REVISTA DA FACULDADE DE
DIREITO
MAURÍCIO DE NASSAU
REVISTA DA FACULDADE DE
DIREITO
MAURÍCIO DE NASSAU
Recife, 2010 - n. 05
© 2008 Faculdade Maurício de Nassau
Conselho Editorial da Revista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau
João Maurício Adeodato (editor responsável)
Geraldo de Oliveira Santos Neves
George Browne Rego
Roque de Brito Alves
Larissa Leal (Universidade Federal de Pernambuco)
Alexandre Freire Pimentel (Universidade Católica de Pernambuco)
Raymundo Juliano do Rêgo Feitosa (Universidade Federal de Pernambuco e
Faculdade de Direito de Caruaru)
Eduardo Carlos Bianca Bittar (Universidade de São Paulo)
Cláudia Lima Marques (Universidade Federal do Rio Grande do Sul)
José Luiz Bolzan de Moraes (Universidade do Vale dos Sinos)
Antonio Carlos Wolkmer (Universidade Federal de Santa Catarina)
Fernando Facury Scaff (Universidade Federal do Pará)
Martonio Mont’Alverne Barreto Lima (Universidade de Fortaleza)
Antonio Carlos Cavalcanti Maia (Universidade do Estado do Rio de Janeiro)
Stephan Kirste (Ruprecht-Karls-Universität Heidelberg)
Raúl Madrid (Universidad Católica de Chile)
Renato Rabbi-Baldi Cabañillas (Universidad de Buenos Aires)
Oscar Sarlo (Universidad de Montevideo)
Jack Rooney (Thomas Cooley University, Michigan, U.S.A.)
REVISTA DA FACULDADE DE DIREITO MAURÍCIO DE NASSAU
Recife: Faculdade de Nassau, a.5, n.5, 2010. 236p.
1. DIREITO. 2. DIREITO ROMANO. 3. DIREITO – BRASIL. 4. CÓDIGO
DE PROCESSO CIVIL – BRASIL. 5. RESPONSABILIDADE CIVIL – BRASIL. 6.
ESTADO E INDÍVIDUO. 7. DIREITO – FILOSOFIA. 8. DIREITO DO TRABALHO
– BRASIL. 9. JUIZES – PRÁTICA PROFISSIONAL. 10. IMPOSTO SOBRE CIRCULAÇÃO DE MERCADORIAS E SERVIÇOS. 11. BRASIL – CONSTITUIÇÃO.
PeR – BPE 09-105
CDU 34
CDD 340
ISSN: 1809-9424
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EDITORIAL
A Faculdade de Direito Maurício de Nassau publica
agora o quarto exemplar anual de sua Revista da Faculdade de
Direito, com artigos oriundos dos grupos de pesquisa de seus
professores e de professores de outras unidades e instituições,
animada pela perspectiva de mudanças significativas. Isso
porque parecem finalmente estar se delineando os parâmetros
para inserção de uma publicação universitária no sistema
Qualis da CAPES/MEC, o qual objetiva ser um indicador de
excelência acadêmica e indexação científica.
Claro que este exemplar ainda não está totalmente adequado a esses parâmetros, mesmo porque não se encontram
definitivamente decididos. Tudo indica que um parâmetro
de excelência, por polêmico que seja, vai ser que quanto
mais artigos de pesquisadores externos uma revista contiver, mais alta será sua classificação no Qualis, dentro desse
item. Outro critério a ser perseguido é a semestralidade,
pois a Revista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau
tem sido anual.
Muitos desses parâmetros sinalizados pela CAPES,
porém, sobretudo aqueles que têm mais tradição na academia brasileira, já estão satisfeitos aqui, tais como a rigorosa uniformização no formato, a presença obrigatória de
resumo, de abstract e de sumário etc.
Mas não somente critérios formais mais exigentes
foram acrescidos a este quarto número. Além dos cuidados
com o conteúdo dos artigos, procurando ir além dos meros relatos descritivos do direito positivo que tanto prejudicam a área de direito no Brasil, a tarefa mais árdua foi
certamente conseguir um Conselho Editorial qualificado e
comprometido, distribuído por instituições de prestígio em
diversas regiões do Brasil, da América Latina, Estados Unidos e Europa, sem esquecer instituições do próprio Recife.
Esse Conselho de avaliadoras e avaliadores, formado por
20 membros, trabalhará pelo sistema twofold blind review,
isto é, com avaliação anônima de ambas as partes.
Vários outros parâmetros de excelência continuarão
sendo perseguidos, do que são exemplos uma melhor distribuição e envio a instituições nacionais e estrangeiras, a indexação nas melhores bases de dados (Ulrich’s Periodicals
Directory e RVBI-Periódicos do Senado Federal) e inclusão
no Catálogo Coletivo Nacional do IBCT.
Como a Instituição de Ensino Superior que mais cresceu no Brasil nos últimos cinco anos, hoje presente em sete
estados do Norte e do Nordeste, a Faculdade Maurício de
Nassau não vai descuidar da qualidade de seus projetos de
pesquisa na área de direito. Esta Revista pretende dar uma
amostra disso.
Recife, janeiro de 2009
José Janguiê Bezerra Diniz (Diretor Geral)
João Maurício Adeodato (Editor Responsável)
SUMÁRIO
Filiação socioafetiva: os novos paradigmas da filiação
Clever Jatobá ������������������������������������������������������������������ 23
Cidade ideal e cidade visível: o paradigma grego em revista.
Aproximação à crítica de lewis mumford.
Delor Gerbase Gramacho������������������������������������������������ 45
Direito e retórica na construção do ordenamento jurídico da
união soviética a partir da análise do texto de andrej vysinskij
intitulado problemi del diritto e dello stato in marx
Fernando Joaquim Ferreira Maia����������������������������������� 53
Fenomenologia como paradigma de reestruturação da
ciência jurídica
José Arlindo de Aguiar Filho������������������������������������������������� 9
O brasil realmente precisa da cpmf ou de qualquer outro
tributo que informe ao estado o sigilo bancário?
Luiz Edmundo Celso Borba �������������������������������������������� 95
Noções históricas do sincretismo processual
Paulo Hemetério Aragão Silva�������������������������������������� 107
A importância do código de nuremberg para o biodireit
Renata Oliveira Almeida Menezes��������������������������������� 121
Neoconstitucionalismo e juspositivismo: superação ou
complementaridade?
Rodrigo Andrade de Almeida ���������������������������������������� 161
Sobre a prova na reforma processual penal
Roque de Brito Alves������������������������������������������������������ 205
Constitucionalização dos direitos dos animais
Tagore Trajano de Almeida Silva����������������������������������� 217
Fenomenologia como paradigma de reestruturação da ciência jurídica
9
FENOMENOLOGIA COMO
PARADIGMA DE REESTRUTURAÇÃO
DA CIÊNCIA JURÍDICA
José Arlindo de Aguiar Filho
Doutor em Filosofia pela Universidade Federal de Pernambuco, professor de Filosofia e Ética da Faculdade Maurício de Nassau.
RESUMO
A proposta deste trabalho é partir da semelhança entre a abordagem crítica fenomenológica de Heidegger em
seus escritos sobre Kant, principalmente Phänomenologishe Interpretation von Kants Kritik der Reinen Vernunf, e
Kant und das Problem der Metaphysik e, a partir da crítica
heideggeriana, demonstrar a similitude dos caminhos tomados pelo direito positivo com a trajetória neokantiana de
apropriação do pensamento de Kant. A analogia resultará
em possíveis soluções fenomenológicas para a crise de fundamento por que passa a ciência do Direito, já em processo
de superação de um positivismo jurídico insustentável epistemologicamente.
Palavras-chave: Fenomenologia, Kant, Heidegger, Positivismo Jurídico.
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Recife – ano 5 – n. 5 – p. 09-21 – 2010
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José Arlindo de Aguiar Filho
ABSTRACT
The task we propose here is to demonstrate the similarity relation between the Heidegger’s phenomenological
approach in his writings about Kant, mainly Phänomenologishe Interpretation von Kants Kritik der Reinen Vernunf
and Kant und das Problem der Metaphysik, and the paths
taken by positive law trough the neokantian understanding
trajectory of Kant’s philosophy. The analogy shall result
in possible phenomenological basis solutions to the science
of law’s crisis, already in overcoming process of the legal
positivism, epistemologically unsustainable.
Keywords: Phenomenology, Kant, Heidegger, Legal
Positivism.
SUMÁRIO:
Introdução: a questão filosófica subjacente à problemática do positivismo jurídico. 1. Jus-positivismo e história da
metafísica. 2. A interpretação fenomenológica e o direito
positivo.
INTRODUÇÃO: A QUESTÃO FILOSÓFICA
SUBJACENTE À PROBLEMÁTICA DO
POSITIVISMO JURÍDICO
Para fazer uma análise de possibilidades de contribuição da fenomenologia às ciências jurídicas em nosso tempo
é preciso estabelecer o campo a que o pensamento jurídico
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Fenomenologia como paradigma de reestruturação da ciência jurídica
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está circunscrito no ordenamento legal atual. O sistema jurídico em que vivemos, no Brasil, como em Portugal e a
maioria dos países europeus, se formou a partir do direito
romano em paralelo com a common law anglo-saxã, e evoluiu numa mudança de direito natural para direito positivo.
Neste trabalho queremos ligar esta mudança a um momento específico da história da filosofia, que em nossa hipótese permitiu e inspirou o surgimento do jus-positivismo,
para a luz da Destruktion da história da metafísica tentada por Martin Heidegger criticar no direito positivo os
elementos filosófico-metafísicos que o constituem. Assim
pretende-se mostrar os limites da teoria pura do direito e
sua possível superação em termos fenomenológicos a partir
da crítica heideggeriana a história da metafísica, na qual o
direito está, ao menos indiretamente, inserido.
Delineados estão os dois passos a serem vencidos nesta
empreitada: estabelecer uma analogia entre o direito positivo e um período específico da história da metafísica; e
através de uma instanciação da crítica heideggeriana a esse
período atingir os elementos filosóficos jus positivistas e
procurar de dentro desta perspectiva fenomenológica a possibilidade de sua superação.
Se bem caracterizado está o projeto faltamos em não explicitar-lhe a importância. Hoje se vive uma crise no positivismo jurídico. Poucos são os juristas que admitem a doutrina de Kelsen como suficiente para suprir o ordenamento
legal de um país de justificação e legitimidade. Escolas de
filósofos do direito se esforçam para superar esta insuficiência em várias direções. Exemplos não faltam para ilustrar
este esforço de pensadores escandinavos (ROSS, 2003) aos
de herança latina como Norberto Bobbio (BOBBIO, 1999,
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José Arlindo de Aguiar Filho
2005) até o Recife, onde a discussão se acirra entre dois pólos são a superação por via do pragmatismo1 e a nova escola
retórica (ADEODATO, 2006).
1. JUS-POSITIVISMO E HISTÓRIA DA
METAFÍSICA
O positivismo na filosofia é conhecido como movimento intelectual surgido na França por ocasião das obras de
Auguste Comte, principalmente seu Curso de filosofia positiva, de 1839/42. Sua penetração nas ciências, em processo
de consolidação em seu papel institucional, transformou o
sistema de Comte em um valioso instrumento de defesa e
difusão do pensamento científico; pensamento da ciência
enquanto “ordenada para o progresso”.
A idéia de ciência que se cristalizava como modelo de
conhecimento para o século por vir, retirava suas bases de
uma experiência anterior e de maior aspecto filosófico: Kant
e a Crítica da Razão Pura. É o impacto que o pensamento
de Kant tem sobre o cenário do pensamento ocidental que,
em uma perspectiva particularmente ligada ao neokantismo, foi absorvida pelos juristas europeus do início do século XX através do positivismo.
Está colocada nossa posição quanto ao primeiro passo
do trabalho: a analogia que há entre o jus-positivismo e a
história da metafísica deve remeter ao seu ponto de origem
comum no pensamento kantiano e sua versão neokantiana2.
1 Há grupo de pesquisa atuante sobre o tema sob liderança do professor Dr. George
Browne Rego
2 Notadamente as versões de Carnap, Nartop e Cohen, apontados mesmo por Heidegger
nas disputas de Davos com Cassirer, como os neokantistas a quem se refere em suas
críticas.
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Fenomenologia como paradigma de reestruturação da ciência jurídica
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Para defender tal aproximação, primeiro é necessário
afastar as possíveis oposições, das quais uma facilmente
perceptível é o lapso que existe entre o pensamento kantiano e o surgimento das primeiras obras jurídicas positivas.
Aproximadamente 150 anos transcorreram entre 1781, ano
da primeira edição da Crítica, e a década de 30 já no século XX quando Kelsen elaborava sua teoria pura. Se o juspositivismo está ligado ao pensamento de Kant por que não
surgiu durante o século XIX?
A resposta está ligada a natureza mesma como o fenômeno jurídico tem sua dinâmica dentro da sociedade.
O direito é lento, a filosofia é rápida. O filósofo pode ser
considerado a vanguarda do pensamento de um povo. Sua
produção é livre e desembaraçada da maioria das barreiras sociais e instituições que retém o poder e divulgação
das idéias de cada época. Qualquer que seja a perseguição
ao pensamento ela sempre será uma prevenção para que o
mesmo não se torne uma manifestação concreta em termos
de demanda e ação popular, como na sua consolidação em
uma jus-filosofia. As ciências jurídicas por seu lado estão
profundamente enraizadas na experiência legal de cada população e seu desenvolvimento só é possível dentro de certos limites impostos pela utilização e adequação dos sistemas às possibilidades de organização do poder. O pensador
do Direito tem ao seu lado todo um processo de legitimação
e um poder envolvido em sua teorização, o objeto de estudo
do jurista está atrelado à organização da sociedade mesma.
O direito corre atrás da filosofia. Enquanto as idéias filosóficas surgem e posteriormente se espalham pelos outros
âmbitos culturais, excetuando talvez a arte como um todo
única expressão tão vanguardista quanto o pensamento filosófico, o mundo das relações sociais as absorve de forma
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José Arlindo de Aguiar Filho
comedida até que sua aceitação não mais seja um desafio
e sim uma necessidade. A dinâmica das idéias dentro das
diferentes culturas é o fator que explica a diferença temporal entre o surgimento das bases científicas nos termos
kantianos da primeira Crítica e seu emprego nas ciências
particulares, especialmente na ciência jurídica apenas um
bom século depois.
Existem exemplos para comprovar esta disparidade em
vários ordenamentos pelo mundo afora: o código civil brasileiro vigente até o ano de 2003 foi instituído em 1916, e
inspirado no código napoleônico de 1804; ainda mais distante a famosa constituição americana de 1776 ainda em vigor. Há um saudável equilíbrio na sociedade quando as leis
se mantém estáveis e duradouras, até porque assim chegam
ao senso comum da população. Neste aspecto reside a resistência que o direito levanta contra a rápida absorção das
revolucionárias idéias filosóficas de seu próprio tempo. Sua
dinâmica é deixar a vanguarda tornar-se conhecida e aceita
antes de subsumi-la em sua formação.
Ultrapassada a objeção do lapso temporal procedemos
à aproximação entre o pensamento do jus-positivismo em
confronto com o neokantismo. O guia que tomamos na consideração do sistema jurídico positivo não poderia ser outro
que não Hans Kelsen e sua Teoria Pura do Direito. Nesta
obra encontramos ao menos quatro características que permitem uma aproximação com Kant: proeminência do formalismo, ambição de completude, ambição de coerência, e
abordagem heteronômica das leis.
O formalismo é entendido em Kant nos termos de sua
ética subordinada ao imperativo categórico. Esta ligação
entre a ação humana e uma derivação formal de suas conseqüências frente à lei moral interna representa uma formaRevista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau –
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Fenomenologia como paradigma de reestruturação da ciência jurídica
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lização do critério moral numa regra potencial para a coletividade. Se a ação pode ser generalizada será eticamente
aceita. Seguindo este sistema temos uma forma que instrui
ao homem sobre a moralidade da ação segundo uma derivação da regra moral categórica. Este sistema será transportado por Kelsen na formulação da norma fundamental que
fundamenta o ordenamento jurídico. Junto com a norma
fundamental, seu análogo jurídico do imperativo categórico, Kelsen transporta para o direito duas conseqüências e
ambições desta formalização: a ambição de completude e
de coerência.
Neste ponto da investigação o paradigma das ciências
naturais aparece e ganha força na interpretação das ciências
jurídicas. A completude a que o direito deve tender é a característica de um ordenamento no qual não existem lacunas. Lacuna é o fato do mundo da vida que não possui previsão legal, o fato para o qual o direito não tem uma regra e
que desta falta retira seu nome: é um vazio de ordenamento
legal, uma lacuna no sistema.
No direito como compreendido pela teoria pura não
existem lacunas. Há normas de superação que disciplinam
o comportamento do ordenamento no caso de falta de legislação específica. O mais conhecido exemplo é a disposição
“aquilo que não é proibido é permitido.” Este tipo de norma
garante ao ordenamento abrangência sobre todos os fatos
que já proíbe e ainda regula todo e qualquer outro fato que
aconteça como permitido. No Brasil temos a Lei de Introdução o Código Civil cujo artigo 4° cuida da superação de
lacunas amparado na Constituição Federal que positivou
princípio do non liquet (art. 5°, XXXV).
Mas a completude tem sua caracterização original nas
ciências exatas. A matemática é o exemplo guia para esta
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José Arlindo de Aguiar Filho
característica. Não pode haver uma conta, uma operação
impossível no campo da aritmética. Não encontraremos
dois números naturais cuja soma seja impossível, todos estão devidamente englobados pelas regras de adição.
Segunda característica a ambição de coerência. A matemática também aqui é o norte da teorização jurídica.
Coerente é o pensamento cujas conclusões são derivadas
formalmente dos axiomas. É o caso da geometria. Nela os
axiomas se desdobram em teoremas seguindo uma dedução
formal. A norma fundamental kelseniana deve ser o axioma do qual derivam a legislação de um ordenamento numa
estrutura formal. Se tal ocorre não surgirão as chamadas
antinomias ou choques entre as leis. Também aqui existem
dispositivos de solução de antinomias em diferentes ordenamentos para assegurar a coerência do sistema. Os critérios
da hierarquia, especialidade e temporalidade apresentados
por Bobbio são bom exemplo das garantias de coerência
dos ordenamentos jurídicos.
Ainda antes de darmos o próximo passo um último ponto deve ser abordado na aproximação da estrutura positiva
do direito das raízes kantianas: a separação entre normas
autônomas e heterônomas. A dicotomia entre ações por
dever e ações conforme o dever da moral kantiana serve
com perfeição para uma definitiva separação entre direito e
moral. Apenas com esta distinção elaborada poderia Kelsen
desenvolver seu conceito de sanção e sua posição dentro de
um ordenamento jurídico.
Enfim chegamos ao segundo ponto da aproximação. A
estrutura paradigmática das ciências naturais desenvolvese num plano dinâmico compartilhado por Kant (no viés
neokantiano) e Kelsen: a rejeição à metafísica. Enquanto a
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Fenomenologia como paradigma de reestruturação da ciência jurídica
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Crítica da Razão Pura descarta a metafísica como ciência a
Teoria Pura do Direito descarta o direito natural.
Esta é a analogia mais importante a ser tecida, pois é
através da interpretação do papel da metafísica no pensamento de Kant que a fenomenologia pode ser aplicada ao
pensamento de Kelsen numa tentativa de superação.
2. A interpretação fenomenológica e o
direito positivo
A fenomenologia heideggeriana interpreta a obra kantiana num sentido oposto ao neokantismo. Esta oposição,
portanto se aplica ao positivismo inspirados neste mesmo
neokantismo e por extensão ao positivismo jurídico. Mas
em que medida é a interpretação fenomenológica de Heidegger oposta ao pensamento neokantiano? Na medida em
que inverte a posição da metafísica na estrutura da Crítica
da Razão Pura.
Heidegger afirma que a Crítica da Razão Pura não
apenas não desautoriza a metafísica como conhecimento
como a fundamenta enquanto tal. Assim a rejeição ao pensamento metafísico por parte dos positivistas e do direito
natural não passariam de uma má leitura de sua importância
epistemológica causada pela confusão das idéias acerca de
Kant.
Há neste caso uma sobrevalorização da aproximação
do conhecimento puro com o paradigma das ciências naturais, notadamente física e matemática. Mas nem Kant descarta a metafísica nem o direito. A estes campos do saber
dá uma nova perspectiva, são regiões destinadas à razão
prática e à ontologia, não ao paradigma científico naturalisRevista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau –
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José Arlindo de Aguiar Filho
ta. Tentar transformar algo que não a física e a matemática
em objeto da razão pura, como parece pretender a ambição
neokantiana-kelseniana já é desde o princípio afrontar o
pensamento e estrutura epistemológica da Crítica.
Colocar a metafísica e suas questões como fundada
pela possibilidade de buscar o conhecimento, como projeção da transcendência e nesta perspectiva perceber seu papel é a melhor opção de um bom intérprete de Kant, não
a rejeição. Mesmo se dá então para com o direito natural,
este não pode ser descartado, como a metafísica que faz
parte da própria busca pelo conhecimento, este direito faz
parte da própria formação do direito em sua origem. Não há
sistema formal que esgote o direito, sua raiz estará sempre
associada ao homem que o elabora, em sua vida, em sua
contingência.
Aqui está a primeira contribuição da fenomenologia a
recuperação do lugar de origem da estrutura jurídica sem o
movimento de repulsa contra o direito natural. É possível
trabalhar o ordenamento com valores sociais sem cometer
um erro formal.
O segundo passo que apontamos diz respeito a uma
teoria jurídica que em sua base realiza esta desvinculação
do sistema positivo e traz consigo uma forte semelhança
com a fenomenologia heideggeriana: a sociologia jurídica
de Niklas Luhmann3.
Heidegger (1997, p.125) afirma estar a Crítica da Razão Pura presa ao “logos” da modernidade. Kant compartilha então da dicotomia metafísica entre sujeito e objeto
absolutamente insuperável e de um conceito correspondentista de verdade. Estaria Kant na linha metafísica traçada
3 Há excelente trabalho de apropriação do pensamento de Luhmann e aproximação da
filosofia heideggeriana em O Pensamento de Niklas Luhmann (SANTOS, 2005).
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Fenomenologia como paradigma de reestruturação da ciência jurídica
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no medievo da verdade enquanto adequatio, defendida por
Tomás de Aquino (1996, p.71) “Com efeito, o conceito de
verdade consiste na concordância entre a coisa e o conhecimento”, de origem ainda mais antiga, o pensamento grego:
“Negar aquilo que é e afirmar aquilo que não é, é falso,
enquanto afirmar o que é e negar o que não é, é a verdade”
(ARISTÓTELES, Metafísica, IV, 7, 1011 b 26 ss.). Este
conceito é transformado na teoria de Luhmann (1980, p.
25): A verdade, assim como o direito, é avaliada enquanto
fator de diminuição da complexidade social.
A perspectiva acerca daquilo que a verdade representa
no pensamento de Luhmann está bem além da caracterização positivista de origem neokantiana de verdade enquanto
adequação. Nisto remete para a superação do “logos” moderno de que fala Heidegger. Antes de Luhmann o filósofo já mostrara a insuficiência da verdade enquanto atributo
da proposição. Desta insuficiência deriva a insuficiência da
verdade enquanto atributo das proposições científicas.
O Lebenswelt em sua estrutura irredutível de significância é o ponto de origem, no pensamento de Luhmann o
análogo é o sistema, no qual a verdade pode repercutir como
diminuição de complexidade, como atributo da proposição
ou como revelação sagrada. Seja qual for sua concepção há
uma perspectiva mais profunda que a fundamenta e enraíza,
tal qual no direito o formalismo positivista é apenas uma
manifestação contingente de um momento da história da
metafísica. Direcionada a dinâmica do positivismo jurídico
como uma repulsa ao direito natural e progressiva esterilização de uma forma perfeita estaremos dando um passo
para o empobrecimento da ciência jurídica. Prover-nos esta
percepção, nos alertar sobre suas limitações é lição valiosa
que a fenomenologia tem a dar para a jus filosofia.
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Recife – ano 5 – n. 5 – p. 09-21 – 2010
20
José Arlindo de Aguiar Filho
REFERÊNCIAS
ADEODATO, João Maurício. Ética e Retórica: para uma
teoria da dogmática jurídica. 2. ed. São Paulo: Saraiva,
2006.
AQUINO, São Tomás de. Questões discutidas sobre a
verdade. in Pensadores. São Paulo: Nova Cultural, 1996.
BOBBIO, Norberto. Teoria da Norma Jurídica. Tradução
de Fernando Pavam Baptista e Ariani Bueno Sudatti. 3. ed.
Bauru: EDIPRO, 2005.
______. Teoria do Ordenamento Jurídico. 10. ed. Brasília: Universidade de Brasília, 1999.
HEIDEGGER. Phenomenological Interpretation of
Kant’s Critique of Pure Reason. Traduzido por Parvis
Emand, e Kenneth Maly. Bloomington: Indiana University
Press, 1997.
______. Kant y el Problema de la Metafísica. Traduzido
por Gred Ibscher Roth. México: Fondo de Cultura Económica, 1996.
KANT, Immanuel. Crítica da Razão Pura. Traduzido por:
Manuela Pinto dos Santos e Alexandre Fradique Morujão.
4.ed. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1997.
KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito: versão condensada pelo próprio autor. 3.ed. Tradução de J. Cretella Jr. e
Agnes Cretella. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003.
