do Estado nas condições do socialismo soviético; 3) de a legalidade socialista não é apenas o princípio diretor do direito soviético, mas também integra a superestrutura ideológica do Estado. De fato, Vysinkij vai empregar pelo menos setenta e dois argumentos de autoridade ao longo do texto, estribando praticamente todos os seus argumentos nas posições de Marx, Lênin e Stálin. Aqui, ora Vysinskij vai mencionar a idéia principal desses autores, ora vai proceder a citações ipis literis de trechos das obras desses autores. Outrossim, a escolha desses personagens por Vysinskij não se dá de forma aleatória. Em relação a Marx, este foi um dos fundadores do marxismo, ao lado de Engels, sendo sua obra muito difundida nos meios operários da Europa, principalmente depois da Primeira Guerra Mundial. No que diz respeito a Lênin, este era considerado o principal discípulo de Marx e Engels, tendo aprimorado a teoria marxista, sobretudo em relação à teoria do Estado, da revolução e do partido, a tal ponto de ter praticamente refundado o marxismo, agora marxismo-leninismo. Já no que concerne a Stálin, depois da morte de Lênin, em 1924, aquele passou a ser considerado o principal sucessor deste, tendo grande destaque na União Soviética frente às polêmicas acerca da planificação econômica, do papel do Estado, das nacionalidades e do centralismo democrático. Revista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau – Recife – ano 5 – n. 5 – p. 53-93 – 2010 Direito e retórica na construção do ordenamento jurídico... 75 Então, será com essas figuras proeminentes do marxismo que Vysinskij construirá diversos argumentos de autoridade, reforçando não só as teses desses teóricos, mas também as suas próprias teses. De certo, o argumento de autoridade é calcado na pessoa, mais precisamente na relação dos atos realizados, do qual o texto aborda, com a qual aquela se refere. É um argumento de essência (REBOUL, 2000, p. 176). Assim, no texto, Vysinskij (1964, p. 244) cita a seguinte passagem de Stálin: Do marxismo, Lênin disse que a doutrina de Marx é onipotente porque é verdadeira. É verdadeira porque é uma ciência autêntica, herdeira legítima daquilo que de melhor criou a humanidade no século XIX: a filosofia alemã, a economia política inglesa, o socialismo francês5. Nas linhas citadas acima, o objetivo do jurista soviético é justificar a importância de se enfrentar as questões postas no direito e no Estado a partir das premissas formuladas por Marx, o que o próprio título do texto deixa em evidência. Outrossim, o argumento de autoridade não se refere necessariamente a uma pessoa física, podendo designar uma autoridade abstratamente, como, por exemplo, uma doutrina, um partido, um governo, uma ideologia, um coletivo, uma opinião comum (PERELMAN; OLBRECHTS5 “Del marxismo Lenin ebbe a dire che la dottrina di Marx à onnipossente perché à vera. È vera, perch´é à uma scienza autentica, erede legittima de quel che di meglio ha creato l’umanità nel secolo XIX: la filosofia tedesca, l’economia politica inglese, il socialismo francese” (VYSINSKIJ, 1964, p. 244). Revista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau – Recife – ano 5 – n. 5 – p. 53-93 – 2010 76 Fernando Joaquim Ferreira Maia TYTECA, 2005, p. 350). Neste sentido, Vysinskij (1964, p. 283) cita, como argumento de autoridade, a doutrina marxista: “O marxismo ensina que o proletariado necessita do Estado também para reprimir os exploradores e para dirigir enormes massas da população no trabalho de organização da economia socialista. Assim escrevia Lênin acerca do marxismo em 1913”6. Observa-se que o argumento de autoridade busca a justificação de uma afirmação, idéia ou tese com base no valor do seu autor. É por isto que Vysinskij (1964, pp. 242, 249, 252) sempre introduz ou finaliza seus argumentos com: “vem espontaneamente à memória as seguintes palavras de Marx...”, “comentando este passo Lênin escreveu:...”, “assim escrevia Lênin do marxismo em 1913”7. Neste sentido, não se pode negar que as relações predominantes no argumento de autoridade envolvem juízos de valor. Este juízo de valor é auferido tendo por base o alcance social do comportamento da pessoa e as manifestações desta, permitindo que o auditório construa uma idéia do caráter de quem se invoca no discurso. Aqui, são os atos que condicionam a concepção de que se faz de alguém. O prestígio maior ou menor da autoridade citada será determinado neste contexto, criando-se uma intenção favorável ou desfavorável, por parte do auditório, na interpretação dos atos debatidos no discurso (SOUZA, 2008) (GIL, 2008). De fato, o argumento de autoridade é uma técnica comum da retórica. No quadro dos intensos debates acerca da 6 “Il marxismo insegna che il proletariato ha bisogno dello Stato anche per reprimere gli sfruttatori e per dirigere enormi masse della popolazione nell’opera di organizzazione dell’economia socialista. Così scriveva Lênin do marxismo em 1913” (VYSINSKIJ, 1964, p. 283). 7 “Vengono spontaneamente alla memoria le seguenti parole di Marx...”(VYSINSKIJ, 1964, p. 249); “commmentando questo passo Lenin scrisse:...” (VYSINSKIJ, 1964, p. 252), “Così scriveva Lênin do marxismo em 1913” (VYSINSKIJ, 1964, p. 242). Revista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau – Recife – ano 5 – n. 5 – p. 53-93 – 2010 Direito e retórica na construção do ordenamento jurídico... 77 natureza jurídica do direito e do Estado soviético, tendo por pano de fundo a luta entre a pequena-burguesia e o proletariado, ele não pode ser descartado, uma vez que muitas das questões levantadas por Vysinskij eram controversas e o remetimento ao pensamento fundamental de Marx, Lênin e Stálin era útil para a persuasão. Ademais, considerando a importância que tem para a retórica o ethos, o recurso ao argumento de autoridade constituía parte da estratégia de reforço da própria autoridade do retor. Seguramente, na tradição marxista soviética, e até mesmo na marxista de um modo geral, é abundante o uso de argumentos de autoridade. Seguem-se vários exemplos. Assim, Lênin (1987, p. 53), em sua obra O Estado e a revolução, já no primeiro capítulo, adverte, referenciandose em Marx: Aconteceu com a doutrina de Marx o que aconteceu diversas vezes na história com as doutrinas dos pensadores revolucionários e dos líderes das classes oprimidas em sua luta pela libertação. Durante a vida dos revolucionários, as classes opressoras os submetem a constantes perseguições, recebem suas doutrinas com a raiva mais selvagem, com o ódio mais furioso, com a mais desenfreada campanha de mentiras e calúnias. Também, Stálin (1979, p. 16), em sua obra Materialismo dialético e materialismo histórico, utiliza argumento de autoridade para discorrer sobre o método dialético: É por esta razão, diz Engels, que a dialética “observa as coisas e o seu reflexo Revista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau – Recife – ano 5 – n. 5 – p. 53-93 – 2010 78 Fernando Joaquim Ferreira Maia mental, principalmente nas suas relações recíprocas, no seu encadeamento, no seu movimento, no seu aparecimento e desaparecimento. Novamente Lênin (1975b, p. 47), em seu artigo intitulado Os ensinamentos da insurreição de Moscovo, publicado no jornal Proletari, agosto de 1906, levanta argumentos de autoridade: “Dezembro confirmou uma outra tese profunda de Marx, esquecida pelos oportunistas: a insurreição é uma arte, e a principal regra dessa arte é a ofensiva – uma ofensiva de uma coragem a toda a prova e de uma inabalável firmeza”. Até mesmo os adversários de Vysinskij, a exemplo de Pasukanis, utilizavam argumentos de autoridade no debate acerca da natureza do direito na sociedade soviética: “Marx formula este raciocínio de maneira ainda mais clara em sua Introdução geral à crítica da economia política: ‘Faustrecht (o direito do mais forte) é igualmente um direito’” (PASUKANIS, 1989, p. 109). No mesmo sentido, segue outro adversário de Vysinskij, Stucka (1988, p. 28), em sua obra Direito e luta de classes, na qual se estriba na opinião de Marx para dar melhor efeito persuasivo às suas teses: Como diz Marx, as relações de produção de cada sociedade formam um todo; daí resulta que a nossa definição de direito, que faz menção ao sistema das relações sociais, está plenamente de acordo com a concepção de Marx. Revista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau – Recife – ano 5 – n. 5 – p. 53-93 – 2010 Direito e retórica na construção do ordenamento jurídico... 79 O próprio Marx (MARX, 2004, p. 111), em sua obra Miséria da filosofia, utiliza argumentos de autoridade: Para provar-lhe o contrário citaremos apenas Ricardo e Lauderdale; Ricardo, o chefe da escola que determina o valor pelo tempo de trabalho, Lauderdale um dos defensores mais entusiasmados do valor como determinado pela oferta e pela procura. Todos os dois desenvolveram a mesma tese. Mais recentemente, Boris Topornine (1981, p. 2), comentando a Constituição da União Soviética, lança mão de argumentos de autoridade: “Na sua obra As lutas de classes em França, K. Marx assinalou que as Constituições dos Estados sempre foram estabelecidas depois da formação das novas relações de classe na sociedade”. Igualmente, Ernesto Che Guevara (1987, pp. 31-32), em seu texto O que deve ser um jovem comunista, emprega argumentos de autoridade para justificar suas teses. Senão vejamos: O companheiro Fidel fez sérias críticas aos extremismos e às expressões, algumas bastantes conhecidas de todos vocês, como, por exemplo, ‘a ORI é a candeia...’, somos socialistas, em frente, em frente...’ Todas aquelas coisas que Fidel criticou, e que vocês conhecem bem, eram o reflexo do mal que atacava nossa revolução. Outrossim, Enver Hoxha (1990, p. 162), outrora dirigente do Partido do Trabalho da Albânia, utiliza argumenRevista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau – Recife – ano 5 – n. 5 – p. 53-93 – 2010 80 Fernando Joaquim Ferreira Maia tos de autoridade na polêmica entre os marxistas e os revisionistas. Assim, este dirigente afirma: Esta era a via tipicamente social-democrata combatida com tanto ardor por Lênin e desbaratada pela Revolução de Outubro. Os pontos de vista kruschovistas, que haviam sido extraídos do arsenal dos chefetes da II Internacional suscitavam perigosas ilusões e desacreditavam a própria idéia da revolução. Do mesmo modo, Kim il Sung (1993, p. 459), dirigente falecido do Partido do Trabalho da República Democrática Popular da Coréia (Coréia do Norte), ao criticar a teoria da revolução permanente, utiliza os seguintes argumentos de autoridade: Em sua análise das causas do fracasso da Comuna de Paris, Marx apontou que se os comuneiros não atacaram Versalhes, foi porque consideraram equivocadamente como um ato de antipatriótico provocar a guerra civil no momento em que a capital estava assediada pelo exército prussiano, inimigo estrangeiro; e Lênin qualificou de traição à causa socialista o que, ao desencadear-se a Primeira Guerra Mundial, os revisionistas da II Internacional se uniram à burguesia, em seus respectivos países sob o lema da ‘defesa da pátria’, violando os princípios revolucionários da classe operária. Revista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau – Recife – ano 5 – n. 5 – p. 53-93 – 2010 Direito e retórica na construção do ordenamento jurídico... 81 Um dos líderes do Partido Comunista do Vietnã, Vo Nguyen Giap ([1975?], p. 146), analisando a guerra revolucionária empreendida contra o Japão e a França no Vietnã, também utiliza argumentos de autoridade. Senão, veja-se: Lênin afirmou: ‘uma classe oprimida que não se esforçasse por aprender a manejar armas e por possuir armas, só merecia ser tratada como escrava’. O povo vietnamita aprendeu a manejar armas, organizou as suas forças armadas, foi por isso que a causa da sua libertação nacional triunfou em metade do país. Logo, dentro da tradição marxista, e, como as citações levam a entender, não só na União Soviética, o argumento de autoridade era um requisito indispensável, era um recurso de argumentação, uma retórica. Em princípio, portanto, a citação de um autor não significava necessariamente adesão às suas idéias, mas principalmente, reforço da autoridade do próprio retor (FEITOSA, 2007, in passim) (FREITAS, 2007, in passim). Além disso, como se observa dos trechos citados, os mesmos autores, ou as mesmas práticas eram usados para justificar políticas radicalmente distintas, a exemplo das polêmicas entre Vysinskij, Pasukanis e Stucka. Vysinskij quando utiliza o argumento de autoridade o faz apoiando argumentação sua. Ele não levanta argumentos de autoridade aleatoriamente, mas sempre buscando ofuscar a tese adversária e reafirmar a sua própria tese, dando caráter persuasivo a esta. O seguinte trecho da obra em exame de Vysinskij (1964, p. 244) evidencia isto: Revista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau – Recife – ano 5 – n. 5 – p. 53-93 – 2010 82 Fernando Joaquim Ferreira Maia Esta é a lei fundamental do desenvolvimento da sociedade capitalista formulada por Marx e Engels, mais de noventa anos antes; uma lei que nenhuma força histórica está em condições de abolí-la ou mudá-la. A negação que desta lei fazem os cretinos fascistas não tem nenhum valor. O capitalismo e o seu setor mais reacionário – o fascismo – vivem sem perspectiva, cegos. ‘Apenas o nosso partido sabe aonde quer ir e marcha adiante com sucesso. A que deve o nosso partido esta sua superioridade? Ao fato que ele é um partido marxista, um partido leninista. O deve ao fato que ele se inspira, no seu trabalho, à doutrina de Marx, de Engels e de Lênin. Não podemos ter dúvida de sorte que, a fim de ficarmos fiéis a esta doutrina, a fim de possuirmos esta bússola, registreremos sempre sucessos no nosso trabalho’. Assim disse o companheiro Stálin, definindo nestas breves palavras, mas extraordinariamente profundas, o valor histórico do marxismo-leninismo como base dos sucessos da revolução socialista e da causa do socialismo na União Soviética8. 8 “È questa la legge fondamentale di sviluppo della società capitalistica formulata da Marx ed Engels più di novannta anni fa, uma legge che nessuna forza storica è in grado nè di abolire nè di mutare. La negazione che di questa legge fanno i cretini fascisti non há alcun valore. Il capitalismo e il suo reparto più reazionario – il fascismo – vivono senza prospettive, da ciechi. <Soltanto il nostro partito sa dove vuol andare e marcia avanti com sucesso. A che cosa deve il nostro partito questa superiorità? Al fatto che esso à un partito marxista, un partido leninista. Lo deve al fatto ch’esso si ispira nel suo lavoro alla dottrina di Marx, di Engels, di Lenin. Non ci può esser dubbio di sorta che finché rimarremo fedeli a questa dottrina, finché possederemo questa bussola, registreremo sempre dei sucessi nel nostro lavoro’. Così há detto il compagno Stalin, definendo in queste parole brevi ma straordinariamente profonde il valore storico del marxismo-leninismo come base dei sucessi della rivoluzione socialista e della causa del socialismo nell’URSS” (VYSINSKIJ, 1964, p. 244). Revista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau – Recife – ano 5 – n. 5 – p. 53-93 – 2010 Direito e retórica na construção do ordenamento jurídico... 83 No caso acima, os argumentos de autoridade só seriam inadequados se fossem supérfluos, empregados ao acaso e sem confirmação da autoridade, conforme sustenta Perelman (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 2005, pp. 349, 351), o que parece não ser o caso. Por fim, de certo, o argumento de autoridade é uma técnica, como outra qualquer, sendo muitas vezes, como mostra o texto de Vysinskij, indispensável, não tendo nada de dogmático (REBOUL, 2000, p. 177), sobretudo quando se considera que a divisão do trabalho e da produção, ao gerar contradições no processo de produção, classes sociais e interesses antagônicos e inconciliáveis entre estas, torna idéias como justiça, manutenção da ordem social, pacificação e legitimação relativas e controversas, que não podem ser dissociadas de uma tradição jurídica, social e política para serem melhor entendidas. 6. Andrej Vysinskij e a função do direito na sociedade de paradigma marxista O juízo do marxismo acerca da realidade jurídica envolve todo o fenômeno jurídico. Sua crítica pretende a emancipação do homem do direito, como forma social opressora e manipulada. A verdadeira emancipação humana se daria numa sociedade sem classes. A concepção marxista do direito, defendida por Vysinskij, repousa numa relação indissolúvel entre o conhecimento do Estado e do direito, vendo esses como fatores de coação social. Segundo o jurista soviético, o proletariado ao conquistar o poder político, transformando os meios de produRevista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau – Recife – ano 5 – n. 5 – p. 53-93 – 2010 84 Fernando Joaquim Ferreira Maia ção em propriedade do Estado, para generalizar seu interesse, determinaria o conteúdo do direito, dando a este caráter socialista. Ademais, a extinção do Estado seria feita progressivamente, elevando-se a propriedade à condição de propriedade social. Entretanto, o uso do Estado é necessário transitoriamente em função da herança do capitalismo. O direito pressupõe sempre a força organizada a serviço da classe dominante. A extinção do direito equivale a uma afirmação prévia à praxis da libertação da superestrutura jurídica, só possível com o comunismo. De fato, Marx, Engels e Lênin teceram idéias fundamentais acerca do direito, cabendo aos juristas soviéticos, sob a liderança de Vysinskij, o desenvolvimento da teoria marxista do direito. Aqui, a principal preocupação de Vysinskij foi buscar uma teoria do direito baseada em princípios e obrigatória, de forma que pudesse servir de direção para o desenvolvimento da ciência jurídica. Foi nas relações de produção e leis econômicas socialistas que ele buscou os princípios que guiaram os instrumentos jurídicos soviéticos. Neste sentido, Vysinskij defendia que o direito deveria ser usado para a transformação da sociedade sobre a base socialista. O direito tinha a função de reproduzir a ideologia do proletariado na sociedade, institucionalizar seu poder político, regular e desenvolver as relações sociais socialistas. O direito, então, constituía um meio de controle sobre a medida do trabalho e do consumo por parte da classe dominante na sociedade. Nesta condição, era utopia pensar em fazer pouco uso do direito no socialismo, pois o direito ainda era necessário, sendo, porém, diferente em forma do direito burguês. Assim, para Vysinskij, nas conRevista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau – Recife – ano 5 – n. 5 – p. 53-93 – 2010 Direito e retórica na construção do ordenamento jurídico... 85 dições da União Soviética, o direito era entendido como o direito de um Estado socialista operário-camponês. Segundo, Vysinskij o princípio da legalidade socialista adquiria uma função importante, pois na União Soviética não havia a separação de poderes, sendo o poder estatal concentrado em um único órgão, o Soviete Supremo da URSS, que distribuía suas funções entre órgãos seus, não estando vinculado a princípios que repartissem a sua competência entre diversos órgãos iguais (DAVID; HAZARD, 1964, pp. 197, 202, 253, 274). Assim, o princípio da legalidade guiava as três funções do direito soviético: 1) a função econômica, visando a regular o modo de produção socialista e a sua transição rumo ao comunismo, adequando a sociedade às metas da planificação; 2) a função educadora, procurando reproduzir e disseminar a ideologia socialista no seio da população, institucionalizando todos os mecanismos de reprodução da ideologia dominante na sociedade, combatendo, ao mesmo tempo, os desvios ideológicos de toda espécie, condicionando o indivíduo a considerar os fenômenos e ações dos homens e aos homens mesmos do ponto de vista dos interesses do Estado socialista e da edificação da sociedade socialista; 3) a função moral, objetivando a estabelecer uma moral socialista, traduzindo a idéia de justiça do proletariado, suas representações sobre o bem e o mal, refletindo a infra-estrutura socialista (MAIA, 2005). Havia uma instituição com fundamento exclusivo em garantir o princípio da legalidade socialista e a efetivação das funções do direito na sociedade: a Procuradoria. A Procuradoria era um órgão autônomo, subordinado apenas ao Soviete Supremo da URSS, que lhe indicava Revista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau – Recife – ano 5 – n. 5 – p. 53-93 – 2010 86 Fernando Joaquim Ferreira Maia o Procurador-Geral da União Soviética. Este, por sua vez, indicava os outros Procuradores. A função da Procuradoria era a de fiscalização geral do respeito a todo o sistema jurídico do país, além de exercer funções típicas do Ministério Público nos países ocidentais, podendo, ainda, requerer a anulação de qualquer ato tomado ilegalmente ou sem a observância de normas legais, bem como tomar medidas para defender as relações jurídicas, porventura resistidas. Assim sendo, a Procuradoria deveria controlar o cumprimento das leis pelo aparato estatal, em sentido amplo, e pelos cidadãos da União Soviética (VLASOV; STUDENIKIN, 1962, p. 133). O entendimento de Vysinskij, corroborado posteriormente pelos dirigentes soviéticos, acerca do papel da Procuradoria, prevalecido durante o período de elaboração do Código Civil da República Federada da Rússia, era de que o Estado deveria intervir nas relações cíveis, nas lides cíveis, considerando-se que não se devia desperdiçar a mínima possibilidade de ampliar a intervenção do Estado nas relações cíveis (SHAKARIAN, 1971, pp. 110-111).. Outrossim, na definição das tarefas da Procuradoria, o próprio Lênin argumentava que era importante ter em mente que, diferentemente de qualquer poder administrativo, a fiscalização do Procurador afastava-o de todo poder administrativo e de todo voto decisório em qualquer questão administrativa. O Procurador tinha apenas o direito e a obrigação de fiscalizar a instituição, de exercer a compreensão unitária resguardar a legalidade em toda a República, em que pese quaisquer diferenças ou influências locais. O único direito e obrigação do Procurador era, pois, entregar um assunto à resolução do Tribunal (SHAKARIAN, 1971, p. 111). A principal razão que sustentava a missão de um Procurador não era a defesa da legalidade em abstrato, senão Revista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau – Recife – ano 5 – n. 5 – p. 53-93 – 2010 Direito e retórica na construção do ordenamento jurídico... 87 dos valores superiores que davam vida a essa legalidade; não tanto pela lei em si, senão quanto ao seu conteúdo ideológico, os valores que dela emanavam. A mesma devia incluir, em qualquer caso, a proteção ativa da Constituição e do ordenamento jurídico que esta legitimava. A Procuradoria, como órgão de defesa da legalidade, não aparecia contemplada em sentido geral, senão enquanto atuava na promoção da ação da justiça. Desta forma, na tarefa da Procuradoria, Vysinskij (1964, pp. 253-255) colocava a idéia da legalidade como uma forma específica ou método do poder político. Então, as funções do direito na União Soviética estavam consubstanciadas na legalidade socialista, pois esta significava estabilidade das relações sociais, respeito às regras de convivência social, respeito e intangibilidade da propriedade social socialista, bem como observância estrita de todas as normas postas pelo Poder Público. Vale salientar que o pensamento de Vysinskij punha o princípio da legalidade socialista não como uma afirmação metafísica da lei, mas como uma regra de conduta, organização e disciplina da sociedade, regida pela classe dominante. Certamente, esta posição contribuiu para a apatia das massas, estimulando uma visão acrítica diante dos excessos e falhas do regime soviético, inclusive no próprio seio do Partido Comunista da União Soviética. De fato, é notório que durante determinado período do desenvolvimento da sociedade soviética, o pensamento de Vysinskij passou a não corresponder obrigatoriamente às tarefas da transição socialista rumo ao comunismo (que passava também pela disseminação da ideologia marxista no seio do povo, preparando-o para a ação socialista, bem como combatendo os desvios ideológicos de quaisquer matizes porventura existentes, com o estímulo à crítica e à auRevista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau – Recife – ano 5 – n. 5 – p. 53-93 – 2010 88 Fernando Joaquim Ferreira Maia tocrítica não só no seio da aliança operário-camponesa, mas também entre os membros do próprio Partido Comunista). Assim, deve-se ter o cuidado de entender que não necessariamente a função do direito da União Soviética, tal como concebida por Vysinskij, deve ter correspondido à realidade, visto que o evidente fracasso da experiência soviética aponta para óbvias insuficiências e contradições na construção socialista daquele país que, provavelmente, devem ter se refletido na sua estrutura jurídica. Entretanto, não se deve relevar a contribuição de Andrej Vysinskij para a história do direito socialista, pois foi graças às suas concepções que o pensamento de Marx, Engels e Lênin, quanto ao direito, foi sistematizado e aprimorado, a tal ponto de se considerar Vysinskij como o fundador da teoria marxista do direito. REFERÊNCIAS ACADEMIA DE CIÊNCIAS DA URSS. Manual de economia política da Academia de Ciências da URSS. Rio de Janeiro: Vitória, 1961. ADEODATO, João Maurício. A retórica constitucional (sobre tolerância, direitos humanos e outros fundamentos éticos do direito positivo). 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Luiz Edmundo Celso Borba Advogado; professor de graduações e de pós-graduações em Direito e áreas afins; mestre e doutorando em Direito pela UFPE. http:// buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.jsp?id=W782905.) RESUMO Este ensaio tem por objetivo maior provocar discussões acerca da CPMF, em especial no tocante à discussão de sua legitimidade com base no texto constitucional e nas repercussões que possam incidir sobre os direitos e garantias fundamentais dos contribuintes brasileiros, sem esgotar o tema, mas provocando o leitor a se informar mais diante das notícias difundidas após a eleição presidencial de 2010, no Brasil. Palavras Chave: Possibilidade de retorno da CPMF. Inconstitucionalidade. Violação de Direitos Fundamentais. Revista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau – Recife – ano 5 – n. 5 – p. 95-105 – 2010 96 Luiz Edmundo Celso Borba ABSTRACT This essay is a major cause of CPMF´s discussions, especially regarding the discussion of its legitimacy based on constitutional text and the effect it can focus on the fundamental rights and guarantees of Brazilian taxpayers, without exhausting the subject, but provoking the reader to learn more before the news broadcast after the presidential election of 2010 in Brazil. Keywords: Possibility of return of the CPMF. Unconstitutional. Violation of Fundamental Rights. FIG 1 1 Logo após o fim das eleições presidenciais de 2010, a semana seguinte fez ressurgir uma questão “morta e enterrada” desde 2007: “a Contribuição Provisória por Movimentação Financeira (doravante CPMF) será ‘reativada’ pelas mãos da nova e primeira presidenta do Brasil?” A resposta da mesma foi, para espanto de toda a Sociedade, um categórico e autoritário: Sim! 1 Imagem disponível em: << http://acesso343.blogspot.com/2010/11/cerca-de-83-dostuiteiros-rejeitam-cpmf.html>>, coletado em: 11/11/2010. Revista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau – Recife – ano 5 – n. 5 – p. 95-109 – 2010 O Brasil realmente precisa da CPMF ou de qualquer outro tributo... 