Revista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau –
Recife – ano 5 – n. 5 – p. 09-21 – 2010
Fenomenologia como paradigma de reestruturação da ciência jurídica
21
LUHMANN, Niklas. A Legitimação pelo Procedimento.
Brasília : editora Universidade de Brasília, 1980.
ROSS, Alf. Direito e Justiça. Tradução de Edson Bini.
Bauru: Edipro, 2003.
SANTOS, José Manuel (org.). A Complexidade do Mundo. In: O Pensamento de Niklas Luhmann. Covilhã: Ta
Pragmata, 2005.
Revista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau –
Recife – ano 5 – n. 5 – p. 09-21 – 2010
Filiação socioafetiva: os novos paradigmas da filiação
23
FILIAÇÃO SOCIOAFETIVA: OS NOVOS
PARADIGMAS DA FILIAÇÃO
Clever Jatobá
Advogado e Consultor Jurídico; Especialista em Direito do Estado e
em Direito Civil e Consumidor pelo Juspodivm e Faculdade Baiana
de Direito (Salvador-Ba); Professor de Direito da Faculdade Maurício
de Nassau, Unijorge, e da Faculdade Apoio. Membro do IBDFAM –
Instituto Brasileiro de Direito de Família.
RESUMO
O presente Artigo objetivou apreciar e comprovar a
pluralidade dos vínculos originários da filiação, atentando
aos seus novos paradigmas, partindo da noção geral
acerca da filiação, valorizando seu conceito e suas formas
de concepção, distinguidas pelos vínculos originários,
quais sejam, o jurídico – atentando às presunções legais,
assim como à adoção – o biológico, até alcançar a relação
socioafetiva.
Palavras-chave: Filiação; paternidade; vínculos
originários; biológica; socioafetividade.
Revista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau –
Recife – ano 5 – n. 5– p. 23-43 – 2010
24
Clever Jatobá
ABSTRACT
This paper aimed to asses and verify the number of
links from the membership, paying attention to its new
paradigm, based on the general notion about the membership,
promoting the concept and forms of design, distinguished
from the links, which are the legal - considering the legal
presumptions, and the adoption - the biological, to achieve
the socio affection relationship.
Keywords: affiliation; paternity; links originate,
biological, socio affection.
SUMÁRIO
1. Introdução: Da Filiação. 1.1 Do Conceito de Filiação.
1.2. Da Filiação e seus vínculos. 1.2.1 Do Vínculo
Jurídico. 1.2.1.1 Da Presunção Legal pater is est 1.2.1.2 Da
Presunção Legal nas Inseminações Artificiais. 1.2.1.3 Do
Vínculo Jurídico por Adoção. 1.2.2 Do Vínculo Biológico.
1.2.3 Do Vínculo Socioafetivo. 1.2.3.1 Posse do Estado de
Filho. 1.4 Da Constatação do Vínculo Socioafetivo. 1.5
Considerações Finais. 2. Referências Bibliográficas.
1- INTRODUÇÃO: DA FILIAÇÃO
A magia principal da existência humana reside no
sopro da vida, advento natural decorrente da procriação,
ou seja, da condição espontânea da fecundação, por meio
da qual dois seres humanos podem gerar, produzir, ou dar
origem a um descendente da sua própria espécie.
Revista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau –
Recife – ano 5 – n. 5 – p. 23-43 – 2010
Filiação socioafetiva: os novos paradigmas da filiação
25
Segundo Eduardo dos Santos (1999, p.435) “a
procriação é, assim, um facto natural. E, transplantada ela
para o plano do direito, dá lugar ao instituto da filiação”,
que na mesma linha de pensamento, Silvio de Salvo Venosa
(2003, p.265), completa ser, esta (filiação) “um fato jurídico
do qual decorrem inúmeros efeitos”.
Destarte, a Filiação, na condition ratio de fato jurídico,
mesmo que, de forma natural decorra da procriação, como
vários doutos didaticamente relacionam, atenta, de fato,
aos inúmeros efeitos jurídicos que dela decorrem, não se
restringindo a tal origem genética, mas, sim, transcendendo
a tais limites, manifestando-se como fenômeno jurídico de
origem legal (tendo nas presunções e na adoção espécies
de filiações jurídicas), médico-científica (nas inseminações
artificiais) e socioafetivas.
1.1 Do Conceito de Filiação
Segundo o ensinamento de Edmilson Villaron
Franceschinelli (1997, p.13), “filiação, derivado do latim
filiatio, é a relação de parentesco que se estabelece entre
os pais e o filho, na linha reta, gerando o estado de filho,
decorrente de vínculo consangüíneo ou civil, e criando
inúmeras conseqüências jurídicas”.
Destarte, Luiz Edson Fachin (1992, p.34) alerta que
“para apreender a verdadeira paternidade, exige mais
que a observação do vínculo biológico, emergindo daí a
valorização da realidade sócio-afetiva que liga um filho a
seu pai”.
Por fim, cabe-nos acrescentar que, segundo Paulo
Lôbo (2008, p.192), filiação “é a relação de parentesco que
se estabelece entre duas pessoas, uma das quais nascida da
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26
Clever Jatobá
outra, ou adotada, ou vinculada mediante posse de estado
de filiação ou por concepção derivada de inseminação
artificial”.
Diante de tal amplitude conceitual atualmente adotada,
uma coisa é certa, é que a filiação se manifesta de formas
distintas, ou seja, por diversos vínculos, quais coexistem
diante do ordenamento jurídico vigente.
1.2 Da Filiação e seus Vínculos
Hodiernamente, não se pode restringir a filiação
sob o prisma da procriação, mas, em verdade, torna-se
indispensável apreciar a amplitude da sua concepção,
permitindo esmiuçar as facetas da sua origem, posto que,
doravante, atentaremos à filiação e seus vínculos.
Como a Constituição Federal de 1988 estabeleceu
a igualdade entre os filhos, extirpando em absoluto
preocupações acerca da legitimidade ou não da filiação,
independentemente da sua origem, não há que se falar
em qualquer espécie de distinção. Entretanto, muitos
doutrinadores mais tradicionais – a exemplo de Silvio de
Salvo Venosa (2003, p.266) e Maria Helena Diniz (1997, p.
310) – insistem ainda na classificação da filiação sob a égide
da distinção acerca da legitimidade, tratando de temas como
filiação legítima, ilegítima, natural, adulterina, espúria, ou
até sobre legitimação, porém pedimos a Maxima Vênia
para discordar que tais aspectos sejam didáticos, visto que
não mais correspondem à realidade, como não podem mais
subsistir por conta da vedação constitucional expressa,
assim, acreditamos que tais enfoques apenas possam ser
relatados como mera evolução histórica acerca do tema.
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Recife – ano 5 – n. 5 – p. 23-43 – 2010
Filiação socioafetiva: os novos paradigmas da filiação
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Ante a necessidade didática, Fábio Ulhoa Coelho
(2006, p.146) assevera que “a finalidade da classificação
é ilustrativa, destina-se unicamente a delimitar a extensão
do conceito, porque, independente do tipo de filiação,
os direitos e deveres associados à relação vertical são
absolutamente idênticos”.
Destarte, a concepção moderna acerca da família e suas
relações verticais de parentesco atestam, didaticamente,
à divisão da filiação em um binômio: a filiação biológica
e a não biológica. Contudo, mais abrangente, parece-nos,
atentarmos aos vínculos que norteiam a filiação, quais
sejam: o vínculo jurídico, o vínculo biológico e o vínculo
socioafetivo.
1.2.1 Do Vínculo Jurídico
No horizonte jurídico, a preocupação em
relacionar pais aos filhos sob a égide dos efeitos
na ordem jurídica vem se protraindo no tempo
desde a antiguidade. Atualmente, encontram-se
sedimentados três expoentes dos vínculos jurídicos:
A Presunção legal; a Adoção e a Inseminação
Artificial Heteróloga.
1.2.1.1Da Presunção Legal pater is est
A ânsia jurídica de tutelar o parentesco da
filiação criou a presunção legal de paternidade,
calcada na preconização do direito romano, que
em face da certeza da maternidade contraposta à
incerteza da paternidade (mater is semper certus,
pater incertus), sob a concepção de legitimidade da
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Recife – ano 5 – n. 5– p. 23-43 – 2010
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Clever Jatobá
28
filiação decorrente da preexistência do casamento1,
instituiu a presunção legal do “pater is est quem
justae nuptiae demonstrant”, ou seja, a figura
paterna subsumia-se à presunção de que o pai estaria
resumido à mera condição de marido da mãe.
Portanto, elucida Maria Alice Zaratin Lotufo
(2002, p. 187), que “Se o filho é da mulher casada,
presume-se que seja do marido”2, já que “a fidelidade
é um dos deveres do casamento”.
É neste contexto axiológico que, segundo
Flávia Lages de Castro (2007, p.99), desde o Direito
de Família Romano, fora instituída a presunção
legal, onde “A filiação legítima era presumida se
o parto acontecesse, no mínimo, cento e oitenta
dias da data em que o matrimônio fosse contraído
ou, no máximo, trezentos dias após a dissolução
do mesmo.” Foi calcado nesta baliza romana que
o Código Civil Brasileiro3, manteve nestes moldes
a previsão da presunção legal calcada no tempo da
gestação.
1.2.1.2 Da Presunção Legal nas Inseminações
Artificiais
Outra faceta em que a presunção legal se
manifesta no Novo Código Civil pátrio, adequando
1 Sob a bússola anterior à dicção constitucional vigente, onde ainda se previa a legitimidade da filiação como fator discriminatório entre a origem dos filhos, cabe-nos reportar ao
ensinamento de Orlando Gomes (2001, p.325), para chancelar tal entendimento: “Provase a paternidade legítima estabelecendo-se o casamento dos pais”.
2 Neste diapasão, arremata Silvio de Salvo Venosa (2003, p. 270) que a legislação presume “que o filho da mulher casada foi concebido pelo marido”.
3 A presunção legal abarca o aspecto temporal para a filiação advinda do casamento,
além de agasalhar, também sob o prisma temporal, as fecundações por inseminação artificial (vide art. 1597 do CC-02).
Revista
Revista
do Curso
da Faculdade
de Direito
deda
Direito
Faculdade
Maurício
Maurício
de Nassau
de Nassau
– –
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27-84 – 2010
2008
Filiação socioafetiva: os novos paradigmas da filiação
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à modernidade e aos avanços científicos, alude às
inseminações artificiais, ao que tange à expressão
temporal da filiação gerada pelas técnicas de
reprodução assistidas.
Como ponto de partida, Leila Donizetti
(2007, p.93), de forma elucidativa esclarece que a
inseminação artificial4: “é um processo através do
qual se colhe o material genético do homem por
meio de masturbação em laboratório, congelandose o esperma colhido em solução de azoto líquido
para posterior implantação na mulher”.
Assim, faz-se necessário, a priori, traçar de
forma sucinta a distinção entre as duas espécies de
inseminação artificial: a homóloga e a heteróloga.
A concepção homóloga diz respeito à técnica de
fertilização artificial que utiliza o próprio material
genético dos futuros pais; ao tempo em que a
concepção heteróloga5 alude à possibilidade da
utilização do material genético doado por outrem,
ou seja, distinto do casal (de um ou de ambos) de
futuros pais.
Destarte, a disposição legal gera presunção no
processo de fertilização artificial homóloga, visto
que a contratação deste serviço médico por si só
certifica a anuência de ambos os contratantes, assim,
4 A própria Leila Donizetti (2007, p.94-95) distingue a inseminação artificial da fecundação artificial in vitro, esclarecendo que nesta técnica (in vitro) “a manipulação do óvulo e
do espermatozóide é feita fora do útero, ou seja, a junção das duas células é realizada no
tubo de ensaio e, só posteriormente, após a construção da fecundação, é feita a implantação do embrião no útero da mulher”.
5 Fábio Ulhoa Coelho (2006, p.147) chama a filiação decorrente de inseminação artificial
heteróloga de “filiação por substituição”, atentando à substituição do material genético
dos pais (um, ou ambos) pelo fornecimento de gametas por terceiros.
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30
Clever Jatobá
não há que se esquivar das responsabilidades futuras
decorrentes da geração de um filho. É neste sentido,
que o texto da lei determina que a vontade dos
contratantes seja válida mesmo após o falecimento
do marido.
Por outro lado, há também presunção6 legal
na paternidade heteróloga em face da “prévia
autorização do marido”, entendemos, porém, ser
desnecessária tal previsão legal desta presunção,
visto que a prévia autorização documenta a
aquiescência dos propensos pais, servindo, assim,
de prova pré-constituída do reconhecimento
espontâneo desta paternidade.
1.2.1.3Do Vínculo Jurídico por Adoção
Segundo a lição de Orlando Gomes (2001,
p.369), “Adoção é o ato jurídico pelo qual se
estabelece, independentemente do fato natural
da procriação, o vínculo da filiação. Trata-se de
ficção legal, que permite a constituição, entre duas
pessoas, do laço de parentesco do primeiro grau na
linha reta”.
Destarte, a adoção como instituto jurídico
deságua na quebra da hegemonia biológica
atendendo aos dispositivos legais que instituem
uma filiação sob o prisma do vínculo civil, contudo,
dependente de um ato solene de repercussão jurídica.
6 Trata-se de presunção júris tantum, pois se ressalvam as hipóteses em que poderiam incidir em responsabilidade civil por erro médico na situação onde equivocadamente ocorresse a troca do material genético dos propensos pais pelos manipuladores geneticistas.
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Filiação socioafetiva: os novos paradigmas da filiação
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Neste sentido, Roberto Senise Lisboa (2004, p.336)
esclarece que a “Adoção é o ato jurídico solene pelo
qual um sujeito estranho é introduzido como filho
na família do adotante, passando a ter os mesmos
direitos decorrentes da filiação”.
Assim, a adoção reflete no âmbito jurídico
como um instituto legítimo, sedimentado pelo
tempo, onde ratifica os vínculos afetivos e os valores
do convívio social, estando, todavia, vinculada
sua constituição às formalidades legais, pois não
decorre de mera situação de fato, mas, sim, de um
procedimento judicial.
1.2.2 Do Vínculo Biológico
O vinculo biológico consiste na identidade genética
que une dois indivíduos pelos laços do parentesco,
neste prisma, ao que diz respeito à filiação, trata-se de
uma relação genética ou consangüínea entre os pais e
os filhos.
Consonante a esta linha de pensamento, Maria
Helena Diniz (1997, p. 308), assevera que “Filiação
é o vínculo existente entre pais e filhos; vem a ser a
relação de parentesco consangüíneo em linha reta
de primeiro grau entre uma pessoa e aqueles que lhe
deram vida”.
Por incrível que pareça, os vínculos de filiação
sedimentados no tempo não estiveram atrelados à
realidade biológica, visto que não havia como ser provado,
assim, o ordenamento jurídico buscava socorrer-se nas
presunções legais. Ocorre que, com o passar do tempo, as
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32
Clever Jatobá
coisas mudaram, a sociedade evoluiu, a ciência avançou
de tal maneira que o vínculo consangüíneo tornou-se uma
realidade submetida a critérios probatórios cientificamente
garantidos 7, onde, por meio do exame de DNA8 atesta-se
a inequívoca existência de tal laço biológico, conseguindo
provar quando um filho carrega a herança genética dos
seus pais.
1.2.3 Do Vínculo Socioafetivo
Em contraposição aos avanços da biogenética, que
tem no exame de DNA a condição de afirmar com 99%
de certeza a verdadeira origem genética de um indivíduo,
passou a ser tutelada uma verdade além da consangüinidade,
pautada nas afinidades, na convivência, na troca de afeto
e no exercício das responsabilidades típicas de um pai
perante seu filho, emanando das relações fáticas o vínculo
socioafetivo.
A concepção de uma filiação socioafetiva parte da
idéia da construção da paternidade de fato, construída no
convívio cotidiano com base no afeto, na garantia de uma
criação digna, preocupada com a saúde e a educação típica
das relações domésticas familiares inerentes ao vínculo
entre pais e filhos.
Luiz Edson Fachin (1996, p. 36-37), entende que,
“Se o liame biológico que liga um pai a um filho é um
dado, a paternidade pode exigir mais do que apenas laços
de sangue. Afirma-se aí a paternidade socioafetiva que se
capta juridicamente na expressão de posse de estado de
7 O exame de DNA tem sido uma prova pericial de relevante importância na investigação
da paternidade.
8 Ácido desoxirribonucléico é traduzido para o português por meio da sigla ADN, contudo, a sigla internacionalmente auferida (DNA), terminou por ser a mais popularizada.
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Filiação socioafetiva: os novos paradigmas da filiação
33
filho”.
Assim, aquele que age como um pai perante seu filho,
assumindo as responsabilidades inerentes à criação,
educação, cuidados e amparo afetivo, mesmo desatrelado
do liame genético, demonstra conviver diante da posse de
estado de filiação, sendo, assim, por conta das circunstâncias
fáticas, é tido como pai, pois o provérbio popular há muito
já prenuncia que “pai é quem cria”.
Nesta concepção sociológica de filiação decorrentes
da função paterna na formação da sua personalidade, o pai
desempenha sua função, sendo, pelo filho, reconhecido e
identificado como tal. Neste sentido, Rodrigo da Cunha
Pereira (2004, p.387) afirma que:
a paternidade não é um fato de natureza,
mas, antes, um fato cultural. Em outras
palavras, paternidade é uma função
exercida, ou um lugar ocupado por alguém,
não necessariamente o pai biológico. Neste
sentido, o lugar ocupado por outra pessoa como
o irmão mais velho, o avô, o namorado, etc.
Finalmente, esclarecemos que a filiação socioafetiva,
como um vínculo de fato, decorre da compreensão da
“posse do estado de filho” em que se encontrará atrelada a
relação familiar típica entre pais e filhos.
1.2.3.1 Posse do Estado de Filho
O lastro que ampara a existência da paternidade
construída no convívio diário pelos laços afetivos
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Clever Jatobá
repousa sobre a “Posse do Estado de Filho”, uma
temática oriunda da antiguidade, sustentada desde
a Roma antiga, que agasalha a situação fática do
convívio pela aparência9 correspondente a relação
entre os pais e seus filhos.
É cediço na doutrina a existência de circunstâncias
que atestem a posse de estado de filho, qual sejam, o
nome, o tratamento e a reputação. Assim, esclarece
Luiz Edson Fachin (1992, p.54):
Por posse de estado de filho, entende-se
a reunião de três elementos clássicos: a
nominatio, que implica a utilização pelo
suposto filho do patronímico, a tractatio, que
se revela no tratamento a ele deferido pelo
pai, assegurando-lhe manutenção, educação
e instrução, e a reputatio, representando a
fama ou notoriedade social de tal filiação.
Não obstante ser pacificamente sustentado na
doutrina a idéia de “posse do estado de filho” nos moldes
do direito romano, estando atrelado aos elementos
clássicos de nome, tratamento e reputação (nominatio,
tractatio e reputatio), cabe-nos esclarecer que tais
elementos precisam ser interpretados em consonância
com os prismas jurídicos da atualidade, sendo assim,
compreendidos nos moldes em que vivemos, estando
adequados à atual realidade, pois, com o passar dos
tempos, diante do decurso da história e da evolução da
sociedade, não se pode ficar vinculado a interpretá-los
nos moldes de outrora, pois o mundo moderno não é
9 Maria Berenice Dias (2006, p.306) sinaliza o empréstimo de juridicidade pela tutela
da aparência.
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Filiação socioafetiva: os novos paradigmas da filiação
35
(nem pode ser) mais o mesmo regulado pelo direito
romano.
Neste diapasão, cabe-nos reportarmos à lição de
Roxana Cardoso Brasileiro Borges (2007, p.80), qual
esclarece que:
[...] a distância entre o direito civil atual
e o direito romano é de dois milênios. E a
intrpretação do direito atual tendo como
base o direito romano não tem lugar, pois
as sociedades são diferentes, as épocas não
têm ligação entre si e, apesar da coincidência
terminológica de alguns institutos, os direitos
são diferentes.
Desta forma, entendemos que para caracterização
da “posse do estado de filho”, exige-se, nos moldes
jurídicos atuais, apenas e tão somente dois elementos,
quais sejam, a reputação e o tratamento, cuja
consolidação será manifestada perante o seio social
de um relacionamento típico de um pai perante o seu
filho, onde o pai trata-o como filho, ao tempo em que
o filho assim o reconhece como pai.
Neste diapasão, José Bernardo Ramos Boeira
(1999, p.60) entende a configuração da posse de estado
de filho, como sendo “uma relação afetiva, íntima
e duradoura, caracterizada pela reputação frente a
terceiros como se filho fosse, e pelo tratamento existente
na relação paterno-filial, em que há o chamamento
de filho e a aceitação do chamamento de pai.”
Na conjuntura jurídica da atualidade não se pode
exigir a contemplação do elemento nominatio, pois,
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Clever Jatobá
uma vez registrado com o patronímico dos pais não
biológicos, estar-se-ia diante, não de uma filiação
socioafetiva pura, no que concerne à realidade
sociológica de fato, mas, sim, da manifestação do
vínculo de sócio-afetividade identificado numa
filiação civil devidamente regularizada pelo registro,
independentemente de se perfazer por meio da
adoção judicial, adoção à brasileira ou do simples
reconhecimento da filiação.
Ademais, o nome de família nos moldes romanos
não tinha a mesma regularidade formal dos nossos
tempos, visto que os nascimentos não eram lavrados
obrigatoriamente no registro civil de forma oficial,
mas, tão somente, atentava-se ao sobrenome como
identificador da descendência das pessoas perante o
seio social. Além do mais, cabe-nos acrescentar que o
registro formal ocorria, em regra, diante da contagem
demográfica censitária, momento onde as famílias
eram registradas perante o Estado.
Atestando nossa assertiva, temos a incontestável
referência bíblica acerca do nascimento de Cristo
(Lucas cap. 2, versículo 1-7)10, qual esclarece que:
Naquele tempo o imperador Augusto
mandou uma ordem para todos os cidadãos
do Império se registrarem, a fim de ser feita
uma contagem da população. Quando foi
feito esse primeiro recenseamento, Cirênio
era governador da Síria. Então todos foram
se registrar, cada um na sua própria cidade.
Por isso José foi de Nazaré, na Galiléia, para
10 A Bíblia na Linguagem de Hoje. São Paulo: Sociedade Bíblica do Brasil, 1988.
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Filiação socioafetiva: os novos paradigmas da filiação
37
a região da Judéia, a uma cidade chamada
Belém, onde tinha nascido o rei Davi. José
foi lá porque era descendente de Davi. Foi
registrar-se com Maria, com quem tinha
casamento contratado.
Assim, em que pese o registro histórico cediço
na doutrina com base no direito romano, asseveramos
que os requisitos não são cumulativos, destarte,
entendemos como essencial à consolidação da posse
do estado de filiação, que seja levado em conta o
apreço dos elementos fáticos do tratamento e da
reputação, indispensáveis à configuração deste vínculo
de parentesco como corolário da teoria da aparência.
Outrossim, diante da não regularidade formal
do assento registral do nome, pode-se conceber que o
mesmo teria o condão apenas de reforçar a reputação
da relação de parentesco, identificando no seio social
de quem aquela pessoa era filho.
Assim, cabe-nos asseverar que a posse do
estado de filho torna-se tema relevante, sempre que
houver a constatação dos atributos funcionais dos pais
que assumem suas responsabilidades concernentes
aos cuidados, a educação, a preocupação com o
desenvolvimento físico e psicológico de um filho,
estando dissociado do vínculo biológico, ou da
paternidade jurídica, para, assim, ser compreendido
que a verdadeira paternidade transcende às limitações
dos conceitos restritivos de filiação, para desembocar
na construção fática de vínculo afetivo construído no
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38
Clever Jatobá
cotidiano com de importância e repercussão social.
1.3
DA CONTASTAÇÃO DO VÍNCULO
SOCIOAFETIVO
Diante da necessidade de concretização da verdade
socioafetiva na sociedade e sua repercussão no âmbito
jurídico, faz-se mister atentarmos à manifestação do vínculo
socioafetivo na configuração da filiação, qual identificamos
claramente no filho de criação; na adoção à brasileira;
na adoção judicial; bem como na inseminação artificial
heteróloga.
A constatação mais flagrante do vínculo socioafetivo
pode ser verificada nos casos dos filhos de criação, atentando
àquela situação em que uma pessoa cria uma criança
ou adolescente, educando, assistindo a sua formação,
contribuindo com seu desenvolvimento físico e psíquico,
sem que estejam vinculados pelos laços consangüíneos.
Ao que tange à adoção, é pacífica a idéia do laço
socioafetivo no estabelecimento da filiação, pois se encontra
nesta, a ausência da informação genética suplantada pela
configuração de um vínculo civil, estabelecido por um
processo formal e solene que determina e acarreta todos os
efeitos jurídicos pertinentes a filiação.
Outra circunstância que merece destaque alude aos
casos em que a pessoa, mesmo tendo consciência de não
ser o pai (ou mãe) biológico, decide registrar a criança
como seu filho e construir no convívio o vínculo afetivo
de filiação. Esta circunstância ficou conhecida na doutrina
como “adoção à brasileira”, pois, mesmo desatrelado da
verdade biológica, agasalha o aspecto registral dando status
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Filiação socioafetiva: os novos paradigmas da filiação
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de filiação civil, o que, analogicamente, tem-se reportado
à adoção11 sem atender às suas solenidades legais do
respectivo processo judicial.
Acrescentamos que tal conduta encontra-se tipificada
como crime prescrito no artigo 242 do Código Penal
brasileiro, entretanto, no parágrafo único deste artigo12
está disposto a forma privilegiada do tipo, permitindo, não
apenas a redução da pena, como a possibilidade da mesma
não ser aplicada, sempre que decorrer de um motivo de
reconhecida grandeza. Em regra, tem sido a postura adotada
pela jurisprudência.
Nos casos de reprodução assistida, quais decorram
da utilização de material genético de doadores anônimos,
ou seja, material distinto dos pais contratantes da técnica
fica translúcido o entendimento do desatrelamento genético
que une pais e filhos. Assim, asseguramos que a verdadeira
filiação, sob o prisma afetivo, será construída no dia-dia, ou
seja, na convivência familiar (a fortiori, social).
1.4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao atentarmos à filiação como instituto jurídico que liga
os pais e as mães aos seus filhos, chegamos a compreender
que a filiação pode se materializar de diversas formas,
todavia, filiamo-nos à idéia de que independentemente da
gênese da filiação, todos são iguais perante a lei, quanto
11 Belmiro Pedro Welter (2004, p.81) exemplifica: “o caso da gestante que entrega seu
filho, voluntariamente, a um casal, o qual faz o registro de nascimento de recém-nascido
em nome deles, como se fossem os pais genéticos”.
12 Há quem faça alusão ao tipo penal da “Falsidade ideológica”, como o próprio Belmiro
Pedro Welter (2003, p.150), aludindo ao artigo 299, parágrafo único do CP. Contudo, na
esfera penal a adequação típica é requisito fundamental para imposição penal, de modo
que, havendo tipo penal específico, não há que atentar aos reclames de outra prescrição
mais genérica, assim, o mesmo se adéqua ao art. 242 do CP.
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Clever Jatobá
aos direitos e deveres, gozando das mesmas garantias, sem
submeter-se a valorações hierárquicas discriminatórias
entre os distintos tipos de vínculo, pois estes se manifestam
em pé de igualdade.
Cientes das distinções entre o vínculo biológico –
onde os filhos descendem geneticamente dos seus pais – e o
vínculo socioafetivo – construído basicamente no convívio
cotidiano, calcado nas amplas expressões da voz do amor,
bem como no cuidado com a criação, sustento, educação e
desenvolvimento físico e psicológico – entendemos, que a
manifestação do afeto, eixo central das relações familiares,
encontra-se enraizada em todas as espécies de filiação,
sendo indiferente às distinções entre os vínculos, pois o
papel dos pais desempenhado na sua função familiar é de
contribuir com o bem-estar e desenvolvimento da sua prole,
garantindo que os laços afetivos são a manifestação natural
indispensável às relações familiares.
Finalmente, alerta Cristiano Chaves de Farias (2007,
p.207), que apesar do exame de DNA permitir “com
precisão, a determinação da paternidade, a partir das
influências genéticas” [...] “não constitui prova única a ser
utilizada na investigação de paternidade”, uma vez que se
trata apenas de prova pericial e em nosso sistema jurídico
inexiste hierarquia entre os meios de prova.
Assim, entendemos ser necessário debruçarmos sobre
o caso concreto para verificarmos qual o critério deve ser
determinante à consolidação da filiação, pois uma coisa
é certa, independente da espécie de vínculo, todos são
originários da filiação e nenhum é mais importante que
o outro, mas, sim, coexistem pacificamente na ordem
constitucional vigente, sob o manto da isonomia da filiação,
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pois, atestamos que um filho pode surgir na vida das pessoas
de várias formas, mas seu desenvolvimento e a formação da
sua personalidade depende dos cuidados, carinho e amor
indispensáveis às relações familiares.
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Filiação socioafetiva: os novos paradigmas da filiação
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Cidade ideal e cidade visível: o paradigma grego...
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CIDADE IDEAL E CIDADE VISÍVEL:
O PARADIGMA GREGO EM REVISTA.
APROXIMAÇÃO À CRÍTICA
DE LEWIS MUMFORD.
Delor Gerbase Gramacho
Professor de Filosofia e Ética da Faculdade Maurício de Nassau,
Especialista em Gestão de Pessoas
RESUMO
Este artigo tem por objetivo oferecer uma aproximação
crítica da idéia grega de cidade do século V a.c que se funda
no cidadão e na divindade formal da acrópole, demonstrando
a diferença entre a cidade organizada (polarizada entre
o templo e a ágora, simbolizada pela acrópole perfeita,
sempre equidistante e altiva) e a verdadeira cidade visível
como conjunto de imperfeições tão próximas de nós.
Tentamos expor essa diferença para contribuir com uma
visão menos simplista e até mesmo inverossímil o edifício
da cidade grega.
Palavras-chave: Cidade. Pólis. Grécia. Ideal.
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Delor Gerbase Gramacho
ABSTRACT
This paper intends to offer a critical approach of
the Greek idea of the city in the 5th century BC that is
founded on the citizen and the divinity of formal acropolis,
demonstrating the difference between the city organized
(polarized between the temple and agora, symbolized by
the perfect acropolis always equidistant and proud) and the
real city as a set of visible imperfections so close to us.
We tried to explain that difference to contribute for a less
simplistic and even unlikely comprehension towards the
Greek city building.
Key words: City. Polis. Greek. Ideal.
INTRODUÇÃO
A história e a literatura nos trazem uma Grécia perfeita
e erudita, que acompanha em uníssono a forma idealizada
por Platão e Parmênides. A idéia de cidade do século V
a.c se funda no cidadão e na divindade formal da acrópole.
Uma cidade organizada, polarizada entre o templo e a ágora,
simbolizada pela acrópole perfeita, sempre equidistante
e altiva. Essa idéia, que se fez ideal, não só nos legou as
noções de justiça, cidadania e democracia, mas, acima de
tudo, nos levou, não poucas vezes, a considerar de maneira
simplista e até mesmo inverossímil o edifício da cidade
grega. Tomamos como base o ponto de vista de Lewis
Mumford que vem numa contramão não desvairada, exercer
a sua habilidade na crítica ao ideal platônico da cidade que
muitas vezes se confundiu com a própria história da Grécia,
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Cidade ideal e cidade visível: o paradigma grego...
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para tecer nesse artigo uma aproximação e uma exposição
ainda que preliminar, da cidade ideal e da cidade visível.
Nunca a vida dos homens das cidades fora
tão significativamente animada, tão variada
e compensadora, jamais fora tão pouco
arruinada por mecanismos e compulsões
exteriores. (...) O trabalho e o lazer, a teoria
e a prática, a vida privada e a vida pública,
achavam-se em intercurso rítmico, enquanto
que a arte, a ginástica, a música, a conversa,
a especulação, a política, o amor, a aventura
e mesmo a guerra abriam cada aspecto da
existência e o colocavam dentro do âmbito
da cidade. (MUMFORD, 1965, p.223).1
CIDADE IDEAL E CIDADE VISÍVEL
A cidade grega é, para a história ocidental, um marco
de civilização, uma experiência suprema do espírito, que
proporcionou a nós, via Europa por França e Alemanha, os
instrumentos possíveis para o desenvolvimento da razão e
da cidadania nos termos em que a concebemos. O que não se
vê, todavia numa leitura rápida da tradição, é que esta cidade
grega — reta e justa como o mármore — nuca perdeu o elán
da aldeia e sua vida foi, não obstante a glória do espírito, tão
comum e visceral como a de qualquer povoação construída
a partir do templo, do ritual e do simbólico. A cidade visível
era um belo conjunto de imperfeições.
1 A edição desse fragmento é de responsabilidade nossa.
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Nesta cidade visível, a beleza se colocava para a ordem
social em detrimento das mais comuns preocupações com
a higiene ou a qualidade das habitações. Não se verifica, no
estudo detido, uma organização austera e compartimentada
quer seja na vida privada, quer seja na vivência pública. Em
relação aos trabalhos, por exemplo, os cidadãos, os escravos
e as mulheres desempenhavam as suas funções junto com
os livres. Não fosse assim a tragédia não floresceria.
As atividades estéticas exerciam tanta importância e
demandavam tanta dedicação quanto ás atividades políticas
e sociais, e se podia perceber ¾ a despeito dos relatos
“construídos á pá” ¾ que entre as casas de madeira e palha
e as ruas apertadas e sujas, fervilhava uma vida de aldeia
nada confinada ou setorizada.
“Os monumentos de arte grega que hoje
apreciamos foram expressões vagas desta
vida em seus momentos mais altivos. Mas,
em parte, foram igualmente substitutos por
materiais de um espírito que, caso conhecesse o
segredo de sua própria perpetuação, poderia ter
prestado uma contribuição ainda mais valiosa
ao urbanismo e ao desenvolvimento urbano.”
(MUMFORD, 1965) 2
As tão veneradas atividades relativas ao ágora
(mercado) ou à ágora (praça pública)3 eram realizadas na
medida do revezamento dos grupos de cidadãos livres, num
ambiente de deliberação que previa uma atividade política
imediata, quase trivial. E esse caráter imediato ¾ que parece
2 A edição desse fragmento é de responsabilidade nossa.
3 Essa distinção é um recurso didático e não se verifica na língua grega.
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excluir-se da cidade ideal que pensa homem e mundo como
se gestasse conscientemente o futuro do ocidente ¾ é, sem
dúvida mais marcante no espírito grego, que não concebia
nem mundo nem homem como categorias universais, e
sim o ateniense, o espartano, Atenas, Esparta, etc. como
categorias particulares.
Com efeito, a cidade grega viveu o sec. V como
uma genuína experiência de civilização, jamais como a
materialização de uma cidade ideal, feita de homens ideais,
que se existiu como esforço intelectual, “ficou latente como
idéia, porém jamais foi adequadamente realizada em tijolos
ou mármore.” (MUMFORD, 1965 p.220).
O período chamado helênico, muito bem demarcado e
merecidamente apropriado pela história da filosofia, foi antes
de decadente, uma tentativa de os filósofos da escola e da
academia retomarem o telos (finalidade) ideal da civilização
para o transformarem, definitivamente na verdadeira face
da Grécia, materializando a cidade ideal na vida da cidade
visível. Mas jamais conseguiram com que Atenas refletisse
tal intento. Pelo contrário, a Guerra do Peloponeso levou a
cidade grega a uma crise de desenvolvimento que reduziu
muito a concretização do ideal.
Faltou à polis, mais do que as características físicas de
defesa e proteção contra os invasores, reconhecer-se na cidade
ideal confirmando esse paradigma que lhe possibilitaria
continuar no seu caminho de desenvolvimento. Por isso,
Mumford chama de “regressão à utopia” a organização
proposta por Sócrates na Política — uma cidade dividida
em três partes artistas, agricultores e defensores, em número
total de 10 mil, onde as atividades de culto, defesa e provisão
se apresentariam logicamente divididas; ou, Aristófanes em
As aves — uma cidade formada por um quadrado inscrito
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em um círculo cujo centro seria o mercado para onde
convergem todas as ruas, em forma de estrela. Todos esses
engenhosos planos (o primeiro praticado na Jônia) refletem
a noção inaugural grega de que a forma da cidade deveria ser
definitivamente a forma de sua sociedade, (noção esta que
vai além da mera organização estrutural) com estruturas que
nunca fossem herméticas e para as quais qualquer alteração
demandaria uma mudança global.
Mas foi por Platão que conhecemos esta cidade ideal,
essa maneira de pensar a organização da pólis, onde vemos a
aceitação do princípio da perfeição funcional, e da sociedade
organizada em castas sob a regência do rei-filósofo na qual cada
um deveria seguir (diferente da real vida da cidade) o caminho
para o qual demonstra aptidão inata, e onde o guerreiro teria
notado destaque. Comparada com a cidade visível, a pólis de
Platão “poderia ser descrita como uma prisão murada sem
lugar para as verdadeiras atividades da cidade dentro do seu
pátio interno.” (MUMFORD, 1965, p.225)
Onde está, portanto o mérito da dialética grega, mãe
da cidade ideal, uma vez que Platão subestima os desafios
do crescimento confundindo a estrutura viva da cidade com
uma forma a ser friamente modelizada? Porque a cidade
visível, de fato carecia do entendimento e da noção de um
corpo arquitetônico capaz de julgar e de condicionar os
homens.
CONCLUSÃO
Torna-se indigesto, portanto, considerar a existência de
fato da cidade ideal. Mais incômodo ainda é colocar os nossos
paradigmas lá, como se pudéssemos hoje construir o que
se foi a muito. Mais sensato é acreditar que, o que existiu e
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ainda existe é um imenso desafio de unir o desenvolvimento
da cidade ao desenvolvimento da sociedade pra um fim
específico, isto é, construir a morada do cidadão livre,
embora isso seja ainda mais ideal. Essa crítica é, acima
de tudo, um esforço opinativo sobre o direito, a política,
a história da arte e, especialmente da filosofia juntamente
com as suas respectivas tradições.
A crítica ao ideal platônico da pólis que hoje é lugar
comum, nunca foi tão suficientemente discutida a ponto
de deslocar o nosso olhar para aprender dos gregos do sec.
V, como viver na cidade e avançar como cidadãos de uma
cidade tangível. Aprender como fortalecer a cultura a partir
das vivências da própria cidade e desenvolver justiça e
cidadanias reais, para pessoas reais. Ainda hoje, a cidade
ideal realmente contrasta com a cidade visível na medida
em que determina o cidadão segundo suas características
mais estáticas e o coloca como um autômato.
Vale lembrar que por mais pensada que a acrópole
pudesse ser, ainda assim, a vemos aplicada de maneira
intuitiva nas encostas escarpadas e irregulares do Pireu,
com seus templos e muros. Lá como aqui, o que sempre
prevalece é o componente estético ritualístico que deu à
vida da cidade o seu motivo. Desse modo, o paradigma
da cidade grega é mais belo pelo odor e pela cor dos seus
seres, pelo extrato das suas vivências, do que pelo frio e
austero mármore incrustado dos valores que nos chegam
representados nos discursos idealizados.
REFERÊNCIAS
MUMFORD, Lewis. Trad. Neil R. da Silva. A cidade na
história. Belo Horizonte: Editora Itatiaia, 1965.
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Direito e retórica na construção do ordenamento jurídico...
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DIREITO E RETÓRICA
NA CONSTRUÇÃO DO ORDENAMENTO
JURÍDICO DA UNIÃO SOVIÉTICA A PARTIR
DA ANÁLISE DO TEXTO DE ANDREJ
VYSINSKIJ INTITULADO PROBLEMI
DEL DIRITTO E DELLO STATO IN MARX
Fernando Joaquim Ferreira Maia
Doutorando e Mestre em Direito pela UFPE; professor assistente da
UFRPE; Especialista em Direito Processual Civil pela UFPE.
RESUMO
Neste trabalho, analisar-se-á a questão do direito e de
suas relações com a retórica na construção do ordenamento
jurídico da União Soviética a partir da análise do texto de
Andrej Vysinskij, intitulado Problemi del diritto e dello
Stato in Marx. O pensamento jurídico de Vysinskij revestiu-se de construções retóricas próprias, voltadas não só
para a persuasão a partir do senso comum, como também
para a busca do consenso. Vysinskij reinterpreta a base jurídica do pensamento de Marx, direcionando-a, por meio
de técnicas persuasivas, com fins eminentemente políticoRevista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau –
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sociais e jurídicos, para a legitimação de um direito do
tipo proletário e de uma teoria marxista do direito. Neste
sentido, o pensamento jurídico de Vysinskij foi um desenvolvimento das concepções jurídicas incipientes de Marx,
Engels e Lênin, reinterpretadas à luz dos condicionantes
históricos e materiais da União Soviética. Assim sendo,
sustentar-se-á que Vysinskij, através de uma releitura da
retórica aristotélica pelas formulações de João Maurício
Adeodato, construiu estratégias persuasivas próprias, à
base do emprego de metáforas, diferenciando-se dos demais teóricos de sua época. Por fim, objetiva-se compreender como Vysinskij concebe a sua retórica, bem como
quais as estratégias de persuasão ele vai adotar para fazer
prevalecer as suas teses.
Palavras-chaves: vysinskij, retórica, direito
ABSTRACT
This paper will analyze Law and its relationship
with the rhetoric in the construction of juridical ordainment in the Soviet Union, taking into account the analysis
of a text written by Andrej Vysinskij, entitled Problemi
del diritto e dello Stato in Marx. Vysinskij´s juridical
thought was composed by its own rhetoric constructions,
in order to be not only persuasive from a common sense
but also searching for a consensus. Vysinskij reinterprets
the juridical basis of Marx´s thought, directing it via persuasive techniques in order to legitimate the proletarian
Law and a Marxist theory of Law, with social political and
juridical aims. Then, Vysinskij´s juridical thought was
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considered a development of juridical conceptions which
were incipient to Marx, Engels and Lenin, all reinterpreted according to the conditions of historical and material
aspects of Soviet Union. Though, it will be considered
that Vysinskij, by rereading the Aristotelian rhetoric via
João Maurício Adeodato´s formulations, built up his own
persuasive strategies, by using metaphors, differentiating
himself from other theorist from his time. Last, we aim to
understand how Vysinskij conceived his rhetoric, as well
as which persuasive strategies he will adopt in order to
make his theses prevail.
Keywords: Vysinskij, rhetoric, law
SUMÁRIO
1. Introdução: um novo enfoque sobre a teoria marxista do direito: a desconstrução dos seus argumentos a
partir de uma abordagem jurídica e retórica. 2. A retórica
a partir das formulações de João Maurício Adeodato. 3. O
ambiente retórico em que Vysinskij estava inserido. 4. Da
retórica dos métodos à retórica metodológica nas teses de
Andrej Vysinskij. 5. A desconstrução dos mecanismos de
persuasão presentes no pensamento de Vysinskij, mediante
a aplicação da retórica metódica. 5.1. A utilização da metáfora para a estruturação da realidade, objetivando unir dois
elementos diferentes, destacando uma semelhança. 5.2. A
prevalência de argumentos de autoridade preponderantemente sobre as posições de Karl Marx, Josef Stálin e Lênin.
6. Andrej Vysinskij e a função do direito na sociedade de
paradigma marxista. 7. Referências.
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1. INTRODUÇÃO: UM NOVO ENFOQUE
SOBRE A TEORIA MARXISTA DO DIREITO: A
DESCONSTRUÇÃO DOS SEUS ARGUMENTOS
A PARTIR DE UMA ABORDAGEM JURÍDICA E
RETÓRICA
Neste trabalho, analisar-se-á a questão do direito e de
suas relações com a retórica na construção do ordenamento jurídico da União Soviética a partir da análise do texto
de Andrej Vysinskij, intitulado Problemi del diritto e dello
Stato in Marx. Aqui, utiliza-se a versão traduzida em italiano por Umberto Cerroni (VYSINSKIJ, 1964, pp. 239-297).
Ademais, o nome do autor, pela tradução italiana, aparece
como Andrej Jamrjevich Vysinskij (em russo).
O pensamento jurídico de Vysinskij revestiu-se de
originalidade, com construções retóricas próprias, voltadas
não só para a persuasão a partir do senso comum, como
também para a busca do consenso. Vysinskij reinterpreta
a base jurídica do pensamento de Marx, direcionando-a,
por meio de técnicas persuasivas, com fins eminentemente
político-sociais e jurídicos, para a legitimação de um direito
do tipo proletário e de uma teoria marxista do direito.
Neste sentido, o pensamento jurídico de Vysinskij
foi, de certo modo, um desenvolvimento das concepções
jurídicas incipientes de Marx, Engels e Lênin, reinterpretadas à luz dos condicionantes históricos e materiais da União
Soviética.
Assim sendo, nestas linhas, tentar-se-á oferecer ao
leitor um outro prisma sobre a problemática do direito no
marxismo, sustentando que Vysinskij, na obra a ser examinada, quanto à retórica e argumentação no direito, através
de uma releitura da retórica aristotélica pelas formulações
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de João Maurício Adeodato, construiu estratégias persuasivas próprias, à base do emprego de metáforas, diferenciando-se dos demais teóricos de sua época.
Por fim, o fulcro deste trabalho objetiva auxiliar na
compreensão de como Vysinskij concebe a sua retórica,
bem como quais as estratégias de persuasão ele vai adotar
para fazer prevalecer as suas teses, a partir das exigências
da afirmação da ordem jurídica socialista.
2. A retórica a partir das formulações
de João Maurício Adeodato
Em Aristóteles, a retórica aparece como a articulação
do discurso para a persuasão, mas não só para isto; fundamentalmente é voltada para a descoberta da capacidade de
persuasão de dado argumento ou assunto.
Aristóteles procurou construir uma teoria retórica que
residisse na opinião geral, provável, dos homens e no local
das atividades onde estes se relacionam. Aqui se deve partir
de noções comuns, estar em acordo com o auditório ao qual
se direciona o discurso. Neste sentido, Aristóteles (1998,
pp. 46-47) considera que é mais fácil persuadir pela verossimilhança.
Sobre isto, vale ressaltar que, para Adeodato, a retórica
concebe a verdade como uma ilusão, sendo a linguagem o único acordo possível entre os homens. De fato, o sistema retórico
defendido por Adeodato (2009, pp. 16, 17) parte da idéia de
que o ser humano é incapaz de perceber quaisquer verdades,
mesmo com a linguagem, única realidade possível com a qual
o homem é capaz de lidar. Assim, não existe uma verdade absoluta com que se preocupar e sim verdades relativas.
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Desta forma, a retórica serve também como instrumento de ação do homem na realidade em que vive (ADEODATO, 2009, pp. 17-18). O fato é que, o desenvolvimento
da luta de classes vai exigir o domínio da palavra e da escrita com objetivos persuasórios, o que só a retórica poderá
proporcionar. Aqui, o conteúdo do discurso só interessa à
retórica porque é útil à persuasão do auditório, sendo suficiente que o retor tenha domínio do discurso (CICERÓN,
1943, pp. 22, 81, 83, 106). Daí a necessidade da utilização de noções comuns, topoi, acessíveis a toda a população
(ARISTÓTELES, 2001, p. 18).
É a partir dessas formulações que o interesse pela retórica é retomado pelos ventos pós-positivistas que atingem o
direito ocidental desde a segunda metade do século XX. De
fato, no século XX, a retórica vai ser marcada pelo avanço
teórico do paradigma da linguagem. Aqui, o sentido da persuasão depende da interação flexível entre orador e auditório.
É neste contexto que João Maurício Adeodato vai expor suas teses. Adeodato (2009, pp. 20, 32, 40, 43, 45), a
partir da contribuição de Otomar Ballweg, vai construir três
níveis para a retórica: a retórica dos métodos, a retórica metodológica e a retórica metódica.
A retórica dos métodos é a maneira pela qual os seres
humanos efetivamente se comunicam, suas artes e técnicas
sobre como conduzir-se diante dos demais, construindo o
próprio ambiente em que acontece a comunicação. Desta
forma, a retórica dos métodos envolve a própria linguagem,
no sentido de que o homem está sempre ordenando, orientando, vinculando, regulando, se posicionando, ao intervir
na sociedade (BALLWEG, 1991, pp. 176-177).
A retórica dos métodos é desenvolvida segundo a percepção individual do homem, mas em sua interação com o
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outro, no discurso. Aqui, segundo Adeodato (2009, pp. 32,
35, 36), isto corresponde ao método, este composto por discursos retoricamente articulados na intervenção do homem
na sociedade.
Em relação à retórica metodológica, esta envolve
aquele conjunto de regras construídas a partir da observação da retórica dos métodos, tendo por objetivo alterar a
realidade, possibilitando que o sujeito-retor atinja seus objetivos. Assim, a retórica metodológica se projeta sobre a
retórica dos métodos, verificando fórmulas para a persuasão (BALLWEG, 1991, p. 178). Assim se comportando,
a retórica metodológica funciona como uma metodologia
composta de observações, experiências e reflexões sobre o
ambiente da retórica dos métodos.
Já no que diz respeito à retórica metódica, esta estuda
a relação entre como se processa a linguagem humana e
como o homem acumula experiências e desenvolve estratégias de modo eficiente (ADEODATO, 2009, p. 38). A retórica metódica não impõe ao sujeito-retor a obrigatoriedade
de estabelecer normas, de decidir, de fundamentar e de interpretar. A retórica metódica tem caráter formal, descritivo
e zetético, dando igual atenção aos seguintes elementos no
sistema lingüístico: signo, objeto e sujeito. Aqui, ela analisa
a relação entre a retórica dos métodos e as retóricas metodológicas para também exercer o controle sobre estas, se
ocupando tanto da aplicação das estratégias de persuasão
sobre o ambiente comunicativo humano, como do próprio
conhecimento obtido pelo homem.
Por fim, a retórica metódica permite maior controle da linguagem, legitimando, desse modo, as regras da
convivência humana e servindo de suporte à aceitação de
decisões. Desta forma, a retórica metódica admite a cateRevista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau –
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goria sujeito/objeto e as contradições decorrentes disto nas
relações humanas, limitando-se apenas ao registro e análise
dessas relações.
3. O ambiente retórico em que Vysinskij
estava inserido
A vitória dos bolcheviques na guerra civil que se travou na Rússia entre os anos de 1918 e 1921 foi acompanhada pelo fracasso das revoluções socialistas européias, em
fins da década de 10 e início da de 20, levando a um quadro
internacional desfavorável à URSS.
O período do comunismo de guerra não tinha conseguido atender plenamente às necessidades e anseios da
população, pois ainda inexistiam condições objetivas para
que a União Soviética se lançasse na construção plena do
socialismo (LÊNIN, 1978a, p. 223).