97 Esse, então, passou a ser um dos assuntos mais discutidos e recorrentes em todos os meios de comunicação, nos centros universitários, nas mesas de bares e nos sofás das casas de milhões de brasileiros, pois a CPMF deixou más lembranças, aliás, como todo e qualquer tributo que existe, pelo simples fato da norma tributária ser uma ação estatal com clara rejeição social (OLIVEIRA, 2002, p. 157 e 158). É fato, ninguém gosta de pagar tributos, por mais necessários que eles sejam! Passemos, então, a tentar entender algumas causas que sustentem tal afirmação, ressaltando o fato dela poder ser dar em maior ou menor intensidade, mas ninguém se satisfaz em ver alguém remexendo nos seus bolsos, na sua carteira, ainda que essa pessoa tenha toda intimidade para tal, quanto mais o Estado, um ser “estranho” e distante para nós, infelizmente (NOGUEIRA, 1997, p. 244 a 246)! Muitos afirmarão a “plenos pulmões”: nós não gostamos de os pagar, pois eles são altos, mal utilizados, escorrem de enormes “vazamentos” nos cofres públicos, enfim pagamos muito e vemos poucos resultados (MARTINS, 2000, p. 47); mas a questão não pode ser posta, unicamente, nestes termos, pois mesmo nos países onde a tributação é mais justa, criteriosa, há pouca corrupção e um retorno satisfatório para os contribuintes, como ocorre na quase totalidade dos países desenvolvidos, o pagamento de impostos e de outros tributos será visto com pouquíssimo apreço, por uma razão simples: eles interferem sobre a propriedade privada de cada um de nós! A segurança do direito de conseguir ter, depois usar e a posterior preservação da propriedade começam com a própria idéia de Estado de Direito, quando o cidadão adquire uma série de garantias a serem conservadas pelo Revista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau – Recife – ano 5 – n. 5 – p. 95-105 – 2010 98 Luiz Edmundo Celso Borba Poder Público, contra ele mesmo, pois o Estado, antes só detentor de poderes, assume uma série de deveres limitadores de suas ações, caso contrário para que Estado se ele não melhora nossas vidas, piora (SARMENTO, in: TORRES - org., 2001, p. 38)? Durante séculos, até a Revolução Francesa em 1789, o Estado não adotava garantias para o direito sobre a propriedade, mas após seu reconhecimento a humanidade passa a crescer e se desenvolver, pois foi gerado um grande estímulo ao desenvolvimento, nos seguintes moldes: você pode crescer, pode trabalhar (BORBAb, 2010), esforçar-se ao máximo, pois os frutos do teu suor serão seus; porém, “Eu”, Estado, serei seu “sócio forçado”, retirando um percentual de todas as riquezas produzidas pela Sociedade. A diferença deste novo modelo, para os praticados antes da Revolução Francesa, é que passaram a existir limites para tributar e todos eles são encontrados, na nossa realidade, na Constituição Federal de 1988, mais precisamente nos artigos 145 a 162. Seria impossível se defender a inviabilidade do Estado interferir sobre a propriedade privada, principalmente no tocante a cobrança de tributos, pois precisamos de serviços públicos, como saúde, segurança, educação, transporte públicos, justiça, previdência, entre vários outros e por tal razão não podemos escolher pagar os tributos, somos obrigados a tal encargo. Sim, todos os tributos decorrem da lei e logo nas primeiras semanas de aulas todos os alunos do curso de direito aprendem que: “lei não se discute, cumpre-se,” por tal motivo não escolhemos pagar tributos, fazemos isso pelo fato das penalidades aplicáveis ao não pagamento serem altas e com graves repercussões (BORBAa, 2010), inclusive chegando à restrição da liberdade, ou seja: CADEIA por prática de crime contra a ordem tributária! Revista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau – Recife – ano 5 – n. 5 – p. 95-109 – 2010 O Brasil realmente precisa da CPMF ou de qualquer outro tributo... 99 Entendido o cenário no qual a CPMF se insere, não podemos afirmar que essa rejeição será possível de determinar o não ressurgimento dela, com qualquer novo nome, ou não, pois se o tributo segue os padrões legais, em especial nos já mencionados artigos 145 a 162 da Constituição Federal de 1988, não é possível clamar sua inviabilidade. Não querer esta intervenção não será um motivo que “toque o coração” dos dirigentes do Estado. Vejamos a negativa da CPMF por outros aspectos, motivos muito mais graves e aptos a determinar a plena inviabilidade da implementação da CPMF: 1o) ela é confiscatória, ferindo a capacidade contributiva; e o mais grave 2o) a CPMF viabiliza, ao Estado, camuflar sua real intenção de burlar o sigilo bancário das pessoas, algo só permitido, pela Constituição, através de uma decisão judicial fundamentada por provas hábeis para convencer o juiz a concedê-la. A CPMF surgiu em 1993 como Imposto Provisório por Movimentação Financeira (IPMF),2 sendo extinto rapidamente após sua implementação, diante de um tremendo erro técnico, pois este imposto (o imposto é uma das 5 formas de tributos que existem no Sistema Tributário Brasileiro, sendo elas: impostos; taxas; contribuições de melhoria; contribuições sociais e/ou especiais; e os empréstimos compulsórios) destinava a sua receita para a Saúde Pública. Acontece que os impostos não podem ser criados com uma destinação certa específica dos recursos obtidos, como se extrai da definição do artigo 16 do Código Tributário Nacional, por isso foi reformulada como CPMF, diante 2 Informações disponíveis em: <<http://www.estadao.com.br/especiais/a-cpmf-da-origem-ao-fim,3929.htm>>, coletado em: 11/11/2010. Revista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau – Recife – ano 5 – n. 5 – p. 95-105 – 2010 100 Luiz Edmundo Celso Borba da possibilidade das contribuições sociais ou especiais poderem ter destinação própria, específica. Contudo essa reformulação não legitimou a CPMF, pois a Constituição de 1988 proíbe que tributos possam ter e se configurar como meios aptos ao confisco (retirar bens da população sem a necessidade de uma contrapartida social, direta ou indireta, ou seja, privar o indivíduo da propriedade sem qualquer espécie de retorno para ele), diante do texto do seu artigo 150, inciso IV. Porque a CPMF é confiscatória? Pelo fato de não existirem limites econômicos para a sua aplicação, afetando de forma indevida a capacidade de contribuir das pessoas e isso é fácil de provar, basta paciência, se o indivíduo ficar transferindo um real de uma conta para outra, ou mesmo deposita e retira uma determinada quantia da própria conta, terminará com R$ 00. FIG.2 3 Logo, por não ter limites na sua incidência ela é confiscatória, motivo apto para determinar o vício mais grave que pode se abater sobre a lei: a inconstitucionalidade. 3 Imagem disponível em: <<http://www.et7ra.com/2010/11/eu-vejo-o-futurorepetir-o-passado.html>>, coletada em: 11/11/2010. Revista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau – Recife – ano 5 – n. 5 – p. 95-109 – 2010 O Brasil realmente precisa da CPMF ou de qualquer outro tributo... 101 O princípio da vedação ao confisco (impossibilidade de usar o tributo como forma para retirar a propriedade das pessoas) é vinculado ao princípio da capacidade contributiva (ao cidadão só serão cobrados tributos no limite de sua disponibilidade econômica, ou seja em uma carga que ele suporte sem vir a passar por sérias privações na mantença do Estado), sendo ambos inseridos dentro do princípio da isonomia (SCAFF in: MARTINS, 2000, p. 463 e 464). Em segundo lugar e mais grave, ela burla uma grande segurança dada aos cidadãos, um direito fundamental forte a ser preservado: a intimidade das pessoas, o sigilo de seus dados, inclusive os bancários, como dispõe o artigo 5o, XII da Constituição Federal de 1988. E essa limitação é necessária para que o Estado ou outras pessoas não possam expor a intimidade das pessoas sem motivo ou sem a autorização destas ou de um juiz, diante de clara e necessária fundamentação, atendendo-se a uma finalidade social. O que a CPMF propicia, na prática, para o Estado não são grandes somas de Dinheiro para a saúde pública, pois na prática, os recursos dela eram pulverizados, como se poderá ver no gráfico abaixo, ressaltando que a maior parte destinada à saúde era para cobrir gastos com prevenção e campanhas publicitárias, em especial as DST’s: Revista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau – Recife – ano 5 – n. 5 – p. 95-105 – 2010 102 Luiz Edmundo Celso Borba FIg 3 4 Outro fato relevante é de que dinheiro de outras fontes de receita foram desviados com o surgimento da CPMF, ou seja, o dinheiro para a saúde não aumentou significativamente. Tornando clara a sua real função: saber quanto as pessoas movimentam em suas contas, sem se tornar necessário pedir e FUNDAMENTAR (com provas) isso em juízo. Como basta analisar quanto entrou e quanto saiu da conta do contribuinte, através do cálculo da CPMF neste período. Assim, não adiantaria mais, por exemplo, alguém declarar uma renda anual de R$ 100.000,00 (cem mil reais) se o sujeito movimenta perto disso todo mês em sua conta! A intenção oculta para a maioria da população é louvável, no sentido de instrumentar o Estado a tentar descobrir todas as falhas dos contribuintes, em especial dos sonegadores, facilitando a fiscalização, mas a intenção 4 Retirado de: <<http://pt.wikipedia.org/wiki/Contribui%C3%A7%C3%A3o_Provis %C3%B3ria_sobre_a_Movimenta%C3%A7%C3%A3o_ou_Transmiss%C3%A3o_ de_Valores_e_de_Cr%C3%A9ditos_e_Direitos_de_Natureza_Financeira>>, em:11/11/2010. Revista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau – Recife – ano 5 – n. 5 – p. 95-109 – 2010 O Brasil realmente precisa da CPMF ou de qualquer outro tributo... 103 não basta para um Estado de Direito, que precisa agir com base na lei e não ao largo dela, até porque nem sempre as intenções são boas, basta ver o uso político de informações sigilosas, fiscais, em campanhas políticas, colocando-se em cheque a atuação e guarda de dados pela Receita.� Sendo assim legitimar a CPMF é, também, aceitar e permitir que a Receita Federal quebre o seu sigilo bancário, sem precisar pedir e fundamentar uma autorização judicial através de provas, basta lembrar o que o presidente Luis Inácio “Lula” da Silva utilizou como último e desesperado argumento (no sentido de revelar o “truque” desta nefasta contribuição) para evitar sua censura no Congresso Nacional: “a queda da CPMF só interessa a sonegador”!� Pesando bem os prós e contras acho que ficará bastante claro o seguinte: permitir a CPMF é se permitir a quebra do sigilo bancário, a utilização de seu emprego para a Saúde só revela o lado mais apelativo e perverso do Estado em querer aprovar tal contribuição, pois o argumento: “é para a Saúde Pública” se torna muito forte. Na prática seria mais fácil e adequado aumentar a alíquota (percentual de incidência do tributo sobre uma determinada riqueza – Base de Cálculo) em um dos tributos já existentes ao invés de se gerar um tributo confiscatório e motivador de desrespeito à intimidade das pessoas. O princípio do sigilo na comunicação de dados bancários é pétreo como também traduz uma garantia individual do contribuinte, ligando-se ao princípio da intimidade (Constituição Federal Brasileira de 1988, Artigo 5º incisos X e XII). Destarte, ao fiscalizar o Estado deve resguardar os direitos individuais, nos termos do Artigo 145, parágrafo Revista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau – Recife – ano 5 – n. 5 – p. 95-105 – 2010 104 Luiz Edmundo Celso Borba 1º da Magna Carta; posto que a intimidade, a privacidade e o sigilo das correspondências e dados são direitos fundamentais inalienáveis.� Só competindo ao Poder Judiciário, a pedido do Ministério Público, quando este se embasar sua decisão no § 1º do Artigo 38 da Lei 4.595/64, em virtude de irrefragável e relevante interesse público; não se comportando, jamais, delegação de tal poder para outro órgão, que não o Judiciário (SCAFF, 2000, p. 467 e 468). Desta forma a principal motivação deste texto é deixar a população ciente do real papel da CPMF, que se prova nos recordes batidos anualmente pela Receita e o aumento significativo dos contribuintes avaliados na malha fina, após a implementação da CPMF. A luta será árdua, por isso mesmo é que precisamos conscientizar a população para a real intenção em se desejar a volta da CPMF ou de qualquer tributo incidente sobre a movimentação bancária. REFERÊNCIAS: BORBA2, Luiz Edmundo Celso. Conhecendo a Natureza Jurídica do ICMS, com Base na Carta Política Brasileira de 1988 e a (IM)Possibilidade da Criação do, Federal, IVA Diante das Alterações Propostas pela PEC 233/08. Disponível em: <<http://www.fiscosoft.com.br/ main_index.php?home=home_artigos&m=_&nx_=&view id=202654>>, coletado em 11/11/2010. _______b. O tributo como principal fonte de receita do estado, visando o custeio das atividades fomentadoras Revista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau – Recife – ano 5 – n. 5 – p. 95-109 – 2010 O Brasil realmente precisa da CPMF ou de qualquer outro tributo... 105 dos direitos fundamentais. Disponível em: <<http://www. browne.adv.br/publicacoes/tributario/001.html>>, coletado em 11/11/2010. LYRA, Rubens Pinto (org.). Direitos Humanos: os desafios do Século XXI – uma abordagem interdisciplinar. Brasília: Brasília Jurídica, 2002. MARTINS, Ives Gandra da Silva. Direitos fundamentais do contribuinte. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000. _______. Tributação e internet. São Paulo: Renovar, 2001. MIGUEL, Carlos Ruiz. Derechos constitucionales, fiscalidad e internet: Em torno a la necessidad de uma reformulación de algunos conceptos tradicionales. In: Cuadernos Constitucionales de la Cátedra Fadrique Furió Ceriol. Valencia (Espanha): Quiles Artes Gráficas. Número 25, 1998. NOGUEIRA, Alberto. A reconstrução dos direitos humanos da tributação. Rio de Janeiro: Renovar, 1997. OLIVEIRA, Luciano. Os direitos sociais e econômicos como direitos humanos: problemas de efetivação. In: LYRA, Rubens Pinto (org.). Direitos Humanos: os desafios do Século XXI – uma abordagem interdisciplinar. Brasília: Brasília Jurídica, 2002. TORRES, Ricardo Lobo (Org.). Teoria dos Direitos Fundamentais. Rio de Janeiro: Renovar. 2001. Revista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau – Recife – ano 5 – n. 5 – p. 95-105 – 2010 Noções históricas do sincretismo processual 107 NOÇÕES HISTÓRICAS DO SINCRETISMO PROCESSUAL Paulo Hemetério Aragão Silva Advogado e professor de Direito Processual Civil I da Faculdade Maurício de Nassau – Unidade Natal/RN. RESUMO O presente trabalho aborda os aspectos mais relevantes da evolução histórica do sincretismo processual. Começamos pela evolução histórica, desde Roma com a dicotomia: actio e a actio iudicati, evoluindo-se para uma justiça eminentemente pública, abolindo-se, assim, a dicotomia (cognição/execução), a qual ressurgiu com a intensificação das praticas comerciais. Com o tempo mais uma vez tornou-se necessário criar no ordenamento jurídico pátrio institutos, que abolissem tal dicotomia, tais como: mandado de segurança, a tutela específica dos artigos 461, 461-A e o artigo 475-J, este último com a lei 11232/05. Palavras-chave: Evolução. Histórica. Sincretismo. Processual. Revista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau – Recife – ano 5 – n. 5 – p. 107-119 – 2010 108 Paulo Hemetério Aragão Silva ABSTRACT This paper addresses the relevant aspects of historical evolution of the sincretismo procedural, from Rome to the dichotomy: actio and actio iudicati, evolving into a highly public justice, abolishing thus the dichotomy (cognition / implementation), which reappeared with the intensification of commercial practices. Over time again it became necessary to create the legal homeland institutes, which abolish this dichotomy, such as: Warrant security, the protection of specific articles 461, 461-A and article 475-J, the latter is with the law 11.232/05. Key words: Evolution. Historical. Sincretismo. Procedural. SUMÁRIO Introdução. 1. História do Sincretismo Processual no Direito Romano. 2. História do Sincretismo Processual no Direito Brasileiro. Conclusão. Referências INTRODUÇÃO O tema voltou a ser objeto de discussões com as recentes reformas sofridas pelo código de processo civil. Nos primórdios do Direito Romano estão as origens do sincretismo processual. No Brasil, algumas leis extravagantes já traziam tal técnica. O nosso código de processo civil de 1973, apenas com a reforma de 1994 passou a estabelecer o processo sincrético. Revista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau – Recife – ano 5 – n. 5 – p. 107-119 – 2010 Noções históricas do sincretismo processual 109 Com este estudo, faremos um pequeno passeio na história do sincretismo processual, demonstrando as suas vantagens em relação ao processo dicotômico. 1. HISTÓRIA DO SINCRETISMO PROCESSUAL NO DIREITO ROMANO A noção de jurisdição que temos hoje advém do Direito Romano, possuindo uma feição privatista. Em Roma, a tutela dos direitos era feita através de duas figuras: o praetor e o iudex. O praetor seria uma espécie de servidor estatal, comparado atualmente aos agentes políticos. Detinha nas mãos o imperium, mas não julgava os litígios. A tarefa de julgar os conflitos cabia ao iudex, jurista particular que recebia a delegação do praetor para por fim as controvérsias. O decisório do iudex (sententia) dava solução definitiva ao conflito (res iudicata). Todavia, o iudex não possuía poder suficiente para dar-lhe execução, necessitando, assim, do praetor, que era quem detinha o imperium. A relação existente entre as partes e o iudex era regida por um modelo contratual, pois ao nomear o iudex delegado do praetor, os litigantes obrigavam-se a se submeter a sua decisão (sententia). Com o tempo, gradativamente, a justiça romana deixava essa mescla público-privatista, passando a ser inteiramente pública, como atualmente se vê nos países civilizados. Desta forma, a sentença expedida pelo praetor era concretizada pelo mesmo, até porque este açambarcava também o imperium, pondo fim à velha dicotomia outrora existente. A intensificação das práticas comerciais acabou gerando o surgimento dos títulos de crédito, os quais careciam de Revista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau – Recife – ano 5 – n. 5 – p. 107-119 – 2010 110 Paulo Hemetério Aragão Silva uma tutela mais esmiuçada do que a do processo de execução lastreado na decisão estatal (sententia). Tal situação fez ressurgir a actio iudicati romana, a qual permitia uma atividade jurisdicional eminentemente executiva, dispensando-se a decisão (sententia) do processo de cognição. Equiparou-se então, os títulos de crédito a decisão estatal (sententia), dando aos primeiros a força da decisão estatal (executio parata). Destarte, nesse período de crescimento das práticas comerciais havia a executio per officium iudicis, para as sentenças condenatórias, a qual possuía força de coisa julgada (res iudicata), não havendo quase defesa para o réu. E a actio iudicatis, para os títulos de créditos, na qual se assegurava ampla discussão, mesmo tendo estes a força de sentença, não faziam coisa julgada. Buscando-se efetivar/concretizar no mundo dos fatos, o preceito estabelecido em documentos, os quais adquirem a força executiva em virtude de lei (títulos executivos extrajudiciais) ou decisão judicial (títulos executivos judiciais), surgiram dois tipos de execução: a execução de títulos extrajudiciais e a execução de títulos judiciais, ambas voltadas para atividades de concretização da obrigação estampada em seus títulos, de modo direto (por sub-rogação) ou indireto (coerção). Com o tempo muitos doutrinadores passaram a criticar a clássica dicotomia (cognição/execução), pois viam nela um entrave desnecessário a celeridade na prestação jurisdicional. De fato não havia e nem há razão lógica para a existência de tal divisão, pois acontecia que durante vários anos o processo de conhecimento tramitava, o que culminava na certificação de um direito, que não poderia ser exercido, tendo em vista que faltava ao documento certificador (p. ex. uma sentença) aptidão legal para concretizar o bem da Revista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau – Recife – ano 5 – n. 5 – p. 107-119 – 2010 Noções históricas do sincretismo processual 111 vida atestado nele. Isto acabava gerando insatisfação do (s) jurisdicionado (s), criando-se até um axioma popular que bem expressa o sentimento da época “ganha-se, mas não se leva”. Essa duplicidade de tutelas processuais, forma metódica de concretizar o bem da vida pleiteado e reconhecido por sentença ou documento com força executiva, acabava aumentando o congestionamento crescente das demandas judiciais, o que inchava cada vez mais o judiciário, já tão abarrotado. 2. HISTÓRIA DO SINCRETISMO PROCESSUAL NO DIREITO BRASILEIRO O poder constituinte derivado, atendo para avalanche de processos no poder judiciário. E ciente da impossibilidade estrutural e humana, deste poder, em resolver o problema. Tratou logo de emendar a Constituição Federal (EC nº 45), inserindo no artigo 5º, que cuida dos direitos e deveres individuais e coletivos, um inciso apregoando o que parte da doutrina, passou a denominar de princípio da razoável duração do processo, in verbis: LXXVIII a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação. Mesmo antes da promulgação da emenda constitucional de nº 45, com a inserção de desse “novo” princípio da razoável duração do processo (art. 5, LXXVIII CF/88), já se podia Revista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau – Recife – ano 5 – n. 5 – p. 107-119 – 2010 112 Paulo Hemetério Aragão Silva defender com toda ênfase a necessidade de celeridade para o processo judicial e administrativo, tendo em vista a cláusula geral do devido processo legal (artigo 5º, LIV da Magna Carta de 1988), a qual tem como um dos seus fundamentos um processo célere, como bem demonstra Cruz e Tucci, citado por Fredie Didier JR. em sua obra Curso de Direito Processual Civil – Teoria Geral do Processo e Processo de Conhecimento, in verbis: Em síntese, a garantia constitucional do devido processo legal deve ser uma realidade durante as múltiplas etapas do processo judicial, de sorte que ninguém seja privado de seus direito, a não ser que no procedimento em que este se materializa se constatem todas as formalidades e exigências em lei previstas. Desdobram-se estas nas garantias: a) de acesso à justiça; b) do juiz natural ou preconstituído; c) de tratamento paritário dos sujeitos parciais do processo; d) da plenitude de defesa, com todos os meios e recursos a ela inerentes; e) da publicidade dos atos processuais e da motivação das decisões jurisdicionais; f) da tutela jurisdicional dentro de um lapso temporal razoável (grifo nosso). Conclui-se, portanto, que, também em nosso país, o direito ao processo sem dilações indevidas, como corolário do devido processo legal, vem expressamente assegurado ao membro da comunhão social por conta de aplicação imediata (art. 5,§1º, CF) (DIDIER JR, 2007, p. 37). Revista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau – Recife – ano 5 – n. 5 – p. 107-119 – 2010 Noções históricas do sincretismo processual 113 A mudança na Constituição Federal foi o primeiro passo o desfeche de uma reforma no processo civil brasileiro. Reforma esta que teve inicio na legislação processual extravagante, tais como a lei 1.533/51, lei 4.717/65, lei 7.347/85, lei 8.429/92, pois todos estes diplomas legais, prevêem que a execução de seus julgados dar-se-ão nos próprios autos do processo de conhecimento, sem a necessidade de instaurase um processo de execução autônomo, objetivando concretizar o preceito normativo individual previsto na decisão. Decisões estas segundo Pontes de Miranda seriam sentenças mandamentais, isto é, sentenças que buscam obter um ato de mandado do juiz, que não se confunde com o efeito da condenação. O âmago da sentença mandamental é a criação de um dever, que como já afirmamos acima, deve ter sua efetivação coativa realizada no mesmo caderno processual certificador de sua existência. Nosso legislador, sabedor das vantagens da concretização do dispositivo das sentenças nos mesmos autos, o qual foi proferido, buscou incorporar tal técnica procedimental no código de processo civil. E o fez primeiramente com a lei 8.952/94, criando o instituto da tutela antecipada (artigo 273), dando nova redação ao artigo 461, caput, e acrescentando os §§ 1º a 5º, para a efetivação das obrigações de fazer e não fazer, previstas na norma concreta individual (dispositivo da sentença condenatória). Mais tarde veio a lei 10.444/02, criando o artigo 461A, para efetivação das obrigações de entregar coisa diversa de dinheiro, estabelecida em sentenças condenatórias, remetendo o procedimento de tal concreção aos parágrafos de 1º a 6º do artigo 461. Ademais, o referido texto normativo (lei 10.444/02), modificou a redação do §5º do artigo 461 e acrescentou o §6º a este mesmo dispositivo legal. Revista Revista do Curso da Faculdade de Direito deda Direito Faculdade Maurício Maurício de Nassau de Nassau – – Recife – ano 53 – n. 53 – p. 107-119 113-134 – 2010 2008 114 Paulo Hemetério Aragão Silva Restava, ainda, um tipo de obrigação imposta pelo Estado-Juiz, que não se submetia, a essa técnica de efetivação dos preceitos impostos na norma individual concreta, nos mesmos autos do processo que fora criada, que seria a obrigação de pagar quantia. Tal obrigação continuava sendo concretizada em um processo autônomo de execução, com nova citação, e, abrindo-se oportunidade para a parte derrotada, que com procedimento executório passa a ser conhecida como executada, discutir não o mérito da decisão que impõe a obrigação a ser efetivada, mas, sim, algum vício ou defeito no título executivo judicial, tais como: faltam certeza ou liquidez ou exigibilidade ao título executivo. Como vimos em linhas pretéritas a dicotomia cognição/execução, não condiz com um processo voltado a garantir uma efetiva prestação jurisdicional, pois demasiadamente acaba prolongando a concretização do bem jurídico tutelado pelo direito, o que acaba gerando insatisfação para as partes: seja as interessadas (autor/réu), seja as desinteressada (juiz) e descrédito social da instituição Poder Judiciário. Tentando resolver de vez esse dilema o legislador aprovou em 2005 uma nova lei de reforma do Código de Processo Civil, lei 11.232/05, para as obrigações de pagar quantia. Fechando, assim, o ciclo de modificações no estatuto de procedimentos civilistas, no que diz respeito, a concretização das normas judiciais (dispositivo) nos mesmos autos do processo em que tenham sido proferidas, apenas abrindo-se espaço para uma fase ou módulo executório. A lei 11.232/05 passou a ser conhecida como lei do cumprimento de sentença, tendo modificado o código de processo civil profundamente. Houve uma inversão de técnicas processuais, pois o que antes era regra (duplicidade de Revista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau – Recife – ano 5 – n. 5 – p. 107-119 – 2010 Noções históricas do sincretismo processual 115 procedimento: cognição/execução), passa com esse diploma legal a ser exceção. Em apertada síntese, como já havíamos dito antes, a lei 11.232/05 encerra um conjunto de mudanças no código de processo civil pátrio, com as quais se abandona o sistema romano da actio judicati, retornando-se ao medieval habet paratam executionem. Com a possível execução nos próprios autos de obrigações de pagar quantia (certa ou a ser fixada por liquidação), imposta por juiz no processo de conhecimento, busca-se dar maior efetividade a prestação jurisdicional, atendendo aos reclamos dos operadores do direito e a própria sociedade, insatisfeitos com um processo civil racionalista ao extremo e destoado da realidade social que o circundava. Precipitados e desatentos são alguns comentários que têm sido feitos, no sentido de propalar a extinção da execução de sentença. Passo a explicitar melhor: não se pode confundir a autonomia do procedimento executório com os atos executórios propriamente ditos. Senão vejamos, o que acreditamos ter chegado ao fim, com a lei 11.232/05, foi indubitavelmente a necessidade de existência de autonomia de um conjunto de atos dirigidos a efetivação do preceito disposto numa sentença condenatória (procedimento de execução), que tivesse por objeto uma obrigação de pagar quantia (certa ou carente de liquidação). E não os atos executórios propriamente ditos, pois estes continuam a existir, todavia não em um processo autônomo, e, sim, numa fase executória, dentro dos mesmos autos processuais. Para resumir bem, o que no parágrafo acima explicitamos, trazemos a baila os ensinamentos do processualista carioca Alexandre Freitas Câmara, em sua obra: A Nova Execução de Sentença, “a execução não deixou de existir, mas Revista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau – Recife – ano 5 – n. 5 – p. 107-119 – 2010 116 Paulo Hemetério Aragão Silva tão-somente deixou de se realizar em processo autônomo em relação ao que gerou a sentença” (CÂMARA, 2007, p. 90). Desta forma, com a devida vênia não concordamos com a posição de Nelson Nery Júnior e Rosa Maria de Andrade Nery, na sua obra Código de Processo Civil Comentado, in verbis: a execução judicial por quantia certa contra devedor solvente não mais existe no sistema processual civil brasileiro, porquanto foi substituída pelo instituto do cumprimento de sentença (NERY JUNIOR; ANDRADE NERY, 2006, p. 640). A técnica processual que mistura a cognição e a efetivação dos direitos (execução) dentro de um mesmo procedimento jurisdicional, separando-se somente por fase, darse o nome de sincretismo processual. Tal técnica, com as atuais reformas operadas no código processo civil, passou a predominar no ordenamento jurídico pátrio. CONCLUSÃO Concluímos, afirmando que a evolução da técnica processual responsável pela efetivação do bem da vida pleiteado foi marcada por avanços e retrocessos. Já vivenciamos a época dos formalismos exacerbados, onde a forma preponderava sobre o conteúdo ou objetivo do ato. Atualmente, estamos na era da instrumentalidade das formas, na qual o que importa é a finalidade do ato, desprezando-se ou reduzindo o valor da forma como foi praticado. Toda essa Revista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau – Recife – ano 5 – n. 5 – p. 107-119 – 2010 Noções históricas do sincretismo processual 117 evolução/retrocesso deve ser vista com bons olhos pelo estudioso do direito, pois foi a partir dela que percebemos nossos erros e passamos a buscar os acertos que carecemos para termos uma prestação jurisdicional efetiva e consentânea com o primado da dignidade da pessoa humana. REFERÊNCIAS ARAÚJO, Alexandre Costa de. Artigo 475-J do CPC. De athos Gusmao a Calmon de Passos; Reflexões Doutrinarias. Disponivel em: www.juspodivm.com.br/artigos/ artigos_1964.html. Acesso em: 10 de abril de 2007. ASSIS, Araken de. Manual da Execução. 