Outrossim, diante da necessidade de se conter e neutralizar a influência, ainda presente, do capital sobre as outras camadas sociais não proletárias, era imperioso que o
Estado soviético satisfizesse as necessidades econômicas
destas classes, o que, naturalmente só um prévio e elevado
nível de progresso capitalista poderia oferecer esta possibilidade (LÊNIN, 1975a, p. 143).
Desta forma, uma nova política econômica se fazia necessária. Esta nova política econômica, denominada
NEP, iniciou-se em 1921, consistindo no restabelecimento
das relações capitalistas de produção, em convivência com
as relações socialistas de produção, sob a direção do Estado, baseando-se no restabelecimento da propriedade privada dos meios de produção, no desenvolvimento do capital
nacional privado e estrangeiro associado ao capital estatal
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(ACADEMIA DE CIÊNCIAS DA URSS, 1961, p. 367),
ao incentivo das formas capitalistas de produção no campo,
com o crescimento das pequenas e médias propriedades privadas (ELLEINSTEIN, 1976, pp. 59-62). Consistiu, também, na privatização de empresas estatais e excedentes de
produção, ao incentivo do comércio privado, a manutenção
de relações comerciais com o exterior, bem como em outras
formas de produção capitalistas, tudo sob o controle estatal
e com prazos determinados (LÊNIN, 1978b, pp. 30-32).
As medidas adotadas pela NEP surtiram os efeitos esperados pelos dirigentes soviéticos e, ao final de 1927, o sistema produtivo do país tinha alcançado níveis de desenvolvimento suficientes, com grande recuperação da produção
de riquezas ao nível de 1913. A partir desta época, quando
as forças produtivas estavam restabelecidas, começava-se a
observar certo esgotamento da correspondência obrigatória
das relações de produção com o caráter das forças produtivas, notadamente o aparecimento de sintomas nocivos ao
regime, como a formação de uma grande classe de produtores capitalistas rurais, os kulaks, movida pela relativa concentração da terra, a associação destes com os capitalistas
da cidade, o aumento das contradições sociais, indícios de
descontrole por parte do Estado das formas capitalistas de
produção, bem como a conclusão da base econômica necessária para o prosseguimento da construção do socialismo. A
estes fatores impunham o fim das formas de produção capitalistas no campo e pediam a coletivização agrícola como
forma de alavancar a produção de alimentos (DAVID; HAZARD, 1978, pp. 172-173).
Ao final de 1931, as medidas da NEP já não existiam
e a produção estava praticamente toda socializada. Com o
fim da NEP, iniciava-se a fase propriamente dita da edificaRevista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau –
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Fernando Joaquim Ferreira Maia
ção plena do socialismo na URSS, com a extinção de todas
as formas de produção capitalistas e com a socialização geral de praticamente todos os meios de produção. Neste sentido, tal qual defendia Vysinskij, o sistema jurídico passa a
ser orientado para proteger e reproduzir as relações sociais
e leis econômicas mais vantajosas ao grupo dominante, garantindo a transição socialista, o que vai afirmar o caráter
proletário do direito na URSS, propiciando a consolidação
de uma teoria marxista do direito.
O fato é que este contexto vai permitir que Vysinskij
defenda a necessidade do uso do direito e do Estado na
União Soviética para assegurar os objetivos da transição socialista rumo ao comunismo.
4. Da retórica dos métodos à retórica
metodológica nas teses de Andrej
Vysinskij
Vysinskij (1964, p. 244) defende que o marxismo resolveu, em geral, todos os problemas do direito, ao possibilitar um estudo acabado do processo de origem, desenvolvimento e decadência das formações econômico-sociais, considerando o conjunto de todas as tendências opostas, bem
como as reconduzindo às condições determinadas de vida e
de produção das diversas classes sociais da sociedade.
As fontes do direito são as relações de produção. Aqui,
as relações jurídicas têm suas origens nas relações materiais
de existência. Desta forma, direito e Estado são formas da
superestrutura social, regidos pelo processo de produção de
riquezas, estando influenciados pela luta das classes sociais
pela transformação das relações de produção. Assim sendo,
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a superestrutura jurídica e política repercutem sobre a base
dos fatos históricos (MARX, 1978, pp. 112-113, 118).
De fato, por trás do direito há sempre a luta pela
emancipação econômica, visto que o direito só adquire
vigência formal por vontade do Estado, tendo o seu conteúdo legitimador derivado do desenvolvimento das forças produtivas e das condições de distribuição, pela qual
as relações de produção se expressam nas correspondentes formas de direito. Ao chegar a uma determinada
fase de desenvolvimento, as forças produtivas chocam-se
com as relações de produção, dentro das quais se haviam
desenvolvido até aqui. A relação jurídica passa a refletir
a relação econômica. Trata-se, aqui, de um condicionamento sobre a base de relações reais, entre as quais as
econômicas que, embora possam vir influenciadas por
outras relações, são decisivas (MARX; ENGELS, 1987,
pp. 26-28, 35-39).
Assim, a relação jurídica oferece uma desigualdade
econômica mascarada por uma igualdade jurídica, pela
qual a forma da superestrutura não tem valor enquanto
não se reduza à forma do conteúdo. A forma e o conteúdo constituem uma unidade indissolúvel e demonstrar tal
nexo é o objeto da análise científica do direito. O direito
encobre relações de dependência e desigualdade apresentadas como formas jurídicas de legalidade (MARX,
1977, pp. 230-232).
Logo, os critérios relativos de justiça ou de direito
estão subordinados à visão que dada classe social têm do
mundo. A norma jurídica, neste caso, sempre vai beneficiar
e contrariar, ao mesmo tempo, os interesses de determinadas camadas na sociedade em favor ou em detrimento de
algumas (MAIA, 2003, p. 66).
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Fernando Joaquim Ferreira Maia
A extinção do direito equivale a uma afirmação
prévia à práxis da libertação da superestrutura jurídica,
só possível pela revolução proletária, tendo como passo inicial a socialização geral dos meios de produção e a extinção
gradativa do Estado, de forma que, quando o Estado se extinguir, extinguir-se-á o direito. No período do socialismo,
o Estado proletário utilizaria o direito, mudando o seu conteúdo de classe, para reproduzir a ideologia proletária na
sociedade, institucionalizar e legitimar o poder político do
proletariado e regular o sistema socialista (ENGELS, 1989,
pp. 69-73, 79). De certo, isto só poderia ser conseguido com
a socialização geral dos meios de produção e a ruptura com
a divisão do trabalho que levariam ao advento da sociedade
comunista e a superação da sociedade de classes.
Assim, o marxismo não aceita a legalidade como essência do direito, mas antes procura superar o formalismo
jurídico mediante a revelação do conteúdo de opressão e
contradição social inserido nas normas jurídicas, tendo por
base as estruturas econômicas reais (FERNANDEZ-LARGO, 1983, pp. 444-445). O direito é usado para desumanizar o homem, tendo como função a implantação de um tipo
de produção.
Outrossim, Vysinskij define a natureza socialista do
direito, nas condições de um Estado socialista, ao conceber
que o poder político operário-camponês pressupõe necessariamente uma regulação jurídica das relações sociais. Aqui,
este jurista soviético, sustenta o caráter proletário do direito
sob a transição socialista.
Vysinskij busca eliminar a incompatibilidade entre um poder estatal opressor e a necessidade de se assegurar a legalidade, modificando a realidade que separa
esses termos. A solução adotada é a utilização da idéia
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de legalidade como pressuposto para o poder político
proletário.
Então, no Estado socialista, o direito constitui um
meio específico de controle sobre a medida do trabalho e
do consumo por parte da classe dominante na sociedade. E
é justamente numa sociedade socialista que se torna inevitável a presença do direito como instrumento de proteção e
reprodução das relações sociais socialistas.
Outrossim, Vysinskij procura amparar suas ilações
acerca da natureza do direito, durante a transição socialista ao comunismo, no pensamento de Karl Marx. Aqui, ele
cita a obra Crítica ao programa de Gotha, sustentando que
Marx, ao defender o caráter similar do direito socialista
com o burguês, no socialismo, o faz apenas em relação
à força comum destes na origem e no desenvolvimento
histórico, pelo qual ambos desenvolvem grande função
criativa e organizativa (VYSINSKIJ, 1964, pp. 251-252).
Entretanto, Marx afirma também que o direito regula as
formas de opressão social, particularmente do capital
sobre o trabalho, e que as formas jurídicas são condicionadas pela infraestrutura social, recebendo conteúdo dos
condicionantes históricos e materiais em que estão inseridas (MARX, 1977, p. 230).
É com este fundamento que Vysinskij vai sustentar
que, enquanto não advier o comunismo, o direito é ainda
necessário. Neste sentido, Vysinskij concebe que o direito
vigente na transição socialista é um direito de um período
de transição, direito socialista gerado pelo novo Estado
proletário.
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5. A desconstrução dos mecanismos de
persuasão presentes no pensamento
de vysinskij, mediante a aplicação da
retórica metódica
5.1. A utilização da metáfora para a estruturação da
realidade, objetivando unir dois elementos diferentes,
destacando uma semelhança
Vysinskij, no afã de sustentar a existência de uma teoria marxista do direito, condensando os escritos de Marx,
Engels, Lênin e Stálin que servissem de base para a mesma, vai fazer variado emprego da metáfora, ora para afirmar
suas teses, ora para desqualificar as teses adversárias e os
próprios adversários.
Neste sentido, Vysinkij vai argumentar metaforicamente vinte e sete vezes ao longo da sua obra em exame,
seja para realçar seus argumentos à base das posições de
Marx, Lênin e Stálin, seja para contrapô-los em relação às
teorias de Pasukanis, Stucka e Reisner. Aqui, ora Vysinskij
vai utilizar metáforas explícitas, ora vai proceder com metáforas implícitas, estas ditas “adormecidas”.
Objetivando uma melhor compreensão da temática, vale,
brevemente, discorrer aqui sobre a significação da metáfora.
A metáfora é uma analogia condensada que expressa
certos elementos do que se quer provar ou do que serve para
provar algo (REBOUL, 2000, p. 187). Em outras palavras,
na metáfora, vai-se transferir o significado de um termo comum para outro termo, este estranho, diferente (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 2005, p. 453).
Neste sentido, Vysinskij fornece um exemplo: “A vastidão e completitude do gênio de Marx se explicam porque
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ele produziu inegáveis obras de ciência nos vários campos
do conhecimento, compreendida a ciência do direito e do
Estado”1. Aqui, o termo “vastidão” tem por objetivo passa
a idéia de que a pessoa de quem se fala, Marx, é preparada,
com um grande acúmulo teórico, o que justifica que ele,
mesmo não sendo um jurista, tenha tido competência para
tratar de temas jurídicos.
Segundo Aristóteles (1998, pp. 196-197) (2007, pp.
96-101), a metáfora é composta por palavras agradáveis,
com determinado significado, que permitem ao homem conhecer o seu sentido apropriado, proporcionando também
conhecimento, pela qual vai se deslocar o sentido de uma
palavra comum para uma palavra estranha, de ornamentação, alterada em sua forma. Em Aristóteles, essa transferência de sentido se dá da espécie ao gênero, do gênero à
espécie, da espécie à espécie e por analogia (BERISTAIN,
1995, p. 311). É por isto que Perelman vai definir a metáfora
como uma analogia condensada, na qual ocorre uma união
entre “o que se quer provar” e “o que serve para provar”
(PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 2005, p. 453). As
formulações acima, conduzem à conclusão de que a metáfora deriva da analogia, o que é admitido pelo próprio Aristóteles (1998, p. 199) (2007, pp. 96-97).
Vale ressaltar que a analogia constrói a realidade que
permite encontrar e provar uma verdade por meio de uma
semelhança de relações, ou seja, por meio de comparações
(REBOUL, 2000, p. 185). Então, a analogia vai ligar um
termo anterior, já aceito, com um termo posterior, ainda não
aceito, mas que se quer evidenciar. Para tanto, utilizar-se-á
expressões do tipo “assim como”, “também”, “como”, an1 “La vastità e completezza del genio di Marx spiega perchè egli abbia creato immortali
opere di cienza nei vari campi dello scibile, compresa la scienza del diritto e dello Stato”
(VYSINSKIJ, 1964, p. 241).
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tecedendo a descrição (SOUZA, 2008).
Neste sentido, Vysinskij (1964, p. 276), ao longo do
texto, emprega várias analogias. Aqui, como exemplo, citase o seguinte trecho:
No artigo Sobre a questão hebraica,
Marx exprime ainda o seu consenso como a
definição hegeliana do Estado como ‘a realidade moral autoconsciente do espírito’, mas
aqui Marx denuncia o direito burguês como
direito do proprietário privado, dizendo que
‘a utilização prática do direito do homem à
liberdade é o direito do homem à propriedade privada’, é o direito do egoísmo2.
Na citação acima, embora o referido jurista soviético
utilize uma metáfora, o certo é que ele, citando Marx, vai
fazer também duas analogias. Uma, reduzindo a definição
hegeliana do Estado a uma moral intrínseca ao homem, autoconsciente. Outra, reduzindo o direito burguês ao direito
do proprietário, tentando provar que esse direito marginaliza as demais camadas sociais. De certo, o objetivo de Vysins-kij é anular tudo o que a relação exclui e reforçar a sua
própria tese de que, modificando-se a natureza da acumulação da riqueza e da propriedade, modifica-se a natureza
do direito.
De fato, essas importantes considerações sobre a analogia, são fundamentais para a compreensão da questão
metafórica no texto de Vysinskij, pois, conforme já dito, a
2 “Nell’articolo Sulla questione ebraica Marx esprime ancora il suo consenso come
la definizione hegeliana dello Stato come ‘la realità morale autocosciente dello spirito’,
ma qui Marx denuncia il diritto borghese come diritto dell’uomo alla libertà è il diritto
dell’uomo alla proprietà privata’, è il diritto dell’egoismo” (VYSINSKIJ, 1964, p. 276).
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metáfora condensa a analogia, misturando “o que se quer
provar” e “o que serve para provar”, tornando perceptível
termos muito diferentes, que não se vinculam no dia-a-dia.
Por isto mesmo, a metáfora é mais persuasiva que a analogia, pois além de ser redutora, ela transforma comparação
em identidade, anulando as próprias diferenças entre os termos, dentro, é claro, do contexto do discurso. Seguindo este
raciocínio, a metáfora vai utilizar outras expressões antes
de introduzir os termos, tais como “é” e “tem”, sempre com
afirmações definitivas (REBOUL, 2000, p. 188).
Assim, Vysinskij (1964, p. 242) argumenta com a seguinte passagem:
As previsões de Lênin se confirmaram
plenamente. A época presente – a luminosa
época staliniana do socialismo florescente
– é a época de um triunfo jamais visto das
idéias marxistas, da teoria marxista desenvolvida e erguida pelas obras de Lênin e de
Stálin a uma altura sem precedentes3.
Na citação acima, observa-se que o jurista marxista
estabelece relações no texto, ligando os termos heterogêneos “luminosa”, “época”, “socialismo”, “fluorescente”
e “altura” para potencializar os efeitos persuasivos do seu
discurso. O objetivo de Vysinskij é mostrar ao auditório
que, considerando o crescimento da economia soviética,
as formulações de Lênin se revelaram acertadas e que as
idéias de Stálin não passam de continuação das concepções
3 “Le previsioni di Lenin si sono pienamente avverate. L’epoca presente – la luminosa
epoca staliana del socialismo fiorente – è l’epoca di un trionfo mai visto delle idee marxiste, della teoria marxista sviluppata e sollevata dalle opere di Lenin e di Stalin ad una
altezza senza precedenti” (VYSINSKIJ, 1964, p. 242).
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leninistas. Ademais, como as teses do autor se baseiam neste legado, isto acaba por reforçar as posições de Vysinskij.
A argumentação metafórica deste jurista busca reduzir todos os termos envolvidos, anteriormente citados, a um elemento comum, mascarando as diferenças entre eles. Esse
elemento comum é a edificação da sociedade socialista e
os êxitos alcançados pela nova sociedade. Agora, como
Vysinskij aproxima termos diferentes, ele acaba por criar
um movimento nas próprias metáforas, invocando, no final,
um outro termo, “altura”, aqui revelando que o desenvolvimento da sociedade socialista conduz a grandes elaborações teóricas e ao próprio aprimoramento do marxismoleninismo. Veja que a fusão dos termos se deu, aqui, pelos
adjetivos “luminosa” e “fluorescente”, mas, como ressalta
Perelman, podia ser por verbos, identificações etc, pois o
que importa é que a fusão operada pela metáfora se dê a
partir da analogia, esta envolvendo relações associativas
entre expressões (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA,
2005, pp. 456-457).
Voltando a Aristóteles, nos termos já postos, a metáfora é um instrumento de conhecimento, de natureza associativa, que nasce do raciocínio, mas que é empregado
conforme as necessidades da retórica dos métodos e metodológica. Nestes termos, quando Vysinskij emprega a metáfora, ele não pode seguir fielmente as regras da lógica, pois
o jurista soviético vai sempre produzir, com o manuseio das
metáforas, uma mudança de significado ou mesmo um sentido dito “figurado” na argumentação empregada, opondose ao significado literal, oferecendo um sentido conotativo
ao argumento.
Isto fica evidente na seguinte passagem da obra de
Vysinskij (1964, p. 249):
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Para Rejsner não existem fenômenos
jurídicos reais, come fenômenos de mediação das relações sociais. Fonte do direito são,
para Rejsner, não as relações de produção,
mas a psiquique, o sentimento, as emoções,
as idéias. A cerca de 80 anos, na prefaciação
a Para a crítica da economia política, Marx
escreve que ‘tanto as relações jurídicas quanto a forma do Estado não podem ser compreendidas nem por si mesmas, nem pela, assim
dita, evolução geral do espírito humano, mas
têm as suas raízes, ao contrário, nas relações
materiais de existência, o qual o conjunto
vem abraçado por Hegel, seguindo o exemplo dos ingleses e dos franceses do século
XVIII, sob o termo de ‘sociedade civil’; e
[...] a anatomia da sociedade civil está por
investigar na economia política’. Para Marx,
as relações jurídicas e, portanto, também o
direito, têm as suas raízes nas condições materiais da vida e não podem ser nem deduzi
dos, nem compreendidos, em si, com refe
rência à evolução geral do espírito humano4.
4 “Per Rejsner non esistono fenomeni giuridici reali, come fenomeni di mediazione dei
rapporti sociali. Fonte del diritto sono per Rejsner non i rapporti di produzione, ma la
psiche, il sentimento, le emozioni, le idee. Circa 80 anni fa nella prefazione a Per la
critica dell’economia politica Marx scrisse che ‘tanto i rapporti giuridici quanto le forme
dello Stato non possono essere compresi nè per se stessi, nè per la cosidetta evoluzione
generale dello spirito umano, ma hanno le loro radici, piuttosto, nei rapporti materiali
dell’esistenza il cui complesso viene abbracciato da Hegel, seguendo l’esempio degli
inglesi e dei francesi del secolo XVIII, sotto il termine di ‘società civile’; e [...] l’anatomia
della società civile è da cercare nell’economia política’. Per Marx i rapporti giuridici e
quindi anche il diritto hanno le loro radici nelle condizioni materiali della vita e non possono essere nè dedotti nè compresi in sé com riferimento alla evoluzione generale dello
spitito umano”(VYSINSKIJ, 1964, p. 249).
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Observa-se que Vysinskij procura amparar as suas
posições no pensamento de Karl Marx, para quem a “anatomia” da sociedade civil deve ser procurada na economia
política (MARX, 1978, pp. 112-113, 118). Neste sentido,
o jurista soviético, ao reempregar a palavra anatomia (VYSINSKIJ, 1964, p. 249), se vale, mais uma vez, da utilização da metáfora, objetivando unir dois elementos diferentes (sociedade civil e ser humano), para destacar uma
semelhança (a idéia de base, fundamento). Anatomia, nesse
contexto, é empregada como ilação à idéia de que a economia política é a base da constituição da sociedade, tal
qual a anatomia é a base da constituição do ser humano.
Desta forma, direito e Estado são formas da superestrutura
social, “anatomia da sociedade”, regidos pelo processo de
produção de riquezas, estando influenciados pela luta das
classes sociais pela transformação das relações de produção.
Ao que parece, Vysinskij se aproveita do fato de que a
maioria dos auditórios constroem sua opinião tendo por
base imagens, muitas vezes nunca vistas, apenas imaginadas para empregar metáforas, com o intuito de clarear as
idéias e despertar emoções nos ouvintes (SKINNER, 1999,
pp. 251, 253-255). Entretanto, não é qualquer metáfora que
Vysinskij vai empregar. Ele vai utilizar metáforas que retratem imagens claras, proporcionais ao contexto do discurso, ligando de forma arrojada termos estranhos, de forma a
ampliar o efeito persuasivo do seu discurso, o que as linhas
citadas acima constituem um exemplo.
De certo, o fato de o Estado burguês ter se consolidado ao longo do tempo, ter desenvolvido uma superestrutura ideológica e da ideologia do capital ter se enraizado na
sociedade, além da insuficiência no desenvolvimento das
novas relações de produção e leis econômicas, impedia uma
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transição direta do capitalismo ao comunismo na Rússia e
colocava a questão da natureza do direito e do Estado na sociedade soviética centrada no problema da transição no socialismo. Neste sentido, o uso do Estado como aparelho de
opressão de classe era necessário transitoriamente em função dos resquícios subjetivos e objetivos herdados do capitalismo, seja para conter a progressão da burguesia rumo ao
poder político, seja para eliminar a ideologia burguesa remanescente, seja para viabilizar a construção da nova sociedade, reproduzindo as relações sociais e auxiliando na transição rumo ao comunismo (STÁLIN, [ca.1986], p. 46-49).
De fato, era evidente que o novo regime, ainda incipiente,
era carente de mecanismos retóricos suficientes capazes de
não só reproduzir a ideologia dominante como neutralizar e
destruir os resquícios ideológicos do velho regime.
Desta forma, havia a preocupação, sobretudo por parte de Vysinskij, com a questão da superestrutura ideológica
do Estado, buscando construir mecanismos retóricos suficientes para otimizar essa superestrutura, universalizando
a ideologia dominante, neutralizando e eliminando a ideologia burguesa. Aqui, o uso das metáforas, alterando e
distorcendo significados, cumpria grande papel persuasivo
no discurso, pois permitia conduzir melhor a população na
consecução dos objetivos postos pelo Estado na transição
socialista rumo ao comunismo.
5.2. A prevalência de argumentos de autoridade
preponderantemente sobre as posições de Karl Marx,
Josef Stálin e Lênin
Como já dito, Vysinskij vai empregar ao longo de
sua obra, aqui em exame, argumentos de autoridade para
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justificar suas principais teses: 1) de que existe uma teoria
marxista do direito, tendo por base os princípios fornecidos
por Marx, Engels e Lênin; 2) de que esta teoria se fundamenta na união indissolúvel entre direito e Estado, união
esta erigida sobre as relações de produção e leis econômicas socialistas, materializando o caráter proletário do direito e do Estado nas condições do socialismo soviético; 3)
de a legalidade socialista não é apenas o princípio diretor
do direito soviético, mas também integra a superestrutura
ideológica do Estado.
De fato, Vysinkij vai empregar pelo menos setenta e
dois argumentos de autoridade ao longo do texto, estribando praticamente todos os seus argumentos nas posições de
Marx, Lênin e Stálin. Aqui, ora Vysinskij vai mencionar a
idéia principal desses autores, ora vai proceder a citações
ipis literis de trechos das obras desses autores.
Outrossim, a escolha desses personagens por Vysinskij não
se dá de forma aleatória. Em relação a Marx, este foi um
dos fundadores do marxismo, ao lado de Engels, sendo sua
obra muito difundida nos meios operários da Europa, principalmente depois da Primeira Guerra Mundial. No que diz
respeito a Lênin, este era considerado o principal discípulo
de Marx e Engels, tendo aprimorado a teoria marxista, sobretudo em relação à teoria do Estado, da revolução e do
partido, a tal ponto de ter praticamente refundado o marxismo, agora marxismo-leninismo. Já no que concerne a
Stálin, depois da morte de Lênin, em 1924, aquele passou
a ser considerado o principal sucessor deste, tendo grande
destaque na União Soviética frente às polêmicas acerca da
planificação econômica, do papel do Estado, das nacionalidades e do centralismo democrático.
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Então, será com essas figuras proeminentes do marxismo que Vysinskij construirá diversos argumentos de autoridade, reforçando não só as teses desses teóricos, mas
também as suas próprias teses.
De certo, o argumento de autoridade é calcado na
pessoa, mais precisamente na relação dos atos realizados,
do qual o texto aborda, com a qual aquela se refere. É um
argumento de essência (REBOUL, 2000, p. 176). Assim,
no texto, Vysinskij (1964, p. 244) cita a seguinte passagem
de Stálin:
Do marxismo, Lênin disse que a
doutrina de Marx é onipotente porque é
verdadeira. É verdadeira porque é uma ciência autêntica, herdeira legítima daquilo
que de melhor criou a humanidade no século XIX: a filosofia alemã, a economia
política inglesa, o socialismo francês5.
Nas linhas citadas acima, o objetivo do jurista soviético é justificar a importância de se enfrentar as questões
postas no direito e no Estado a partir das premissas formuladas por Marx, o que o próprio título do texto deixa em
evidência.
Outrossim, o argumento de autoridade não se refere necessariamente a uma pessoa física, podendo designar
uma autoridade abstratamente, como, por exemplo, uma
doutrina, um partido, um governo, uma ideologia, um coletivo, uma opinião comum (PERELMAN; OLBRECHTS5 “Del marxismo Lenin ebbe a dire che la dottrina di Marx à onnipossente perché à vera.
È vera, perch´é à uma scienza autentica, erede legittima de quel che di meglio ha creato
l’umanità nel secolo XIX: la filosofia tedesca, l’economia politica inglese, il socialismo
francese” (VYSINSKIJ, 1964, p. 244).
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TYTECA, 2005, p. 350). Neste sentido, Vysinskij (1964, p.
283) cita, como argumento de autoridade, a doutrina marxista: “O marxismo ensina que o proletariado necessita do
Estado também para reprimir os exploradores e para dirigir
enormes massas da população no trabalho de organização
da economia socialista. Assim escrevia Lênin acerca do
marxismo em 1913”6.
Observa-se que o argumento de autoridade busca a
justificação de uma afirmação, idéia ou tese com base no
valor do seu autor. É por isto que Vysinskij (1964, pp. 242,
249, 252) sempre introduz ou finaliza seus argumentos
com: “vem espontaneamente à memória as seguintes palavras de Marx...”, “comentando este passo Lênin escreveu:...”, “assim escrevia Lênin do marxismo em 1913”7.
Neste sentido, não se pode negar que as relações predominantes no argumento de autoridade envolvem juízos
de valor. Este juízo de valor é auferido tendo por base o
alcance social do comportamento da pessoa e as manifestações desta, permitindo que o auditório construa uma idéia
do caráter de quem se invoca no discurso. Aqui, são os atos
que condicionam a concepção de que se faz de alguém. O
prestígio maior ou menor da autoridade citada será determinado neste contexto, criando-se uma intenção favorável ou
desfavorável, por parte do auditório, na interpretação dos
atos debatidos no discurso (SOUZA, 2008) (GIL, 2008).
De fato, o argumento de autoridade é uma técnica comum da retórica. No quadro dos intensos debates acerca da
6 “Il marxismo insegna che il proletariato ha bisogno dello Stato anche per reprimere
gli sfruttatori e per dirigere enormi masse della popolazione nell’opera di organizzazione dell’economia socialista. Così scriveva Lênin do marxismo em 1913” (VYSINSKIJ,
1964, p. 283).
7 “Vengono spontaneamente alla memoria le seguenti parole di Marx...”(VYSINSKIJ,
1964, p. 249); “commmentando questo passo Lenin scrisse:...” (VYSINSKIJ, 1964, p.
252), “Così scriveva Lênin do marxismo em 1913” (VYSINSKIJ, 1964, p. 242).
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natureza jurídica do direito e do Estado soviético, tendo por
pano de fundo a luta entre a pequena-burguesia e o proletariado, ele não pode ser descartado, uma vez que muitas
das questões levantadas por Vysinskij eram controversas e
o remetimento ao pensamento fundamental de Marx, Lênin
e Stálin era útil para a persuasão. Ademais, considerando a
importância que tem para a retórica o ethos, o recurso ao
argumento de autoridade constituía parte da estratégia de
reforço da própria autoridade do retor.
Seguramente, na tradição marxista soviética, e até
mesmo na marxista de um modo geral, é abundante o uso
de argumentos de autoridade. Seguem-se vários exemplos.
Assim, Lênin (1987, p. 53), em sua obra O Estado e a
revolução, já no primeiro capítulo, adverte, referenciandose em Marx:
Aconteceu com a doutrina de Marx o
que aconteceu diversas vezes na história com
as doutrinas dos pensadores revolucionários
e dos líderes das classes oprimidas em sua
luta pela libertação. Durante a vida dos revolucionários, as classes opressoras os submetem a constantes perseguições, recebem suas
doutrinas com a raiva mais selvagem, com o
ódio mais furioso, com a mais desenfreada
campanha de mentiras e calúnias.
Também, Stálin (1979, p. 16), em sua obra Materialismo dialético e materialismo histórico, utiliza argumento
de autoridade para discorrer sobre o método dialético:
É por esta razão, diz Engels, que a
dialética “observa as coisas e o seu reflexo
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mental, principalmente nas suas relações recíprocas, no seu encadeamento, no seu movimento, no seu aparecimento e desaparecimento.
Novamente Lênin (1975b, p. 47), em seu artigo intitulado Os ensinamentos da insurreição de Moscovo, publicado no jornal Proletari, agosto de 1906, levanta argumentos
de autoridade: “Dezembro confirmou uma outra tese profunda de Marx, esquecida pelos oportunistas: a insurreição
é uma arte, e a principal regra dessa arte é a ofensiva – uma
ofensiva de uma coragem a toda a prova e de uma inabalável firmeza”.
Até mesmo os adversários de Vysinskij, a exemplo de
Pasukanis, utilizavam argumentos de autoridade no debate
acerca da natureza do direito na sociedade soviética: “Marx
formula este raciocínio de maneira ainda mais clara em sua
Introdução geral à crítica da economia política: ‘Faustrecht (o direito do mais forte) é igualmente um direito’” (PASUKANIS, 1989, p. 109).
No mesmo sentido, segue outro adversário de Vysinskij, Stucka (1988, p. 28), em sua obra Direito e luta de
classes, na qual se estriba na opinião de Marx para dar melhor efeito persuasivo às suas teses:
Como diz Marx, as relações de produção de cada sociedade formam um todo; daí
resulta que a nossa definição de direito, que
faz menção ao sistema das relações sociais,
está plenamente de acordo com a concepção
de Marx.
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O próprio Marx (MARX, 2004, p. 111), em sua obra
Miséria da filosofia, utiliza argumentos de autoridade:
Para provar-lhe o contrário citaremos
apenas Ricardo e Lauderdale; Ricardo, o
chefe da escola que determina o valor pelo
tempo de trabalho, Lauderdale um dos defensores mais entusiasmados do valor como
determinado pela oferta e pela procura. Todos os dois desenvolveram a mesma tese.
Mais recentemente, Boris Topornine (1981, p. 2), comentando a Constituição da União Soviética, lança mão de
argumentos de autoridade: “Na sua obra As lutas de classes
em França, K. Marx assinalou que as Constituições dos Estados sempre foram estabelecidas depois da formação das
novas relações de classe na sociedade”.
Igualmente, Ernesto Che Guevara (1987, pp. 31-32),
em seu texto O que deve ser um jovem comunista, emprega
argumentos de autoridade para justificar suas teses. Senão
vejamos:
O companheiro Fidel fez sérias críticas aos extremismos e às expressões, algumas bastantes conhecidas de todos vocês,
como, por exemplo, ‘a ORI é a candeia...’,
somos socialistas, em frente, em frente...’
Todas aquelas coisas que Fidel criticou, e
que vocês conhecem bem, eram o reflexo do
mal que atacava nossa revolução.
Outrossim, Enver Hoxha (1990, p. 162), outrora dirigente do Partido do Trabalho da Albânia, utiliza argumenRevista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau –
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Fernando Joaquim Ferreira Maia
tos de autoridade na polêmica entre os marxistas e os revisionistas. Assim, este dirigente afirma:
Esta era a via tipicamente social-democrata combatida com tanto ardor por Lênin e
desbaratada pela Revolução de Outubro. Os
pontos de vista kruschovistas, que haviam
sido extraídos do arsenal dos chefetes da II
Internacional suscitavam perigosas ilusões e
desacreditavam a própria idéia da revolução.
Do mesmo modo, Kim il Sung (1993, p. 459), dirigente falecido do Partido do Trabalho da República Democrática Popular da Coréia (Coréia do Norte), ao criticar a
teoria da revolução permanente, utiliza os seguintes argumentos de autoridade:
Em sua análise das causas do fracasso
da Comuna de Paris, Marx apontou que se os
comuneiros não atacaram Versalhes, foi porque consideraram equivocadamente como
um ato de antipatriótico provocar a guerra
civil no momento em que a capital estava
assediada pelo exército prussiano, inimigo
estrangeiro; e Lênin qualificou de traição à
causa socialista o que, ao desencadear-se a
Primeira Guerra Mundial, os revisionistas da
II Internacional se uniram à burguesia, em
seus respectivos países sob o lema da ‘defesa
da pátria’, violando os princípios revolucionários da classe operária.
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Um dos líderes do Partido Comunista do Vietnã, Vo
Nguyen Giap ([1975?], p. 146), analisando a guerra revolucionária empreendida contra o Japão e a França no Vietnã,
também utiliza argumentos de autoridade. Senão, veja-se:
Lênin afirmou: ‘uma classe oprimida que não se esforçasse por aprender a manejar armas e por possuir armas,
só merecia ser tratada como escrava’. O
povo vietnamita aprendeu a manejar armas, organizou as suas forças armadas,
foi por isso que a causa da sua libertação nacional triunfou em metade do país.
Logo, dentro da tradição marxista, e, como as citações
levam a entender, não só na União Soviética, o argumento
de autoridade era um requisito indispensável, era um recurso de argumentação, uma retórica. Em princípio, portanto, a
citação de um autor não significava necessariamente adesão
às suas idéias, mas principalmente, reforço da autoridade
do próprio retor (FEITOSA, 2007, in passim) (FREITAS,
2007, in passim).
Além disso, como se observa dos trechos citados, os
mesmos autores, ou as mesmas práticas eram usados para
justificar políticas radicalmente distintas, a exemplo das polêmicas entre Vysinskij, Pasukanis e Stucka.
Vysinskij quando utiliza o argumento de autoridade o
faz apoiando argumentação sua. Ele não levanta argumentos de autoridade aleatoriamente, mas sempre buscando
ofuscar a tese adversária e reafirmar a sua própria tese, dando caráter persuasivo a esta. O seguinte trecho da obra em
exame de Vysinskij (1964, p. 244) evidencia isto:
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Esta é a lei fundamental do desenvolvimento da sociedade capitalista formulada por
Marx e Engels, mais de noventa anos antes;
uma lei que nenhuma força histórica está em
condições de abolí-la ou mudá-la. A negação que desta lei fazem os cretinos fascistas
não tem nenhum valor. O capitalismo e o seu
setor mais reacionário – o fascismo – vivem
sem perspectiva, cegos. ‘Apenas o nosso partido sabe aonde quer ir e marcha adiante com
sucesso. A que deve o nosso partido esta sua
superioridade? Ao fato que ele é um partido
marxista, um partido leninista. O deve ao fato
que ele se inspira, no seu trabalho, à doutrina
de Marx, de Engels e de Lênin. Não podemos
ter dúvida de sorte que, a fim de ficarmos fiéis
a esta doutrina, a fim de possuirmos esta bússola, registreremos sempre sucessos no nosso
trabalho’. Assim disse o companheiro Stálin,
definindo nestas breves palavras, mas extraordinariamente profundas, o valor histórico do
marxismo-leninismo como base dos sucessos
da revolução socialista e da causa do socialismo na União Soviética8.
8 “È questa la legge fondamentale di sviluppo della società capitalistica formulata da Marx
ed Engels più di novannta anni fa, uma legge che nessuna forza storica è in grado nè di
abolire nè di mutare. La negazione che di questa legge fanno i cretini fascisti non há alcun
valore. Il capitalismo e il suo reparto più reazionario – il fascismo – vivono senza prospettive, da ciechi. <Soltanto il nostro partito sa dove vuol andare e marcia avanti com sucesso.
A che cosa deve il nostro partito questa superiorità? Al fatto che esso à un partito marxista,
un partido leninista. Lo deve al fatto ch’esso si ispira nel suo lavoro alla dottrina di Marx,
di Engels, di Lenin. Non ci può esser dubbio di sorta che finché rimarremo fedeli a questa
dottrina, finché possederemo questa bussola, registreremo sempre dei sucessi nel nostro
lavoro’. Così há detto il compagno Stalin, definendo in queste parole brevi ma straordinariamente profonde il valore storico del marxismo-leninismo come base dei sucessi della
rivoluzione socialista e della causa del socialismo nell’URSS” (VYSINSKIJ, 1964, p. 244).
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No caso acima, os argumentos de autoridade só seriam inadequados se fossem supérfluos, empregados ao
acaso e sem confirmação da autoridade, conforme sustenta Perelman (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA,
2005, pp. 349, 351), o que parece não ser o caso.
Por fim, de certo, o argumento de autoridade é uma
técnica, como outra qualquer, sendo muitas vezes, como
mostra o texto de Vysinskij, indispensável, não tendo
nada de dogmático (REBOUL, 2000, p. 177), sobretudo
quando se considera que a divisão do trabalho e da produção, ao gerar contradições no processo de produção,
classes sociais e interesses antagônicos e inconciliáveis
entre estas, torna idéias como justiça, manutenção da ordem social, pacificação e legitimação relativas e controversas, que não podem ser dissociadas de uma tradição
jurídica, social e política para serem melhor entendidas.
6. Andrej Vysinskij e a função do direito
na sociedade de paradigma marxista
O juízo do marxismo acerca da realidade jurídica
envolve todo o fenômeno jurídico. Sua crítica pretende
a emancipação do homem do direito, como forma social
opressora e manipulada. A verdadeira emancipação humana se daria numa sociedade sem classes.
A concepção marxista do direito, defendida por Vysinskij, repousa numa relação indissolúvel entre o conhecimento do Estado e do direito, vendo esses como fatores de
coação social.
Segundo o jurista soviético, o proletariado ao conquistar o poder político, transformando os meios de produRevista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau –
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ção em propriedade do Estado, para generalizar seu interesse, determinaria o conteúdo do direito, dando a este caráter
socialista.
Ademais, a extinção do Estado seria feita progressivamente, elevando-se a propriedade à condição de propriedade social. Entretanto, o uso do Estado é necessário transitoriamente em função da herança do capitalismo.
O direito pressupõe sempre a força organizada a serviço da classe dominante. A extinção do direito equivale a
uma afirmação prévia à praxis da libertação da superestrutura jurídica, só possível com o comunismo.
De fato, Marx, Engels e Lênin teceram idéias fundamentais acerca do direito, cabendo aos juristas soviéticos,
sob a liderança de Vysinskij, o desenvolvimento da teoria
marxista do direito. Aqui, a principal preocupação de Vysinskij foi buscar uma teoria do direito baseada em princípios e obrigatória, de forma que pudesse servir de direção
para o desenvolvimento da ciência jurídica. Foi nas relações
de produção e leis econômicas socialistas que ele buscou
os princípios que guiaram os instrumentos jurídicos soviéticos.
Neste sentido, Vysinskij defendia que o direito deveria ser usado para a transformação da sociedade sobre a
base socialista. O direito tinha a função de reproduzir a
ideologia do proletariado na sociedade, institucionalizar
seu poder político, regular e desenvolver as relações sociais
socialistas. O direito, então, constituía um meio de controle sobre a medida do trabalho e do consumo por parte da
classe dominante na sociedade. Nesta condição, era utopia
pensar em fazer pouco uso do direito no socialismo, pois
o direito ainda era necessário, sendo, porém, diferente em
forma do direito burguês. Assim, para Vysinskij, nas conRevista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau –
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dições da União Soviética, o direito era entendido como o
direito de um Estado socialista operário-camponês.
Segundo, Vysinskij o princípio da legalidade socialista adquiria uma função importante, pois na União Soviética não havia a separação de poderes, sendo o poder estatal concentrado em um único órgão, o Soviete Supremo da
URSS, que distribuía suas funções entre órgãos seus, não
estando vinculado a princípios que repartissem a sua competência entre diversos órgãos iguais (DAVID; HAZARD,
1964, pp. 197, 202, 253, 274).
Assim, o princípio da legalidade guiava as três funções do direito soviético: 1) a função econômica, visando
a regular o modo de produção socialista e a sua transição
rumo ao comunismo, adequando a sociedade às metas da
planificação; 2) a função educadora, procurando reproduzir
e disseminar a ideologia socialista no seio da população,
institucionalizando todos os mecanismos de reprodução da
ideologia dominante na sociedade, combatendo, ao mesmo
tempo, os desvios ideológicos de toda espécie, condicionando o indivíduo a considerar os fenômenos e ações dos
homens e aos homens mesmos do ponto de vista dos interesses do Estado socialista e da edificação da sociedade
socialista; 3) a função moral, objetivando a estabelecer uma
moral socialista, traduzindo a idéia de justiça do proletariado, suas representações sobre o bem e o mal, refletindo a
infra-estrutura socialista (MAIA, 2005).
Havia uma instituição com fundamento exclusivo em
garantir o princípio da legalidade socialista e a efetivação
das funções do direito na sociedade: a Procuradoria.
A Procuradoria era um órgão autônomo, subordinado apenas ao Soviete Supremo da URSS, que lhe indicava
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o Procurador-Geral da União Soviética. Este, por sua vez,
indicava os outros Procuradores.
A função da Procuradoria era a de fiscalização geral
do respeito a todo o sistema jurídico do país, além de exercer funções típicas do Ministério Público nos países ocidentais, podendo, ainda, requerer a anulação de qualquer ato
tomado ilegalmente ou sem a observância de normas legais,
bem como tomar medidas para defender as relações jurídicas, porventura resistidas. Assim sendo, a Procuradoria
deveria controlar o cumprimento das leis pelo aparato estatal, em sentido amplo, e pelos cidadãos da União Soviética
(VLASOV; STUDENIKIN, 1962, p. 133).
O entendimento de Vysinskij, corroborado posteriormente pelos dirigentes soviéticos, acerca do papel da
Procuradoria, prevalecido durante o período de elaboração
do Código Civil da República Federada da Rússia, era de
que o Estado deveria intervir nas relações cíveis, nas lides
cíveis, considerando-se que não se devia desperdiçar a mínima possibilidade de ampliar a intervenção do Estado nas
relações cíveis (SHAKARIAN, 1971, pp. 110-111)..
Outrossim, na definição das tarefas da Procuradoria, o
próprio Lênin argumentava que era importante ter em mente
que, diferentemente de qualquer poder administrativo, a fiscalização do Procurador afastava-o de todo poder administrativo e de todo voto decisório em qualquer questão administrativa. O Procurador tinha apenas o direito e a obrigação
de fiscalizar a instituição, de exercer a compreensão unitária
resguardar a legalidade em toda a República, em que pese
quaisquer diferenças ou influências locais. O único direito
e obrigação do Procurador era, pois, entregar um assunto à
resolução do Tribunal (SHAKARIAN, 1971, p. 111).
A principal razão que sustentava a missão de um Procurador não era a defesa da legalidade em abstrato, senão
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dos valores superiores que davam vida a essa legalidade;
não tanto pela lei em si, senão quanto ao seu conteúdo ideológico, os valores que dela emanavam. A mesma devia incluir, em qualquer caso, a proteção ativa da Constituição
e do ordenamento jurídico que esta legitimava. A Procuradoria, como órgão de defesa da legalidade, não aparecia
contemplada em sentido geral, senão enquanto atuava na
promoção da ação da justiça.
Desta forma, na tarefa da Procuradoria, Vysinskij
(1964, pp. 253-255) colocava a idéia da legalidade como
uma forma específica ou método do poder político. Então,
as funções do direito na União Soviética estavam consubstanciadas na legalidade socialista, pois esta significava estabilidade das relações sociais, respeito às regras de convivência social, respeito e intangibilidade da propriedade
social socialista, bem como observância estrita de todas as
normas postas pelo Poder Público.
Vale salientar que o pensamento de Vysinskij punha o
princípio da legalidade socialista não como uma afirmação
metafísica da lei, mas como uma regra de conduta, organização e disciplina da sociedade, regida pela classe dominante. Certamente, esta posição contribuiu para a apatia das
massas, estimulando uma visão acrítica diante dos excessos
e falhas do regime soviético, inclusive no próprio seio do
Partido Comunista da União Soviética.
De fato, é notório que durante determinado período
do desenvolvimento da sociedade soviética, o pensamento
de Vysinskij passou a não corresponder obrigatoriamente
às tarefas da transição socialista rumo ao comunismo (que
passava também pela disseminação da ideologia marxista
no seio do povo, preparando-o para a ação socialista, bem
como combatendo os desvios ideológicos de quaisquer matizes porventura existentes, com o estímulo à crítica e à auRevista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau –
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tocrítica não só no seio da aliança operário-camponesa, mas
também entre os membros do próprio Partido Comunista).
Assim, deve-se ter o cuidado de entender que não
necessariamente a função do direito da União Soviética,
tal como concebida por Vysinskij, deve ter correspondido
à realidade, visto que o evidente fracasso da experiência
soviética aponta para óbvias insuficiências e contradições
na construção socialista daquele país que, provavelmente,
devem ter se refletido na sua estrutura jurídica.
Entretanto, não se deve relevar a contribuição de Andrej Vysinskij para a história do direito socialista, pois foi
graças às suas concepções que o pensamento de Marx, Engels e Lênin, quanto ao direito, foi sistematizado e aprimorado, a tal ponto de se considerar Vysinskij como o fundador da teoria marxista do direito.
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O Brasil realmente precisa da CPMF ou de qualquer outro tributo...
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O BRASIL REALMENTE PRECISA DA
CPMF OU DE QUALQUER OUTRO
TRIBUTO QUE INFORME AO ESTADO
O SIGILO BANCÁRIO?
Luiz Edmundo Celso Borba
Advogado; professor de graduações e de pós-graduações em Direito
e áreas afins; mestre e doutorando em Direito pela UFPE. http://
buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.jsp?id=W782905.)
RESUMO
Este ensaio tem por objetivo maior provocar discussões acerca da CPMF, em especial no tocante à discussão
de sua legitimidade com base no texto constitucional e nas
repercussões que possam incidir sobre os direitos e garantias fundamentais dos contribuintes brasileiros, sem esgotar
o tema, mas provocando o leitor a se informar mais diante
das notícias difundidas após a eleição presidencial de 2010,
no Brasil.
Palavras Chave: Possibilidade de retorno da CPMF.
Inconstitucionalidade. Violação de Direitos Fundamentais.
Revista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau –
Recife – ano 5 – n. 5 – p. 95-105 – 2010
96
Luiz Edmundo Celso Borba
ABSTRACT
This essay is a major cause of CPMF´s discussions,
especially regarding the discussion of its legitimacy based
on constitutional text and the effect it can focus on the fundamental rights and guarantees of Brazilian taxpayers, without exhausting the subject, but provoking the reader to
learn more before the news broadcast after the presidential
election of 2010 in Brazil.
Keywords: Possibility of return of the CPMF. Unconstitutional. Violation of Fundamental Rights.
FIG 1 1
Logo após o fim das eleições presidenciais de 2010,
a semana seguinte fez ressurgir uma questão “morta
e enterrada” desde 2007: “a Contribuição Provisória
por Movimentação Financeira (doravante CPMF) será
‘reativada’ pelas mãos da nova e primeira presidenta do
Brasil?” A resposta da mesma foi, para espanto de toda a
Sociedade, um categórico e autoritário: Sim!
1 Imagem disponível em: << http://acesso343.blogspot.com/2010/11/cerca-de-83-dostuiteiros-rejeitam-cpmf.html>>, coletado em: 11/11/2010.
Revista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau –
Recife – ano 5 – n. 5 – p. 95-109 – 2010
O Brasil realmente precisa da CPMF ou de qualquer outro tributo...
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Esse, então, passou a ser um dos assuntos mais
discutidos e recorrentes em todos os meios de comunicação,
nos centros universitários, nas mesas de bares e nos sofás
das casas de milhões de brasileiros, pois a CPMF deixou
más lembranças, aliás, como todo e qualquer tributo que
existe, pelo simples fato da norma tributária ser uma ação
estatal com clara rejeição social (OLIVEIRA, 2002, p. 157
e 158). É fato, ninguém gosta de pagar tributos, por mais
necessários que eles sejam!
Passemos, então, a tentar entender algumas causas
que sustentem tal afirmação, ressaltando o fato dela poder
ser dar em maior ou menor intensidade, mas ninguém se
satisfaz em ver alguém remexendo nos seus bolsos, na sua
carteira, ainda que essa pessoa tenha toda intimidade para
tal, quanto mais o Estado, um ser “estranho” e distante para
nós, infelizmente (NOGUEIRA, 1997, p. 244 a 246)!
Muitos afirmarão a “plenos pulmões”: nós não
gostamos de os pagar, pois eles são altos, mal utilizados,
escorrem de enormes “vazamentos” nos cofres públicos,
enfim pagamos muito e vemos poucos resultados
(MARTINS, 2000, p. 47); mas a questão não pode ser posta,
unicamente, nestes termos, pois mesmo nos países onde a
tributação é mais justa, criteriosa, há pouca corrupção e um
retorno satisfatório para os contribuintes, como ocorre na
quase totalidade dos países desenvolvidos, o pagamento de
impostos e de outros tributos será visto com pouquíssimo
apreço, por uma razão simples: eles interferem sobre a
propriedade privada de cada um de nós!
A segurança do direito de conseguir ter, depois usar
e a posterior preservação da propriedade começam com
a própria idéia de Estado de Direito, quando o cidadão
adquire uma série de garantias a serem conservadas pelo
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Luiz Edmundo Celso Borba
Poder Público, contra ele mesmo, pois o Estado, antes
só detentor de poderes, assume uma série de deveres
limitadores de suas ações, caso contrário para que Estado
se ele não melhora nossas vidas, piora (SARMENTO, in:
TORRES - org., 2001, p. 38)?
Durante séculos, até a Revolução Francesa em 1789,
o Estado não adotava garantias para o direito sobre a
propriedade, mas após seu reconhecimento a humanidade
passa a crescer e se desenvolver, pois foi gerado um grande
estímulo ao desenvolvimento, nos seguintes moldes: você
pode crescer, pode trabalhar (BORBAb, 2010), esforçar-se
ao máximo, pois os frutos do teu suor serão seus; porém,
“Eu”, Estado, serei seu “sócio forçado”, retirando um
percentual de todas as riquezas produzidas pela Sociedade.