11. Ed. São Paulo: RT, 2006/2007. CAMARA, Alexandre Freitas. A nova Execução de Sentença. 4. Ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007. DIDIER JR, Fredie. Curso de Direito Processual Civil: Teoria Geral do Processo e Processo de Conhecimento. Salvador: Juspodivm, 2007. V.1. DIDIER JR, Fredie & BRAGA, Paula Sarno & OLIVEIRA, Rafael. Curso de Direito Processual Civil: Direito probatório, decisão Judicial, cumprimento e liquidação da sentença e coisa julgada. Salvador: Juspodivm, 2007. V.2. LUCON, Paulo Henrique dos Santos. Multa de 10% (dez por cento) na lei n. 11.232/05. Panóptica, Vitória, ano 1, n. 7, mar. – abr., 2007, p. 54-69. Disponível em: <http:www. panoptica.org>. Acesso em 22 de maio de 2008. Revista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau – Recife – ano 5 – n. 5 – p. 107-119 – 2010 118 Paulo Hemetério Aragão Silva MARINONE, Luiz Guilherme & ARENHART, Sergio Cruz. Processo de Conhecimento. 6. Ed. São Paulo: RT, 2007. V.2. MONTENEGRO FILHO, Misael. Curso de Direito Processual civil: Teoria Geral do Processo e Processo de Conhecimento. São Paulo: Atlas, 2005. V. 1. _______. Curso de Direito Processual Civil: Teoria Geral dos Recursos, Recursos em Espécie, Processo de Execução. 2. Ed. São Paulo: Atlas, 2006. V. 2. NERY JR., Nelson & NERY, Rosa Maria de Andrade. Código de Processo Civil Comentado e Legislação Extravagante. 9. Ed. São Paulo: RT, 2006. NOTARIANO JR., Antonio & BRUSCHI, Gilberto Gomes. Os Prazos Processuais e o Cumprimento de Sentença. Texto Publicado no Livro “Execução Civil e Cumprimento de sentença” – Editora Método (WWW. Editorametodo.com.br), coordenado pelo co-autor do texto Gilberto Gomes Bruschi. Novos Temas de Processo Civil: Leis nº 11.277/06, nº 11.276/06, nº 11.280/06, nº 11.187/06, nº 11.232/05. Bruno Cavalcante, Andre Elali, José Ricardo do Nascimento Varejão, Coordenadores – São Paulo: MP Ed, 2006. THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de Direito Processual Civil: Processo de Execução, Cumprimento de Sentença, Processo Cautelar e Tutela de Urgência. 41.Ed. Rio de Janeiro: Forense, 2007. V.2. Revista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau – Recife – ano 5 – n. 5 – p. 107-119 – 2010 Noções históricas do sincretismo processual 119 WAMBIER, Luiz Rodrigues; WAMBIER, Teresa Arruda Alvim; MEDINA, José Miguel Garcia. Sobre a necessidade de intimação pessoal do réu para o cumprimento da sentença, no caso do art. 475-J do CPC (inserido pela Lei 11.232/2005). Disponível em http://www.tex.pro.br/ . Acesso em 30 de maio de 2008. Revista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau – Recife – ano 5 – n. 5 – p. 107-119 – 2010 A importância do código de nuremberg para o biodireito. 121 A IMPORTÂNCIA DO CÓDIGO DE NUREMBERG PARA O BIODIREITO. Renata Oliveira Almeida Menezes Professora de Direito Empresarial da Faculdade Maurício de Nassau, Advogada, Especialista em Direito e Processo do Trabalho pela Faculdade de Ciências Sociais Aplicadas e Doutoranda em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidad del Museo Social Argentino. RESUMO O Tribunal de Nuremberg foi instituído com a finalidade de julgar os grandes crimes contra a humanidade, praticados durante a Segunda Guerra Mundial, pelos nazistas comandados por Hitler na Alemanha. Tal julgamento resultou no Código de Nuremberg, o qual foi o primeiro documento a tratar sobre a aplicação dos princípios éticos no campo das ciências da vida, sendo responsável pela eclosão do ramo jurídico que visa aplicar os direitos humanos, direitos fundamentais e da personalidade face às inovações biotecnológicas: O Biodireito. Palavras-chave: Código de Nuremberg. Nazismo. Biodireito. Revista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau – Recife – ano 5 – n. 5 – p. 121-160 – 2010 122 Renata Oliveira Almeida Menezes ABSTRAC The Nuremberg Court was established in order to judge the great crimes against humanity committed during the Second World War, by the Nazis led by Hitler in Germany. This trial resulted in the Nuremberg Code, which was the first document to talk about the application of ethical principles in the field of life sciences and it is responsible for the outbreak of the branch of law that seeks to implement human rights, fundamental rights and personality in relation to biotechnological innovations: The Biolaw. Key words: Code of Nuremberg. Nazism. Biolaw. SUMÁRIO Introdução. 1. Regime Nazista. 1.1. Aspectos gerais. 1.2. Atos discriminatórios. 2. O Tribunal de Nuremberg. 2.1. Carta de Londres do Tribunal Militar Internacional. 2.2. O Julgamento de Nuremberg. 2.3. O Código de Nuremberg. 3. Biodireito. 3.1. Conceito de Bioética. 3.2. Conceito e aplicabilidade do Biodireito. 4. A influência do Código de Nuremberg no Biodireito. 5. Considerações finais. INTRODUÇÃO Na falta de regulamentação, as condutas humanas encontram uma liberdade desenfreada, que geralmente resultam em atos degradantes no tocante aos direitos humanos. O excesso de poder concedido de forma injusta a uma miRevista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau – Recife – ano 5 – n. 5 – p. 121-160 – 2010 A importância do código de nuremberg para o biodireito. 123 noria, no caso em estudo, aos alemães “arianos”, embasaram o regime nazista, tendo como conseqüência uma enorme taxa de mortandade e a propagação dos mais absurdos ideais discriminatórios. Com o fim do Regime Nazista Alemão e o término da Segunda Guerra, foi instituído o Tribunal de Nuremberg, para apreciar e julgar os crimes cometidos sob o comando de Hitler. Tal julgamento foi codificado, e este documento passou a ser o pioneiro a tratar sobre a aplicação dos valores éticos no campo das pesquisas clínicas. Na presente abordagem, começaremos explorando as características do regime nazista alemão por meio da análise da vida do seu líder, e em seguida trataremos dos atos discriminatórios que motivaram o Julgamento de Nuremberg. Em seguida faremos uma análise sobre a Carta de Londres do Tribunal Militar Nacional, precursora do Tribunal de Nuremberg; após, delinearemos sobre o Julgamento oriundo do mencionado tribunal; e então trataremos propriamente do Código que deu origem aos princípios bioéticos. Dando continuidade ao estudo, abordaremos a questão da ética aplicada às ciências da vida, biologia e medicina, ressaltando sua importância e suas peculiaridades; e em seguida estudaremos sobre o Biodireito, ramo jurídico responsável por dotar de coercitividade os princípios bioéticos constantes em vários documentos regulatórios, principalmente, o inaugural: O Código de Nuremberg. Por fim, analisaremos como e por quais razões o mencionado Código tornou-se o principal documento acerca do Biodireito. Revista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau – Recife – ano 5 – n. 5 – p. 121-160 – 2010 124 Renata Oliveira Almeida Menezes 1. REGIME NAZISTA ALEMÃO 1.1 Adolf Hitler Durante o período de 1933 a 1945 a Alemanha foi regida pela forma de governo Nazismo, tendo como líder Adolf Hitler, o qual em 1924 publicou o livro Mein Kampf (A minha luta), descrevendo seus ideais preconceituosos, relatando em tal obra parte da história alemã, bem como a influência semita nesta. O ditador acreditava que os alemães puros, denominados de raça ariana, eram superiores aos semitas - incluindo neste grupo não só os judeus, que compunham a maioria, mas também todos os que não fossem considerados arianos – e que, portanto, deveriam ser exterminados, para que a ‘raça pura’ fosse preservada. Acerca do mencionado Führer, mister é apontarmos para a ilustre descrição elucidada por Blainey (2008, p. 304): podem existir relações de emprego por prazo indeterminado e por prazo determinado, assim como podem existir relações de trabalho (não subordinado) por prazo indeterminado ou por prazo determinado. As relações de representação comercial são típicas relações de trabalho não subordinado ou autônomas, que podem ser pactuadas por tempo determinado ou indeterminado. Outro exemplo é a empreitada de lavor que normalmente é pactuada por tempo determinado, em virtude da característica de consistir na realização da obra determinada, mas pode, conforme o Revista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau – Recife – ano 5 – n. 5 – p. 121-160 – 2010 A importância do código de nuremberg para o biodireito. 125 caso, não ter uma data certa para o seu término, apenas possuindo uma expectativa de realização aproximada (ARAÚJO, 2005, paginação irregular). Precedia ao nazismo a luta racial e a social, sendo a primeira decorrente da exclusão dos membros das classes inferiores aos direitos políticos, aos operários era negado o direito de sindicalizar e de lutar por melhorias de condições de trabalho e por melhores salários, o que demandou em uma greve geral que teve resultou na permissão ao sufrágio masculino, pondo um fim ao domínio político dos austrosalemães, os quais eram a minoria. Diante do descrito cenário, Hitler que ainda não participava ativamente da política do seu país, começou a se indignar com a possibilidade de ver a “raça superior” alemã ser sucumbida politicamente pelos não-germânicos. Nesse sentido, Shirer (1963, vol. I, p. 47-48) afirma que apesar da sua inércia inicial no tocante à política, Hitler acompanhava com avidez as atividades dos três principais partidos políticos da velha Áustria: os socialdemocratas, os socialistas-cristãos e os nacionalistas-pangermânicos. A partir desse de então brotou nele “uma astúcia política que lhe permitia ver, com surpreendente clareza, os pontos fortes e fracos de movimentos políticos contemporâneos que, ao amadurecer, fariam dele o amo político da Alemanha”. O dia 30 de janeiro de 1933 foi marcado pela designação de Hitler como chanceler da Alemanha, sendo lhe outorgado em 23 de março do mesmo ano, pelo parlamento alemão, plenos poderes, os quais foram utilizados imediatamente para projetar o regime nazista. Revista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau – Recife – ano 5 – n. 5 – p. 121-160 – 2010 126 Renata Oliveira Almeida Menezes E foi esse austríaco, nascido em família sem precedentes políticos, que deu início à Segunda Guerra Mundial. Tal conflito militar teve duração de 1939 a 1945, englobando as maiores nações, reunidas me dois pólos opostos: Aliados e Eixo, figurando nesse último, a Alemanha, junto à Itália e ao Japão. Tal conflito bélico veio somente a findar-se com a “vitória” do grupo Aliados, no entanto, do ponto de vista social e jurídico, inexistiram vencedores, mas sim, países com interesses opostos que em conjunto contribuíram para a encenação verídica das maiores atrocidades capazes de serem realizadas pelos seres humanos face aos seus semelhantes. Ao tratar do marco inicial da Segunda Guerra, Shirer (1964, p. 442) aponta: “Ao raiar do sol, no dia 1º de setembro de 1939, exatamente na data que Hitler fixara em 3 de abril, ao dar sua primeira ordens referentes ao Caso Branco, os soldados alemães transpassaram a fronteira polonesa e convergiram sobre Varsóvia pelo norte, sul e oeste”. 1.2. Atos discriminatórios O preconceito infundado dos nazistas, a gritante falta de humanidade, bem como a falibilidade dos seus argumentos, e ironia dos seus discursos, evidenciam-se no relato de Erich Von Dem Bach-Zelewski ao seu psiquiatra Goldesohn (2005, p. 321), Alto Comandante da SS -Verfügungstruppe1 e da polícia: 1 O SS-Verfügungstruppe (força de suporte no combate, abreviação SS-VT) foi criado a 1934 a partir da fusão de várias entidades paramilitares nazistas. Dois regimentos foram formados - no norte de Alemanha, o SS-Standarte “Germania”, e no sul alemão o SSStandarte “Deutschland”. Revista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau – Recife – ano 5 – n. 5 – p. 121-160 – 2010 A importância do código de nuremberg para o biodireito. 127 Na hora do fuzilamento desses 120, havia um jovem judeu de vinte anos, de aparência nórdica, olhos azuis e cabelos loiros. Himmler2 chamou o rapaz para fora da fossa onde seria fuzilado e perguntou se ele era judeu, se seus quatros avós eram judeus. O rapaz respondeu que, ao que sabia, toda a sua família era judia. Então Himmler disse que não podia ajudar o rapaz, e ele foi executado junto com os outros. Dava para ver como Himmler tentou salvar a vida do rapaz. O resultado dessa perseguição foi mais de 60 milhões de pessoas mortas, e parte da mortandade decorreu das experiências ilegais realizadas em prisioneiros de campos de concentração por médicos alemães durante a Segunda Guerra Mundial. Conforme aponta Ángel Russo (2009, p. 39), “el intento de crear uma ‘raza superior’ no fue um episodio aislado de locura y de poder, sino um plan coherente y sistemático, apoyado en convicciones pseudocientíficas de trágicas consecuencias”. Segundo o United States Holocausto Memorial Museum, tais pesquisas foram divididas em três categorias: a primeira abarcava os procedimentos que objetivavam facilitar a sobrevivência dos militares; a segunda categoria era composta por pesquisas dirigidas ao desenvolvimento e comprovação de produtos farmacêuticos e métodos de tratamento para lesões e enfermidades as quais os militares nazistas e o pessoal da ocupação estavam expostos nos campos; e a terceira categoria pretendia progredir nos prin2 Comandante da SS alemã e um dos mais poderosos homens da Alemanha Nazi. Como marechal-de-campo nas forças armadas do Terceiro Reich entre 1935 e 1945, desempenhou papel relevante na organização do Holocausto. Revista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau – Recife – ano 5 – n. 5 – p. 121-160 – 2010 128 Renata Oliveira Almeida Menezes cípios raciais ideológicos nazistas, a exemplo de pesquisas sobre como as diferentes raças reagiam às diferentes enfermidades contagiosas, e de processos baratos e eficientes de esterilização em massa de semitas. Conforme assevera Costa Júnior (1999, p. 1), os experimentos da medicina pseudocientífica eram conduzidos por médicos alemães, utilizando como objeto centenas de pessoas dentre os prisioneiros dos campos de concentração, sendo em sua maioria Judeus, Poloneses, Russos, Romanos e Egípcios. Rudolf Hess (In GOLDENSOHN, 2005, p. 353), que fora Tenente-General da SS a partir de 1942, descreveu para seu psiquiatra, como eram os campos de extermínio: Nesse ínterim, eu inspecionara o campo de extermínio de Treblinka no governo-geral, localizado à margem do rio Bug. Treblinka era um campo com alguns alojamentos e um desvio ferroviário, no local de um antigo areeiro. Inspecionei as câmaras de extermínio ali. Essas câmeras eram feitas de madeira e cimento; cada uma tinha o tamanho desta cela [cerca de 2,4 por 3,4 metros], mas os tetos eram baixos do que este cômodo. Ao longo da lateral das câmaras de extermínio, motores de tanques ou caminhões velhos foram instalados, e os gases dos motores, o exaustor, direcionados para dentro das celas, era assim que as pessoas eram exterminadas. Como os alemães não tinham a pretensão de exterminar toda a sua população, mas sim de “purificar-la” Revista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau – Recife – ano 5 – n. 5 – p. 121-160 – 2010 A importância do código de nuremberg para o biodireito. 129 conforme os seus parâmetros infundados, foram criados os “haras humanos”, também denominados de Lebensborn – neologismo proveniente da junção das palavras Leben, que significa vida, com Born, fonte – que consistiam em maternidades criadas por Himmler. Conforme salienta Hillel (1975, p. 9), apesar de alguns historiadores defenderem que tais locais eram maternidades destinadas a mulheres solteiras, e outros, afirmarem que não passavam de bordéis, na verdade, tais instituições possuíam o intuito de procriação de uma “super-raça nórdica”, contando com a ajuda de homens e mulheres devidamente selecionados conforme os critérios raciais do III Reich. Nesse diapasão, no primeiro dia do mês de janeiro do ano de 1932 foi publicado o Código de Casamento, instrumento criado para nortear as escolhas dos nazistas que pretendessem casar-se, com base na raça, conforme ressalva feita por Himmler, constante na obra de Hillel (1975, p. 31), destinada aos médicos “conhecedores de raças”, as mulheres deveriam ser classificadas em três categorias: perfeitamente conveniente à seleção; medianamente conveniente; e inconveniente para a seleção. Dentre as circulares emitidas pelo Reichsführer Himmler, destaca-se a datada de 14 de junho de 1941, (In. HILLEL, 1975, p. 175), segundo a qual o nazista afirma considerar justo e conveniente a procura e captura das crianças polonesas de “raça particularmente pura”, em estabelecimentos sob a tutela dos alemães, ademais, salienta que Quanto às crianças que se reputem prestáveis, mesmo em ecasso grau, terá de ser levantada, após um período de seis meRevista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau – Recife – ano 5 – n. 5 – p. 121-160 – 2010 130 Renata Oliveira Almeida Menezes ses, uma árvore genealógica e pesquisada a sua origem. Após um período de doze meses, será necessário prever a colocação dessas crianças, em vista de sua educação, em famílias de raça pura que não tiveram filhos. 2. O Tribunal de Nuremberg 2.1. Carta de Londres do Tribunal Militar Internacional Foi por força de um acordo pactuado em Londres, entre a União Soviética, os Estados Unidos, o Reino Unido e a França, em agosto do ano de 1945, intitulado de Carta de Londres do Tribunal Militar Internacional (ANEXO A), que foi criado o Tribunal de Nuremberg. Tal documento se embasou na Declaração de Moscou, datada de 30 de outubro de 1943, segundo a qual o julgamento de alemães ou de nazistas que cometeram atrocidades e/ou crimes, deveria ocorrer em seu país de origem. No entanto, ressalvou que no caso de grandes criminosos, cujos crimes não têm localização geográfica específica, suas punições adviriam da decisão conjunta dos governos dos Aliados, ressalva esta, que justificou a criação do Tribunal em enfoque. No artigo 6°, da Carta do Tribunal Militar Internacional, estão dispostos os crimes de competência do Tribunal de Nuremberg, quais sejam: Crimes contra a paz; crimes de guerra e crimes contra a humanidade. Esses últimos merecem destaque para a nossa problemática, consistindo em Revista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau – Recife – ano 5 – n. 5 – p. 121-160 – 2010 A importância do código de nuremberg para o biodireito. 131 crimes de homicídio, extermínio, escravidão, deportação e outros atos desumanos cometidos contra qualquer população civil, antes ou durante a guerra, ou perseguições fundadas em motivos políticos, raciais ou religiosos, em execução ou em conexão com qualquer crime da competência do Tribunal, ou não, em violação da legislação nacional do país onde perpetraram. Vale salientar que o artigo 13 da Carta, impõe que as regras de procedimentos a serem estabelecidas pelo Tribunal de Nuremberg, devem encontrar-se em consonância com os dispositivos da mesma. 2.2. O Julgamento de Nuremberg Santiago Nino (1997, p. 7, apud Ángel Russo, 2009, p. 51) ao indagar sobre como devem ser repudiadas as violações massivas aos Direitos Humanos, afirma que o Julgamento de Nuremberg constitui no exemplo mais famoso de processo e castigo. Nesse sentido, inesquecíveis tornaramse as palavras de Robert Houghwout Jackson, Juiz Adjunto da Suprema Corte Americana e Promotor-Chefe pelos Estados Unidos da América no Tribunal Militar Internacional em Nuremberg, citado por Gonçalves: Pela primeira vez, quatro grandes nações entram em acordo, não somente pelo princípio da responsabilidade por crimes de guerra e outros delitos, mas também pelo princípio da responsabilidade individual por crimes cometidos contra a paz... Se pudermos cultivar por todo o mundo a idéia de que fazer Revista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau – Recife – ano 5 – n. 5 – p. 121-160 – 2010 132 Renata Oliveira Almeida Menezes uma guerra de agressão conduz ao banco dos réus mais que às honras, teremos alcançado um grande progresso no que se refere à segurança e à paz. (Gonçalves, 2001, p.74). Nesse diapasão, Ángel Russo (2009, p. 53) dispõe que: “El juicio de Nuremberg implico La conmoción del pensamiento jurídico, y , aún hoy, um importante sector de La doctrina tradicional considera que no se trató de um verdadero juicio, em el sentido comumente acepctado”. Os aspectos que fazem com que o citado julgamento se distinga dos demais são: a noção de soberania, o princípio da reserva legal, a idéia de que somente o Estado é sujeito de Direito Internacional, a exigência de responsabilidade subjetiva em matéria penal, a garantia dos juízes naturais, e a “obediência devida” como causa de justificação. Tal inovação configura a mais importante conseqüência do impacto da teoria dos direitos humanos no direito objetivo (ÁNGEL RUSSO, 2009, p. 54). 2.3. O Código de Nuremberg Como decorrência das práticas abusivas supra-descritas, e após o julgamento dos principais criminosos da Segunda Guerra Mundial - incluindo médicos, juristas, pessoas importantes do governo alemão - acontecido perante o Tribunal Militar Americano, denominado de Julgamento de Nuremberg, em 1946 foi criado o Código de Nuremberg (ANEXO B), considerado a primeira manifestação sistemática e normativa sobre a aplicabilidade da ética nas pesquisas científicas. Conforme ressalta Loureiro (2009, p. 16), o Código de Nuremberg “foi o primeiro indicador de cunho univerRevista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau – Recife – ano 5 – n. 5 – p. 121-160 – 2010 A importância do código de nuremberg para o biodireito. 133 sal da necessidade de aliar a pesquisa científica ao respeito pelo ser humano. Por isso, é considerado como documento mater da bioética”. Durante o Julgamento, Hanz Fritzche, Alto Funcionário do Ministério da Propaganda do Governo Nazista, afirmou que Hitler tinha algumas idéias sobre as pessoas, ou pelo menos de como utilizá-las, com o seguinte pronunciamento: “Sim, mas Hitler tinha um conhecimento ilimitadamente ruim dos seres humanos. Ou se trata disso, ou ele é um criminoso ainda pior do que acho atualmente, eu o considero um dos maiores criminosos da história do mundo” (In. GOLDENSOHN, 2005, p. 113). Composto de dez artigos, o Código de Nuremberg dispunha entre outras coisas, ser indispensável o consentimento livre e esclarecido do voluntário; expressava a necessidade de o experimento ser vantajoso para a sociedade, frisando que o mesmo só deveria ser feito se não o pudesse ser por outros métodos; concedia ao paciente a liberdade de desistência no meio do procedimento; salientava a necessidade de preparação do pesquisador para suspender os procedimentos experimentais em qualquer estágio, caso o risco de dano,invalidez ou morte para os participantes fique mais evidente; e ainda, proibia o prosseguimento do experimento quando houver razões para acreditar na possibilidade de resultar em morte ou invalidez permanente, exceto,talvez, quando o próprio médico pesquisador se submeter ao experimento. De acordo com o que preceituam Accioly e Silva (1996, p.529), os princípios decorrentes do Código em tela, serviram de inspiração para o embasamento do Estatuto da Corte Militar Internacional, a qual tinha a incumbência de julgar os grandes criminosos de guerra no Extremo Oriente. Revista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau – Recife – ano 5 – n. 5 – p. 121-160 – 2010 134 Renata Oliveira Almeida Menezes 3. BIODIREITO 3.1. Conceito de Bioética Tendo sua origem nos vocábulos gregos bios (vida) e ethos (ética), a bioética pode ser conceituada como a aplicação da ética na biologia e na medicina. A eclosão de tal conceito deveu-se ao fato de as grandes transformações biotecnológicas terem causado enorme influência nos âmbitos cientifico, econômico e principalmente, jurídico, atuando na vida social, alterando axiomas, e provocando a humanidade para a valoração dos avanços científicos, analisando se os mesmos resultam em progresso ou retrocesso aos direitos humanos arduamente conquistados. A obra publicada pelo oncologista americano Potter (1971), denominada de Bioethics: A bridge to the future, foi pioneira a tratar do assunto, tomando tal ciência como sendo a que tem como foco a sobrevivência humana, dispondo que: Se existem duas culturas que parecem incapazes de dialogar — as ciências e humanidades —, e se isto se apresenta como uma razão pela qual o futuro se apresenta duvidoso, então, possivelmente, poderíamos construir uma ponte para o futuro construindo a bioética como uma ponte entre as duas culturas (POTTER apud PESSINI, 2005, p. 308). 3.2 Conceito e aplicabilidade do Biodireito Kant distinguiu a moral, da ética e do direito, tomando estes como o particular e o diferencial, e considerando a Revista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau – Recife – ano 5 – n. 5 – p. 121-160 – 2010 A importância do código de nuremberg para o biodireito. 135 primeira como o geral e o comum, diferenciando, ainda, ética e direito, ao dividir o sistema o sistema da doutrina universal dos deveres em: sistema da doutrina do direito (ius), adequada para as leis externas, e sistema da virtude (ethica) inadequada para normas exteriores ao indivíduo. Para esse filósofo, a vontade jurídica é heterônoma, já que não é encontrada dentro do homem a lei do dever que impulsiona o sujeito, ao passo que a vontade moral é autônoma, ou seja, a sua lei é encontrada no próprio sujeito. (LEITE, 2007, p. 85-86). O papel das Ciências Jurídicas é expresso com sapiência e concisão por Reale (2002b, p. 2), ao afirmar que “o Direito corresponde à exigência essencial e indeclinável de uma convivência ordenada, pois nenhuma sociedade poderia subsistir sem um mínimo de ordem, de direção e solidariedade”. A importância da constante atualização do Direito, frente às mudanças surgidas no mundo com o decorrer dos tempos, em prol do não comprometimento da sua eficácia, foi bem expressada pelo francês Ripert (1947), na primeira metade do século XX, “quando o Direito ignora a realidade, a realidade se vinga, ignorando o Direito”, permanecendo, no entanto, atual. Comprovando essa constante e indispensável atualização da Ciência Jurídica, proveniente da quebra de barreiras do ‘mundo do ser’, e do ‘mundo do dever ser’, e da convergência da ética com o direito, com ares de integração científica, surgiu o Biodireito. Sobre a importância do Biodireito, Martinéz (2006, p. 173) afirma que a aparição dos novos fenômenos, ou da mudança na nossa realidade, a exemplo da que presenciamos no âmbito das Ciências da Vida, torna obrigatório ao ordeRevista Revista do Curso da Faculdade de Direito deda Direito Faculdade Maurício Maurício de Nassau de Nassau – – Recife – ano 53 – n. 53 – p. 121-160 135-149 – 2010 2008 136 Renata Oliveira Almeida Menezes namento jurídico a normatização de tais situações, e exige do intérprete uma busca de valores éticos que embasem as alterações legislativas em questão, utilizando, portanto, a valoração ética como base para a produção normativa. Nesse diapasão, Campos Júnior (2006, p. 451) aponta que buscamos nós buscamos de forma cada vez mais convergente, valores referenciais, morais, legais, éticos, que permitam conciliar esta vocação incorrigível do Homo Sapiens para a tecnologia, buscando então o equilíbrio desejável entre a ciência, o direito, a ética, visando defender a sociedade humana dos riscos inerentes à toda a tecnologia, para que ela se beneficie unicamente dos seus ganhos. Tarefa difícil e que sempre ocorreu, na história da Humanidade. Conforme acentua Lora Alarcón (2004, p. 158), não há nas regras bioéticas o elemento de coerção que force aos seus destinatários o seu cumprimento, porém nada impede a sua exigibilidade, mesmo que mais frágil. Nesse sentido, as normas que compõe o Biodireito têm o intuito de buscar a sua efetividade plena, regulando a coexistência humana. A nova disciplina revitalizou a intenção de resguardo da vida humana, pois inadmissível seria que o Direito não enxergasse as ameaças ao bem jurídico supremo, decorrentes da ciência e das ações provenientes do manejo das tecnologias recém-surgidas, aplicadas principalmente no âmbito da medicina e da genética - ciências vinculadas diretamente ao homem. Importante faz-se salientarmos que tal atualização jurídica demanda uma reestruturação das normas jurídicas que se adequem aos princípios bioéticos. Revista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau – Recife – ano 5 – n. 5 – p. 121-160 – 2010 A importância do código de nuremberg para o biodireito. 