A diferença deste novo modelo, para os praticados
antes da Revolução Francesa, é que passaram a existir
limites para tributar e todos eles são encontrados, na
nossa realidade, na Constituição Federal de 1988, mais
precisamente nos artigos 145 a 162. Seria impossível
se defender a inviabilidade do Estado interferir sobre a
propriedade privada, principalmente no tocante a cobrança
de tributos, pois precisamos de serviços públicos, como
saúde, segurança, educação, transporte públicos, justiça,
previdência, entre vários outros e por tal razão não podemos
escolher pagar os tributos, somos obrigados a tal encargo.
Sim, todos os tributos decorrem da lei e logo nas
primeiras semanas de aulas todos os alunos do curso de
direito aprendem que: “lei não se discute, cumpre-se,” por
tal motivo não escolhemos pagar tributos, fazemos isso pelo
fato das penalidades aplicáveis ao não pagamento serem
altas e com graves repercussões (BORBAa, 2010), inclusive
chegando à restrição da liberdade, ou seja: CADEIA por
prática de crime contra a ordem tributária!
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O Brasil realmente precisa da CPMF ou de qualquer outro tributo...
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Entendido o cenário no qual a CPMF se insere,
não podemos afirmar que essa rejeição será possível de
determinar o não ressurgimento dela, com qualquer novo
nome, ou não, pois se o tributo segue os padrões legais,
em especial nos já mencionados artigos 145 a 162 da
Constituição Federal de 1988, não é possível clamar sua
inviabilidade. Não querer esta intervenção não será um
motivo que “toque o coração” dos dirigentes do Estado.
Vejamos a negativa da CPMF por outros aspectos,
motivos muito mais graves e aptos a determinar a plena
inviabilidade da implementação da CPMF: 1o) ela é
confiscatória, ferindo a capacidade contributiva; e o mais
grave 2o) a CPMF viabiliza, ao Estado, camuflar sua real
intenção de burlar o sigilo bancário das pessoas, algo só
permitido, pela Constituição, através de uma decisão
judicial fundamentada por provas hábeis para convencer o
juiz a concedê-la.
A CPMF surgiu em 1993 como Imposto Provisório
por Movimentação Financeira (IPMF),2 sendo extinto
rapidamente após sua implementação, diante de um
tremendo erro técnico, pois este imposto (o imposto é uma
das 5 formas de tributos que existem no Sistema Tributário
Brasileiro, sendo elas: impostos; taxas; contribuições
de melhoria; contribuições sociais e/ou especiais; e os
empréstimos compulsórios) destinava a sua receita para a
Saúde Pública.
Acontece que os impostos não podem ser criados com
uma destinação certa específica dos recursos obtidos, como
se extrai da definição do artigo 16 do Código Tributário
Nacional, por isso foi reformulada como CPMF, diante
2 Informações disponíveis em: <<http://www.estadao.com.br/especiais/a-cpmf-da-origem-ao-fim,3929.htm>>, coletado em: 11/11/2010.
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Luiz Edmundo Celso Borba
da possibilidade das contribuições sociais ou especiais
poderem ter destinação própria, específica.
Contudo essa reformulação não legitimou a CPMF,
pois a Constituição de 1988 proíbe que tributos possam ter e
se configurar como meios aptos ao confisco (retirar bens da
população sem a necessidade de uma contrapartida social,
direta ou indireta, ou seja, privar o indivíduo da propriedade
sem qualquer espécie de retorno para ele), diante do texto
do seu artigo 150, inciso IV.
Porque a CPMF é confiscatória? Pelo fato de não
existirem limites econômicos para a sua aplicação, afetando
de forma indevida a capacidade de contribuir das pessoas e
isso é fácil de provar, basta paciência, se o indivíduo ficar
transferindo um real de uma conta para outra, ou mesmo
deposita e retira uma determinada quantia da própria conta,
terminará com R$ 00.
FIG.2 3
Logo, por não ter limites na sua incidência ela é
confiscatória, motivo apto para determinar o vício mais
grave que pode se abater sobre a lei: a inconstitucionalidade.
3
Imagem disponível em: <<http://www.et7ra.com/2010/11/eu-vejo-o-futurorepetir-o-passado.html>>, coletada em: 11/11/2010.
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O Brasil realmente precisa da CPMF ou de qualquer outro tributo...
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O princípio da vedação ao confisco (impossibilidade
de usar o tributo como forma para retirar a propriedade das
pessoas) é vinculado ao princípio da capacidade contributiva
(ao cidadão só serão cobrados tributos no limite de sua
disponibilidade econômica, ou seja em uma carga que ele
suporte sem vir a passar por sérias privações na mantença
do Estado), sendo ambos inseridos dentro do princípio da
isonomia (SCAFF in: MARTINS, 2000, p. 463 e 464).
Em segundo lugar e mais grave, ela burla uma grande
segurança dada aos cidadãos, um direito fundamental forte
a ser preservado: a intimidade das pessoas, o sigilo de seus
dados, inclusive os bancários, como dispõe o artigo 5o, XII
da Constituição Federal de 1988.
E essa limitação é necessária para que o Estado ou
outras pessoas não possam expor a intimidade das pessoas
sem motivo ou sem a autorização destas ou de um juiz,
diante de clara e necessária fundamentação, atendendo-se a
uma finalidade social.
O que a CPMF propicia, na prática, para o Estado não
são grandes somas de Dinheiro para a saúde pública, pois
na prática, os recursos dela eram pulverizados, como se
poderá ver no gráfico abaixo, ressaltando que a maior parte
destinada à saúde era para cobrir gastos com prevenção e
campanhas publicitárias, em especial as DST’s:
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Luiz Edmundo Celso Borba
FIg 3 4
Outro fato relevante é de que dinheiro de outras
fontes de receita foram desviados com o surgimento da
CPMF, ou seja, o dinheiro para a saúde não aumentou
significativamente. Tornando clara a sua real função:
saber quanto as pessoas movimentam em suas contas,
sem se tornar necessário pedir e FUNDAMENTAR
(com provas) isso em juízo. Como basta analisar quanto
entrou e quanto saiu da conta do contribuinte, através do
cálculo da CPMF neste período. Assim, não adiantaria
mais, por exemplo, alguém declarar uma renda anual de R$
100.000,00 (cem mil reais) se o sujeito movimenta perto
disso todo mês em sua conta!
A intenção oculta para a maioria da população é
louvável, no sentido de instrumentar o Estado a tentar
descobrir todas as falhas dos contribuintes, em especial
dos sonegadores, facilitando a fiscalização, mas a intenção
4 Retirado de: <<http://pt.wikipedia.org/wiki/Contribui%C3%A7%C3%A3o_Provis
%C3%B3ria_sobre_a_Movimenta%C3%A7%C3%A3o_ou_Transmiss%C3%A3o_
de_Valores_e_de_Cr%C3%A9ditos_e_Direitos_de_Natureza_Financeira>>,
em:11/11/2010.
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O Brasil realmente precisa da CPMF ou de qualquer outro tributo...
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não basta para um Estado de Direito, que precisa agir com
base na lei e não ao largo dela, até porque nem sempre as
intenções são boas, basta ver o uso político de informações
sigilosas, fiscais, em campanhas políticas, colocando-se em
cheque a atuação e guarda de dados pela Receita.�
Sendo assim legitimar a CPMF é, também, aceitar
e permitir que a Receita Federal quebre o seu sigilo
bancário, sem precisar pedir e fundamentar uma
autorização judicial através de provas, basta lembrar o
que o presidente Luis Inácio “Lula” da Silva utilizou como
último e desesperado argumento (no sentido de revelar o
“truque” desta nefasta contribuição) para evitar sua censura
no Congresso Nacional: “a queda da CPMF só interessa a
sonegador”!�
Pesando bem os prós e contras acho que ficará bastante
claro o seguinte: permitir a CPMF é se permitir a quebra do
sigilo bancário, a utilização de seu emprego para a Saúde
só revela o lado mais apelativo e perverso do Estado em
querer aprovar tal contribuição, pois o argumento: “é para
a Saúde Pública” se torna muito forte. Na prática seria
mais fácil e adequado aumentar a alíquota (percentual de
incidência do tributo sobre uma determinada riqueza – Base
de Cálculo) em um dos tributos já existentes ao invés de se
gerar um tributo confiscatório e motivador de desrespeito à
intimidade das pessoas.
O princípio do sigilo na comunicação de dados
bancários é pétreo como também traduz uma garantia
individual do contribuinte, ligando-se ao princípio da
intimidade (Constituição Federal Brasileira de 1988, Artigo
5º incisos X e XII).
Destarte, ao fiscalizar o Estado deve resguardar os
direitos individuais, nos termos do Artigo 145, parágrafo
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Luiz Edmundo Celso Borba
1º da Magna Carta; posto que a intimidade, a privacidade
e o sigilo das correspondências e dados são direitos
fundamentais inalienáveis.�
Só competindo ao Poder Judiciário, a pedido do
Ministério Público, quando este se embasar sua decisão no
§ 1º do Artigo 38 da Lei 4.595/64, em virtude de irrefragável
e relevante interesse público; não se comportando, jamais,
delegação de tal poder para outro órgão, que não o Judiciário
(SCAFF, 2000, p. 467 e 468).
Desta forma a principal motivação deste texto é
deixar a população ciente do real papel da CPMF, que
se prova nos recordes batidos anualmente pela Receita
e o aumento significativo dos contribuintes avaliados na
malha fina, após a implementação da CPMF. A luta será
árdua, por isso mesmo é que precisamos conscientizar
a população para a real intenção em se desejar a volta
da CPMF ou de qualquer tributo incidente sobre a
movimentação bancária.
REFERÊNCIAS:
BORBA2, Luiz Edmundo Celso. Conhecendo a Natureza
Jurídica do ICMS, com Base na Carta Política
Brasileira de 1988 e a (IM)Possibilidade da Criação do,
Federal, IVA Diante das Alterações Propostas pela PEC
233/08. Disponível em: <<http://www.fiscosoft.com.br/
main_index.php?home=home_artigos&m=_&nx_=&view
id=202654>>, coletado em 11/11/2010.
_______b. O tributo como principal fonte de receita do
estado, visando o custeio das atividades fomentadoras
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Recife – ano 5 – n. 5 – p. 95-109 – 2010
O Brasil realmente precisa da CPMF ou de qualquer outro tributo...
105
dos direitos fundamentais. Disponível em: <<http://www.
browne.adv.br/publicacoes/tributario/001.html>>, coletado
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LYRA, Rubens Pinto (org.). Direitos Humanos: os desafios
do Século XXI – uma abordagem interdisciplinar. Brasília:
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MARTINS, Ives Gandra da Silva. Direitos fundamentais
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_______. Tributação e internet. São Paulo: Renovar,
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fiscalidad e internet: Em torno a la necessidad de uma
reformulación de algunos conceptos tradicionales. In:
Cuadernos Constitucionales de la Cátedra Fadrique Furió
Ceriol. Valencia (Espanha): Quiles Artes Gráficas. Número
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OLIVEIRA, Luciano. Os direitos sociais e econômicos
como direitos humanos: problemas de efetivação. In:
LYRA, Rubens Pinto (org.). Direitos Humanos: os desafios
do Século XXI – uma abordagem interdisciplinar. Brasília:
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TORRES, Ricardo Lobo (Org.). Teoria dos Direitos
Fundamentais. Rio de Janeiro: Renovar. 2001.
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Recife – ano 5 – n. 5 – p. 95-105 – 2010
Noções históricas do sincretismo processual
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NOÇÕES HISTÓRICAS DO
SINCRETISMO PROCESSUAL
Paulo Hemetério Aragão Silva
Advogado e professor de Direito Processual Civil I da Faculdade
Maurício de Nassau – Unidade Natal/RN.
RESUMO
O presente trabalho aborda os aspectos mais relevantes
da evolução histórica do sincretismo processual. Começamos pela evolução histórica, desde Roma com a dicotomia:
actio e a actio iudicati, evoluindo-se para uma justiça eminentemente pública, abolindo-se, assim, a dicotomia (cognição/execução), a qual ressurgiu com a intensificação das
praticas comerciais. Com o tempo mais uma vez tornou-se
necessário criar no ordenamento jurídico pátrio institutos,
que abolissem tal dicotomia, tais como: mandado de segurança, a tutela específica dos artigos 461, 461-A e o artigo
475-J, este último com a lei 11232/05.
Palavras-chave: Evolução. Histórica. Sincretismo.
Processual.
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Paulo Hemetério Aragão Silva
ABSTRACT
This paper addresses the relevant aspects of historical
evolution of the sincretismo procedural, from Rome to the
dichotomy: actio and actio iudicati, evolving into a highly
public justice, abolishing thus the dichotomy (cognition /
implementation), which reappeared with the intensification
of commercial practices. Over time again it became necessary to create the legal homeland institutes, which abolish
this dichotomy, such as: Warrant security, the protection of
specific articles 461, 461-A and article 475-J, the latter is
with the law 11.232/05. Key words: Evolution. Historical. Sincretismo. Procedural.
SUMÁRIO
Introdução. 1. História do Sincretismo Processual no
Direito Romano. 2. História do Sincretismo Processual no
Direito Brasileiro. Conclusão. Referências
INTRODUÇÃO
O tema voltou a ser objeto de discussões com as recentes reformas sofridas pelo código de processo civil.
Nos primórdios do Direito Romano estão as origens
do sincretismo processual. No Brasil, algumas leis extravagantes já traziam tal técnica. O nosso código de processo
civil de 1973, apenas com a reforma de 1994 passou a estabelecer o processo sincrético.
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Noções históricas do sincretismo processual
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Com este estudo, faremos um pequeno passeio na história do sincretismo processual, demonstrando as suas vantagens em relação ao processo dicotômico.
1. HISTÓRIA DO SINCRETISMO PROCESSUAL
NO DIREITO ROMANO
A noção de jurisdição que temos hoje advém do Direito Romano, possuindo uma feição privatista. Em Roma, a
tutela dos direitos era feita através de duas figuras: o praetor
e o iudex. O praetor seria uma espécie de servidor estatal,
comparado atualmente aos agentes políticos. Detinha nas
mãos o imperium, mas não julgava os litígios. A tarefa de
julgar os conflitos cabia ao iudex, jurista particular que recebia a delegação do praetor para por fim as controvérsias.
O decisório do iudex (sententia) dava solução definitiva ao conflito (res iudicata). Todavia, o iudex não possuía poder suficiente para dar-lhe execução, necessitando,
assim, do praetor, que era quem detinha o imperium. A
relação existente entre as partes e o iudex era regida por
um modelo contratual, pois ao nomear o iudex delegado do
praetor, os litigantes obrigavam-se a se submeter a sua decisão (sententia).
Com o tempo, gradativamente, a justiça romana deixava essa mescla público-privatista, passando a ser inteiramente pública, como atualmente se vê nos países civilizados. Desta forma, a sentença expedida pelo praetor era
concretizada pelo mesmo, até porque este açambarcava
também o imperium, pondo fim à velha dicotomia outrora
existente.
A intensificação das práticas comerciais acabou gerando o surgimento dos títulos de crédito, os quais careciam de
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Paulo Hemetério Aragão Silva
uma tutela mais esmiuçada do que a do processo de execução lastreado na decisão estatal (sententia). Tal situação
fez ressurgir a actio iudicati romana, a qual permitia uma
atividade jurisdicional eminentemente executiva, dispensando-se a decisão (sententia) do processo de cognição.
Equiparou-se então, os títulos de crédito a decisão estatal
(sententia), dando aos primeiros a força da decisão estatal
(executio parata).
Destarte, nesse período de crescimento das práticas
comerciais havia a executio per officium iudicis, para as
sentenças condenatórias, a qual possuía força de coisa julgada (res iudicata), não havendo quase defesa para o réu.
E a actio iudicatis, para os títulos de créditos, na qual se
assegurava ampla discussão, mesmo tendo estes a força de
sentença, não faziam coisa julgada.
Buscando-se efetivar/concretizar no mundo dos fatos,
o preceito estabelecido em documentos, os quais adquirem
a força executiva em virtude de lei (títulos executivos extrajudiciais) ou decisão judicial (títulos executivos judiciais),
surgiram dois tipos de execução: a execução de títulos extrajudiciais e a execução de títulos judiciais, ambas voltadas
para atividades de concretização da obrigação estampada
em seus títulos, de modo direto (por sub-rogação) ou indireto (coerção).
Com o tempo muitos doutrinadores passaram a criticar
a clássica dicotomia (cognição/execução), pois viam nela
um entrave desnecessário a celeridade na prestação jurisdicional. De fato não havia e nem há razão lógica para a existência de tal divisão, pois acontecia que durante vários anos
o processo de conhecimento tramitava, o que culminava na
certificação de um direito, que não poderia ser exercido,
tendo em vista que faltava ao documento certificador (p.
ex. uma sentença) aptidão legal para concretizar o bem da
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Noções históricas do sincretismo processual
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vida atestado nele. Isto acabava gerando insatisfação do (s)
jurisdicionado (s), criando-se até um axioma popular que
bem expressa o sentimento da época “ganha-se, mas não
se leva”.
Essa duplicidade de tutelas processuais, forma metódica de concretizar o bem da vida pleiteado e reconhecido
por sentença ou documento com força executiva, acabava
aumentando o congestionamento crescente das demandas
judiciais, o que inchava cada vez mais o judiciário, já tão
abarrotado.
2. HISTÓRIA DO SINCRETISMO PROCESSUAL
NO DIREITO BRASILEIRO
O poder constituinte derivado, atendo para avalanche
de processos no poder judiciário. E ciente da impossibilidade estrutural e humana, deste poder, em resolver o problema. Tratou logo de emendar a Constituição Federal (EC nº
45), inserindo no artigo 5º, que cuida dos direitos e deveres
individuais e coletivos, um inciso apregoando o que parte
da doutrina, passou a denominar de princípio da razoável
duração do processo, in verbis:
LXXVIII a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a
celeridade de sua tramitação.
Mesmo antes da promulgação da emenda constitucional de
nº 45, com a inserção de desse “novo” princípio da razoável
duração do processo (art. 5, LXXVIII CF/88), já se podia
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Paulo Hemetério Aragão Silva
defender com toda ênfase a necessidade de celeridade para
o processo judicial e administrativo, tendo em vista a cláusula geral do devido processo legal (artigo 5º, LIV da Magna Carta de 1988), a qual tem como um dos seus fundamentos um processo célere, como bem demonstra Cruz e Tucci,
citado por Fredie Didier JR. em sua obra Curso de Direito
Processual Civil – Teoria Geral do Processo e Processo de
Conhecimento, in verbis:
Em síntese, a garantia constitucional do devido processo legal deve ser uma realidade
durante as múltiplas etapas do processo judicial, de sorte que ninguém seja privado de
seus direito, a não ser que no procedimento
em que este se materializa se constatem todas as formalidades e exigências em lei previstas.
Desdobram-se estas nas garantias: a) de
acesso à justiça; b) do juiz natural ou preconstituído; c) de tratamento paritário dos
sujeitos parciais do processo; d) da plenitude
de defesa, com todos os meios e recursos a
ela inerentes; e) da publicidade dos atos processuais e da motivação das decisões jurisdicionais; f) da tutela jurisdicional dentro de
um lapso temporal razoável (grifo nosso).
Conclui-se, portanto, que, também em nosso país, o direito ao processo sem dilações
indevidas, como corolário do devido processo legal, vem expressamente assegurado ao
membro da comunhão social por conta de
aplicação imediata (art. 5,§1º, CF) (DIDIER
JR, 2007, p. 37).
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Noções históricas do sincretismo processual
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A mudança na Constituição Federal foi o primeiro passo o desfeche de uma reforma no processo civil brasileiro.
Reforma esta que teve inicio na legislação processual extravagante, tais como a lei 1.533/51, lei 4.717/65, lei 7.347/85,
lei 8.429/92, pois todos estes diplomas legais, prevêem que
a execução de seus julgados dar-se-ão nos próprios autos do
processo de conhecimento, sem a necessidade de instaurase um processo de execução autônomo, objetivando concretizar o preceito normativo individual previsto na decisão.
Decisões estas segundo Pontes de Miranda seriam sentenças mandamentais, isto é, sentenças que buscam obter um
ato de mandado do juiz, que não se confunde com o efeito
da condenação.
O âmago da sentença mandamental é a criação de um
dever, que como já afirmamos acima, deve ter sua efetivação coativa realizada no mesmo caderno processual certificador de sua existência.
Nosso legislador, sabedor das vantagens da concretização do dispositivo das sentenças nos mesmos autos, o
qual foi proferido, buscou incorporar tal técnica procedimental no código de processo civil. E o fez primeiramente
com a lei 8.952/94, criando o instituto da tutela antecipada
(artigo 273), dando nova redação ao artigo 461, caput, e
acrescentando os §§ 1º a 5º, para a efetivação das obrigações de fazer e não fazer, previstas na norma concreta individual (dispositivo da sentença condenatória).
Mais tarde veio a lei 10.444/02, criando o artigo 461A, para efetivação das obrigações de entregar coisa diversa
de dinheiro, estabelecida em sentenças condenatórias, remetendo o procedimento de tal concreção aos parágrafos de
1º a 6º do artigo 461. Ademais, o referido texto normativo
(lei 10.444/02), modificou a redação do §5º do artigo 461 e
acrescentou o §6º a este mesmo dispositivo legal.
Revista
Revista
do Curso
da Faculdade
de Direito
deda
Direito
Faculdade
Maurício
Maurício
de Nassau
de Nassau
– –
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113-134 – 2010
2008
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Paulo Hemetério Aragão Silva
Restava, ainda, um tipo de obrigação imposta pelo
Estado-Juiz, que não se submetia, a essa técnica de efetivação dos preceitos impostos na norma individual concreta,
nos mesmos autos do processo que fora criada, que seria a
obrigação de pagar quantia. Tal obrigação continuava sendo
concretizada em um processo autônomo de execução, com
nova citação, e, abrindo-se oportunidade para a parte derrotada, que com procedimento executório passa a ser conhecida como executada, discutir não o mérito da decisão que
impõe a obrigação a ser efetivada, mas, sim, algum vício ou
defeito no título executivo judicial, tais como: faltam certeza ou liquidez ou exigibilidade ao título executivo.
Como vimos em linhas pretéritas a dicotomia cognição/execução, não condiz com um processo voltado a garantir uma efetiva prestação jurisdicional, pois demasiadamente acaba prolongando a concretização do bem jurídico
tutelado pelo direito, o que acaba gerando insatisfação para
as partes: seja as interessadas (autor/réu), seja as desinteressada (juiz) e descrédito social da instituição Poder Judiciário.
Tentando resolver de vez esse dilema o legislador
aprovou em 2005 uma nova lei de reforma do Código de
Processo Civil, lei 11.232/05, para as obrigações de pagar
quantia. Fechando, assim, o ciclo de modificações no estatuto de procedimentos civilistas, no que diz respeito, a concretização das normas judiciais (dispositivo) nos mesmos
autos do processo em que tenham sido proferidas, apenas
abrindo-se espaço para uma fase ou módulo executório.
A lei 11.232/05 passou a ser conhecida como lei do
cumprimento de sentença, tendo modificado o código de
processo civil profundamente. Houve uma inversão de técnicas processuais, pois o que antes era regra (duplicidade de
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Noções históricas do sincretismo processual
115
procedimento: cognição/execução), passa com esse diploma legal a ser exceção.
Em apertada síntese, como já havíamos dito antes, a
lei 11.232/05 encerra um conjunto de mudanças no código
de processo civil pátrio, com as quais se abandona o sistema romano da actio judicati, retornando-se ao medieval
habet paratam executionem.
Com a possível execução nos próprios autos de obrigações de pagar quantia (certa ou a ser fixada por liquidação),
imposta por juiz no processo de conhecimento, busca-se dar
maior efetividade a prestação jurisdicional, atendendo aos
reclamos dos operadores do direito e a própria sociedade,
insatisfeitos com um processo civil racionalista ao extremo
e destoado da realidade social que o circundava.
Precipitados e desatentos são alguns comentários que
têm sido feitos, no sentido de propalar a extinção da execução de sentença. Passo a explicitar melhor: não se pode
confundir a autonomia do procedimento executório com os
atos executórios propriamente ditos. Senão vejamos, o que
acreditamos ter chegado ao fim, com a lei 11.232/05, foi
indubitavelmente a necessidade de existência de autonomia
de um conjunto de atos dirigidos a efetivação do preceito disposto numa sentença condenatória (procedimento de
execução), que tivesse por objeto uma obrigação de pagar
quantia (certa ou carente de liquidação). E não os atos executórios propriamente ditos, pois estes continuam a existir,
todavia não em um processo autônomo, e, sim, numa fase
executória, dentro dos mesmos autos processuais.
Para resumir bem, o que no parágrafo acima explicitamos, trazemos a baila os ensinamentos do processualista carioca Alexandre Freitas Câmara, em sua obra: A Nova Execução de Sentença, “a execução não deixou de existir, mas
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Paulo Hemetério Aragão Silva
tão-somente deixou de se realizar em processo autônomo em
relação ao que gerou a sentença” (CÂMARA, 2007, p. 90).
Desta forma, com a devida vênia não concordamos com
a posição de Nelson Nery Júnior e Rosa Maria de Andrade
Nery, na sua obra Código de Processo Civil Comentado, in
verbis:
a execução judicial por quantia certa contra
devedor solvente não mais existe no sistema processual civil brasileiro, porquanto foi
substituída pelo instituto do cumprimento
de sentença (NERY JUNIOR; ANDRADE
NERY, 2006, p. 640).
A técnica processual que mistura a cognição e a efetivação dos direitos (execução) dentro de um mesmo procedimento jurisdicional, separando-se somente por fase, darse o nome de sincretismo processual. Tal técnica, com as
atuais reformas operadas no código processo civil, passou a
predominar no ordenamento jurídico pátrio.
CONCLUSÃO
Concluímos, afirmando que a evolução da técnica
processual responsável pela efetivação do bem da vida pleiteado foi marcada por avanços e retrocessos. Já vivenciamos a época dos formalismos exacerbados, onde a forma
preponderava sobre o conteúdo ou objetivo do ato. Atualmente, estamos na era da instrumentalidade das formas, na
qual o que importa é a finalidade do ato, desprezando-se ou
reduzindo o valor da forma como foi praticado. Toda essa
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Noções históricas do sincretismo processual
117
evolução/retrocesso deve ser vista com bons olhos pelo estudioso do direito, pois foi a partir dela que percebemos
nossos erros e passamos a buscar os acertos que carecemos
para termos uma prestação jurisdicional efetiva e consentânea com o primado da dignidade da pessoa humana.
REFERÊNCIAS
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Noções históricas do sincretismo processual
119
WAMBIER, Luiz Rodrigues; WAMBIER, Teresa Arruda
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Acesso em 30 de maio de 2008.
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A importância do código de nuremberg para o biodireito.
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A IMPORTÂNCIA DO CÓDIGO DE
NUREMBERG PARA O BIODIREITO.
Renata Oliveira Almeida Menezes
Professora de Direito Empresarial da Faculdade Maurício de Nassau,
Advogada, Especialista em Direito e Processo do Trabalho pela
Faculdade de Ciências Sociais Aplicadas e Doutoranda em Ciências
Jurídicas e Sociais pela Universidad del Museo Social Argentino.
RESUMO
O Tribunal de Nuremberg foi instituído com a finalidade de julgar os grandes crimes contra a humanidade,
praticados durante a Segunda Guerra Mundial, pelos nazistas comandados por Hitler na Alemanha. Tal julgamento
resultou no Código de Nuremberg, o qual foi o primeiro documento a tratar sobre a aplicação dos princípios éticos no
campo das ciências da vida, sendo responsável pela eclosão
do ramo jurídico que visa aplicar os direitos humanos, direitos fundamentais e da personalidade face às inovações
biotecnológicas: O Biodireito.
Palavras-chave: Código de Nuremberg. Nazismo.
Biodireito.
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Renata Oliveira Almeida Menezes
ABSTRAC
The Nuremberg Court was established in order to
judge the great crimes against humanity committed during
the Second World War, by the Nazis led by Hitler in Germany. This trial resulted in the Nuremberg Code, which was
the first document to talk about the application of ethical
principles in the field of life sciences and it is responsible
for the outbreak of the branch of law that seeks to implement human rights, fundamental rights and personality in
relation to biotechnological innovations: The Biolaw.
Key words: Code of Nuremberg. Nazism. Biolaw.
SUMÁRIO
Introdução. 1. Regime Nazista. 1.1. Aspectos gerais. 1.2.
Atos discriminatórios. 2. O Tribunal de Nuremberg. 2.1.
Carta de Londres do Tribunal Militar Internacional. 2.2. O
Julgamento de Nuremberg. 2.3. O Código de Nuremberg.
3. Biodireito. 3.1. Conceito de Bioética. 3.2. Conceito e
aplicabilidade do Biodireito. 4. A influência do Código de
Nuremberg no Biodireito. 5. Considerações finais.
INTRODUÇÃO
Na falta de regulamentação, as condutas humanas encontram uma liberdade desenfreada, que geralmente resultam em atos degradantes no tocante aos direitos humanos.
O excesso de poder concedido de forma injusta a uma miRevista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau –
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A importância do código de nuremberg para o biodireito.
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noria, no caso em estudo, aos alemães “arianos”, embasaram o regime nazista, tendo como conseqüência uma enorme taxa de mortandade e a propagação dos mais absurdos
ideais discriminatórios.
Com o fim do Regime Nazista Alemão e o término da
Segunda Guerra, foi instituído o Tribunal de Nuremberg,
para apreciar e julgar os crimes cometidos sob o comando
de Hitler. Tal julgamento foi codificado, e este documento
passou a ser o pioneiro a tratar sobre a aplicação dos valores
éticos no campo das pesquisas clínicas.
Na presente abordagem, começaremos explorando as
características do regime nazista alemão por meio da análise da vida do seu líder, e em seguida trataremos dos atos
discriminatórios que motivaram o Julgamento de Nuremberg.
Em seguida faremos uma análise sobre a Carta de
Londres do Tribunal Militar Nacional, precursora do Tribunal de Nuremberg; após, delinearemos sobre o Julgamento
oriundo do mencionado tribunal; e então trataremos propriamente do Código que deu origem aos princípios bioéticos.
Dando continuidade ao estudo, abordaremos a questão da ética aplicada às ciências da vida, biologia e medicina, ressaltando sua importância e suas peculiaridades; e
em seguida estudaremos sobre o Biodireito, ramo jurídico
responsável por dotar de coercitividade os princípios bioéticos constantes em vários documentos regulatórios, principalmente, o inaugural: O Código de Nuremberg.
Por fim, analisaremos como e por quais razões o mencionado Código tornou-se o principal documento acerca do
Biodireito.
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Renata Oliveira Almeida Menezes
1. REGIME NAZISTA ALEMÃO
1.1 Adolf Hitler
Durante o período de 1933 a 1945 a Alemanha foi
regida pela forma de governo Nazismo, tendo como líder
Adolf Hitler, o qual em 1924 publicou o livro Mein Kampf
(A minha luta), descrevendo seus ideais preconceituosos,
relatando em tal obra parte da história alemã, bem como
a influência semita nesta. O ditador acreditava que os alemães puros, denominados de raça ariana, eram superiores
aos semitas - incluindo neste grupo não só os judeus, que
compunham a maioria, mas também todos os que não fossem considerados arianos – e que, portanto, deveriam ser
exterminados, para que a ‘raça pura’ fosse preservada.
Acerca do mencionado Führer, mister é apontarmos para a ilustre descrição elucidada por Blainey
(2008, p. 304):
podem existir relações de emprego por prazo
indeterminado e por prazo determinado, assim como podem existir relações de trabalho
(não subordinado) por prazo indeterminado
ou por prazo determinado. As relações de
representação comercial são típicas relações
de trabalho não subordinado ou autônomas,
que podem ser pactuadas por tempo determinado ou indeterminado. Outro exemplo
é a empreitada de lavor que normalmente é
pactuada por tempo determinado, em virtude da característica de consistir na realização
da obra determinada, mas pode, conforme o
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A importância do código de nuremberg para o biodireito.
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caso, não ter uma data certa para o seu término, apenas possuindo uma expectativa de
realização aproximada (ARAÚJO, 2005, paginação irregular).
Precedia ao nazismo a luta racial e a social, sendo a
primeira decorrente da exclusão dos membros das classes
inferiores aos direitos políticos, aos operários era negado o
direito de sindicalizar e de lutar por melhorias de condições
de trabalho e por melhores salários, o que demandou em
uma greve geral que teve resultou na permissão ao sufrágio
masculino, pondo um fim ao domínio político dos austrosalemães, os quais eram a minoria.
Diante do descrito cenário, Hitler que ainda não participava ativamente da política do seu país, começou a se
indignar com a possibilidade de ver a “raça superior” alemã
ser sucumbida politicamente pelos não-germânicos.
Nesse sentido, Shirer (1963, vol. I, p. 47-48) afirma
que apesar da sua inércia inicial no tocante à política, Hitler
acompanhava com avidez as atividades dos três principais
partidos políticos da velha Áustria: os socialdemocratas, os
socialistas-cristãos e os nacionalistas-pangermânicos. A
partir desse de então brotou nele “uma astúcia política que
lhe permitia ver, com surpreendente clareza, os pontos fortes e fracos de movimentos políticos contemporâneos que,
ao amadurecer, fariam dele o amo político da Alemanha”.
O dia 30 de janeiro de 1933 foi marcado pela designação de Hitler como chanceler da Alemanha, sendo lhe
outorgado em 23 de março do mesmo ano, pelo parlamento
alemão, plenos poderes, os quais foram utilizados imediatamente para projetar o regime nazista.
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E foi esse austríaco, nascido em família sem precedentes políticos, que deu início à Segunda Guerra Mundial.
Tal conflito militar teve duração de 1939 a 1945, englobando as maiores nações, reunidas me dois pólos opostos:
Aliados e Eixo, figurando nesse último, a Alemanha, junto
à Itália e ao Japão.
Tal conflito bélico veio somente a findar-se com a
“vitória” do grupo Aliados, no entanto, do ponto de vista
social e jurídico, inexistiram vencedores, mas sim, países
com interesses opostos que em conjunto contribuíram para
a encenação verídica das maiores atrocidades capazes de
serem realizadas pelos seres humanos face aos seus semelhantes.
Ao tratar do marco inicial da Segunda Guerra, Shirer
(1964, p. 442) aponta: “Ao raiar do sol, no dia 1º de setembro de 1939, exatamente na data que Hitler fixara em 3 de
abril, ao dar sua primeira ordens referentes ao Caso Branco, os soldados alemães transpassaram a fronteira polonesa
e convergiram sobre Varsóvia pelo norte, sul e oeste”.
1.2. Atos discriminatórios
O preconceito infundado dos nazistas, a gritante falta de humanidade, bem como a falibilidade dos seus
argumentos, e ironia dos seus discursos, evidenciam-se no
relato de Erich Von Dem Bach-Zelewski ao seu psiquiatra
Goldesohn (2005, p. 321), Alto Comandante da SS -Verfügungstruppe1 e da polícia:
1 O SS-Verfügungstruppe (força de suporte no combate, abreviação SS-VT) foi criado a
1934 a partir da fusão de várias entidades paramilitares nazistas. Dois regimentos foram
formados - no norte de Alemanha, o SS-Standarte “Germania”, e no sul alemão o SSStandarte “Deutschland”.
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Na hora do fuzilamento desses 120, havia
um jovem judeu de vinte anos, de aparência
nórdica, olhos azuis e cabelos loiros. Himmler2 chamou o rapaz para fora da fossa onde
seria fuzilado e perguntou se ele era judeu,
se seus quatros avós eram judeus. O rapaz
respondeu que, ao que sabia, toda a sua família era judia. Então Himmler disse que
não podia ajudar o rapaz, e ele foi executado junto com os outros. Dava para ver como
Himmler tentou salvar a vida do rapaz.
O resultado dessa perseguição foi mais de 60 milhões de pessoas mortas, e parte da mortandade decorreu
das experiências ilegais realizadas em prisioneiros de campos de concentração por médicos alemães durante a Segunda Guerra Mundial. Conforme aponta Ángel Russo (2009,
p. 39), “el intento de crear uma ‘raza superior’ no fue um
episodio aislado de locura y de poder, sino um plan coherente y sistemático, apoyado en convicciones pseudocientíficas de trágicas consecuencias”.
Segundo o United States Holocausto Memorial Museum, tais pesquisas foram divididas em três categorias: a
primeira abarcava os procedimentos que objetivavam facilitar a sobrevivência dos militares; a segunda categoria
era composta por pesquisas dirigidas ao desenvolvimento
e comprovação de produtos farmacêuticos e métodos de
tratamento para lesões e enfermidades as quais os militares nazistas e o pessoal da ocupação estavam expostos nos
campos; e a terceira categoria pretendia progredir nos prin2 Comandante da SS alemã e um dos mais poderosos homens da Alemanha Nazi. Como
marechal-de-campo nas forças armadas do Terceiro Reich entre 1935 e 1945, desempenhou papel relevante na organização do Holocausto.
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cípios raciais ideológicos nazistas, a exemplo de pesquisas
sobre como as diferentes raças reagiam às diferentes enfermidades contagiosas, e de processos baratos e eficientes de
esterilização em massa de semitas.
Conforme assevera Costa Júnior (1999, p. 1), os experimentos da medicina pseudocientífica eram conduzidos
por médicos alemães, utilizando como objeto centenas de
pessoas dentre os prisioneiros dos campos de concentração,
sendo em sua maioria Judeus, Poloneses, Russos, Romanos
e Egípcios.
Rudolf Hess (In GOLDENSOHN, 2005, p. 353),
que fora Tenente-General da SS a partir de 1942, descreveu
para seu psiquiatra, como eram os campos de extermínio:
Nesse ínterim, eu inspecionara o campo de
extermínio de Treblinka no governo-geral,
localizado à margem do rio Bug. Treblinka
era um campo com alguns alojamentos e um
desvio ferroviário, no local de um antigo
areeiro. Inspecionei as câmaras de extermínio ali.
Essas câmeras eram feitas de madeira e cimento; cada uma tinha o tamanho desta cela
[cerca de 2,4 por 3,4 metros], mas os tetos
eram baixos do que este cômodo. Ao longo
da lateral das câmaras de extermínio, motores de tanques ou caminhões velhos foram
instalados, e os gases dos motores, o exaustor, direcionados para dentro das celas, era
assim que as pessoas eram exterminadas.
Como os alemães não tinham a pretensão de exterminar toda a sua população, mas sim de “purificar-la”
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conforme os seus parâmetros infundados, foram criados os
“haras humanos”, também denominados de Lebensborn –
neologismo proveniente da junção das palavras Leben, que
significa vida, com Born, fonte – que consistiam em maternidades criadas por Himmler.
Conforme salienta Hillel (1975, p. 9), apesar de alguns historiadores defenderem que tais locais eram maternidades destinadas a mulheres solteiras, e outros, afirmarem
que não passavam de bordéis, na verdade, tais instituições
possuíam o intuito de procriação de uma “super-raça nórdica”, contando com a ajuda de homens e mulheres devidamente selecionados conforme os critérios raciais do III
Reich.
Nesse diapasão, no primeiro dia do mês de janeiro
do ano de 1932 foi publicado o Código de Casamento, instrumento criado para nortear as escolhas dos nazistas que
pretendessem casar-se, com base na raça, conforme ressalva feita por Himmler, constante na obra de Hillel (1975,
p. 31), destinada aos médicos “conhecedores de raças”,
as mulheres deveriam ser classificadas em três categorias:
perfeitamente conveniente à seleção; medianamente conveniente; e inconveniente para a seleção.
Dentre as circulares emitidas pelo Reichsführer
Himmler, destaca-se a datada de 14 de junho de 1941, (In.
HILLEL, 1975, p. 175), segundo a qual o nazista afirma
considerar justo e conveniente a procura e captura das crianças polonesas de “raça particularmente pura”, em estabelecimentos sob a tutela dos alemães, ademais, salienta que
Quanto às crianças que se reputem prestáveis, mesmo em ecasso grau, terá de ser
levantada, após um período de seis meRevista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau –
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ses, uma árvore genealógica e pesquisada
a sua origem. Após um período de doze
meses, será necessário prever a colocação dessas crianças, em vista de sua educação, em famílias de raça pura que não
tiveram filhos.
2. O Tribunal de Nuremberg
2.1. Carta de Londres do Tribunal Militar
Internacional
Foi por força de um acordo pactuado em Londres, entre a União Soviética, os Estados Unidos, o Reino Unido
e a França, em agosto do ano de 1945, intitulado de Carta
de Londres do Tribunal Militar Internacional (ANEXO A),
que foi criado o Tribunal de Nuremberg.
Tal documento se embasou na Declaração de Moscou, datada de 30 de outubro de 1943, segundo a qual o
julgamento de alemães ou de nazistas que cometeram atrocidades e/ou crimes, deveria ocorrer em seu país de origem.
No entanto, ressalvou que no caso de grandes criminosos,
cujos crimes não têm localização geográfica específica,
suas punições adviriam da decisão conjunta dos governos
dos Aliados, ressalva esta, que justificou a criação do Tribunal em enfoque.
No artigo 6°, da Carta do Tribunal Militar Internacional, estão dispostos os crimes de competência do Tribunal
de Nuremberg, quais sejam: Crimes contra a paz; crimes
de guerra e crimes contra a humanidade. Esses últimos merecem destaque para a nossa problemática, consistindo em
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crimes de homicídio, extermínio, escravidão, deportação e
outros atos desumanos cometidos contra qualquer população civil, antes ou durante a guerra, ou perseguições fundadas em motivos políticos, raciais ou religiosos, em execução ou em conexão com qualquer crime da competência
do Tribunal, ou não, em violação da legislação nacional do
país onde perpetraram.
Vale salientar que o artigo 13 da Carta, impõe que
as regras de procedimentos a serem estabelecidas pelo Tribunal de Nuremberg, devem encontrar-se em consonância
com os dispositivos da mesma.
2.2. O Julgamento de Nuremberg
Santiago Nino (1997, p. 7, apud Ángel Russo, 2009,
p. 51) ao indagar sobre como devem ser repudiadas as violações massivas aos Direitos Humanos, afirma que o Julgamento de Nuremberg constitui no exemplo mais famoso de
processo e castigo. Nesse sentido, inesquecíveis tornaramse as palavras de Robert Houghwout Jackson, Juiz Adjunto
da Suprema Corte Americana e Promotor-Chefe pelos Estados Unidos da América no Tribunal Militar Internacional
em Nuremberg, citado por Gonçalves:
Pela primeira vez, quatro grandes nações entram em acordo, não somente pelo princípio
da responsabilidade por crimes de guerra e
outros delitos, mas também pelo princípio
da responsabilidade individual por crimes
cometidos contra a paz... Se pudermos cultivar por todo o mundo a idéia de que fazer
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uma guerra de agressão conduz ao banco dos
réus mais que às honras, teremos alcançado
um grande progresso no que se refere à segurança e à paz. (Gonçalves, 2001, p.74).
Nesse diapasão, Ángel Russo (2009, p. 53) dispõe
que: “El juicio de Nuremberg implico La conmoción del
pensamiento jurídico, y , aún hoy, um importante sector de
La doctrina tradicional considera que no se trató de um verdadero juicio, em el sentido comumente acepctado”.
Os aspectos que fazem com que o citado julgamento
se distinga dos demais são: a noção de soberania, o princípio da reserva legal, a idéia de que somente o Estado é
sujeito de Direito Internacional, a exigência de responsabilidade subjetiva em matéria penal, a garantia dos juízes naturais, e a “obediência devida” como causa de justificação.
Tal inovação configura a mais importante conseqüência do
impacto da teoria dos direitos humanos no direito objetivo
(ÁNGEL RUSSO, 2009, p. 54).
2.3. O Código de Nuremberg
Como decorrência das práticas abusivas supra-descritas, e após o julgamento dos principais criminosos da
Segunda Guerra Mundial - incluindo médicos, juristas, pessoas importantes do governo alemão - acontecido perante
o Tribunal Militar Americano, denominado de Julgamento
de Nuremberg, em 1946 foi criado o Código de Nuremberg
(ANEXO B), considerado a primeira manifestação sistemática e normativa sobre a aplicabilidade da ética nas pesquisas científicas.
Conforme ressalta Loureiro (2009, p. 16), o Código
de Nuremberg “foi o primeiro indicador de cunho univerRevista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau –
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A importância do código de nuremberg para o biodireito.
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sal da necessidade de aliar a pesquisa científica ao respeito
pelo ser humano. Por isso, é considerado como documento
mater da bioética”.
Durante o Julgamento, Hanz Fritzche, Alto Funcionário do Ministério da Propaganda do Governo Nazista,
afirmou que Hitler tinha algumas idéias sobre as pessoas,
ou pelo menos de como utilizá-las, com o seguinte pronunciamento: “Sim, mas Hitler tinha um conhecimento ilimitadamente ruim dos seres humanos. Ou se trata disso, ou
ele é um criminoso ainda pior do que acho atualmente, eu o
considero um dos maiores criminosos da história do mundo” (In. GOLDENSOHN, 2005, p. 113).
Composto de dez artigos, o Código de Nuremberg
dispunha entre outras coisas, ser indispensável o consentimento livre e esclarecido do voluntário; expressava a necessidade de o experimento ser vantajoso para a sociedade,
frisando que o mesmo só deveria ser feito se não o pudesse
ser por outros métodos; concedia ao paciente a liberdade de
desistência no meio do procedimento; salientava a necessidade de preparação do pesquisador para suspender os procedimentos experimentais em qualquer estágio, caso o risco
de dano,invalidez ou morte para os participantes fique mais
evidente; e ainda, proibia o prosseguimento do experimento quando houver razões para acreditar na possibilidade de
resultar em morte ou invalidez permanente, exceto,talvez,
quando o próprio médico pesquisador se submeter ao experimento.
De acordo com o que preceituam Accioly e Silva
(1996, p.529), os princípios decorrentes do Código em tela,
serviram de inspiração para o embasamento do Estatuto da
Corte Militar Internacional, a qual tinha a incumbência de
julgar os grandes criminosos de guerra no Extremo Oriente.
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3. BIODIREITO
3.1. Conceito de Bioética
Tendo sua origem nos vocábulos gregos bios (vida) e
ethos (ética), a bioética pode ser conceituada como a aplicação da ética na biologia e na medicina. A eclosão de tal
conceito deveu-se ao fato de as grandes transformações biotecnológicas terem causado enorme influência nos âmbitos
cientifico, econômico e principalmente, jurídico, atuando
na vida social, alterando axiomas, e provocando a humanidade para a valoração dos avanços científicos, analisando se
os mesmos resultam em progresso ou retrocesso aos direitos humanos arduamente conquistados.
A obra publicada pelo oncologista americano Potter
(1971), denominada de Bioethics: A bridge to the future, foi
pioneira a tratar do assunto, tomando tal ciência como sendo
a que tem como foco a sobrevivência humana, dispondo que:
Se existem duas culturas que parecem incapazes de dialogar — as ciências e humanidades —, e se isto se apresenta como uma razão pela qual o futuro se apresenta duvidoso,
então, possivelmente, poderíamos construir
uma ponte para o futuro construindo a bioética como uma ponte entre as duas culturas
(POTTER apud PESSINI, 2005, p. 308).
3.2 Conceito e aplicabilidade do Biodireito
Kant distinguiu a moral, da ética e do direito, tomando estes como o particular e o diferencial, e considerando a
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A importância do código de nuremberg para o biodireito.
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primeira como o geral e o comum, diferenciando, ainda, ética e direito, ao dividir o sistema o sistema da doutrina universal dos deveres em: sistema da doutrina do direito (ius),
adequada para as leis externas, e sistema da virtude (ethica)
inadequada para normas exteriores ao indivíduo. Para esse
filósofo, a vontade jurídica é heterônoma, já que não é encontrada dentro do homem a lei do dever que impulsiona o
sujeito, ao passo que a vontade moral é autônoma, ou seja,
a sua lei é encontrada no próprio sujeito. (LEITE, 2007, p.
85-86).
O papel das Ciências Jurídicas é expresso com sapiência e concisão por Reale (2002b, p. 2), ao afirmar que
“o Direito corresponde à exigência essencial e indeclinável de uma convivência ordenada, pois nenhuma sociedade
poderia subsistir sem um mínimo de ordem, de direção e
solidariedade”.
A importância da constante atualização do Direito,
frente às mudanças surgidas no mundo com o decorrer dos
tempos, em prol do não comprometimento da sua eficácia,
foi bem expressada pelo francês Ripert (1947), na primeira
metade do século XX, “quando o Direito ignora a realidade,
a realidade se vinga, ignorando o Direito”, permanecendo,
no entanto, atual.
Comprovando essa constante e indispensável atualização da Ciência Jurídica, proveniente da quebra de barreiras do ‘mundo do ser’, e do ‘mundo do dever ser’, e da
convergência da ética com o direito, com ares de integração
científica, surgiu o Biodireito.
Sobre a importância do Biodireito, Martinéz (2006, p.
173) afirma que a aparição dos novos fenômenos, ou da mudança na nossa realidade, a exemplo da que presenciamos
no âmbito das Ciências da Vida, torna obrigatório ao ordeRevista
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Faculdade
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namento jurídico a normatização de tais situações, e exige
do intérprete uma busca de valores éticos que embasem as
alterações legislativas em questão, utilizando, portanto, a
valoração ética como base para a produção normativa.
Nesse diapasão, Campos Júnior (2006, p. 451) aponta
que buscamos nós buscamos
de forma cada vez mais convergente, valores
referenciais, morais, legais, éticos, que permitam conciliar esta vocação incorrigível do
Homo Sapiens para a tecnologia, buscando
então o equilíbrio desejável entre a ciência, o
direito, a ética, visando defender a sociedade
humana dos riscos inerentes à toda a tecnologia, para que ela se beneficie unicamente
dos seus ganhos. Tarefa difícil e que sempre
ocorreu, na história da Humanidade.
Conforme acentua Lora Alarcón (2004, p. 158), não
há nas regras bioéticas o elemento de coerção que force aos
seus destinatários o seu cumprimento, porém nada impede
a sua exigibilidade, mesmo que mais frágil. Nesse sentido,
as normas que compõe o Biodireito têm o intuito de buscar
a sua efetividade plena, regulando a coexistência humana.
A nova disciplina revitalizou a intenção de resguardo da vida humana, pois inadmissível seria que o Direito
não enxergasse as ameaças ao bem jurídico supremo, decorrentes da ciência e das ações provenientes do manejo
das tecnologias recém-surgidas, aplicadas principalmente
no âmbito da medicina e da genética - ciências vinculadas
diretamente ao homem. Importante faz-se salientarmos que
tal atualização jurídica demanda uma reestruturação das
normas jurídicas que se adequem aos princípios bioéticos.