137 Ora, se novos princípios foram formados, e se tais são a base de todo ordenamento, uma nova normatização é uma conseqüência previsível. Apesar de tanto o direito, como a ciência biológica, serem dotados de autonomia, essencial é a percepção de que coexistem em um mesmo mundo, não devendo pois, se falar em subordinação de uma área à outra, mas de interação pacífica entre elas, fazendo-se a convergência de suas forças e conhecimentos, em prol de uma existência digna e plena em saúde para todos nós. Posicionando-se de maneira imparcial, Byk apud Carlucci (2000, p. 145) pontua que o direito não pretende impedir que as ciências [biomédicas] desenvolvam-se, e por outro lado, afirma crer que a ciência não transformará o mundo em um laboratório. Para ele ideal seria o uso do direito, como ferramenta para aproximar a sociedade e a ciência, visando à conscientização de todos os afetados por esta acerca da necessidade de haver uma interação permanente entre os mesmos e as atividades cientificas. Louvável seria usar o direito a favor do povo, e contra a obscuridade das práticas científicas, já que só com clareza possível é a real fiscalização das práticas biotecnologicas, entretanto, data vênia, quanto à improbabilidade de o mundo ser transformado pela ciência em um laboratório, a nosso ver, depende do quão concreto e eficaz se tornará o ramo jurídico emergente em questão. 4. A influência do Código de Nuremberg no Biodireito O Código de Nuremberg teve destaque não só no âmbito político, transpassou o jurídico, e influenciou na aborRevista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau – Recife – ano 5 – n. 5 – p. 121-160 – 2010 138 Renata Oliveira Almeida Menezes dagem e na prática das ciências da vida, inclusive a medicina, na medida em que foi o primeiro instrumento normativo a tratar sobre a aplicabilidade da ética e dos direitos humanos quando da hipótese da prática de experimentos que envolvam seres humanos. Confirmando o exposto, Cobo (1999, p. 156) afirma que foi a partir do momento em que houve o conhecimento acerca dos experimentos nazistas durante a segunda guerra mundial, que foi provocado um intenso trabalho na busca de referências acerca de comportamento antiético, sendo o Código de Nuremberg o precursor dos demais princípios norteadores de condutas profissionais. Loureiro (2009, p. 16-17), frisa que tal documento enfatizou a preocupação acerca da aplicação da bioética à ciência da vida, e o descreve como sendo o primeiro indicador, de abrangência universal, que acorda para a necessidade de aliar a pesquisa científica ao respeito pelo ser humano, e completa, afirmando ser por tais razões que é considerado o documento mater da bioética. Nesse sentido, Catão (1999, p. 39) afirma que: Lamentavelmente, o progresso biológico também trouxe consigo as recordações dos experimentos nazistas, em que existiu a utilização de seres humanos na experimentação médica. Então, após a Segunda Guerra Mundial, tomou-se o conhecimento de práticas experimentais em seres humanos, conduzidas, sob o nazismo, por médicos e cientistas, que ultrapassavam qualquer expectativa imaginável de degradação. A primeira manifestação de caráter sistemático sobre o asRevista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau – Recife – ano 5 – n. 5 – p. 121-160 – 2010 A importância do código de nuremberg para o biodireito. 139 sunto foi o Código de Nuremberg, que estabeleceu regras a serem observadas quanto à experimentação com seres humanos. No entanto, o Código não deve ser lembrado apenas por ser o precursor da Bioética e consequentemente do Biodireito, mister é destacarmos o seu principal fator de influência, qual seja, o estabelecimento dos princípios bioéticos, que posteriormente vieram a ser completados por outros instrumentos regulatórios, a exemplo do Relatótio de Belmont. As normas bioéticas, como todas outras, são embasadas em princípios, que de tão essenciais estão contidos inclusive na gênese dos ordenamentos éticos e profissionais, destinados a pesquisadores e cientistas. Sob tal prisma, o Código em enfoque defendeu a prevalência dos princípios Autonomia ou Respeito e do princípio do consentimento informado e voluntário do sujeito de pesquisa, contidos no primeiro artigo do documento. O princípio do respeito às pessoas, também denominado de autonomia, embasa o respeito ao individualismo que é inerente a todos os seres humanos, por prezar pela liberdade do indivíduo para deliberar sobre suas escolhas pessoais, principalmente no que concernir à sua vida e ao seu corpo. Barreto (1999, não paginado) salienta que o principio da autonomia representa a afirmação moral de que a liberdade de cada ser humano deve ser resguardada, por estabelecer a ligação com o valor mais abrangente da dignidade da pessoa humana. Seguindo o mesmo raciocínio, Neves (2006, p. 35) acrescenta que tal princípio implica em que seja respeitado o pré-requisito fundamental, qual seja, Revista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau – Recife – ano 5 – n. 5 – p. 121-160 – 2010 140 Renata Oliveira Almeida Menezes a vontade, para que alguém participe na pesquisa científica, frisando também que a concessão do consentimento só é válido após o individuo ser detentor de toda e qualquer informação e compreensão acerca da pesquisa a ser realizada. Ademais, foi a partir dos acontecimentos dos tribunais militares de Nuremberg que se passou a diferenciar a experiência em humanos, da terapia, considerando que a primeira pode gerar muitas controvérsias morais e inúmeros riscos, embora contribua para a identificação e cura das doenças (MARINO Jr., 2009, p. 196). 5. CONSIDERAÇÕES FINAIS Quando a tragédia reside no passado, nada pode ser feito para modificá-la, no entanto, faz parte da evolução da humanidade utilizar o irremediável como experiência para reunir todos os esforços possíveis no sentido de evitar a sua repetição. Diante disto, mister é não nos olvidarmos das degradações ocorridas durante o período nazista, pois ao cegarmos para os atos desumanos, isentamos os culpados e somos injustos com aqueles que possuem uma conduta correta. É justamente nesse sentido que o Tribunal de Nuremberg ao criar um juízo de exceção, totalmente inusitado, ultrapassou os requisitos formais da justiça, em prol da defesa dos direitos da humanidade, e suas conseqüências benéficas ecoaram inclusive no âmbito das ciências da vida, servindo de base para o desenvolvimento de um ramo jurídico ainda em expansão, mas que a cada dia torna-se mais importante para que os direitos da personalidade, direitos fundamentais Revista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau – Recife – ano 5 – n. 5 – p. 121-160 – 2010 A importância do código de nuremberg para o biodireito. 141 e humanos não sejam transgredidos face ao avanço científico, qual seja, o Biodireito. Portanto, diante da presente abordagem pudemos reavivar os principais atos discriminatórios ocorridos durante o período nazista, verificando quais os fatores que motivaram a eclosão de tal tipo de governo tão desumano, e pudemos analisar como tais repercutiram para o surgimento da bioética e sua normatização. REFERÊNCIAS ACCIOLY, Hildebrando; SILVA, Geraldo Eulálio do Nascimento e. Manual de Direito Internacional Público. 12ª ed. São Paulo: Saraiva, 1996. ÁNGEL RUSSO, Eduaro. Derechos Humanos y Garantias: El derecho al mañana. Eudeba: Buenos Aires, 2009. BARRETO, Vicente de Paulo. Bioética, Biodireito e Direitos Humanos. 1999. Direitos e Desejos Humanos no Ciberespaço. [S. l.]. Disponível em: <http://dhnet.org.br/direitos/direitosglobais/paradigmas_textos/v_barreto.html>. Acesso em: 03 jul. 2010. BLAINEY, Geoffrey. Uma Breve História do Mundo. 1ª Edição. São Paulo: Fundamento Educacional, 2008. CAMPOS JÚNIOR, Dioclécio. 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O consentimento voluntário do ser humano é absolutamente essencial. Isso significa que as pessoas que serão submetidas ao experimento devem ser legalmente capazes de dar consentimento; essas pessoas devem exercer o livre direito de escolha sem qualquer intervenção de elementos de força, fraude, mentira, coação, astúcia ou outra forma de restrição posterior; devem ter conhecimento suficiente do assunto em estudo para tomarem uma decisão. 2. Esse último aspecto exige que sejam explicados às pessoas a natureza, a duração e o propósito do experimento; os métodos segundo os quais será conduzido; as inconveniências e os riscos esperados; os efeitos sobre a saúde ou sobre a pessoa do participante, que eventualmente possam ocorrer, devido à sua participação no experimento. O dever e a responsabilidade de garantir a qualidade do consentimento repousam sobre o pesquisador que inicia ou dirige um experimento ou se compromete nele. São deveres e responsabilidades pessoais que não podem ser delegados a outrem impunemente. 3. O experimento deve ser tal que produza resultados vantajosos para a sociedade, que não possam ser buscados por outros métodos de estudo, mas não podem ser feitos de maneira casuística ou desnecessariamente. 4. O experimento deve ser baseado em resultados de experimentação em animais e no conhecimento da evolução da doença ou outros problemas em estudo; dessa maneira, os resultados já conhecidos justificam a condição do experimento. Revista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau – Recife – ano 5 – n. 5 – p. 121-160 – 2010 A importância do código de nuremberg para o biodireito. 145 5. O experimento deve ser conduzido de maneira a evitar todo sofrimento e danos desnecessários, quer físicos, quer materiais. 6. Não deve ser conduzido qualquer experimento quando existirem razões para acreditar que pode ocorrer morte ou invalidez permanente; exceto, talvez, quando o próprio médico pesquisador se submeter ao experimento. 7. O grau de risco aceitável deve ser limitado pela importância do problema que o pesquisador se propõe a resolver. 8. Devem ser tomados cuidados especiais para proteger o participante do experimento de qualquer possibilidade de dano, invalidez ou morte, mesmo que remota. 9. O experimento deve ser conduzido apenas por pessoas cientificamente qualificadas. 10.O participante do experimento deve ter a liberdade de se retirar no decorrer do experimento. 11.O pesquisador deve estar preparado para suspender os procedimentos experimentais em qualquer estágio, se ele tiver motivos razoáveis para acreditar que a continuação do experimento provavelmente causará dano, invalidez ou morte para os participantes. ANEXO B: CARTA DE LONDRES E ESTATUTO DO TRIBUNAL MILITAR INTERNACIONAL London Agreement of August 8th 1945 AGREEMENT by the Government of the UNITED STATES OF AMERICA, the Provisional Government of Revista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau – Recife – ano 5 – n. 5 – p. 121-160 – 2010 146 Renata Oliveira Almeida Menezes the FRENCH REPUBLIC, the Government of the UNITED KINGDOM OF GREAT BRITAIN AND NORTHERN IRELAND and the Government of the UNION OF SOVIET SOCIALIST REPUBLICS for the Prosecution and Punishment of the MAJOR WAR CRIMINALS of the EUROPEAN AXIS WHEREAS the United Nations have from time to time made declarations of their intention that War Criminals shall be brought to justice; AND WHEREAS the Moscow Declaration of the 30th October 1943 on German atrocities in Occupied Europe stated that those German Officers and men and members of the Nazi Party who have been responsible for or have taken a consenting part in atrocities and crimes will be sent back to the countries in which their abominable deeds were done in order that they may be judged and punished according to the laws of these liberated countries and of the free Governments that will be created therein; AND WHEREAS this Declaration was stated to be without prejudice to the case of major criminals whose offenses have no particular geographical location and who will be punished by the joint decision of the Governments of the Allies; NOW THEREFORE the Government of the United States of America, the Provisional Government of the French Republic, the Government of the United Kingdom of Great Britain and Northern Ireland and the Government of the Union of Soviet Socialist Republics (hereinafter called “the Signatories”) acting in the interests of all the United Nations and by their representatives duly authorized thereto have concluded this Agreement. Revista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau – Recife – ano 5 – n. 5 – p. 121-160 – 2010 A importância do código de nuremberg para o biodireito. 147 Article 1. There shall be established after consultation with the Control Council for Germany an International Military Tribunal for the trial of war criminals whose offenses have no particular geographical location whether they be accused individually or in their capacity as members of the organizations or groups or in both capacities. Article 2. The constitution, jurisdiction and functions of the International Military Tribunal shall be those set in the Charter annexed to this Agreement, which Charter shall form an integral part of this Agreement. Article 3. Each of the Signatories shall take the necessary steps to make available for the investigation of the charges and trial the major war criminals detained by them who are to be tried by the International Military Tribunal. The Signatories shall also use their best endeavors to make available for investigation of the charges against and the trial before the International Military Tribunal such of the major war criminals as are not in the territories of any of the Signatories. Article 4. Nothing in this Agreement shall prejudice the provisions established by the Moscow Declaration concerning the return of war criminals to the countries where they committed their crimes. Article 5. Any Government of the United Nations may adhere Revista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau – Recife – ano 5 – n. 5 – p. 121-160 – 2010 148 Renata Oliveira Almeida Menezes to this Agreement by notice given through the diplomatic channel to the Government of the United Kingdom, who shall inform the other signatory and adhering Governments of each such adherence. Article 6. Nothing in this Agreement shall prejudice the jurisdiction or the powers of any national or occupation court established or to be established in any allied territory or in Germany for the trial of war criminals. Article 7. This Agreement shall come into force on the day of signature and shall remain in force for the period of one year and shall continue thereafter, subject to the right of any Signatory to give, through the diplomatic channel, one month’s notice of intention to terminate it. Such termination shall not prejudice any proceedings already taken or any findings already made in pursuance of this Agreement. IN WITNESS WHEREOF the Undersigned have signed the present Agreement. DONE in quadruplicate in London this 8th day of August 1945 each in English, French and Russian, and each text to have equal authenticity. For the Government of the United States of America Robert H. Jackson For the Provisional Government of the French Republic Robert Falco For the Government of the United Kingdom of Great Britain and Northern Ireland Revista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau – Recife – ano 5 – n. 5 – p. 121-160 – 2010 A importância do código de nuremberg para o biodireito. 149 Jowitt C. For the Government of the Union of Soviet Socialist Republics I. Nikitchenko A. Trainin Charter of the International Military Tribunal I. CONSTITUTION OF THE INTERNATIONAL MILITARY TRIBUNAL Article 1. In pursuance of the Agreement signed on the 8th day of August 1945 by the Government of the United States of America, the Provisional Government of the French Republic, the Government of the United Kingdom of Great Britain and Northern Ireland and the Government of the Union of Soviet Socialist Republics, there shall be established an International Military Tribunal (hereinafter called “the Tribunal’’) for the just and prompt trial and punishment of the major war criminals of the European Axis. Article 2. The Tribunal shall consist of four members, each with an alternate. One member and one alternate shall be appointed by each of the Signatories. The alternates shall, so far as they are able, be present at all sessions of the Tribunal. In case of illness of any member of the Tribunal or his incapacity for some other reason to fulfill his functions, his alternate shall take his place. Revista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau – Recife – ano 5 – n. 5 – p. 121-160 – 2010 150 Renata Oliveira Almeida Menezes Article 3. Neither the Tribunal, its members nor their alternates can be challenged by the prosecution, or by the Defendants or their Counsel. Each Signatory may replace its members of the Tribunal or his alternate for reasons of health or for other good reasons, except that no replacement may take place during a Trial, other than by an alternate. Article 4 (a) The presence of all four members of the Tribunal or the alternate for any absent member shall be necessary to constitute the quorum. (b) The members of the Tribunal shall, before any trial begins, agree among themselves upon the selection from their number of a President, and the President shall hold office during the trial, or as may otherwise be agreed by a vote of not less than three members. The principle of rotation of presidency for successive trials is agreed. If, however, a session of the Tribunal takes place on the territory of one of the four Signatories, the representative of that Signatory on the Tribunal shall preside. (c) Save as aforesaid the Tribunal shall take decisions by a majority vote and in case the votes are evenly divided, the vote of the President shall be decisive: provided always that convictions and sentences shall only be imposed by affirmative votes of at least three members of the Tribunal. Article 5. In case of need and depending on the number of the matters to be tried, other Tribunals may be set up; and the establishment, functions, and procedure of each Tribunal shall be identical, and shall be governed by this Charter. Revista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau – Recife – ano 5 – n. 5 – p. 121-160 – 2010 A importância do código de nuremberg para o biodireito. 151 II. JURISDICTION AND GENERAL PRINCIPLES Article 6. The Tribunal established by the Agreement referred to m Article 1 hereof for the trial and punishment of the major war criminals of the European Axis countries shall have the power to try and punish persons who, acting in the interests of the European Axis countries, whether as individuals or as members of organizations, committed any of the following crimes. The following acts, or any of them, are crimes coming within the jurisdiction of the Tribunal for which there shall be individual responsibility: (a) CRIMES AGAINST PEACE: namely, planning, preparation, initiation or waging of a war of aggression, or a war in violation of international treaties, agreements or assurances, or participation in a common plan or conspiracy for the accomplishment of any of the foregoing; (b) WAR CRIMES: namely, violations of the laws or customs of war. Such violations shall include, but not be limited to, murder, ill-treatment or deportation to slave labor or for any other purpose of civilian population of or in occupied territory, murder or ill-treatment of prisoners of war or persons on the seas, killing of hostages, plunder of public or private property, wanton destruction of cities, towns or villages, or devastation not justified by military necessity; (c) CRIMES AGAINST HUMANITY: namely, murder, extermination, enslavement, deportation, and other inhumane acts committed against any civilian population, before or during the war; or persecutions on political, racial or religious grounds in execution of or in connection with Revista Revista do Curso da Faculdade de Direito deda Direito Faculdade Maurício Maurício de Nassau de Nassau – – Recife – ano 53 – n. 53 – p. 121-160 151-189 – 2010 2008 152 Renata Oliveira Almeida Menezes any crime within the jurisdiction of the Tribunal, whether or not in violation of the domestic law of the country where perpetrated. Leaders, organizers, instigators and accomplices participating in the formulation or execution of a common plan or conspiracy to commit any of the foregoing crimes are responsible for all acts performed by any persons in execution of such plan. Article 7. The official position of defendants, whether as Heads of State or responsible officials in Government Departments, shall not be considered as freeing them from responsibility or mitigating punishment. Article 8. The fact that the Defendant acted pursuant to order of his Government or of a superior shall not free him from responsibility, but may be considered in mitigation of punishment if the Tribunal determines that justice so requires. Article 9. At the trial of any individual member of any group or organization the Tribunal may declare (in connection with any act of which the individual may be convicted) that the group or organization of which the individual was a member was a criminal organization. After the receipt of the Indictment the Tribunal shall give such notice as it thinks fit that the prosecution intends to ask the Tribunal to make such declaration and any member of the organization will be entitled to apply to the Tribu- Revista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau – Recife – ano 5 – n. 5 – p. 121-160 – 2010 A importância do código de nuremberg para o biodireito. 153 nal for leave to be heard by the Tribunal upon the question of the criminal character of the organization. The Tribunal shall have power to allow or reject the application. If the application is allowed, the Tribunal may direct in what manner the applicants shall be represented and heard. Article 10. In cases where a group or organization is declared criminal by the Tribunal, the competent national authority of any Signatory shall have the right to bring individual to trial for membership therein before national, military or occupation courts. In any such case the criminal nature of the group or organization is considered proved and shall not be questioned. Article 11. Any person convicted by the Tribunal may be charged before a national, military or occupation court, referred to in Article 10 of this Charter, with a crime other than of membership in a criminal group or organization and such court may, after convicting him, impose upon him punishment independent of and additional to the punishment imposed by the Tribunal for participation in the criminal activities of such group or organization. Article 12. The Tribunal shall have the right to take proceedings against a person charged with crimes set out in Article 6 of this Charter in his absence, if he has not been found or if the Tribunal, for any reason, finds it necessary, in the interests of justice, to conduct the hearing in his absence. Revista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau – Recife – ano 5 – n. 5 – p. 121-160 – 2010 154 Renata Oliveira Almeida Menezes Article 13. The Tribunal shall draw up rules for its procedure. These rules shall not be inconsistent with the provisions of this Charter. III. COMMITTEE FOR THE INVESTIGATION AND PROSECUTION OF MAJOR WAR CRIMINALS Article 14. Each Signatory shall appoint a Chief Prosecutor for the investigation of the charges against and the prosecution of major war criminals. The Chief Prosecutors shall act as a committee for the following purposes: (a) to agree upon a plan of the individual work of each of the Chief Prosecutors and his staff, (b) to settle the final designation of major war criminals to be tried by the Tribunal, (c) to approve the Indictment and the documents to be submitted therewith, (d) to lodge the Indictment and the accompany documents with the Tribunal, (e) to draw up and recommend to the Tribunal for its approval draft rules of procedure, contemplated by Article 13 of this Charter. The Tribunal shall have the power to accept, with or without amendments, or to reject, the rules so recommended. The Committee shall act in all the above matters by a majority vote and shall appoint a Chairman as may be convenient and in accordance with the principle of rotation: provided that if there is an equal division of vote concerning the designation of a Defendant to be tried by the Tribunal, Revista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau – Recife – ano 5 – n. 5 – p. 121-160 – 2010 A importância do código de nuremberg para o biodireito. 155 or the crimes with which he shall be charged, that proposal will be adopted which was made by the party which proposed that the particular Defendant be tried, or the particular charges be preferred against him. Article 15. The Chief Prosecutors shall individually, and acting in collaboration with one another, also undertake the following duties: (a) investigation, collection and production before or at the Trial of all necessary evidence, (b) the preparation of the Indictment for approval by the Committee in accordance with paragraph (c) of Article 14 hereof, (c) the preliminary examination of all necessary witnesses and of all Defendants, (d) to act as prosecutor at the Trial, (e) to appoint representatives to carry out such duties as may be assigned them, (f) to undertake such other matters as may appear necessary to them for the purposes of the preparation for and conduct of the Trial. It is understood that no witness or Defendant detained by the Signatory shall be taken out of the possession of that Signatory without its assent. IV. FAIR TRIAL FOR DEFENDANTS Article 16. In order to ensure fair trial for the Defendants, the following procedure shall be followed: (a) The Indictment shall include full particulars specifying in detail the charges against the Defendants. A copy Revista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau – Recife – ano 5 – n. 5 – p. 121-160 – 2010 156 Renata Oliveira Almeida Menezes of the Indictment and of all the documents lodged with the Indictment, translated into a language which he understands, shall be furnished to the Defendant at reasonable time before the Trial. (b) During any preliminary examination or trial of a Defendant he will have the right to give any explanation relevant to the charges made against him. (c) A preliminary examination of a Defendant and his Trial shall be conducted in, or translated into, a language which the Defendant understands. (d) A Defendant shall have the right to conduct his own defense before the Tribunal or to have the assistance of Counsel. (e) A Defendant shall have the right through himself or through his Counsel to present evidence at the Trial in support of his defense, and to cross-examine any witness called by the Prosecution. V. POWERS OF THE TRIBUNAL AND CONDUCT OF THE TRIAL Article 17. The Tribunal shall have the power (a) to summon witnesses to the Trial and to require their attendance and testimony and to put questions to them (b) to interrogate any Defendant, (c) to require the production of documents and other evidentiary material, (d) to administer oaths to witnesses, (e) to appoint officers for the carrying out of any task designated by the Tribunal including the power to have evidence taken on commission. Revista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau – Recife – ano 5 – n. 5 – p. 121-160 – 2010 A importância do código de nuremberg para o biodireito. 157 Article 18. The Tribunal shall (a) confine the Trial strictly to an expeditious hearing of the cases raised by the charges, (b) take strict measures to prevent any action which will cause reasonable delay, and rule out irrelevant issues and statements of any kind whatsoever, (c) deal summarily with any contumacy, imposing appropriate punishment, including exclusion of any Defendant or his Counsel from some or all further proceedings, but without prejudice to the determination of the charges. Article 19. The Tribunal shall not be bound by technical rules of evidence. It shall adopt and apply to the greatest possible extent expeditious and nontechnical procedure, and shall admit any evidence which it deems to be of probative value. Article 20. The Tribunal may require to be informed of the nature of any evidence before it is entered so that it may rule upon the relevance thereof. Article 21. The Tribunal shall not require proof of facts of common knowledge but shall take judicial notice thereof. It shall also take judicial notice of official governmental documents and reports of the United Nations, including the acts and documents of the committees set up in the various allied countries for the investigation of war crimes, and of records and findings of military or other Tribunals of any of the United Nations. Revista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau – Recife – ano 5 – n. 5 – p. 121-160 – 2010 158 Renata Oliveira Almeida Menezes Article 22. The permanent seat of the Tribunal shall be in Berlin. The first meetings of the members of the Tribunal and of the Chief Prosecutors shall be held at Berlin in a place to be designated by the Control Council for Germany. The first trial shall be held at Nuremberg, and any subsequent trials shall be held at such places as the Tribunal may decide. Article 23. One or more of the Chief Prosecutors may take part in the prosecution at each Trial. The function of any Chief Prosecutor may be discharged by him personally, or by any person or persons authorized by him. The function of Counsel for a Defendant may be discharged at the Defendant’s request by any Counsel professionally qualified to conduct cases before the Courts of his own country, or by any other person who may be specially authorized thereto by the Tribunal. Article 24. The proceedings at the Trial shall take the following course: (a) The Indictment shall be read in court. (b) The Tribunal shall ask each Defendant whether he pleads “guilty” or “not guilty.’’ (c) The prosecution shall make an opening statement. (d) The Tribunal shall ask the prosecution and the defense what evidence (if any) they wish to submit to the Tribunal, and the Tribunal shall rule upon the admissibility of any such evidence. (e) The witnesses for the Prosecution shall be examined and after that the witnesses for the Defense. Thereafter Revista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau – Recife – ano 5 – n. 5 – p. 121-160 – 2010 A importância do código de nuremberg para o biodireito. 159 such rebutting evidence as may be held by the Tribunal to be admissible shall be called by either the Prosecution or the Defense. (f) The Tribunal may put any question to any witness and to any defendant, at any time. (g) The Prosecution and the Defense shall interrogate and may crossexamine any witnesses and any Defendant who gives testimony. (h) The Defense shall address the court. (i) The Prosecution shall address the court. (j) Each Defendant may make a statement to the Tribunal. (k) The Tribunal shall deliver judgment and pronounce sentence. Article 25. All official documents shall be produced, and all court proceedings conducted, in English, French and Russian, and in the language of the Defendant. So much of the record and of the proceedings may also be translated into the language of any country in which the Tribunal is sitting, as the Tribunal is sitting, as the Tribunal considers desirable in the interests of the justice and public opinion. VI. JUDGMENT AND SENTENCE Article 26. The judgment of the Tribunal as to the guilt or the innocence of any Defendant shall give the reasons on which it is based, and shall be final and not subject to review. Article 27. The Tribunal shall have the right to impose upon a Revista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau – Recife – ano 5 – n. 5 – p. 121-160 – 2010 160 Renata Oliveira Almeida Menezes Defendant, on conviction, death or such other punishment as shall be determined by it to be just. Article 28. In addition to any punishment imposed by it, the Tribunal shall have the right to deprive the convicted person of any stolen property and order its delivery to the Control Council for Germany. Article 29. In case of guilt, sentences shall be carried out in accordance with the orders of the Control Council for Germany, which may at any time reduce or otherwise alter the sentences, but may not increase the severity thereof. If the Control Council for Germany, after any Defendant has been convicted and sentenced, discovers fresh evidence which, in its opinion, would found a fresh charge against him, the Council shall report accordingly to the Committee established under Article 14 hereof, for such action as they may consider proper, having regard to the interests of justice. VII. EXPENSES Article 30. The expenses of the Tribunal and of the Trials, shall be charged by the Signatories against the funds allotted for maintenance of the Control Council of Germany. Revista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau – Recife – ano 5 – n. 5 – p. 121-160 – 2010 Neoconstitucionalismo e Juspositivismo: superação ou complementaridade? 161 NEOCONSTITUCIONALISMO E JUSPOSITIVISMO: SUPERAÇÃO OU COMPLEMENTARIDADE? Rodrigo Andrade de Almeida Professor do Curso de Direito do Grupo Universitário Maurício de Nassau (Salvador), do Centro Universitário Jorge Amado (Salvador), membro do Grupo de Pesquisas em Filosofia, Direito e Constituição (Salvador). RESUMO Este artigo tem por objetivo investigar as principais características da doutrina neoconstitucionalista, em contraste com o juspositivismo, a fim de que se possa melhor compreender a relação que há entre ambas, seja de superação, seja de complementaridade. Pretende, portanto, analisar os principais fundamentos metodológicos e teóricos de cada uma dessas correntes do pensamento jurídico, a partir da obra de seus principais expoentes. Palavras-chave: Juspositivismo. Neoconstitucionalismo. Direito e moral. Revista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau – Recife – ano 5 – n. 5 – p. 161-204 – 2010 162 Rodrigo Andrade de Almeida ABSTRACT This paper aims to investigate the main characteristics of the neoconstitutionalist doctrine, in opposition to legal positivism, in order to understand the rapport between them, either of overcoming or complementation. Thus, intends to analyze both methodological and theoretical fundamentals of these lines of jurisprudential thought, beginning from the work of their main writers. Key words: Legal positivism. Neoconstitutionalism. Law and morals. SUMÁRIO Introdução. 1. Do jusnaturalismo ao juspositivismo. 2. Do juspositivismo ao neoconstitucionalismo. 3. Do neoconstitucionalismo ao juspositivismo. Conclusão. Introdução A filosofia do direito vive um momento de intensa ebulição reflexiva. Desde o final da Segunda Grande Guerra, inúmeras críticas foram dirigidas ao positivismo jurídico, sempre no sentido de responsabilizá-lo por fundamentar teoricamente os regimes nazi-fascistas, na Europa. De acordo com seus críticos, o juspositivismo teria legitimado os ordenamentos jurídicos nazi-fascistas, ao adotar uma visão meramente formalista do direito, dissociando-o completamente de conteúdos morais e considerando válida qualquer Revista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau – Recife – ano 5 – n. 5 – p. 161-204 – 2010 Neoconstitucionalismo e Juspositivismo: superação ou complementaridade? 163 norma posta pelo Estado, independentemente de seu conteúdo. A rejeição ao conteúdo das normas jurídicas daqueles regimes e o firme propósito de evitar que tais práticas ocorressem novamente, levou os chamados anti-positivistas a defender a construção de uma teoria do direito – o neoconstitucionalismo– que partisse da conexão conceitual entre direito e moral, de tal forma que os valores morais considerados essenciais à vida e à dignidade humana estivessem contidos na Constituição, que assumiria uma função moralizante dos sistemas jurídicos nacionais. A constitucionalização da pauta moral vigente na sociedade dar-se-ia, assim, por meio da inclusão de normas principiológicas no texto constitucional, princípios esses norteadores da ação estatal, tanto no momento da criação legislativa quanto no da aplicação interpretativa por parte do juiz. Os teóricos juspositivistas reagiram, reafirmando e defendendo a tese da separação conceitual entre direito e moral e buscando argumentos que invalidassem as críticas anti-positivistas. Tal qual fizeram os primeiros teóricos positivistas ao refutar as bases metodológicas jusnaturalistas, os juspositivistas contemporâneos atacam a tese da conexão conceitual entre direito e moral, colacionando argumentos como a pluralidade de sistemas morais vigentes nas sociedades hodiernas, a impossibilidade de justificação racional de opções morais e a necessidade de defesa da segurança jurídica, além da impossibilidade lógica de criticar o direito, quando assim reconhecido aquele que tenha respaldo em um valor moral relevante, e as dificuldades que essa impossibilidade acarreta. A cuidadosa análise dos argumentos dos contendores – tanto juspositivistas quando neoconstitucionalistas – Revista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau – Recife – ano 5 – n. 5 – p. 161-204 – 2010 164 Rodrigo Andrade de Almeida não parece encaminhar a discussão de maneira conclusiva: ao passo que neoconstitucionalistas decretam a morte do juspositivismo e propugnam um novo paradigma epistemológico para o direito, juspositivistas denunciam o caráter ideológico e as raízes jusnaturalistas do neoconstitucionalismo. Cumpre, assim, a partir de uma análise meta-teórica de ambas as doutrinas, averiguar se o neoconstitucionalismo representa, de fato, a superação do juspositivismo ou se, ao contrário, ambas as abordagens se complementam, esta representando uma teoria estruturalista, e aquela uma teria funcionalista do direito. 1. Do jusnaturalismo ao juspositivismo 1.1 Da Racionalização da Doutrina do Direito Natural O século XVI marca, no campo da filosofia do direito, o início de uma longa transição entre os pensamentos jurídicos medieval e moderno (SANTOS, 2002); nessa época, floresce na Europa o contratualismo, doutrina política que atribui a um acordo coletivo de vontades a origem do Estado e, por consequência, do Direito (BOBBIO, 2000, p. 29-31). A doutrina contratualista representa um giro importantíssimo na forma de pensar o Estado, o Direito e a Sociedade. Ao longo de toda a Idade Média prevaleceu a ideia de que essa tríade tinha origem na vontade criadora de Deus, onisciente, onipresente e onipotente, e de que haveria, portanto, uma natureza intrínseca a esses elementos sobre a qual os seres humanos não teriam qualquer controle. A teRevista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau – Recife – ano 5 – n. 5 – p. 161-204 – 2010 Neoconstitucionalismo e Juspositivismo: superação ou complementaridade? 165 oria contratualista, nesse sentido, desloca a origem do Estado para a vontade criadora do homem, e não mais divina, constituindo como instrumento de ação daquele o Direito: o jusnaturalismo medieval dá lugar, assim, ao jusnaturalismo moderno, ou racional (BOBBIO, 2000; BITTAR e ALMEIDA, 2007, p. 245-6). O jusnaturalismo moderno, portanto, parte de premissas metodológicas substancialmente diversas daquelas atribuídas ao jusnaturalismo medieval, sobretudo no que tange à origem e ao fundamento do direito natural; basilares são, nesse particular, os conceitos de universalismo ético e razão humana (NINO, 1980, p. 28). A essa pressuposta existência de valores eternos e imutáveis associa-se, na doutrina jusnaturalista moderna, a noção da razão humana como medida de todas as coisas, conceito que substitui, nessa corrente, a vontade criadora de Deus como fundamento do direito natural. Para os modernos jusnaturalistas, o traço característico que distingue o ser humano dos outros animais é sua racionalidade que, no âmbito da filosofia racionalista que lhes dá suporte, é posta em termos ideais, ou seja, uma racionalidade essencialmente igual em todos os homens, com características eternas e imutáveis. Essa razão idealizada é o meio, o instrumento através do qual o ser humano tem acesso aos valores morais e princípios de justiça universalmente válidos. Segundo essa teoria, portanto, o direito natural faz parte da própria essência humana, sendo acessível a todos por meio da razão, daí referir-se a essa doutrina, também, como jusnaturalismo racionalista (NINO, 1980, p. 29). É clara, nessa concepção, a conexão conceitual necessária entre direito e justiça, conforme o observa Ferrajoli: Revista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau – Recife – ano 5 – n. 5 – p. 161-204 – 2010 166 Rodrigo Andrade de Almeida [...] È chiaro che entro un tale paradigma, sopravvissuto sotto molti aspetti nei sistemi di common law, la scienza giuridica è immediatamente normativa, confondendosi di fatto con lo stesso diritto, da essa stessa rielaborato e unificato. Veritas non auctoritas facit legem, potremmo affermare, capovolgendo la massima giuspositivistica di Hobbes, per esprimere la norma di riconoscimento del diritto entro questo tipo di esperienza. In assenza di un sistema formalizzato di fonti legislative, infatti, la validità di una norma giuridica dipende non già dalla sua positività, ma dalla sua intrinseca giustizia o razionalità, ossia dalla sua valutazione e argomentazione come in sé giusta o razionale ovvero, in senso lato, “vera” (FERRAJOLI, 2004). Contudo, a premente dificuldade dos teóricos jusnaturalistas em chegar a um consenso em relação à definição do elenco de direitos naturais inerentes ao ser humano representava um entrave à atuação garantidora do Estado; era necessária a positivação desses direitos, para que se gerasse segurança jurídica e o Estado pudesse atuar de forma mais clara e consistente. A burguesia havia conseguido realizar sua revolução, e precisava instaurar uma nova ordem, que atendesse a seus interesses econômicos, políticos e sociais. O fato de o direito tornar-se escrito contribuiu para importantes transformações na concepção de direito e de seu conhecimento. A fixação do direito na forma escrita, ao Revista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau – Recife – ano 5 – n. 5 – p. 161-204 – 2010 Neoconstitucionalismo e Juspositivismo: superação ou complementaridade? 167 mesmo tempo em que aumenta a segurança e a precisão de seu entendimento, aguça também a consciência dos limites (FERRAZ JUNIOR, 2003, p. 72). Dito de forma ainda mais enfática, O jusracionalismo jogou um importante papel, por seu esforço em construir o direito sobre uma base de princípios e regras fundadas na razão, por reconhecer ao indivíduo, ao menos intelectualmente, liberdades e direitos subjetivos que seriam inerentes à sua natureza e, ainda, por sua tendência à unificação do direito e ao refundimento completo do conteúdo do direito sobre a base do individualismo e da relevância atribuída à vontade humana como fonte criadora de vínculos jurídicos. A codificação a ele vincula-se geneticamente, porque, na medida em que se crê em uma ordem jurídica imutável e metaempírica, garante dos valores do indivíduo e das suas aspirações, e na medida em que esta ordem se quer ver traduzida em normas e preceitos, “a idéia de código aparece como o prestigioso compêndio no qual as esperanças se lançam e como meio insubstituível para tornar certos e partilháveis os princípios de direito natural” (COSTA, 2000, p. 174). É com esse espírito que, a partir já do final do século XVIII, mas sobretudo a partir do século XIX, o direito passa a ser codificado, conforme o aponta John Gilissen: Revista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau – Recife – ano 5 – n. 5 – p. 161-204 – 2010 168 Rodrigo Andrade de Almeida Na época feudal, isto é, do século X ao XII, não há muitas leis, nem muitas regras gerais; a desigualdade predomina na vida social; quando muito há, por aqui e por ali, privilégios, pazes e keures como manifestações de uma vontade que se assemelha à que cria a lei. Cada pequena comunidade de habitantes tem o seu próprio direito, essencialmente consuetudinário. No século XIX, depois da Revolução Francesa e por influência desta, o direito é estatal: cada Estado tem o seu direito, geralmente unificado. Este direito é estabelecido sob a forma de leis, elaboradas por órgãos legislativos. Pode-se calcular que na maior parte dos Estados – salvo, talvez, a Inglaterra, com o seu sistema de common law – no século XIX e sobretudo no século XX, cerca de 90% das regras de direito são de origem legislativa [...]. É também a época em que o costume é reduzido a escrito e adquire, pela sua promulgação, os caracteres essenciais da lei. Num outro domínio, a prova escrita tende a ultrapassar a prova oral: ‘Documentos passam à frente das testemunhas’, em vez de ‘testemunhas passam à frente dos documentos’ (GILISSEN, 2003, p. 237-8). Para Ferrajoli, é precisamente a positivação do direito, como meio de realizar a segurança jurídica, que caracteriza o surgimento do paradigma jurídico moderno: Revista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau – Recife – ano 5 – n. 5 – p. 161-204 – 2010 Neoconstitucionalismo e Juspositivismo: superação ou complementaridade? 169 Il diritto positivo moderno nasce allorquando si afferma, a garanzia della certezza del diritto e della libertà contro l’arbitrio, il principio di legalità quale sua meta-norma di riconoscimento. Grazie a questo principio, espresso dalla massima hobbesiana auctoritas non veritas facit legem, tutte le norme giuridiche, e quindi tutte le regole d’uso della lingua giuridica, in tanto esistono e sono valide in quanto siano “poste” da autorità dotate, in base ad altre norme, di competenza normativa. Ne consegue che i discorsi della scienza giuridica cessano di essere immediatamente normativi per divenire tendenzialmente “interpretativi” dei testi legislativi, cioè esplicativi di un oggetto – il diritto “positivo” – da essa autonomo e separato (FERRAJOLI, 2004, p. 355). A partir da codificação do direito, portanto, a doutrina do direito natural perde força e, enquanto na França esse movimento resulta no desenvolvimento de uma compreensão exegetista do direito (BOBBIO, 1995, p. 63-89; CAMARGO, 2003, p. 65-6) surgem na Alemanha as mais contundentes críticas ao racionalismo jusnaturalista e exegetista, plantando as bases do que, no curso dos séculos XIX e XX, tornar-se-ia a doutrina juspositivista. 1.3 Da positivação do direito natural ao positivismo jurídico Na Alemanha do início do século XIX o cenário político não era propício à difusão do ideário iluminista francês, Revista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau – Recife – ano 5 – n. 5 – p. 161-204 – 2010 170 Rodrigo Andrade de Almeida como aconteceu no restante da Europa. Lá, o racionalismo cartesiano e a crença na existência de valores morais universais encontraram forte resistência por parte dos teóricos. De fato, é na Alemanha que o jusnaturalismo e o exegetismo encontram seus mais robustos críticos, inicialmente com a chamada Escola Histórica do Direito e, em seguida, com o sociologismo e o positivismo jurídico. Tais críticas partem da refutação dos dois principais pressupostos metodológicos que dão suporte a toda a teoria jusnaturalista, ou seja, o racionalismo e o universalismo ético; nesse sentido, a tradição teórica alemã fundar-se-á no empirismo e no relativismo ético. Em primeiro lugar, os historicistas refutam a tese da existência de uma razão universal ideal, isto é, não acreditam que a razão seja, como dizem os racionalistas, igualmente presente em todos os seres humanos, e que tenha uma essência eterna e imutável. Historicistas que são, negam o conceito racionalista de que exista “o homem”, e defendem que o ser humano é mutável e mutante e que, portanto, a razão não constitui instrumento adequado de compreensão da realidade. O culto à razão, segundo a tradição empirista, não passa de uma forma de dominação engendrada pela classe burguesa que, alegando a perfeição de seus postulados, busca legitimar a criação de um sistema de normas supostamente derivados de uma moralidade perfeita, eterna e imutável. Isto posto, defendem a ideia de que o direito não deve ser imposto arbitrariamente pela razão, mas fruto do desenvolvimento das relações sociais, uma natural construção histórica. Céticos em relação à razão, os alemães também colocarão em dúvida a existência de valores morais e princípios Revista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau – Recife – ano 5 – n. 5 – p. 161-204 – 2010 Neoconstitucionalismo e Juspositivismo: superação ou complementaridade? 171 de justiça eternos e imutáveis, assumindo posição relativista em matéria ética. Em defesa dessa tese, os relativistas argumentam que: (1) Os teóricos universalistas jamais conseguiram elencar os valores com validade universal, e (2) as escolhas morais não podem ser justificadas racionalmente, por tratar-se de juízos de valor, estranhos ao mundo do “ser”. O segundo argumento constitui o que se convencionou chamar, no âmbito das teorias críticas do jusnaturalismo, de falácia naturalista, por pretender obter, a partir de juízos de fato, juízos de valor, coisa que seria, segundo os relativistas, logicamente impossível (KELSEN, 1998, p. 140). Destarte, dirão os relativistas que é impossível justificar racionalmente opções morais e que, para justificá-los, recorrer-se-á sempre a outros valores morais. Assim, dentre as várias opções possíveis, a lei será sempre uma escolha moral, e não fruto natural de uma razão perfeita e imutável, como pretendem os racionalistas franceses. Partindo desses pressupostos, tradição teórica que se desenvolve na Alemanha refuta veementemente o jusnaturalismo e o exegetismo, e propugna a adoção de uma postura meramente descritiva em relação ao direito, já no final do século XIX, quando o cientificismo positivista já havia conquistado espaço suficiente para dar ensejo ao surgimento de uma ciência do direito. 2 DO JUSPOSITIVISMO AO NEOCONSTITUCIONALISMO O juspositivismo surge, portanto, com a proposta de construção de um conhecimento científico sobre o direito, Revista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau – Recife – ano 5 – n. 5 – p. 161-204 – 2010 172 Rodrigo Andrade de Almeida de natureza descritiva, avalorativa e objetiva (BOBBIO, 1995, p. 135), e encontra seu modelo mais acabado na Teoria Pura do Direito, de Hans Kelsen (SGARBI, 2006, p. 31), modelo tal que será amplamente aceito no campo do conhecimento até o fim da Segunda Grande Guerra (LOSANO, 2004, p. 7). Deve-se ressaltar, contudo, que o juspositivismo, assim como o jusnaturalismo, não é uma corrente teórica coesa e unitária, havendo em seu interior inúmeras discussões, muitas vezes, levando a posições bastante diferentes, conforme o aponta o jusfilósofo argentino Carlos Santiago Nino: [...] Mucho más difícil resulta, en cambio, caracterizar la concepción positivista del derecho. Esto es así porque la expresión “positivismo” es marcadamente ambigua: ella hace referencia a posiciones diferentes que a veces nada tienen que ver entre sí; que, en muchos casos, fueron explícitamente rechazadas por algunos autores considerados positivistas, y que, en otros, fueron sostenidas por juristas positivistas pero no como parte esencial del positivismo por ellos defendido (NINO, 1980, p. 30). Torna-se mais claro, assim, compreender o juspositivismo a partir de três perspectivas, conforme sugere Bobbio, em classificação muito bem recebida no âmbito da teoria do direito (SGARBI, 2007, p. 714; PINO, 1999, p. 206): o juspositivismo como método de estudo, como teoria e como ideologia do direito (BOBBIO, 1995, p. 131). Revista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau – Recife – ano 5 – n. 5 – p. 161-204 – 2010 Neoconstitucionalismo e Juspositivismo: superação ou complementaridade? 2.1 173 Perspectivas do Juspositivismo 2.1.2 O juspositivismo como método de estudo do direito Do ponto de vista metodológico, o juspositivismo se caracteriza pela tentativa de abordar avalorativamente o direito, a partir da distinção entre juízos de fato e juízos de valor, adotando-se os primeiros e excluindo os segundos do âmbito da teoria do direito. Nas palavras do próprio Bobbio, [...] o positivista jurídico assume uma atitude científica frente ao direito já que, como dizia Austin, ele estuda o direito tal qual é, não tal qual deveria ser. O positivismo jurídico representa o estudo do direito como fato, não como valor: na definição do direito deve ser excluída toda qualificação que seja fundada num juízo de valor e que comporte a distinção do próprio direito entre bom e mau, justo e injusto. O direito, objeto da ciência jurídica, é aquele que efetivamente se manifesta na realidade histórico-social (BOBBIO, 1995, p. 136). Acerca dessa perspectiva do juspositivismo, comenta Adrian Sgarbi: [...] O objetivo dessa distinção é relevante para o jurista positivista porque ele estuda do direito “real”, o direito tal como se apresenta nas ordens jurídicas. Portanto, sua preocupaRevista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau – Recife – ano 5 – n. 5 – p. 161-204 – 2010 174 Rodrigo Andrade de Almeida ção não é com o conteúdo do que descreve, porquanto podem estar em sua análise prescrições que ofendam um “ideal valorativo”, como, também, pode estar em sua análise algo consentâneo com esse “ideal”. “Estar” em “conformidade” com certo “ideal valorativo” ou “não estar” em “conformidade” com este “ideal valorativo” não influencia sua atividade (SGARBI, 2007, p. 715). Do intuito de abordar avalorativamente o direito decorre a chamada tese da separação entre direito e moral, conceito fundamental da doutrina juspositivista. Essa é uma tese conceitual, pois pretende unicamente delimitar o objeto da ciência do direito em termos descritivos, e não valorativos. Daí falar-se, também, em positivismo metodológico ou positivismo conceitual para designar essa abordagem (NINO, 1980, p. 37-43). 2.1.2 O juspositivismo como teoria do direito Do ponto de vista teórico, o juspositivismo constrói formulações sobre a natureza do direito que, conforme Adrian Sgarbi, podem ser resumidas a seis aportes principais: [...] a) a teoria da coatividade (que supõe que a força é um elemento essencial e típico do direito); b) a teoria imperativista (as normas jurídicas são comandos); c) a supremacia da lei (as demais “fontes” do direito são subordinaRevista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau – Recife – ano 5 – n. 5 – p. 161-204 – 2010 Neoconstitucionalismo e Juspositivismo: superação ou complementaridade? 175 das à lei); d) a teoria da coerência (a defesa da ausência de contradições entre as normas que compõem o ordenamento jurídico); e) a teoria da plenitude (que nega que haja lacunas no direito); e f) a interpretação mecanicista (que considera ser a interpretação jurídica apenas silogística) (SGARBI, 2007, p. 715). Todas as seis teses apresentadas por Bobbio sofreram críticas de opositores do juspositivismo. Entretanto, comenta o próprio autor: Ora, sustentamos que as críticas às primeiras três teorias não são consistentes e, de qualquer maneira, tais teorias permanecem intactas na sua essência, mesmo depois que se deu conta das objeções a elas dirigidas. A crítica às últimas três teorias é, pelo contrário, fundada. De fato: a) um ordenamento jurídico não é necessariamente coerente, porque podem coexistir no âmbito do mesmo ordenamento duas normas incompatíveis e serem ambas válidas (a compatibilidade não é um critério de validade); b) um ordenamento jurídico não é necessariamente completo, porque a completitude deriva da norma geral exclusiva, ou norma de clausura, que na maior parte dos casos – excluído o direito penal – não existe; c) a interpretação do direito feita pelo juiz não consiste jamais na simples aplicação da lei com base num procedimento puramente lógico. Mesmo que disto não se dê conta, para chegar à decisão ele deve semRevista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau – Recife – ano 5 – n. 5 – p. 161-204 – 2010 176 Rodrigo Andrade de Almeida pre introduzir avaliações pessoais, fazer escolhas que estão vinculadas ao esquema legislativo que ele deve aplicar. As três primeiras e as três últimas concepções não têm, entretanto, a mesma importância no sistema da teoria juspositivista: as três primeiras, na verdade, constituem as pilastras de tal teoria, enquanto as três últimas têm importância somente secundária. Podemos assim falar de uma teoria juspositivista em sentido estrito e de uma teoria juspositivista em sentido amplo, em conformidade com as quais se reúnem integralmente todas essas seis concepções, se não se reúnem apenas as primeiras três (BOBBIO, 1995, p. 237). De acordo com a observação de Bobbio no excerto citado, portanto, como teoria do direito o juspositivismo mantém sua legitimidade, uma vez que as críticas a ela dirigidas não a invalidam. 2.1.3 O juspositivismo como ideologia do direito Ao contrário do que inicialmente propugna, o juspositivismo não logrou manter-se totalmente neutro em relação ao seu objeto de estudo. Assim, a par de teoria, isto é, abordagem descritiva do direito, o juspositivismo pode ser identificado também, na construção de alguns de seus teóricos, como ideologia, ou seja, abordagem normativa do direito. Quando posto em termos ideológicos, o juspositivismo estatui o dever moral de obediência ao direito positivo, independenRevista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau – Recife – ano 5 – n. 5 – p. 161-204 – 2010 Neoconstitucionalismo e Juspositivismo: superação ou complementaridade? 177 temente de seu conteúdo (versão forte do positivismo ideológico), ou o dever moral de obediência ao direito positivo, desde que o mesmo conduza aos objetivos sociais propostos, independentemente de sua justiça (versão fraca do positivismo ideológico). Nesse particular, Nino observa que [...] la tesis que estamos considerando no es de índole conceptual sino que involucra una posición ideológica o moral. Ella combina espuriamente una definición de derecho en términos puramente fácticos, como la que los positivistas propugnan (por ejemplo, “el derecho es el conjunto de normas impuestas por los que tienen el monopolio de la fuerza en una sociedad”) con la idea iusnaturalista de que toda norma jurídica tiene fuerza obligatoria moral (idea que es coherente con la posición iusnaturalista de que una regla no es jurídica si no satisface exigencias morales o de justicia) (NINO, 1980, p. 33). O próprio Bobbio aduz que o único a quem se pode atribuir a defesa da versão forte do positivismo ideológico é Thomas Hobbes, mesmo assim com ressalvas (BOBBIO, 1995, p. 228); segundo o autor italiano, a versão fraca do positivismo ideológico pode ser mais frequentemente encontrada entre os juspositivistas, entretanto [...] neste caso são injustificadas as críticas que da extremidade jusnaturalista foram a ele dirigidas, pois a versão moderada da Revista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau – Recife – ano 5 – n. 5 – p. 161-204 – 2010 178 Rodrigo Andrade de Almeida ideologia juspositivista não leva em absoluto à estatolatria e ao totalitarismo político (BOBBIO, 1995, p. 236). A despeito da defesa do juspositivismo feita por Bobbio, inúmeras foram as críticas dirigidas a essa doutrina, sobretudo após do fim da Segunda Grande Guerra, por considerar-se que sua declarada neutralidade axiológica teria legitimado juridicamente o regime nazi-fascista, contribuindo para a perpetração das atrocidades imputadas àqueles regimes. Segundo esses críticos, o direito não pode ser analisado a despeito de seu fundamento moral, pois não é desejável e, mais ainda, é perigoso admitir a existência de uma ordem jurídica que não seja comprometida com a realização da justiça e não esteja arrimada no respeito de defesa de direitos fundamentais mínimos, consubstanciados na Declaração Universal dos Direitos Humanos, de dezembro de 1948. O juspositivismo, acusado de realizar a separação entre o direito e a moral, e de assim funcionar como instrumento do nazi-fascismo, é desacreditado como legítima teoria do direito, e um novo paradigma passa a ser construído. Esse “novo” paradigma encontra fundamento da Declaração Universal dos Direitos do Homem, e na inclusão, no corpo das constituições do pós-guerra, de valores e direitos fundamentais tidos como indispensáveis a todo ser humano. Declarando a supremacia normativa da Constituição e a fundamentalidade dos direitos individuais ali previstos, os teóricos passam a defender a adequação de todo o ordenamento jurídico aos ditames constitucionais, em um movimento que se chamou de constitucioRevista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau – Recife – ano 5 – n. 5 – p. 161-204 – 2010 Neoconstitucionalismo e Juspositivismo: superação ou complementaridade? 179 nalização do direito, e a teoria que lhe deu suporte, de neoconstitucionalismo. Nesse sentido, e em síntese, observam Oto Duarte e Susanna Pozzolo: O Estado Constitucional contemporâneo, ao contrário, vê: (1) a supremacia da Constituição sobre a lei ordinária e, portanto, (2) a subordinação da vontade legislativa ao conteúdo de justiça constitucionalmente previsto: a Constituição não constitui um mero invólucro político e de inspiração para o sistema, mas sim introduz um vínculo substancial à criação do direito positivo, que é (3) rígida e (4) garantida. A capacidade permeável do texto fundamental, pleno de princípios e de conteúdos de valores, irradiase por todo o ordenamento jurídico e determina a sua constitucionalização. Logo, (5) a aplicação direta da Constituição às relações privadas, o que implica (6) a imposição de obediência diretamente aos cidadãos, e não mais somente aos órgãos do Estado (DUARTE e POZZOLO, 2006, p. 87). A partir da identificação das características dos novos ordenamentos jurídicos europeus do pós-guerra, acima apontadas, os teóricos do direito começam a decretar a morte do juspositivismo, por considerá-lo metodologicamente incapaz de compreender e explicar essa nova conformação do direito ocidental capitalista (COMANDUCCI, 2005, p. 82-3). Conforme a observação de Giorgio Pino, Revista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau – Recife – ano 5 – n. 5 – p. 161-204 – 2010 180 Rodrigo Andrade de Almeida Fra i diversi elementi di complessità che caratterizzano gli ordinamenti giuridici degli Stati contemporanei, l’attenzione è spesso concentrata sulle novità introdotte nel panorama delle fonti del diritto dalle moderne costituzioni rigide, novità tali da indurre i più a parlare di una nuova forma di Stato, lo Stato costituzionale; il diritto costituzionale (contemporaneo) viene assunto come banco di prova dalle nuove teorie antipositiviste per dimostrare l’incapacità teorica del vecchio positivismo giuridico a comprendere la struttura e l’essenza stessa degli ordinamenti giuridici contemporanei; di conseguenza, si sottolinea l’esigenza di un approccio nuovo ai problemi classici della teoria e della filosofia del diritto (ad esempio: il rapporto tra diritto e morale, la teoria dell’interpretazione, i compiti della scienza giuridica, la tutela dei diritti, la teoria della sovranità) (PINO, 1999, p. 203). Assim, uma série de críticas passa a ser dirigida ao juspositivismo, sobretudo no que toca ao seu fundamento metodológico da separação conceitual entre direito e moral. Passa-se a construir uma tradição teórica anti-positivista, genericamente chamada de neoconstitucionalismo, por conta do papel desempenhado pela Constituição no centro dessa teoria. Resta analisar, conforme far-se-á no item subseqüente, os contornos dessa proposta teórica. Revista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau – Recife – ano 5 – n. 5 – p. 161-204 – 2010 Neoconstitucionalismo e Juspositivismo: superação ou complementaridade? 181 3 DO NEOCONSTITUCIONALISMO AO JUSPOSITIVISMO Conforme explicitou-se no item precedente, o neoconstitucionalismo fez ressurgir a discussão acerca das relações entre o ordenamento jurídico e os anseios sociais, entre o direito e a justiça. Evidenciou-se, também, a grande diversidade de posições teóricas que caracterizam o movimento, conforme observa Miguel Carbonell: Lo que haya de ser el neoconstitucionalismo en su aplicación práctica y en su dimensión teórica es algo que está por verse. No se trata, como se acaba de apuntar, de un modelo consolidado, y quizá ni siquiera pueda llegar a estabilizarse en el corto plazo, pues contiene en su interior una serie de equilibrios que difícilmente pueden llegar a convivir sin problemas (CARBONELL, 2005, p. 11). Assim, analogamente ao que se fez na análise do juspositivismo, adotar-se-á o modelo meta-teórico proposto por Paolo Comanducci (2005, p. 75-98; DUARTE e POZZOLO, 2006, p. 24) que, tendo como base as três perspectivas do juspositivismo apresentadas por Bobbio, analisadas no item anterior, aponta as características do neoconstitucionalismo como método de estudo, como teoria e como ideologia do direito. Revista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau – Recife – ano 5 – n. 5 – p. 161-204 – 2010 182 Rodrigo Andrade de Almeida 3.1 Perspectivas do neoconstitucionalismo 3.1.1 Neoconstitucionalismo teórico Em sua construção teórica, o neoconstitucionalismo parte do pressuposto de que o método e a teoria juspositivista são insuficientes para compreender os sistemas jurídicos contemporâneos (COMANDUCCI, 2005, P. 83). Sustentam essa tese com o argumento de que as principais características do método juspositivista, quais sejam, o estatalismo, o legicentrismo e o formalismo interpretativo tornaram-se obsoletas, em face do novo contexto histórico dos países democráticos ocidentais (DUARTE e POZZOLO, 2006, p. 87-8). Propõem, assim, os teóricos neoconstitucionalistas, uma nova teoria do direito, arrimada em novos pressupostos metodológicos. Nesse intento, e a partir desse diagnóstico, os neoconstitucionalistas seguem dois caminhos distintos: (1) propõem uma teoria que funciona como uma continuação do juspositivismo, a partir da ampliação do seu objeto, numa espécie de adequação do positivismo jurídico ao novo contexto histórico do pósguerra, adotando como objeto de estudo o modelo descritivo da constituição como norma; ou (2) propõem uma teoria completamente diferente da juspositivista, por considerarem o objeto de estudo substancialmente diferente, requerendo, portanto, a adoção de uma metodologia completamente diversa, já que tomam como objeto o modelo axiológico da constituição como norma (COMANDUCCI, 2005, p. 83). Neste segundo caso, trata-se menos de uma teoria do que de uma Revista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau – Recife – ano 5 – n. 5 – p. 161-204 – 2010 Neoconstitucionalismo e Juspositivismo: superação ou complementaridade? 183 ideologia, razão pela qual Comanducci analisa suas características ao tratar do neoconstitucionalismo ideológico. Essa é, também, a compreensão de Susanna Pozzolo, para quem: Pode-se questionar essa reconstrução “científico-descritiva”, que torna necessária a escolha pelo neoconstitucionalismo, senão outro, porque isso que vem apresentado como um objetivo do modelo institucional pode ser reconstruído com uma peculiar concepção de Constituição. A adoção do modelo prescritivo da Constituição como norma não é uma necessidade, mas uma escolha: o modo de conceber o papel e a função da Constituição é o que determina a reconstrução do modelo positivo (DUARTE e POZZOLO, 2006, p. 88). Os neoconstitucionalistas teóricos que adotam o modelo descritivo de constituição consideram, em geral, que o que diferencia sua interpretação em relação à legislação infraconstitucional é o seu grau, e não sua qualidade. Nesse caso, contudo, uma vez que se aceita a conexão somente contingente (e não necessária, como propugna o neoconstitucionalismo ideológico) entre o direito e a moral, a teoria neoconstitucionalista não é incompatível com o juspositivismo metodológico, “[...] al contrario, podríamos decir que es su hijo legítimo” (COMANDUCCI, 2005, p. 87). Revista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau – Recife – ano 5 – n. 5 – p. 161-204 – 2010 184 Rodrigo Andrade de Almeida 3.1.2 Neoconstitucionalismo ideológico O neoconstitucionalismo ideológico, além de descrever as conquistas oriundas do processo de constitucionalização do direito, valora-os positivamente e propugna sua defesa e ampliação. Adota, assim, o modelo axiológico da constituição como norma, a partir da pressuposta conexão necessária entre direito e moral, fato que geraria no indivíduo a obrigação moral de obediência às normas constitucionais e infraconstitucionais em conformidade com aquelas, aproximando essa concepção à do positivismo ideológico e, portanto, podendo-se aplicar-lhe as mesmas críticas dirigidas a este (COMANDUCCI, 2005, p. 85-6). O principal problema do neoconstitucionalismo ideológico é, contudo, a diminuição do grau de segurança jurídica como consequência do aumento da indeterminação ex ante, em decorrência da interpretação moral da constituição e da técnica de ponderação dos princípios constitucionais. Caso existisse uma moral objetiva, conhecida e observada pelos juízes, e caso estes construíssem sempre um sistema integrado de direito e moral, internamente consistente, tal indeterminação poderia ser reduzida. Entretanto, essas condições não são observadas na prática (COMANDUCCI, 2005, p. 91-2). Em suma, enquanto o positivismo ideológico tinha como principal objetivo proteger o sistema jurídico moderno de supostos riscos de retorno a concepções jurídicas pré-modernas, a finalidade precípua do neoconstitucionalismo ideológico é, segundo Comanducci, Revista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau – Recife – ano 5 – n. 5 – p. 161-204 – 2010 Neoconstitucionalismo e Juspositivismo: superação ou complementaridade? 185 [...] la adecuación del Derecho a los cambios sociales, tomar decisiones “al por mayor”, ofrecer criterios generales a los órganos inferiores, establecer metas de reforma social, la delegación de poderes para determinar el contenido del Derecho, es decir, en general, la hetero y/o auto-atribución a los jueces de una parte del poder normativo, etcétera (COMANDUCCI, 2005, p. 93). 3.1.3 Neoconstitucionalismo metodológico Em sua feição metodológica, o neoconstitucionalismo considera os princípios constitucionais e os direitos fundamentais como a ponte entre o direito e a moral, donde extraem a tese da sua conexão, conceitual ou justificatória (PINO, 1999, p. 213-4). Isso significa que “[...] cualquier decisión jurídica, y en particular la decisión judicial, está justificada si deriva, en última instancia, de una norma moral” (COMANDUCCI, 2005, p. 94) ou, dito em outras palavras, O moralismo jurídico faz depender o reconhecimento da validade das normas jurídicas e sua interpretação de elementos vinculados a valores (e correspondentes mandamentos) de origem moral. Admite-se, assim, a tese da necessária conexão (junção, vinculação) entre direito e moral. Dessa forma, o moralismo jurídico adota uma perspectiva normativa, afirmando que Revista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau – Recife – ano 5 – n. 5 – p. 161-204 – 2010 186 Rodrigo Andrade de Almeida o direito deve estar vinculado à moral. Isto é um mandamento endereçado tanto ao legislador como ao intérprete/aplicador do direito, devendo todos levar em consideração a moral na tomada de decisões. Isto significa que os moralistas propugnam pela correção do direito nos dois sentidos do termo (DIMOULIS, 2006, p. 87-8). Essa fulcral distinção entre os métodos juspositivista e neoconstitucionalista é também analisada por Susanna Pozzolo: Convém notar que, desse modo, o conceito descritivo de validade (pertinência) cede espaço a favor de um conceito normativo, já que a afirmação sobre a validade de uma norma comporta a expressão de um juízo de dever ser que implica razões para justificar ações ou decisões de natureza moral [...] Esta última exigência permite pôr em evidência a diversa orientação entre a abordagem do tipo juspositivista e aquela do tipo neoconstitucionalista: enquanto o primeiro visa descrever o funcionamento do direito, o segundo visa justificar ou oferecer os critérios para julgar justificado o direito; enquanto o primeiro não diz nada sobre a obrigação política de respeito ao direito, o segundo a pressupõe e por isso prescreve a forma e o conteúdo que o direito deve ter. Para o juspositivismo, “o direito vale porque vale, se Revista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau – Recife – ano 5 – n. 5 – p. 161-204 – 2010 Neoconstitucionalismo e Juspositivismo: superação ou complementaridade? 187 vale; explicar por qual razão será tarefa dos sociólogos, dos filósofos, dos homens políticos, dos moralistas; não interessa porque vale o direito, mas, se vale; que coisa vale como direito em certas circunstâncias” (DUARTE e POZZOLO, 2006, p. 83-4). Do ponto de vista epistemológico, esse posicionamento apresenta sérios problemas. Se a validade de uma norma jurídica depende da identificação de seu suporte moral, deve-se questionar: norma moral em que sentido (COMANDUCCI, 2005, p. 94)? Dimitri Dimoulis (2006, p. 167-8), após apresentar o conceito de moral, identifica três possíveis sistemas morais: (1) moral dominante, entendida como o sistema de normas de conduta e suas respectivas sanções, vigorando em uma dada sociedade e momento histórico; (2) ética particular, significando os valores morais aceitos e seguidos por cada indivíduo; e (3) moral crítica, designando os valores obtidos por meio de investigação e crítica filosófica aos demais sistemas morais. A esses três sistemas morais, Comanducci acrescenta um quarto, composto por uma moral objetiva verdadeira, cuja suposta existência é propugnada pelas teorias universalistas (COMANDUCCI, 2005, p. 95). Em termos taxionômicos, os quatro sistemas morais apontados apresentam, basicamente, duas espécies de solução para o problema: soluções objetivistas (moral objetiva verdadeira e moral crítica) e soluções subjetivistas (ética particular ou moral individual e moral dominante ou positiva). Revista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau – Recife – ano 5 – n. 5 – p. 161-204 – 2010 188 Rodrigo Andrade de Almeida As soluções objetivistas apresentam problemas epistemológicos importantes: como não há consenso ou certeza acerca da efetiva existência de uma moral objetiva verdadeira, e não há um sistema moral crítico único (DIMOULIS, 2006, p. 169), no fim das contas, o intérprete/aplicador do direito teria de escolher, a seu gosto, o sistema moral que julga verdadeiro ou adequado para validar a norma jurídica a ser interpretada/aplicada. Isso reduziria ambas as propostas a uma escolha pessoal do juiz, ou seja, a uma questão de moral individual (COMANDUCCI, 2005, p. 95). O mesmo se pode dizer da solução subjetivista que propugna o recurso à moral positiva: ainda que se considerasse possível, nas sociedades hodiernas, a existência de homogeneidade moral, ter-se-ia como pressuposto a existência de um juiz-sociólogo, um intérprete que tivesse os instrumentos necessários para identificar, de forma exata, o conteúdo das normas morais de sua sociedade. Como as sociedades contemporâneas caminham, cada vez mais, para a heterogeneidade de sistemas morais (DIMOULIS, 2006, p. 187), no fim das contas, o juiz acaba fazendo uma escolha, de cunho pessoal, daquele sistema que julga ser o mais adequado, o que também reduz a proposta do recurso à moral positiva à utilização, na prática, de uma moral individual (COMANDUCCI, 2005, p. 97). As incongruências e os riscos dessa escolha metodológica são explicitados por Susanna Pozzolo: [...] se a reflexão moral individual de um único juiz (ou de alguns “sábios”) é considerada superior à discussão intersubjetiva, Revista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau – Recife – ano 5 – n. 5 – p. 161-204 – 2010 Neoconstitucionalismo e Juspositivismo: superação ou complementaridade? 189 qual o sentido de se manter um procedimento para a tomada de decisões coletivas do tipo democrático? A manutenção da Constituição, se entendida como documento autoveiculante estabelecido pelos cidadãos, não teria razão de ser porque o juízo moral de um único juiz seria sempre mais justo do que aquilo que é definido pelas normas constitucionais. E existem ainda outros problemas. Um dos quais é do tipo salvaguarda institucional: quem controla o controlador? [...] não havendo atualmente nenhum acordo sobre o conjunto determinado de normas morais, a operação que transfere para esse plano os direitos, retirando-os da esfera jurídica, cria a ilusão de sua segurança, ocultando a sua intrínseca fragilidade (DUARTE e POZZOLO, 2006, p. 101-2). Isso porque, ainda segundo Pozzolo, [...] A perspectiva neoconstitucionalista se baseia na premissa do “bom juiz dotado de bom senso”. Contudo, do ponto de vista consitucionalista-legalista, seria melhor adotar a perspectiva do “bad man”, já que o direito apresenta duas faces: uma de garantia e outra de opressão (idem, p. 103). Ao analisar as críticas neoconstitucionalistas à tese da separação conceitual entre direito e moral, Écio Duarte conclui: Revista Revista do Curso da Faculdade de Direito deda Direito Faculdade Maurício Maurício de Nassau de Nassau – – Recife – ano 53 – n. 53 – p. 161-204 191-208 – 2010 2008 190 Rodrigo Andrade de Almeida Nesse sentido, pensamos que a crítica à separação entre direito e moral tenha mais motivações políticas que teóricas. O neoconstitucionalismo tem se tornado porta-voz dessas exigências de fundação, argumentação e justificação do direito e, também, das eleições políticas que estão por trás (idem, p. 56). Todos esses argumentos indicam que o neoconstitucionalismo, em sua dimensão metodológica, é menos adequado do que o juspositivismo metodológico, pelas razões explicitadas por Dimoulis: O PJ [Positivismo Jurídico] stricto sensu é superior às teorias moralistas porque evita duas tendências equivocadas. Por um lado, a tendência anarquista que autoriza o indivíduo a desobedecer ao direito se o considerar injusto e/ou imoral (na versão pura do anarquismo, isso deve acontecer sempre, pois todo direito é opressor e injustificado). Por outro lado, a tendência apologética que aceita, na prática, qualquer conteúdo jurídico pelo simples fato de ter sido criado pelas autoridades que detêm o poder. A abordagem juspositivista possui a vantagem política da sinceridade. Separa a constatação da validade de sua crítica, não disfarça a discordância nem cria a falsa impressão que o aplicador pode corrigir a norma insatisfatória ou encontrar a solução Revista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau – Recife – ano 5 – n. 5 – p. 161-204 – 2010 Neoconstitucionalismo e Juspositivismo: superação ou complementaridade? 191 moralmente adequada. Rejeita-se aqui a tendência moralista de “ancorar a juridicidade na aprovação ideológica dos conteúdos do ordenamento jurídico”. Devemos, como dizia Luhmann, entender que o combate dos regimes autoritários não passa pela tentativa de corrigir seu direito mediante interpretação: “o importante é a vigilância política e não a vigilância justeórica” (DIMOULIS, 2006, p. 203-4). Tem-se, assim, que a separação conceitual entre direito e moral propicia uma compreensão mais adequada de ambas as esferas, permitindo ao estudioso e/ou aplicador do direito a crítica do próprio direito, o que seria impossível a partir das perspectivas do positivismo ideológico, do jusnaturalismo e do neoconstitucionalismo metodológico, conforme explicita Santiago Nino: [...] Cuando uno dice que un objeto es un mal cuchillo, o que una persona es un mal profesor, no dice que sea un mal objeto o una mala persona, sino que son malos como cuchillo o como profesor. Si el mero hecho de ser malos los excluyera de la clase de los cuchillos o de los profesores, ya no podríamos criticarlos por ser un cuchillo o profesor que no satisfacen las condiciones para ser un buen exponente de su clase. Lo mismo ocurre con el concepto de derecho, si decidiéramos que éste sólo es aplicable a sistemas que son Revista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau – Recife – ano 5 – n. 5 – p. 161-204 – 2010 192 Rodrigo Andrade de Almeida buen o justos. No podríamos hacer comparaciones entre un sistema jurídico bueno y otro malo, porque este último sistema no sería un sistema jurídico. De este modo, obscurecemos los rasgos fácticos comunes que tienen tanto el uno como el otro sistema y dejamos de percibir con claridad cuál es el peculiar disvalor que puede presentar un sistema con esas propiedades fácticas (NINO, 1980, p. 41-2). A distinção conceitual entre direito e moral, portanto, apresenta a virtude de possibilitar uma melhor compreensão e crítica do direito, razão pela qual o método juspositivista ainda é preferível ao neoconstitucionalista, o que não implica em, necessariamente, adotar-se também a ideologia juspositivista (PINO, 1999, p. 208). Nas palavras de Bobbio, [...] Com efeito, a assunção do método positivista não implica também na assunção da teoria juspositivista. A relação de conexão entre o primeiro e a segunda é uma relação puramente histórica, não lógica [...] Do mesmo modo, a assunção do método e da teoria juspositivista não implica a assunção da ideologia do positivismo ético. Isso é demonstrável seja no plano lógico, visto que nunca é possível extrair de um fato um juízo de valor deste, seja no plano histórico, pois a teoria juspositivista parece geralmente ligada a concepções éticas relativistas bem Revista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau – Recife – ano 5 – n. 5 – p. 161-204 – 2010 Neoconstitucionalismo e Juspositivismo: superação ou complementaridade? 193 distantes da concepção do Estado ético e das outras concepções éticas que comportam o princípio da absoluta obediência à lei (BOBBIO, 1995, p. 234). Da análise feita até aqui permite-se, portanto, concluir pela possibilidade de adotar-se o método e a teoria juspositivista, concomitantemente à ideologia neoconstitucionalista (PINO, 1999, p. 204), permitindo-se, assim, distinguir uma análise estruturalista de outra funcionalista do direito, conforme abordar-se-á no tópico seguinte. 3.2 JUSPOSITIVISMO E NEOCONSTITUCIONALISMO: ESTRUTURALISMO E FUNCIONALISMO NA TEORIA DO DIREITO Observa Bobbio, em obra originalmente publicada em 1970, que Se aplicarmos à teoria do direito a distinção entre abordagem estruturalista e abordagem funcionalista, da qual os cientistas sociais fazem grande uso para diferenciar e classificar as suas teorias, não resta dúvida de que, no estudo do direito em geral (de que se ocupa a teoria geral do direito), nesses últimos cinqüenta anos, a primeira abordagem prevaleceu sobre a segunda (BOBBIO, 2007, p. 53). Bobbio refere-se, sem a menor sombra de dúvida, à teoria juspositivista do direito. Segundo o citado autor no Revista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau – Recife – ano 5 – n. 5 – p. 161-204 – 2010 194 Rodrigo Andrade de Almeida excerto transcrito, em sede de teoria do direito e, explicite-se aqui, teoria juspositivista do direito, a abordagem estruturalista tem prevalecido, em detrimento de abordagens funcionalistas. Uma teoria estruturalista caracteriza-se por sua natureza descritiva, isto é, pelo fato de buscar analisar e descrever seu objeto de estudo tal qual se apresenta na realidade, ou seja, tal qual ele “é” de fato, independentemente do juízo que o pesquisador ou o leitor possa fazer dessa realidade. Nesse sentido, o pesquisador busca manter uma postura neutra diante do seu objeto, analisando-o da forma mais objetiva possível e evitando enunciar juízos de valor. Diferentemente, uma teoria funcionalista tem natureza normativa pois, ao buscar definir a função de seu objeto de estudo, termina por mostrá-lo não como é de fato, mas como deveria ser para que se tornasse apto a realizar a função que lhe foi atribuída. Dessa forma, o pesquisador se posiciona acerca do objeto, emite juízos de valor e procura influenciar a realidade que está pesquisando. Destarte, parece óbvia a conclusão de que a teoria juspositivista do direito é uma teoria estruturalista do direito (BOBBIO, 2007, p. 54). De fato, os juspositivistas não fazem mais do que analisar a estrutura do direito, independentemente de sua função para a sociedade, e esse é o intuito declarado do próprio positivismo jurídico. O século XIX, berço do positivismo jurídico, caracterizou-se pela rígida divisão do trabalho entre os juristas, de acordo com os três principais problemas da teoria do direito: o problema ontológico, o problema deontológico, e o problema fenomenológico, respectivamente incumbidos ao cientista do direito, ao filósofo do direito e ao sociólogo Revista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau – Recife – ano 5 – n. 5 – p. 161-204 – 2010 Neoconstitucionalismo e Juspositivismo: superação ou complementaridade? 195 (BOBBIO, 2001, p. 45-68). O cientista do direito, portanto, assume a tarefa de estudar o direito tal qual é na realidade, independentemente de sua justiça ou eficácia, e o faz através do método juspositivista. O próprio Kelsen, na Teoria Pura do Direito, declara essa pretensão, conforme o observa Norberto Bobbio: Na obra de Kelsen, não só a análise funcional e estrutural estão declaradamente separadas, como esta separação é a base teórica sobre a qual ele funda a exclusão da primeira em favor da segunda. Como todos sabem, para o fundador da teoria pura do direito, uma teoria científica do direito não deve se ocupar da função do direito, mas tão-somente dos seus elementos estruturais. A análise funcional é confiada aos sociólogos e, talvez, aos filósofos [...] (BOBBIO, 2007, p. 54). O juspositivismo, assim, declara explicitamente tratar-se de uma teoria estruturalista do direito. O neoconstitucionalismo, partindo da definição moralizante do direito e pretendendo conferir-lhe legitimidade por meio da realização de uma determinada pauta moral, constitui uma teoria funcionalista do direito. A função do direito, segundo a construção neoconstitucionalista, muito além da função garantidora da paz social, conforme definiam os juspositivistas, é a realização e efetivação de uma gama de valores morais calcados na ideia de dignidade humana, valor que passa a ocupar o mais alto grau dentre os valores norteadores dos sistemas jurídicos ocidentais capitalistas contemporâneos. Revista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau – Recife – ano 5 – n. 5 – p. 161-204 – 2010 196 Rodrigo Andrade de Almeida Pode-se extrair do exposto que a função do direito é, para os teóricos neoconstitucionalistas, a defesa, proteção e realização da dignidade humana, entendida como noção básica de moralidade, da qual todos os demais direitos fundamentais decorrem. Juspositivismo e neoconstitucionalismo são, assim, respectivamente, teoria estruturalista e teoria funcionalista do direito. Ambas as abordagens são extremamente importantes para uma melhor compreensão do fenômeno jurídico, e o estudo das dimensões de cada uma delas demonstrou que não existe, necessariamente, relação de mútua exclusão entre ambas. Ao contrário, a adoção do método juspositivista, caracterizado pela distinção conceitual entre direito e moral, juntamente com a ideologia neoconstitucionalista, caracterizada pela tentativa de maximizar os direitos fundamentais e a pauta moral constitucionalizada, com arrimo no princípio da dignidade humana, pode contribuir para uma melhor compreensão do direito, tal qual é, e uma mais adequada definição dos objetivos que o mesmo deve realizar. Juspositivismo e neoconstitucionalismo, assim, são teorias complementares, e não mutuamente excludentes, como defendem alguns teóricos de ambos os lados. CONCLUSÃO O presente trabalho procurou analisar as principais teorias do direito na modernidade, de tal forma que se pudesse compreender a atual discussão acerca das relações entre direito e moral. Para tanto, partiu do estudo do jusnaturalismo moderno, de matiz racionalista, passou pela apresentação do jusRevista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau – Recife – ano 5 – n. 5 – p. 161-204 – 2010 Neoconstitucionalismo e Juspositivismo: superação ou complementaridade? 197 positivismo e analisou a proposta neoconstitucionalista, te tal forma que se pudesse compreender o fundamento subjacente de cada uma dessas abordagens do direito, bem como as motivações políticas e ideológicas que as engendraram. Procurou, ainda, distinguir teorias estruturalistas ou descritivas de teorias funcionalistas ou normativas, a fim de que se pudesse classificar adequadamente as teorias estudadas e, assim, perceber de forma mais acurada o papel e os limites de cada uma delas. Nesse sentido, constatou-se que o jusnaturalismo correspondeu aos anseios de legitimação de uma nova ordem, fundamentada na razão, em detrimento do fundamento de viés religioso outrora vigente na Europa medieval. A teoria jusnaturalista moderna pressupunha a existência de valores morais ou princípios de justiça eternos e imutáveis, universalmente válidos, naturalmente presentes na consciência e acessíveis ao homem através da razão. Destarte, qualquer norma de direito positivo que viesse de encontro às normas de direito natural seria inválida e, portanto, não seria direito. Não obstante o êxito do jusnaturalismo moderno, no sentido de legitimar a ordem burguesa que se instaurava, o alto grau de indefinição dos direitos naturais e a necessidade de sua adequada definição, para fins de proteção por parte do Estado moderno, levaram à codificação do direito, e à substituição do costume pela lei como fonte primária do direito. Desse movimento, de viés igualmente racionalista e inspiração iluminista, decorreu o chamado exegetismo, tradição hermenêutica de natureza normativa, que pregava a estrita aplicação da lei pelo juiz, por meio de mera subsunção. Tal postura foi duramente criticada pelo historicismo alemão que, contradizendo as bases racionalistas e uniRevista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau – Recife – ano 5 – n. 5 – p. 161-204 – 2010 198 Rodrigo Andrade de Almeida versalistas do exegetismo francês, defendeu a aplicação do direito por meio da pesquisa dos valores sociais vigentes, o chamado Volksgeist (espírito do povo), criando as bases do sociologismo que, décadas mais tarde, seria fundamental para o desenvolvimento do positivismo jurídico. O positivismo jurídico nasce, portanto, da necessidade de se construir uma teoria estruturalista do direito, de natureza descritiva, nos moldes do método científico em voga ao longo do século XIX e parte do século XX. Para tanto, em termos metodológicos, propõe a separação conceitual entre direito e moral, a fim de que se possa analisar o direito de forma neutra, descrevendo-lhe as características fáticas, a despeito da função que exerça na sociedade. Assim, o conceito de direito não deve fazer alusão a seu conteúdo, mas tão-somente à sua forma, e caracteriza-se, portanto, por ser um sistema de normas postas pela autoridade estatal competente, segundo as normas de estrutura que prescrevem a criação de normas jurídicas válidas. O direito pode, destarte, ter qualquer conteúdo, desde que sua criação obedeça aos requisitos estatuídos pelo próprio ordenamento, independentemente de ser justo ou injusto. Em termos teóricos, o juspositivismo se coloca a tarefa de elaborar uma teoria geral do direito, composto por uma teoria da norma jurídica e uma teoria do ordenamento jurídico. Ao contrário do que inicialmente propôs, o juspositivismo também se constituiu como ideologia, consubstanciada na idéia de aplicação obrigatória do direito, independentemente de seu conteúdo. O direito, segundo essa perspectiva, sendo válido, possuía força moral obrigatória, não cabendo ao intérprete perquirir a sua moralidade ou justiça. Após o fim da Segunda Grande Guerra, e em reação às atrocidades perpetradas pelos regimes nazi-fascistas, os teóRevista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau – Recife – ano 5 – n. 5 – p. 161-204 – 2010 Neoconstitucionalismo e Juspositivismo: superação ou complementaridade? 199 ricos do direito começam a propugnar a criação de uma nova teoria do direito, arrimada em valores como a dignidade humana, a vida, a liberdade e a defesa dos direitos fundamentais, constitucionalmente protegidos. Surge, assim, o neoconstitucionalismo que, assim como o juspositivismo, apresenta três faces: metodologia, teoria e ideologia do direito. Como metodologia, o neoconstitucionalismo prega a conexão conceitual entre direito e moral, assemelhando-se, nesse sentido, à tradição jusnaturalista. Não é correto, contudo, afirmar que o neoconstitucionalismo seja uma forma de retorno ao jusnaturalismo, pois este é essencialmente universalista em matéria ética, enquanto o neoconstitucionalismo não parte de uma perspectiva universalista, ao contrário, defende a realização de valores que considera historicamente delimitados. A conexão conceitual entre direito e moral, defendida pelo neoconstitucionalismo, apresenta problemas para uma adequada compreensão do fenômeno jurídico. Admiti-la significa excluir da teoria do direito a possibilidade lógica de criticar seu objeto, uma vez que somente seria conceituado como direito aquilo que fosse considerado justo e perfeito. Dessa consequência, exsurge outra: a de definir qual perspectiva moral se deve ter em conta ao se buscar uma definição para o direito. As sociedades contemporâneas caracterizam-se pela pluralidade de sistemas morais, o que torna extremamente difícil e problemático o trabalho do estudioso do direito, já que não se pode falar em superioridade de um sistema moral em relação a outro. Nesse sentido, a proposta metodológica juspositivista permanece sendo a mais adequada para a melhor compreensão do fenômeno jurídico. Como teoria, o neoconstitucionalismo não representa, necessariamente, um contraponto ao juspositivismo teRevista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau – Recife – ano 5 – n. 5 – p. 161-204 – 2010 200 Rodrigo Andrade de Almeida órico. Pode ser, ao contrário, seu complemento, sua atualização em face das transformações ocorridas no direito a partir da segunda metade do século XX. Desde que se adote o modelo descritivo da constituição como norma, a teoria neoconstitucionalista complementa a teoria juspositivista, ao ampliar a noção de norma jurídica para englobar os princípios constitucionais e as regras de textura aberta. Se, ao contrário, adota-se o modelo normativo da constituição como norma, deixa-se de ter uma teoria, para se ter uma abordagem ideológica do direito. Como ideologia o neoconstitucionalismo propugna a defesa e realização de uma pauta moral constitucionalizada, arrimada no princípio da dignidade humana. Os valores morais e princípios de justiça positivados em sede constitucional são aqueles inspirados nas declarações de direitos humanos, e passam a ter eficácia horizontal, aplicando-se também às relações privadas, e não mais somente às relações verticais entre o indivíduo e o Estado. Não parece restar dúvida de que a ideologia neoconstitucionalista é pautada na traumática experiência das Grandes Guerras do século XX, e busca, de alguma forma, evitar que as atrocidades perpetradas durante aqueles conflitos se repitam. Nesse sentido, desempenha uma função importante, sobretudo quando fornece elementos teóricos para a construção de uma teoria funcionalista do direito. Positivismo jurídico e neoconstitucionalismo, portanto, complementam-se para formar uma teoria do direito que melhor compreenda o direito ocidental capitalista contemporâneo. A metodologia do positivismo jurídico, aliada à ideologia neoconstitucionalista podem concorrer para a construção de uma completa teoria do direito, que dê conta de explicar as características atuais do direito, não só no Revista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau – Recife – ano 5 – n. 5 – p. 161-204 – 2010 Neoconstitucionalismo e Juspositivismo: superação ou complementaridade? 201 momento de sua criação, mas também no que toca ao processo de sua aplicação. Destarte, ao invés de disputarem o monopólio da verdade sobre o direito, construindo paradigmas isolados e permanecendo ilhados, mais proveitoso deve ser unirem-se, no que for possível, o juspositivismo e o neoconstitucionalismo, este como teoria funcionalista, de natureza normativa, aquele como teoria estruturalista, de natureza descritiva do direito, a fim de que se possa compreender de maneira mais adequada o fenômeno jurídico, e o mais preciso conhecimento da estrutura do direito, aliado ao debate acerca de sua função social possam ensejar a sempre tão desejada aproximação do direito com o ideal de justiça, funcionando, quiçá, como ponte entre ambos. Afinal, pontes são melhores do que ilhas. Referências BITTAR, Eduardo C. B.; ALMEIDA, Guilherme Assis de. Curso de filosofia do direito. 5.ed. São Paulo: Atlas, 2007 BOBBIO, Norberto. Positivismo jurídico: lições de filosofia do direito. São Paulo, Ícone, 1995. __________. Direito e estado no pensamento de Emanuel Kant. 3.ed. 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Revista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau – Recife – ano 5 – n. 5 – p. 161-204 – 2010 Sobre a prova na reforma processual penal 205 SOBRE A PROVA NA REFORMA PROCESSUAL PENAL Roque de Brito Alves Doutor em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade Federal de Pernambuco, Professor de Direito Penal do Curso de Direito da Faculdade Maurício de Nassau e da Faculdade de Ciências Humanas de Pernambuco, Membro da Academia Pernambucana de Letras, Advogado. RESUMO O presente artigo traz à baila questões controvertidas acerca da prova no processo penal, máxime sobre uma perspectiva analítica a partir da reforma proposta no projeto de reforma do Código de Processo Penal em tramitação no Congresso Nacional. São analisados aspectos dogmáticos e filosóficos, além de apresentada uma contraposição da legislação nacional comparada com estatutos de outros países; nesta perspectiva apresenta-se como homenagem À memória de Nelson Hungria (Brasil), Hans-Heinrich Jescheck (Alemanha), Giuseppe Bettiol (Itália) e Marc Ancel (França), Mestres da Ciência Criminal Contemporânea que honraram o autor com amizade e consideração. Revista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau – Recife – v. 5 – n. 5 – p. 205-216 – 2010 206 Roque de Brito Alves SUMÁRIO 1. Os textos; 2. Elementos probatórios diferentes; 3. Síntese sobre a compreensão filosófica de “verdade”; 4. Sobre a “verdade processual”; 5. Compreensão do “in dubio pro reo”; 6. Direito comparado; 7. Uma conclusão; 8. A convicção do juiz; 9. Nossa tese fundamental: não existe “a prova do fato” e sim “a prova de uma versão ou interpretação do fato”. 1. – OS TEXTOS a) Arts. 413, 414, 415 e 483 da Lei nº 11.689/2008 sobre a instituição do júri; b)Arts. 155, 156, 157 e 386 da Lei nº 11.690/2008 sobre a prova; c) Lei nº 11.719/2008: arts. 383 e 384: Aditamento da Denúncia (“emendatio libelli”) e alteração da acusação (“mutatio libelli”); d)O Projeto de Lei do Senado nº 156 de 2009 sobre o Novo Código de Processo Penal: Título VIII do Livro I – “Da Prova” –: do art.162 até o art. 251 (89 artigos): 1.As provas serão propostas pelas partes” (art. 162) porém o juiz poderá esclarecer dúvida sobre a prova produzida antes de proferir a sentença (par. un. do art. 162); 2.Não se admite as provas produzidas por meios ilícitos, direto ou indiretamente (art. 164): teoria dos frutos da árvore envenenada (“fruits of the poisonous tree”); Revista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau – Recife – ano 5 – n. 5 – p. 205-216 – 2010 Sobre a prova na reforma processual penal 207 3.A convicção do juiz será pela livre apreciação das provas em juízo e deve ser fundamentada (art. 165); 4.“A existência de um fato não pode ser inferida de indícios, salvo quando forem graves, precisos e concordantes” (Parágrafo Primeiro do art. 165); 5.As declarações de co-autor ou participe de crime “só terão valor se confirmadas por outro elemento de prova que atestem a sua credibilidade” (parágrafo segundo do art. 165); não existe o interrogatório do acusado como meio de prova porém existem as declarações da vítima a tal respeito (art. 187); 6. O projeto do Novo CPP não tem dispositivo ou artigo sobre o ônus da prova porém em nosso entendimento o mesmo cabe a quem alega, a quem afirma e no Processo Penal é o M.P. que tem que provar a materialidade do fato, a autoria (ou co-autoria ou participação) e a culpabilidade e a defesa que nega isso não tem de provar, como por exemplo não tem de provar que o acusado agiu protegido por uma justificativa ou uma dirimente penal (causa de exclusão de crime ou de exceção de pena). Em verdade, se o atual inciso VI do art. 386, com a nova redação da Lei 11.690/08 determina que o juiz absolverá o acusado quando “houver fundada dúvida” da existência de justificativa ou dirimente penal lógica e juridicamente conclui-se que a defesa não tem de provar nada, basta apresentar-se uma dúvida a tal respeito e assim o M.P. tem Revista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau – Recife – v. 5 – n. 5 – p. 205-216 – 2010 208 Roque de Brito Alves de provar que o acusado praticou um crime e tem de ser punido, que o acusado não agiu com a causa de exclusão de crime ou de isenção de pena e não que a defesa tem de provar que o acusado não praticou o fato ilícito ou que não merece ser punido. Incontestável, assim, que a acusação tem de provar a materialidade do fato, a autoria ou participação e a culpabilidade como os elementos fundamentais para uma condenação e previamente para uma procedência de uma acusação. Quem afirma é quem deve provar e não quem nega; 7.O projeto exige para pronúncia a existência de “indícios suficientes de autoria ou participação” (art. 315), não o de simples indício e obviamente a impronúncia em sua ausência ou no convencimento do juiz (art. 316); 8.Sobre a sentença: no projeto do Novo CPP: a absolvição em seu art. 410 por 7 (sete) causas de absolvição, sendo que em caso de ser por justificativa ou dirimente penal (nº VI do art. 410) ou seja com fundamento nos arts. 23, I, II, III, 24 e 25: (exclusão de crime) ou isenção de pena: “arts. 21, 22, 26 e parágrafo primeiro do art. 28 do Código Penal vigente), ou mesmo se houver fundada dúvida sobre a sua existência (nº VI do art. 410), o que demonstra que a defesa não tem de provar que o acusado agiu amparado por uma dirimente ou uma justificativa penal, basta uma dúvida a tal respeito, a acusação é que deve provar que o acusado agiu criminosamente. O texto atual a respeito está no art. 386 do CPP; Revista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau – Recife – ano 5 – n. 5 – p. 205-216 – 2010 Sobre a prova na reforma processual penal 209 9.Além disso, o nº VII do art. 410 do Projeto determina a absolvição quando não “existir prova suficiente para a condenação, isto é exige-se certeza de culpabilidade do acusado que não deixe margem a nenhuma dúvida ou hipótese favorável ao acusado; 10. Outras causas de absolvição pelo art. 410: 1. Prova do fato não ter existido; 2. Não haver prova da existência do fato; 3. O fato é atípico, não constitue uma infração penal; 4. Está provado que o acusado não concorreu para a infração penal; 5. Não existir prova de que o acusado concorreu para a infração penal. Assim sendo, o Projeto do Novo Código de Processo Penal na parte referente à prova manteve os textos da lei nº 11.690 de 09 de julho de 2008, porém sem o texto sobre o ônus da prova e também entre os “meios de prova” não incluiu o interrogatório do acusado, o que é jurídica ou tecnicamente um erro injustificável porém incluiu como tais as “declarações da vítima” (art. 187). 11. O Projeto manteve os textos da Lei 11.689/2008 em relação ao procedimento acerca do Tribunal do Júri, art. 309 a 398 do Projeto. Entretanto, essencialmente são diferentes os quesitos do seu art. 385 que devem ser respondidos pelos jurados que ficaram reduzidos a três: a) “Se deve o acusado ser absolvido”; b) “Se existe causa de diminuição de pena alegada pela defesa”; c) “Se existe circunstância qualificadora ou causa de aumento de pena recoRevista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau – Recife – v. 5 – n. 5 – p. 205-216 – 2010 210 Roque de Brito Alves nhecidas na pronúncia”. Caso seja respondido positivamente o primeiro quesito pela maioria de quatro jurados, a votação será encerrada e o acusado absolvido, porém se for negado por maioria o primeiro quesito que é se o acusado deve ser absolvido, haverá a condenação porém o juiz tem de indagar os quesitos sobre as causas de diminuição de pena ou as qualificadoras ou agravantes. 2. ELEMENTOS PROBATÓRIOS DIFERENTES Tecnicamente, distinguimos os elementos probatórios que são indispensáveis para uma denúncia, um decreto de prisão preventiva, uma decisão de pronúncia e uma sentença, respectivamente: indícios leves ou imprecisos de autoria, de co-autoria ou de participação para uma denúncia; indícios suficiente a tal respeito para um decreto de prisão preventiva ou uma sentença de pronúncia; prova suficiente, sinônima de prova cabal, concludente, absoluta, de certeza para uma sentença criminal condenatória, a qual, em nossa compreensão, não pode basear-se em prova indiciária ou indireta que por sua própria natureza não pode gerar certeza de autoria ou de culpabilidade e sim apenas probabilidade a tal respeito. 3. SÍNTESE SOBRE A COMPREENSÃO FILOSÓFICA DE “VERDADE” Na problemática da verdade, é mais correta a sua compreensão como “a conformidade do intelecto com a realidade” (com o objeto, a coisa) – “adaequatio intellectus Revista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau – Recife – ano 5 – n. 5 – p. 205-216 – 2010 Sobre a prova na reforma processual penal 211 et rei” –, e não a sua compreensão contrária ou seja “adaequatio rei et intellectus”, isto é a relação da ideia de verdade com a ideia do objeto pensado como se a realidade estivesse “mentalizada em nosso pensamento”. Na matéria, ainda é válida a fórmula de Aristóteles sobre a verdade: “sustentar, negar aquilo que é afirmar aquilo que não é, é falso, enquanto afirmar que é e negar o que não é, é verdade”. Ainda, no século passado, não seria diferente a teoria do grande filósofo Heidegger ao proclamar que uma proposição ou enunciado é verdadeiro quando o que expressa ou afirma está conforme com a coisa enunciada ou afirmada. Por outra parte, filosoficamente conceitua-se “a ignorância” como a ausência de conhecimento, “erro” é o conhecimento equivocado que não corresponde a uma verdade ou a uma realidade, “mentira” é a dolosa distorção ou deturpação da verdade, “meia verdade” é a sua não expressão total como pode ser encontrada na prova testemunhal. Ainda, a “probabilidade” é a ante-sala ou ante-câmara da verdade, é um “tudo indica” que um certo fato ou resultado tenha existido ou ocorrido porém ainda não é “a certeza” a tal respeito. A moderna Teoria do Conhecimento ou Gnosiologia (“Theorie de la Connaissance”, “Theory of Knowledge”, “Erkentnisstheorie”) demonstra que existe obrigatoriamente uma relação ou união entre o sujeito e o objeto (coisa, realidade), implicando sempre em três elementos: o sujeito que conhece (cognoscente), o objeto cognoscível e ato de união entre os dois, iniciando-se o conhecimento através da percepção, dos nossos sentidos que apreendem a realidade (Hessen). Então, surge a certeza que é a identificação da mente com a realidade que gera a ideia verdadeira, e o fato ou a realidade já está lá ou esteve lá, o fato já existe ou exisRevista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau – Recife – v. 5 – n. 5 – p. 205-216 – 2010 212 Roque de Brito Alves tiu, é algo objetivo e assim verdadeiros ou falsos serão os fatos que serão captados ou não apreendidos. Assim sendo, na Justiça e no Direito, a certeza tem que estar conforme ou concordando com a realidade dos fatos, a realidade objetiva, concreta, positiva e ainda na Legislação Processual Penal a certeza que se busca é a judiciária na medida da possível, da alcançável e processualmente válida. Tal verdade judicial não é absoluta, puramente metafísica é a objetiva ou processualmente válida, possível. Por outra parte, afirma-se que juridicamente o que não está nos autos ou não está provado não estaria no mundo. Em conclusão se filosoficamente a verdade é a conformidade do intelecto (mente) com a realidade (“adaequatio mentis ad rem”), juridicamente a verdade real ou a verdade possível é aquela que se ajusta ao fato que já existe ou existiu na demonstração de uma sua versão ou interpretação. Afinal, a Teoria do Conhecimento como a parte da Filosofia que trata da origem, da natureza, do valor e dos limites da nossa faculdade de conhecer ao analisar a problemática da verdade auxilia muito a compreensão jurídica acerca da verdade processual. 4. SOBRE A “VERDADE PROCESSUAL” Fala-se muito na doutrina e na jurisprudência que a finalidade do Processo Penal é a busca da “verdade real” e a do Processo Civil “a verdade formal”, porém talvez, em nossa compreensão em vez de falar-se na expressão ou na obtenção da “verdade real” como a finalidade do Processo Penal fale-se em termos de “verdade possível” ou verossimilhança com base em um “juízo de probabilidade” devido Revista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau – Recife – ano 5 – n. 5 – p. 205-216 – 2010 Sobre a prova na reforma processual penal 213 à impossibilidade do ser humano de atingir de uma forma absoluta o que é a verdade e consequentemente também “a verdade real” e esta em nossa compreensão seria aquela que é conforme a um fato real. 5. compreensão do “IN dUbio pro rEO” Entendemos que com a dúvida não existirá verdadeiramente a prova e não como é costume afirmar-se que “a prova é precária, é frágil, é insuficiente” pois a dúvida é a negação da prova, é a sua antítese, com ela a prova inexiste. “Dúvida” e “Prova” são dois vocábulos ou conceitos incompatíveis entre si, que se excluem ou se negam mutuamente pois a dúvida é inconciliável com a verdade pois vai eliminar também a certeza, sendo a dúvida um estado de incerteza, afirma-se alguém é “invadido pela dúvida”, hesitando entre “um sim e um não”, se um fato é verdadeiro ou é falso, não podendo portanto haver decisão judicial baseada em dúvida que se opõe à verdade e a certeza. Assim sendo sustentamos que com a dúvida não existe “prova” e não somente que a prova é “insuficiente, frágil” impossibilitando uma condenação. 6. DIREITO COMPARADO Destaquemos que nos três grandes sistemas europeus contemporâneos de valorização da prova – o “beyond reasonable doubt” inglês, o da “intime conviction” francês, e o do “libero convincimento del giudice” italiano – é realmente unânime a compreensão de que apenas uma certeRevista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau – Recife – v. 5 – n. 5 – p. 205-216 – 2010 214 Roque de Brito Alves za absoluta (na medida em que o ser humano pode atingir uma certeza absoluta sobre qualquer coisa ou problema) de culpabilidade ou de responsabilidade penal pode legitimar uma condenação criminal, a evidência de culpabilidade para uma sentença criminal condenatória é uma exigência básica da Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU de 1948 pois está unida intimamente ao princípio de presunção de inocência de qualquer acusado até que a sua culpabilidade seja devidamente comprovada e presunção, aliás, também acolhida na vigente Constituição Federal de 05 de outubro de 1988. Presunção de inocência, em síntese, em termos de não culpabilidade de acusado. Em um Estado Democrático de Direito condenação somente baseada em certeza, em prova suficiente e não em indícios que por sua própria natureza nunca podem gerar uma certeza de culpabilidade do acusado. 7. UMA CONCLUSÃO Se filosoficamente sustenta-se que o ser humano não pode atingir a verdade absoluta ou suprema (somente Deus é que é a verdade absoluta ou suprema) e que em sua conceituação a verdade é a conformidade ou adequação entre o intelecto e a realidade (coisa), juridicamente no estrito campo da processualística penal podemos proclamar que a mesma atualmente mais do que a denominada “verdade real” em termos de fatos reais, fatos verdadeiros, de evidência melhor seria dito que a sua finalidade é a busca da “verdade possível”, a verdade processualmente válida sempre em termos dos elementos probatórios existentes na ação penal. Revista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau – Recife – ano 5 – n. 5 – p. 205-216 – 2010 Sobre a prova na reforma processual penal 215 8. A CONVICÇÃO DO JUIZ A convicção do juiz pela livre apreciação da prova colhida em juízo não significa que tal liberdade seja sinônima de puro arbítrio ou despotismo judicial, tem de atender a prova dos autos, aos elementos probatórios colhidos em juízo. Tal princípio está estabelecido no art. 165 do Projeto do Novo CPP, com a ressalva ou esclarecimento do seu parágrafo primeiro de que a existência de um fato não pode ser deduzida, concluída ou inferida de indícios, a não ser quando forem graves, precisos e concordantes, situação muito difícil de ocorrer em um processo criminal pois existem os contra-indícios e sobretudo que os mesmos não podem gerar uma condenação, o que se deduz do número VII do art. 410 desde que a prova indiciária não pode gerar a certeza indispensável para uma condenação. A livre apreciação das provas pelo juiz, conforme a doutrina, é feita através da lógica, da psicologia e da experiência de vida do julgador porém, reafirme-se não é simples convicção íntima, não é capricho, arbitrariedade do julgador, não pode alienar-se das provas ou decidir contrariamente aos elementos probatórios colhidos em juízo. 9. NOSSA TESE FUNDAMENTAL: NÃO EXISTE “A PROVA DO FATO” E SIM A PROVA DE “UMA VERSÃO OU INTERPRETAÇÃO DO FATO” Em síntese, sustentamos que não está correto quando se afirma ou se enfatiza em obras doutrinárias de processo penal e em decisões de juiz e tribunais sobre “a prova do fato” pois “a prova” verdadeiramente não é “a prova do Revista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau – Recife – v. 5 – n. 5 – p. 205-216 – 2010 216 Roque de Brito Alves fato” desde do que o fato já existe, é pré-existente à prova, é seu antecedente, não é algo “criado” pela prova, não se “origina” da prova. Em conseqüência, sustentamos que essencialmente a prova é “a prova de uma versão ou interpretação do fato” e não do próprio fato em si que não é criado pela prova. Em conseqüência, a prova demonstra ou evidencia uma certa versão ou interpretação de um fato ocorrido e não, em absoluto, a existência do próprio fato que não é criado com a mesma. Revista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau – Recife – ano 5 – n. 5 – p. 205-216 – 2010 Constitucionalização dos direitos dos animais 217 CONSTITUCIONALIZAÇÃO DOS DIREITOS DOS ANIMAIS Tagore Trajano de Almeida Silva Professor da Faculdade Maurício de Nassau/Salvador/Bahia. Mestre em Direito Público e pesquisador da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Visiting Scholar da Michigan State University (MSU/ USA). Pesquisador Visitante da University of Science and Technology of China (USTC/China). RESUMO Este ensaio pretende apresentar ao leitor uma discussão sobre a constitucionalização das normas ambientais. As transformações trazidas pela Constituição de 1988 não se restringem aos aspectos estritamente jurídicos, mas se entrelaçam com as dimensões ética, biológica e econômica dos problemas ambientais. O direito animal surge alternativa de dilatação dos fundamentos éticos a fim de abranger os demais animais, reconhecendo um direito inerente a todo reino animal. Assim, a vedação de toda e qualquer prática de crueldade tornará os animais não-humanos em titulares/ beneficiários do sistema constitucional, devendo o Poder Público e a coletividade buscar a implementação de polítiRevista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau – Recife – v. 5 – n. 5 – p. 217-235 – 2010 218 Tagore Trajano de Almeida Silva cas públicas que visem à concretização da norma constitucional. Palavras-chave : constituição – Direito Animal – Direito Ambiental ABSTRACT This essay presents the reader with a discussion about Environmental Constitution Law. The changes brought by the 1988 Constitution are not restricted to the strictly legal, but is interwoven with the ethical, economic and biological environmental problems. The animal law appears alternate expansion of the ethical foundations to cover the other animals, recognizing a right inherent in every animal kingdom. Thus, the sealing of any practice of cruelty will make nonhuman animals in holders / beneficiaries of the constitutional system, and the Public Authority and the community seek to implement public policies that aim at implementing constitutional norms. Keywords: Constitution – Animal Law – Environmental Law 1. INTRODUÇÃO Antes de afirmarmos que a Constituição de 1988 estabeleceu como um dos objetivos do Estado brasileiro a proteção dos animais, cumpre-nos fazer um pequeno retorno à história. No Brasil, o processo de constitucionalização dos direitos foi demorado. Laerte Levai lembra que o primeiRevista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau – Recife – ano 5 – n. 5 – p. 217-235 – 2010 Constitucionalização dos direitos dos animais 219 ro registro de uma norma a proteger animais de quaisquer abusos ou crueldade, foi o Código de Posturas, de 6 (seis) de outubro de 1886, do Município de São Paulo1, em que o artigo 220 dizia que os cocheiros, condutores de carroça estavam proibidos de maltratar animais com castigos bárbaros e imoderados, prevendo multa. A constitucionalização somente viria com o advento da Constituição de 1988, momento em que as normas ambientais adquiririam status constitucional. O direito à proteção ambiental passou a ser considerado direito fundamental2. As transformações trazidas pela Constituição de 1988 não se restringem aos aspectos estritamente jurídicos, mas se entrelaçam com as dimensões ética, biológica e econômica dos problemas ambientais3. O direito animal surge, então, como uma alternativa de dilatação dos fundamentos éticos a fim de abranger os demais animais, reconhecendo um direito inerente a todo reino animal.4 Dentro do ordenamento jurídico, a vedação de toda e qualquer prática de crueldade tornará os animais não-humanos em titulares/beneficiários do sistema constitucional, devendo o Poder Público e a coletividade buscar a implementação de políticas públicas que visem à concretização da norma constitucional que transcrevemos abaixo: Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem 1 LEVAI, Laerte Fernando, Direito dos Animais. Op. cit.. p. 27-28. 2 MEDEIROS, Fernanda Luiza Fontoura. Meio Ambiente: direito e dever fundamental. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004 . p. 110. 3 BENJAMIN, Antônio Herman. Constitucionalização do ambiente e ecologização da Constituição brasileira. In: CANOTILHO, José Joaquim Gomes; LEITE, José Rubens Morato. Direito constitucional ambiental brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 109.. 4 FENSTERSEIFER, Tiago. Direitos fundamentais e proteção do ambiente: a dimensão ecológica da dignidade humana no marco jurídico-constitucional do estado socioambiental de direito.Porto Alegre : Liv. do Advogado , 2008 p. 25-39. Revista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau – Recife – v. 5 – n. 5 – p. 217-235 – 2010 220 Tagore Trajano de Almeida Silva de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações. § 1º - Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao Poder Público: VII - proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais à crueldade. Ao incluir a proteção animal sob a tutela constitucional, o constituinte delimitou a existência de uma nova dimensão do direito fundamental à vida e do próprio conceito de dignidade da pessoa humana5. A Constituição Federal de 1988 será, portanto, o marco para o pensamento sobre os direitos dos animais no Brasil, uma vez que ao proibir em âmbito constitucional que o animal não-humano seja tratado de forma cruel, reconhece ao animal não-humano o direito de ter respeitado o seu valor intrínseco, sua integridade, vida e liberdade. Uma legislação infraconstitucional de proteção animal não pode suprimir determinado direito estabelecido pelo constituinte6. Existiria um mínimo existencial que abrangeria também os animais não-humanos. Ter uma existência digna, fazendo com que os direitos dos outros seres sejam respei tados é interpretação que pode ser feita com base na consti5 MEDEIROS, Fernanda Luiza Fontoura. Meio Ambiente. Op. cit.. p. 113. 6 BARROSO, Luís Roberto. O Direito Constitucional e a Efetividade de suas normas. 5. ed. São Paulo, Saraiva, 2001. p. 159. Revista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau – Recife – ano 5 – n. 5 – p. 217-235 – 2010 Constitucionalização dos direitos dos animais 221 tuição7. Para Fábio de Oliveira, o fato de muitos homens viverem aquém do mínimo existencial não exime o Estado de cumprir seu papel de defesa dos direitos dos animais. Não se pode esperar solucionar as mazelas da humanidade para que somente após a solução destas se passe a considerar os interesses dos animais8. 2. O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL E A CRUELDADE CONTRA OS ANIMAIS NO BRASIL Encontra-se ao analisar a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal brasileiro que o debate sobre maiores direitos para os animais já se iniciou. Apesar da relutância de alguns operadores jurídicos em permitir processos que versem sobre a temática dos direitos dos animais, casos envolvendo crueldade para com os animais vem aparecendo no Supremo Tribunal. Partindo de normas constitucionais e infraconstitucionais, os Ministros têm definido o que vem a ser maus-tratos com animais e práticas cruéis. Com base na Constituição Brasileira ao dispor que: 1. Não se pode excluir da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direitos; 2. Ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente; e, 3. Ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal; os Ministros iniciam uma discussão com o intuito de regulamentar o artigo 225, parágrafo 1, inciso VII da Constituição. 7 OLIVEIRA, Fábio Corrêa Souza de. Categorias dos direitos humanos aplicadas aos direitos dos animais não-humanos: do caminho em curso ao caminho a percorrer. In Anais do I Congresso Mundial de Bioética e Direito Animal. Salvador: Evolução, 2008. Disponível em: www.nipeda.direito.ufba.br. p. 07. 8 OLIVEIRA, Fábio Corrêa Souza de. Categorias dos direitos humanos aplicadas aos direitos dos animais não-humanos: do caminho em curso ao caminho a percorrer. Op. cit.. p. 07. Revista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau – Recife – v. 5 – n. 5 – p. 217-235 – 2010 222 Tagore Trajano de Almeida Silva Para o Supremo Tribunal Federal, os mandamentos constitucionais e infraconstitucionais estariam direcionados àqueles que têm o status de pessoa. Este pensamento partiria da interpretação do Código Civil e Processo Civil que requer a personalidade na aplicação do artigo primeiro do Código Civil que estabelece: “toda pessoa é capaz de direito e deveres no ordenamento brasileiro” e do artigo segundo ao dispor que ”A personalidade jurídica começa com o nascimento com vida, mas são reconhecidos alguns direito ao nascituro desde a concepção”. Igualmente, no artigo sétimo do Código de Processo Civil pode-se encontrar que “Toda pessoa é capaz de ir a juízo reclamar pelos seus direitos”. Ao combinar estes enunciados, parte dos juízes brasileiros tem chegado à conclusão que somente os seres humanos têm standing para reivindicar seus direitos perante o Judiciário. Ocorre que por muito tempo o direito tem criado um muro de obstáculos evitando que se conceda direito aos animais com base no dogmatismo que impera na sua teoria. Thomas Kelch afirma que o status de propriedade dos animais impede com a possibilidade dos animais serem autores em causas judiciais, já que desde o momento em que os animais são considerados propriedade, eles não tem direitos e seus representantes não podem apelar em favor deles. Para o autor, apenas depois de alguns anos, a Suprema Corte dos Estados Unidos tem reconhecido que animais domésticos são um pouco mais que propriedade, pelo fato de serem seres vivos com sentimento, emoções e afeição, ou seja, mais que objetos9. 9 KELCH, Thomas G.. Toward a non‐property status for animals. 6 N.Y.U. Envtl. L.J. (1998). p. 537. Revista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau – Recife – ano 5 – n. 5 – p. 217-235 – 2010 Constitucionalização dos direitos dos animais 223 Porém, qual o caminho que o sistema brasileiro tem seguido? A lógica do sistema brasileiro é impregnada por atitudes conservadoras. As decisões dos tribunais brasileiros, exceto raras exceções, são embebidas por um alto legalismo que faz com que o animal seja ainda pensado em função dos desejos de seu dono. Juízes e promotores não tem ainda dado o devido reconhecimento para os casos envolvendo animais não-humanos. Pode-se dizer que este entendimento é visto mesmo no Supremo Tribunal Federal. Contudo, algumas decisões se destacam e talvez possam servir para a possibilidade de mudança de paradigma a ser seguido em um futuro próximo. Em 1997, o caso da farra do boi chegou aos tribunais brasileiros. A farra do boi é uma tradição Ibérica trazida por portugueses e espanhóis para o Brasil. Um boi é amarrado com uma vara de pescoço ao rabo, a fim de que os participantes do evento corram e fujam do animal. Evidenciado o sofrimento do animal e a forma desumana que ele é submetido, associações de Proteção Animal foram a juízo demonstrar que a festa era um exemplo de maus tratos com os animais e por isso deveria cessar. Na primeira instância o juiz não aceitou o pleito, afirmando que não existiam fundamentos legais para o fim da prática cultural, sendo necessário apelar para o tribunal de Santa Catarina e logo após para o Supremo Tribunal Federal. No STF o responsável pela relatoria do caso foi o Ministro Francisco Rezek. De acordo com o parecer do Ministro, o artigo 225 parágrafo 1, VII da Constituição Brasileira deveria ser imediatamente aplicado ao caso, visto ser uma forma evidente de crueldade com os animais. Para Rezek não seria necessário o Judiciário esperar pelo Legislativo ou Executivo, uma vez que a norma continha aplicabilidade imediata. Revista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau – Recife – v. 5 – n. 5 – p. 217-235 – 2010 224 Tagore Trajano de Almeida Silva Como veremos nas próximas seções, o Ministro Rezek dirá que questão importante a ser questionada será a respeito da possibilidade de uma sociedade de proteção animal de outro estado ir a juízo se manifestar sobre o caso. Será que uma sociedade como essa teria interesse no problema? Ou mesmo se um “mero interesse no problema” seria motivo para o Tribunal reconhecer a capacidade de uma organização estar em juízo? O Ministro Rezek conclui que em um Estado federativo, onde diversos são os problemas existentes caberia sim a uma associação de defesa do bem estar dos animais o dever de agir no instante em que ninguém mais atuou, nem os poderes públicos, Para o Ministro, o sistema judicial estava obrigado a receber o caso. A sentença do STF foi no sentido de que a farra do boi seria um espetáculo extremamente cruel que geralmente resulta na morte do animal durante as festividades. Consoante a opinião de Rezek, afirmar que a farra do boi é uma manifestação cultural é desconsiderar as reportagens, fotos e comentários sobre a festa que constam nos autos do processo. Para ele, prática salutar é daqueles Estados brasileiros nos quais há práticas culturais, porém não causam mal as formas de vida. Ao invés, utilizam animais de papel, fantasias para se manifestar, evitando assim a violência e a crueldade com os animais. Por estes motivos, o relator defendeu que a farra de boi fosse declarada inconstitucional e banida da sociedade brasileira. O julgamento seguiu nessa direção, contudo, cabe relatar o voto dissidente do Ministro Maurício Corrêa. Para o Ministro Corrêa, o Supremo Tribunal Federal não poderia proibir a farra do boi por se tratar de uma manifestação cultural também suportada por mandamentos constitucionais. Segundo ele, os artigos 215 e 216 da Constituição Federal Revista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau – Recife – ano 5 – n. 5 – p. 217-235 – 2010 Constitucionalização dos direitos dos animais 225 garantem ao festival uma proteção do Estado brasileiro, já que constitui uma manifestação cultural. Art. 215. O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais. § 1º - O Estado protegerá as manifestações das culturas populares, indígenas e afro-brasileiras, e das de outros grupos participantes do processo civilizatório nacional. Art. 216. Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira (…) Para o ministro Corrêa, o STF deveria cobrar do Estado de Santa Catarina que se mobilizasse e exercesse seu poder de polícia com o intuito de reprimir práticas de violência ou crueldade com os animais durante a festa. Para ele, o papel do judiciário é o de ajudar o Estado em não permitir práticas cruéis, não de proibir uma prática cultural. Outro caso a trabalhar com questões relacionadas à crueldade com os animais é o referente à briga de galo. O primeiro caso sobre briga de galo a chegar ao Supremo Tribunal Federal foi em 1957. Este caso teve como relator o Ministro Candido Mota. Para o Ministro, briga de galo não poderia ser considerada esporte ou manifestação cultural, Revista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau – Recife – v. 5 – n. 5 – p. 217-235 – 2010 226 Tagore Trajano de Almeida Silva mas sim prática de maus-tratos aos animais que são colocados em combate. De acordo com o Ministro e com base no artigo 64 da Lei de contravenções-penais, qualquer um que participasse ou fizesse parte da prática deveria ser conduzido à delegacia. Para Candido Mota, os galos são obrigados a diversos regimes de treinamento onde se busca adaptar os músculos e o coração para as lutas, tudo isso com o único objetivo de matar rapidamente seu oponente. Ainda naquela época, outras duas decisões podem ser encontradas no Supremo Tribunal Federal. Em 1958, o Estado de São Paulo editou um regulamento com o intuito de proibir a crueldade com os animais. A portaria nº 74 de 03 de agosto de 1956 dizia: O Secretário do Estado dos Negócios da Segurança Pública, no uso de suas atribuições legais, tendo em vista a representação da união Internacional Protetora dos Animais e, Considerando que nas rinhas de galo são os animais tratados com crueldade, configurando-se tipicamente, a infração do artigo 64 da Lei de Contravenções Penais; Considerando que dessa infração decorre invariavelmente outra, não menos perniciosa, a do jogo de azar - que a polícia cumpre combater; Resolve: Ficam terminantemente proibidas em todo o território estadual as rinhas de galo, devendo as autoridades policiais instaurar os competentes processos contravencionais não só contra os seus responsáveis, como contra Revista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau – Recife – ano 5 – n. 5 – p. 217-235 – 2010 Constitucionalização dos direitos dos animais 227 quem promover a luta desses animais, dentro como longe das rinhas, ainda mesmo em lugar privado, sem prejuízo dos a que estarão sujeitos os que participaram das respectivas apostas. Publique-se e Cumpra-se No mesmo ano, o STF decidiu em outro caso que briga de galo seria uma contravenção penal tipificada pelo artigo 64 da lei de contravenção penal. O Ministro Henrique D´Avila foi o relator e asseverou que as pessoas tem um dever de gratidão para com os animais, devendo evitar qualquer tipo de prática cruel. Para o Ministro, a luta por ideais de justiça passam pelo cuidado com os animais. Com base no artigo 24.645/1934 e na lei de contravenções penais, os Ministros decidem na total proibição da briga de galo no país, visto ser considerado ato de crueldade para com os animais e devendo-se ser punidas de forma exemplar, além de multa. Com o advento da Constituição de 1988, novos casos de briga de galos retornaram aos tribunais brasileiros. Três diferentes Estados brasileiros promulgaram legislação permitindo e regulando a briga de galo. O primeiro estado foi o Estado do Rio de Janeiro que publicou a lei de número 2.895, autorizando campeonatos de briga de galo. O STF decidiu que a norma era inconstitucional, já que era contra o que previa o artigo 225, parágrafo 1, VII. Esta decisão foi criticada na época pelo governador do Estado que afirmava que com a regulamentação da atividade ficaria mais fácil supervisionar e controlar a atividade, gerando uma integração maior entre os competidores e mais empregos para o Estado. Para o governador seria constitucional porque reguRevista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau – Recife – v. 5 – n. 5 – p. 217-235 – 2010 228 Tagore Trajano de Almeida Silva la uma tradição popular. Já para o presidente do poder Legislativo, a lei não ofenderia a Constituição que não trata de animais domésticos e sim da fauna e flora como um todo. Contudo, para o Ministro Carlos Velloso, o relator do processo, briga de galo é crueldade com os animais de acordo com o artigo terceiro do decreto 24.645/34. Velloso buscou fundamentos no caso da farra do boi para afirmar que nenhuma manifestação cultural pode violar os dizeres da Constituição Brasileira. Outro Estado a incorrer no mesmo erro foi o de Santa Catarina ao publicar uma legislação que afirmava que briga de galo era uma manifestação popular realizada com galos que vivem para o combate. Isto poderia segundo a petição inicial ser verificado, já que os mesmos não seriam próprios para o consumo humano. Briga de galo seria um esporte tal como a corrida de cavalos. O Ministro Eros Grau foi o relator deste caso e por unanimidade a lei foi declarada inconstitucional, o mesmo acontecendo com outro caso semelhante no Estado do Rio Grande do Norte. 3. LAURENCE TRIBE E AS LIÇÕES DO DIREITO CONSTITUCIONAL ESTADUNIDENSE Será com base nas lições de Laurence Tribe, professor da Faculdade de Direito da Universidade de Harvard, que buscaremos uma fundamentação para a teoria de que os animais podem ser sujeitos de direito, sendo fundamental o reconhecimento deles como pessoas no nosso ordenamento jurídico, podendo assim estar em juízo e reivindicar seus interesses através seja de um substituto ou representante processual. Revista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau – Recife – ano 5 – n. 5 – p. 217-235 – 2010 Constitucionalização dos direitos dos animais 229 Com base na Constituição dos Estados Unidos, Laurence Tribe afirmará que o Direito Constitucional tem evoluído em um processo através do qual tem se buscado proteger outras espécies além da humana. Tribe, então, escreve dez lições a ser aprendida através do estudo da Teoria Constitucional dos Estados Unidos sobre o tema dos direitos dos animais. Entendendo as diferenças entre o sistema brasileiro e o sistema norte-americano, poderemos partir das lições desse autor para desenvolver o direito animal constitucional no Brasil. Para Tribe, a concepção de direitos não deve ser vista como algo assustador a ser reconhecida ou conferida, desde que direito não é algo absoluto. Afirmar que animais nãohumanos têm direitos não deve ser confundido com dar sempre prioridades aos animais não-humanos em questões jurídicas contra os humanos10. Reconhecer direitos é fundamentalmente chamar atenção a determinadas circunstâncias em que tais direitos poderiam ser subscritos. Tribe afirma que se queremos levar a concepção de direito a sério, não importa se são direitos de uma pessoa ou de outro animal, deve-se não permitir invasões da integridade física ou liberdade do indivíduo em qualquer situação gratuita ou desnecessária, inútil ou dolorosa. Tribe ainda afirma que 90% de todas as experimentações feitas em nome da ciência não passam de simples testes que poderiam não ter sido feitos em animais e sim em computadores. Para o direito constitucional, diz ele, deve-se prevalecer o princípio em que se deve escolher a técnica menos invasiva assim como os métodos alternativos. 10 TRIBE, Laurence H. “Ten Lessons Our Constitutional Experience Can Teach Us About the Puzzle of Animal Rights: The Work of Steven M. Wise,” 7 Animal Law 1 (2001). p. 02. Revista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau – Recife – v. 5 – n. 5 – p. 217-235 – 2010 230 Tagore Trajano de Almeida Silva Para Tribe existe um mito ensinado pela doutrina jurídica. O mito de que em nosso ordenamento jurídico, o direito constitucional nunca intitulou outros seres, atribuindo-lhes o status jurídico de pessoa. A concepção de direitos não será afastada ao se atribuir direitos aos animais. Ele ainda assevera que mesmo no sistema jurídico americano marcado pela incoerência e falta de firmeza, ao longo dos anos tem sido reconhecido direitos a entidades que não são seres humanos. Igrejas, sociedades, corporações, sindicatos, família, municípios, mesmo estados têm seus direitos assegurados de forma semelhante ao que acontece no Brasil. De fato, nós às vezes classificamos entes como pessoas para uma ampla gama de propósitos. Há uma ampliação do círculo de consideração jurídica ou mesmo uma ampliação da definição de personalidade. Para Laurence Tribe, o que acontece em geral é matéria de aculturação11. O sistema jurídico pode reconhecer personalidade para os chimpanzés, bonobos e talvez um dia até para computadores que irão além de apenas ganhar de Gary Kasparov, mas passarão a sentir pena ao vê-lo perder. Para Tribe, é totalmente possível que seja concedida personalidade a animais nãohumanos através de medidas legislativas. É sabido que esta atribuição de direitos apenas assegura uma proteção perante o sistema jurídico. Sabe-se que entidades, as quais são atribuídas alguns direitos não são realmente pessoas, este conceito é na verdade uma ficção. 11 Tom Regan afirmará que “[...] devidamente aculturados, nós internalizamos, sem críticas, o paradigma cultural. Vemos os animais como nossa cultura os vê. Como o paradigma na cultura americana em particular – e na cultura ocidental em geral – vê os outros animais como seres que existem para nós, não tendo outro propósito para estar no mundo senão o de atender às necessidades e aos desejos dos humanos, nós também vemos dessa maneira. Assim, os porcos, por exemplo, mostram sua razão de ser ao se transformar em fatias de presunto entre duas bandas de pão”. In Jaulas Vazias. Porto Alegre: Lugano, 2006. p. 28. Revista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau – Recife – ano 5 – n. 5 – p. 217-235 – 2010 Constitucionalização dos direitos dos animais 231 Ter reconhecido seus direitos pode fazer uma vasta diferença para uma real ou ficcional proteção de novos sujeitos de direitos no mundo real12. Por isso, reconhecer que os animais têm direitos em si mesmo através de legislação apropriada significaria a possibilidade de eles irem a juízo em nome próprio, reivindicando direito próprio. Neste caso, a chimpanzé Suíça poderia ir a juízo como autora de sua demanda, ou mesmo através de um substituto processual como aconteceu. Para os animais, poderia ser designado um guardião tal como hoje é feito com uma criança ou com uma pessoa com problemas mentais sérios ou ainda pessoas com Alzheimer. Dar esta voz virtual aos animais irá ampliar muito a proteção que os animais recebem sob as leis atuais e esperançosamente desenvolveria a eles direitos básicos retirados ao longo dos anos. Tribe mostra que a história do direito constitucional está repleta de exemplos de concessão de direito de ação tais como esse. Laurence Tribe demonstra que ao ser dizer que alguém perdeu ou não tem direitos constitucionais não necessariamente se quer dizer que se reduziu algo ao status de uma coisa. Contudo, direitos constitucionais conferem proteção pela identificação e proibição de injustiças, criando um escudo contra crueldade. Formas de proteção podem ser criadas através de leis ordinárias estaduais e federais ou até mesmo por juízes no sistema da common law e mais modernamente no sistema do civil law. Para ele, é importante ressaltar que proteções criadas por legislação estadual ou pela common law podem algumas vezes ser mais eficazes se comparadas aos direitos constitucionais. 12 TRIBE, Laurence H. “Ten Lessons Our Constitutional Experience Can Teach Us About the Puzzle of Animal Rights: The Work of Steven M. Wise. Op. cit. p. 03. Revista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau – Recife – v. 5 – n. 5 – p. 217-235 – 2010 232 Tagore Trajano de Almeida Silva Já nas últimas lições, Laurence Tribe tece uma crítica a visão de Steven Wise no que se refere a supor uma fórmula científica para decidir quais seres teriam autonomia suficiente para ter dignidade. Para ele, esta fórmula não funciona, já que transforma esta concepção em um valor impossível de ser alcançado. O autor explica que o sistema constitucional e suas tradições reconhecem direitos aos seres humanos pelo simples fato de serem seres humanos, incluindo as crianças, deficientes mentais e pessoas com doenças graves. Não é preciso equações para incluir pessoas em coma, ou seja, individuais circunstâncias. Deste modo, se nos opomos a traçar uma linha de direito e de proteção a nossa própria espécie, nós precisamos de uma melhor razão para fazer isso com as demais espécies13. Tribe acrescenta as críticas a Wise, afirmando que se insistimos que direitos dependem de posses individuais como auto-sensibilidade ou habilidade de ter um sistema nervoso complexo ou razões morais; continuaremos pensando direitos como um privilégio dos seres humanos. Direito dos animais será, por conseguinte, mera matéria de graça ou opção grata dos seres para com os animais não-humanos. Talvez seja esta a lição que Tribe tem a nos ensinar. 4. CONSIDERAÇÕES FINAIS 1. Existiria um mínimo existencial que abrangeria os animais não-humanos, obrigando o Estado a cumprir seu papel de defesa dos direitos dos animais; 2. Os operadores do direito (juízes, promotores, doutrinadores, advogados e estudantes, dentre outros) teriam 13 TRIBE, Laurence H. “Ten Lessons Our Constitutional Experience Can Teach Us About the Puzzle of Animal Rights: The Work of Steven M. Wise. Op. cit. p. 07. Revista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau – Recife – ano 5 – n. 5 – p. 217-235 – 2010 Constitucionalização dos direitos dos animais 233 um dever de impedir um retrocesso dos direitos fundamentais relacionados aos animais não-humanos; deve-se impedir que ao relacionar normas constitucionais e infraconstitucionais, interpretes restrinjam os direitos dos animais, não reconhecendo standing para estes seres no ordenamento brasileiro; 3. Decisões sobre maus-tratos de animais podem servir para a possibilidade de mudança de paradigma em direção ao reconhecimento de direitos aos animais, uma vez que a evolução natural do direito faz com que em seu processo ele busque proteger outras espécies além dos humanos. A concepção de direitos não deve ser vista como algo assustador, direitos não são absolutos. Afirmar que animais não-humanos têm direitos não deve ser confundido com dar sempre prioridades aos animais não-humanos em questões jurídicas contra os humanos. Reconhecer direitos é fundamentalmente chamar atenção a determinadas circunstâncias em que tais direitos poderiam ser subscritos. Há uma ampliação do círculo de consideração jurídica; 4. Reconhecer que os animais têm direitos em si mesmo através de legislação apropriada significa possibilitar não-humanos irem a juízo em nome próprio, reivindicando direito próprio; 5. O sistema constitucional e suas tradições reconhecem direitos aos seres humanos pelo simples fato de serem seres humanos, incluindo as crianças, deficientes mentais e pessoas com doenças graves. Não é preciso equações para incluir pessoas em coma, ou seja, individuais circunstâncias para desenhar a linha dos direitos dos animais. Deste modo, se nos opomos a traçar uma linha de direito e de proteção a nossa própria espécie, nós precisamos de uma melhor razão para fazer isso com as demais espécies. Direitos não devem Revista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau – Recife – v. 5 – n. 5 – p. 217-235 – 2010 234 Tagore Trajano de Almeida Silva ser pensados como um privilégio dos seres humanos. Não é um objeto de graça ou opção dado de acordo com os interesses humanos; REFERÊNCIAS BARROSO, Luís Roberto. O Direito Constitucional e a Efetividade de suas normas. 5. ed. São Paulo, Saraiva, 2001. BENJAMIN, Antônio Herman. Constitucionalização do ambiente e ecologização da Constituição brasileira. In: CANOTILHO, José Joaquim Gomes; LEITE, José Rubens Morato. Direito constitucional ambiental brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2007. FENSTERSEIFER, Tiago. Direitos fundamentais e proteção do ambiente: a dimensão ecológica da dignidade humana no marco jurídico-constitucional do estado socioambiental de direito. Porto Alegre : Liv. do Advogado , 2008 p. 25-39. KELCH, Thomas G.. Toward a non-property status for animals. 6 N.Y.U. Envtl. L.J. 1998. LEVAI, Laerte Fernando, Direito dos Animais. 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