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A importância do código de nuremberg para o biodireito.
137
Ora, se novos princípios foram formados, e se tais são a
base de todo ordenamento, uma nova normatização é uma
conseqüência previsível.
Apesar de tanto o direito, como a ciência biológica,
serem dotados de autonomia, essencial é a percepção de
que coexistem em um mesmo mundo, não devendo pois, se
falar em subordinação de uma área à outra, mas de interação pacífica entre elas, fazendo-se a convergência de suas
forças e conhecimentos, em prol de uma existência digna e
plena em saúde para todos nós.
Posicionando-se de maneira imparcial, Byk apud
Carlucci (2000, p. 145) pontua que o direito não pretende impedir que as ciências [biomédicas] desenvolvam-se, e
por outro lado, afirma crer que a ciência não transformará
o mundo em um laboratório. Para ele ideal seria o uso do
direito, como ferramenta para aproximar a sociedade e a
ciência, visando à conscientização de todos os afetados por
esta acerca da necessidade de haver uma interação permanente entre os mesmos e as atividades cientificas.
Louvável seria usar o direito a favor do povo, e contra
a obscuridade das práticas científicas, já que só com clareza
possível é a real fiscalização das práticas biotecnologicas,
entretanto, data vênia, quanto à improbabilidade de o mundo ser transformado pela ciência em um laboratório, a nosso ver, depende do quão concreto e eficaz se tornará o ramo
jurídico emergente em questão.
4. A influência do Código de Nuremberg
no Biodireito
O Código de Nuremberg teve destaque não só no âmbito político, transpassou o jurídico, e influenciou na aborRevista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau –
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dagem e na prática das ciências da vida, inclusive a medicina, na medida em que foi o primeiro instrumento normativo
a tratar sobre a aplicabilidade da ética e dos direitos humanos quando da hipótese da prática de experimentos que
envolvam seres humanos.
Confirmando o exposto, Cobo (1999, p. 156) afirma
que foi a partir do momento em que houve o conhecimento
acerca dos experimentos nazistas durante a segunda guerra
mundial, que foi provocado um intenso trabalho na busca
de referências acerca de comportamento antiético, sendo o
Código de Nuremberg o precursor dos demais princípios
norteadores de condutas profissionais.
Loureiro (2009, p. 16-17), frisa que tal documento
enfatizou a preocupação acerca da aplicação da bioética à
ciência da vida, e o descreve como sendo o primeiro indicador, de abrangência universal, que acorda para a necessidade de aliar a pesquisa científica ao respeito pelo ser
humano, e completa, afirmando ser por tais razões que é
considerado o documento mater da bioética.
Nesse sentido, Catão (1999, p. 39) afirma que:
Lamentavelmente, o progresso biológico
também trouxe consigo as recordações dos
experimentos nazistas, em que existiu a utilização de seres humanos na experimentação
médica. Então, após a Segunda Guerra Mundial, tomou-se o conhecimento de práticas
experimentais em seres humanos, conduzidas, sob o nazismo, por médicos e cientistas, que ultrapassavam qualquer expectativa
imaginável de degradação. A primeira manifestação de caráter sistemático sobre o asRevista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau –
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A importância do código de nuremberg para o biodireito.
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sunto foi o Código de Nuremberg, que estabeleceu regras a serem observadas quanto à
experimentação com seres humanos.
No entanto, o Código não deve ser lembrado apenas
por ser o precursor da Bioética e consequentemente do Biodireito, mister é destacarmos o seu principal fator de influência, qual seja, o estabelecimento dos princípios bioéticos,
que posteriormente vieram a ser completados por outros
instrumentos regulatórios, a exemplo do Relatótio de Belmont.
As normas bioéticas, como todas outras, são embasadas em princípios, que de tão essenciais estão contidos inclusive na gênese dos ordenamentos éticos e profissionais,
destinados a pesquisadores e cientistas. Sob tal prisma, o
Código em enfoque defendeu a prevalência dos princípios
Autonomia ou Respeito e do princípio do consentimento
informado e voluntário do sujeito de pesquisa, contidos no
primeiro artigo do documento.
O princípio do respeito às pessoas, também denominado de autonomia, embasa o respeito ao individualismo
que é inerente a todos os seres humanos, por prezar pela
liberdade do indivíduo para deliberar sobre suas escolhas
pessoais, principalmente no que concernir à sua vida e ao
seu corpo.
Barreto (1999, não paginado) salienta que o principio da autonomia representa a afirmação moral de que a
liberdade de cada ser humano deve ser resguardada, por
estabelecer a ligação com o valor mais abrangente da dignidade da pessoa humana. Seguindo o mesmo raciocínio,
Neves (2006, p. 35) acrescenta que tal princípio implica em
que seja respeitado o pré-requisito fundamental, qual seja,
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a vontade, para que alguém participe na pesquisa científica, frisando também que a concessão do consentimento só
é válido após o individuo ser detentor de toda e qualquer
informação e compreensão acerca da pesquisa a ser realizada.
Ademais, foi a partir dos acontecimentos dos tribunais militares de Nuremberg que se passou a diferenciar a
experiência em humanos, da terapia, considerando que a
primeira pode gerar muitas controvérsias morais e inúmeros riscos, embora contribua para a identificação e cura das
doenças (MARINO Jr., 2009, p. 196).
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Quando a tragédia reside no passado, nada pode ser
feito para modificá-la, no entanto, faz parte da evolução da
humanidade utilizar o irremediável como experiência para
reunir todos os esforços possíveis no sentido de evitar a sua
repetição. Diante disto, mister é não nos olvidarmos das
degradações ocorridas durante o período nazista, pois ao
cegarmos para os atos desumanos, isentamos os culpados
e somos injustos com aqueles que possuem uma conduta
correta.
É justamente nesse sentido que o Tribunal de Nuremberg ao criar um juízo de exceção, totalmente inusitado, ultrapassou os requisitos formais da justiça, em prol da defesa
dos direitos da humanidade, e suas conseqüências benéficas
ecoaram inclusive no âmbito das ciências da vida, servindo
de base para o desenvolvimento de um ramo jurídico ainda
em expansão, mas que a cada dia torna-se mais importante
para que os direitos da personalidade, direitos fundamentais
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A importância do código de nuremberg para o biodireito.
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e humanos não sejam transgredidos face ao avanço científico, qual seja, o Biodireito.
Portanto, diante da presente abordagem pudemos reavivar os principais atos discriminatórios ocorridos durante
o período nazista, verificando quais os fatores que motivaram a eclosão de tal tipo de governo tão desumano, e pudemos analisar como tais repercutiram para o surgimento da
bioética e sua normatização.
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Renata Oliveira Almeida Menezes
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ANEXO A - CÓDIGO DE NUREMBERG- 1947
1. O consentimento voluntário do ser humano é absolutamente essencial. Isso significa que as pessoas
que serão submetidas ao experimento devem ser legalmente capazes de dar consentimento; essas pessoas devem exercer o livre direito de escolha sem
qualquer intervenção de elementos de força, fraude,
mentira, coação, astúcia ou outra forma de restrição
posterior; devem ter conhecimento suficiente do assunto em estudo para tomarem uma decisão.
2. Esse último aspecto exige que sejam explicados às
pessoas a natureza, a duração e o propósito do experimento; os métodos segundo os quais será conduzido; as inconveniências e os riscos esperados; os
efeitos sobre a saúde ou sobre a pessoa do participante, que eventualmente possam ocorrer, devido à
sua participação no experimento. O dever e a responsabilidade de garantir a qualidade do consentimento repousam sobre o pesquisador que inicia ou
dirige um experimento ou se compromete nele. São
deveres e responsabilidades pessoais que não podem ser delegados a outrem impunemente.
3. O experimento deve ser tal que produza resultados
vantajosos para a sociedade, que não possam ser
buscados por outros métodos de estudo, mas não
podem ser feitos de maneira casuística ou desnecessariamente.
4. O experimento deve ser baseado em resultados de
experimentação em animais e no conhecimento da
evolução da doença ou outros problemas em estudo;
dessa maneira, os resultados já conhecidos justificam a condição do experimento.
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5. O experimento deve ser conduzido de maneira a
evitar todo sofrimento e danos desnecessários, quer
físicos, quer materiais.
6. Não deve ser conduzido qualquer experimento
quando existirem razões para acreditar que pode
ocorrer morte ou invalidez permanente; exceto, talvez, quando o próprio médico pesquisador se submeter ao experimento.
7. O grau de risco aceitável deve ser limitado pela importância do problema que o pesquisador se propõe
a resolver.
8. Devem ser tomados cuidados especiais para proteger o participante do experimento de qualquer possibilidade de dano, invalidez ou morte, mesmo que
remota.
9. O experimento deve ser conduzido apenas por pessoas cientificamente qualificadas.
10.O participante do experimento deve ter a liberdade
de se retirar no decorrer do experimento.
11.O pesquisador deve estar preparado para suspender
os procedimentos experimentais em qualquer estágio, se ele tiver motivos razoáveis para acreditar que
a continuação do experimento provavelmente causará dano, invalidez ou morte para os participantes.
ANEXO B: CARTA DE LONDRES E ESTATUTO DO
TRIBUNAL MILITAR INTERNACIONAL
London Agreement of August 8th 1945
AGREEMENT by the Government of the UNITED
STATES OF AMERICA, the Provisional Government of
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the FRENCH REPUBLIC, the Government of the UNITED KINGDOM OF GREAT BRITAIN AND NORTHERN IRELAND and the Government of the UNION OF
SOVIET SOCIALIST REPUBLICS for the Prosecution
and Punishment of the MAJOR WAR CRIMINALS of
the EUROPEAN AXIS
WHEREAS the United Nations have from time to
time made declarations of their intention that War Criminals shall be brought to justice;
AND WHEREAS the Moscow Declaration of the
30th October 1943 on German atrocities in Occupied Europe stated that those German Officers and men and members of the Nazi Party who have been responsible for or
have taken a consenting part in atrocities and crimes will be
sent back to the countries in which their abominable deeds
were done in order that they may be judged and punished
according to the laws of these liberated countries and of the
free Governments that will be created therein;
AND WHEREAS this Declaration was stated to be
without prejudice to the case of major criminals whose offenses have no particular geographical location and who
will be punished by the joint decision of the Governments
of the Allies;
NOW THEREFORE the Government of the United States of America, the Provisional Government of the
French Republic, the Government of the United Kingdom
of Great Britain and Northern Ireland and the Government
of the Union of Soviet Socialist Republics (hereinafter
called “the Signatories”) acting in the interests of all the
United Nations and by their representatives duly authorized
thereto have concluded this Agreement.
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Article 1.
There shall be established after consultation with the
Control Council for Germany an International Military Tribunal for the trial of war criminals whose offenses have no
particular geographical location whether they be accused
individually or in their capacity as members of the organizations or groups or in both capacities.
Article 2.
The constitution, jurisdiction and functions of the International Military Tribunal shall be those set in the Charter annexed to this Agreement, which Charter shall form an
integral part of this Agreement.
Article 3.
Each of the Signatories shall take the necessary steps
to make available for the investigation of the charges and
trial the major war criminals detained by them who are to
be tried by the International Military Tribunal. The Signatories shall also use their best endeavors to make available for
investigation of the charges against and the trial before the
International Military Tribunal such of the major war criminals as are not in the territories of any of the Signatories.
Article 4.
Nothing in this Agreement shall prejudice the provisions established by the Moscow Declaration concerning
the return of war criminals to the countries where they committed their crimes.
Article 5.
Any Government of the United Nations may adhere
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to this Agreement by notice given through the diplomatic
channel to the Government of the United Kingdom, who
shall inform the other signatory and adhering Governments
of each such adherence.
Article 6.
Nothing in this Agreement shall prejudice the jurisdiction or the powers of any national or occupation court
established or to be established in any allied territory or in
Germany for the trial of war criminals.
Article 7.
This Agreement shall come into force on the day of
signature and shall remain in force for the period of one
year and shall continue thereafter, subject to the right of
any Signatory to give, through the diplomatic channel, one
month’s notice of intention to terminate it. Such termination shall not prejudice any proceedings already taken or
any findings already made in pursuance of this Agreement.
IN WITNESS WHEREOF the Undersigned have
signed the present Agreement.
DONE in quadruplicate in London this 8th day of
August 1945 each in English, French and Russian, and each
text to have equal authenticity.
For the Government of the United States of America
Robert H. Jackson
For the Provisional Government of the French Republic
Robert Falco
For the Government of the United Kingdom of Great
Britain and Northern Ireland
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Jowitt C.
For the Government of the Union of Soviet Socialist
Republics
I. Nikitchenko
A. Trainin
Charter of the International Military Tribunal
I. CONSTITUTION OF THE INTERNATIONAL MILITARY TRIBUNAL
Article 1.
In pursuance of the Agreement signed on the 8th day
of August 1945 by the Government of the United States of
America, the Provisional Government of the French Republic, the Government of the United Kingdom of Great Britain and Northern Ireland and the Government of the Union
of Soviet Socialist Republics, there shall be established an
International Military Tribunal (hereinafter called “the Tribunal’’) for the just and prompt trial and punishment of the
major war criminals of the European Axis.
Article 2.
The Tribunal shall consist of four members, each
with an alternate. One member and one alternate shall be
appointed by each of the Signatories. The alternates shall,
so far as they are able, be present at all sessions of the Tribunal. In case of illness of any member of the Tribunal or
his incapacity for some other reason to fulfill his functions,
his alternate shall take his place.
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Article 3.
Neither the Tribunal, its members nor their alternates
can be challenged by the prosecution, or by the Defendants
or their Counsel. Each Signatory may replace its members
of the Tribunal or his alternate for reasons of health or for
other good reasons, except that no replacement may take
place during a Trial, other than by an alternate.
Article 4
(a) The presence of all four members of the Tribunal
or the alternate for any absent member shall be necessary to
constitute the quorum.
(b) The members of the Tribunal shall, before any trial begins, agree among themselves upon the selection from
their number of a President, and the President shall hold office during the trial, or as may otherwise be agreed by a vote
of not less than three members. The principle of rotation
of presidency for successive trials is agreed. If, however, a
session of the Tribunal takes place on the territory of one of
the four Signatories, the representative of that Signatory on
the Tribunal shall preside.
(c) Save as aforesaid the Tribunal shall take decisions
by a majority vote and in case the votes are evenly divided,
the vote of the President shall be decisive: provided always
that convictions and sentences shall only be imposed by affirmative votes of at least three members of the Tribunal.
Article 5.
In case of need and depending on the number of the
matters to be tried, other Tribunals may be set up; and the
establishment, functions, and procedure of each Tribunal
shall be identical, and shall be governed by this Charter.
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II. JURISDICTION AND GENERAL PRINCIPLES
Article 6.
The Tribunal established by the Agreement referred
to m Article 1 hereof for the trial and punishment of the
major war criminals of the European Axis countries shall
have the power to try and punish persons who, acting in the
interests of the European Axis countries, whether as individuals or as members of organizations, committed any of
the following crimes.
The following acts, or any of them, are crimes coming
within the jurisdiction of the Tribunal for which there shall
be individual responsibility:
(a) CRIMES AGAINST PEACE: namely, planning,
preparation, initiation or waging of a war of aggression, or a
war in violation of international treaties, agreements or assurances, or participation in a common plan or conspiracy
for the accomplishment of any of the foregoing;
(b) WAR CRIMES: namely, violations of the laws
or customs of war. Such violations shall include, but not
be limited to, murder, ill-treatment or deportation to slave
labor or for any other purpose of civilian population of or
in occupied territory, murder or ill-treatment of prisoners
of war or persons on the seas, killing of hostages, plunder
of public or private property, wanton destruction of cities,
towns or villages, or devastation not justified by military
necessity;
(c) CRIMES AGAINST HUMANITY: namely,
murder, extermination, enslavement, deportation, and other
inhumane acts committed against any civilian population,
before or during the war; or persecutions on political, racial
or religious grounds in execution of or in connection with
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Revista
do Curso
da Faculdade
de Direito
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Direito
Faculdade
Maurício
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any crime within the jurisdiction of the Tribunal, whether
or not in violation of the domestic law of the country where
perpetrated.
Leaders, organizers, instigators and accomplices participating in the formulation or execution of a common plan
or conspiracy to commit any of the foregoing crimes are
responsible for all acts performed by any persons in execution of such plan.
Article 7.
The official position of defendants, whether as Heads
of State or responsible officials in Government Departments, shall not be considered as freeing them from responsibility or mitigating punishment.
Article 8.
The fact that the Defendant acted pursuant to order
of his Government or of a superior shall not free him from
responsibility, but may be considered in mitigation of punishment if the Tribunal determines that justice so requires.
Article 9.
At the trial of any individual member of any group or
organization the Tribunal may declare (in connection with
any act of which the individual may be convicted) that the
group or organization of which the individual was a member was a criminal organization.
After the receipt of the Indictment the Tribunal shall
give such notice as it thinks fit that the prosecution intends
to ask the Tribunal to make such declaration and any member of the organization will be entitled to apply to the Tribu-
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A importância do código de nuremberg para o biodireito.
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nal for leave to be heard by the Tribunal upon the question
of the criminal character of the organization. The Tribunal
shall have power to allow or reject the application. If the application is allowed, the Tribunal may direct in what manner the applicants shall be represented and heard.
Article 10.
In cases where a group or organization is declared
criminal by the Tribunal, the competent national authority
of any Signatory shall have the right to bring individual to
trial for membership therein before national, military or occupation courts. In any such case the criminal nature of the
group or organization is considered proved and shall not be
questioned.
Article 11.
Any person convicted by the Tribunal may be charged
before a national, military or occupation court, referred to in
Article 10 of this Charter, with a crime other than of membership in a criminal group or organization and such court
may, after convicting him, impose upon him punishment
independent of and additional to the punishment imposed
by the Tribunal for participation in the criminal activities of
such group or organization.
Article 12.
The Tribunal shall have the right to take proceedings
against a person charged with crimes set out in Article 6 of
this Charter in his absence, if he has not been found or if the
Tribunal, for any reason, finds it necessary, in the interests
of justice, to conduct the hearing in his absence.
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154
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Article 13.
The Tribunal shall draw up rules for its procedure.
These rules shall not be inconsistent with the provisions of
this Charter.
III. COMMITTEE FOR THE INVESTIGATION AND
PROSECUTION OF MAJOR WAR CRIMINALS
Article 14.
Each Signatory shall appoint a Chief Prosecutor for
the investigation of the charges against and the prosecution
of major war criminals.
The Chief Prosecutors shall act as a committee for the
following purposes:
(a) to agree upon a plan of the individual work of
each of the Chief Prosecutors and his staff,
(b) to settle the final designation of major war criminals to be tried by the Tribunal,
(c) to approve the Indictment and the documents to be
submitted therewith,
(d) to lodge the Indictment and the accompany documents with the Tribunal,
(e) to draw up and recommend to the Tribunal for its
approval draft rules of procedure, contemplated by Article
13 of this Charter. The Tribunal shall have the power to accept, with or without amendments, or to reject, the rules so
recommended.
The Committee shall act in all the above matters by
a majority vote and shall appoint a Chairman as may be
convenient and in accordance with the principle of rotation:
provided that if there is an equal division of vote concerning
the designation of a Defendant to be tried by the Tribunal,
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A importância do código de nuremberg para o biodireito.
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or the crimes with which he shall be charged, that proposal
will be adopted which was made by the party which proposed that the particular Defendant be tried, or the particular charges be preferred against him.
Article 15.
The Chief Prosecutors shall individually, and acting
in collaboration with one another, also undertake the following duties:
(a) investigation, collection and production before or
at the Trial of all necessary evidence,
(b) the preparation of the Indictment for approval by
the Committee in accordance with paragraph (c) of Article
14 hereof,
(c) the preliminary examination of all necessary witnesses and of all Defendants,
(d) to act as prosecutor at the Trial,
(e) to appoint representatives to carry out such duties
as may be assigned them,
(f) to undertake such other matters as may appear
necessary to them for the purposes of the preparation for
and conduct of the Trial.
It is understood that no witness or Defendant detained
by the Signatory shall be taken out of the possession of that
Signatory without its assent.
IV. FAIR TRIAL FOR DEFENDANTS
Article 16.
In order to ensure fair trial for the Defendants, the following procedure shall be followed:
(a) The Indictment shall include full particulars specifying in detail the charges against the Defendants. A copy
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Renata Oliveira Almeida Menezes
of the Indictment and of all the documents lodged with
the Indictment, translated into a language which he understands, shall be furnished to the Defendant at reasonable
time before the Trial.
(b) During any preliminary examination or trial of a
Defendant he will have the right to give any explanation
relevant to the charges made against him.
(c) A preliminary examination of a Defendant and his
Trial shall be conducted in, or translated into, a language
which the Defendant understands.
(d) A Defendant shall have the right to conduct his
own defense before the Tribunal or to have the assistance
of Counsel.
(e) A Defendant shall have the right through himself
or through his Counsel to present evidence at the Trial in
support of his defense, and to cross-examine any witness
called by the Prosecution.
V. POWERS OF THE TRIBUNAL AND CONDUCT
OF THE TRIAL
Article 17.
The Tribunal shall have the power
(a) to summon witnesses to the Trial and to require
their attendance and testimony and to put questions to them
(b) to interrogate any Defendant,
(c) to require the production of documents and other
evidentiary material,
(d) to administer oaths to witnesses,
(e) to appoint officers for the carrying out of any task
designated by the Tribunal including the power to have evidence taken on commission.
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A importância do código de nuremberg para o biodireito.
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Article 18.
The Tribunal shall
(a) confine the Trial strictly to an expeditious hearing
of the cases raised by the charges,
(b) take strict measures to prevent any action which
will cause reasonable delay, and rule out irrelevant issues
and statements of any kind whatsoever,
(c) deal summarily with any contumacy, imposing
appropriate punishment, including exclusion of any Defendant or his Counsel from some or all further proceedings,
but without prejudice to the determination of the charges.
Article 19.
The Tribunal shall not be bound by technical rules of
evidence. It shall adopt and apply to the greatest possible
extent expeditious and nontechnical procedure, and shall
admit any evidence which it deems to be of probative value.
Article 20.
The Tribunal may require to be informed of the nature
of any evidence before it is entered so that it may rule upon
the relevance thereof.
Article 21.
The Tribunal shall not require proof of facts of common knowledge but shall take judicial notice thereof. It
shall also take judicial notice of official governmental documents and reports of the United Nations, including the acts
and documents of the committees set up in the various allied countries for the investigation of war crimes, and of
records and findings of military or other Tribunals of any of
the United Nations.
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Renata Oliveira Almeida Menezes
Article 22.
The permanent seat of the Tribunal shall be in Berlin.
The first meetings of the members of the Tribunal and of
the Chief Prosecutors shall be held at Berlin in a place to be
designated by the Control Council for Germany. The first
trial shall be held at Nuremberg, and any subsequent trials
shall be held at such places as the Tribunal may decide.
Article 23.
One or more of the Chief Prosecutors may take part
in the prosecution at each Trial. The function of any Chief
Prosecutor may be discharged by him personally, or by any
person or persons authorized by him.
The function of Counsel for a Defendant may be discharged at the Defendant’s request by any Counsel professionally qualified to conduct cases before the Courts of his
own country, or by any other person who may be specially
authorized thereto by the Tribunal.
Article 24.
The proceedings at the Trial shall take the following
course:
(a) The Indictment shall be read in court.
(b) The Tribunal shall ask each Defendant whether he
pleads “guilty” or “not guilty.’’
(c) The prosecution shall make an opening statement.
(d) The Tribunal shall ask the prosecution and the
defense what evidence (if any) they wish to submit to the
Tribunal, and the Tribunal shall rule upon the admissibility
of any such evidence.
(e) The witnesses for the Prosecution shall be examined and after that the witnesses for the Defense. Thereafter
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A importância do código de nuremberg para o biodireito.
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such rebutting evidence as may be held by the Tribunal to
be admissible shall be called by either the Prosecution or
the Defense.
(f) The Tribunal may put any question to any witness
and to any defendant, at any time.
(g) The Prosecution and the Defense shall interrogate
and may crossexamine any witnesses and any Defendant
who gives testimony.
(h) The Defense shall address the court.
(i) The Prosecution shall address the court.
(j) Each Defendant may make a statement to the Tribunal.
(k) The Tribunal shall deliver judgment and pronounce sentence.
Article 25.
All official documents shall be produced, and all
court proceedings conducted, in English, French and Russian, and in the language of the Defendant. So much of the
record and of the proceedings may also be translated into
the language of any country in which the Tribunal is sitting,
as the Tribunal is sitting, as the Tribunal considers desirable
in the interests of the justice and public opinion.
VI. JUDGMENT AND SENTENCE
Article 26.
The judgment of the Tribunal as to the guilt or the innocence of any Defendant shall give the reasons on which it
is based, and shall be final and not subject to review.
Article 27.
The Tribunal shall have the right to impose upon a
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Renata Oliveira Almeida Menezes
Defendant, on conviction, death or such other punishment
as shall be determined by it to be just.
Article 28.
In addition to any punishment imposed by it, the Tribunal shall have the right to deprive the convicted person
of any stolen property and order its delivery to the Control
Council for Germany.
Article 29.
In case of guilt, sentences shall be carried out in accordance with the orders of the Control Council for Germany, which may at any time reduce or otherwise alter the
sentences, but may not increase the severity thereof. If the
Control Council for Germany, after any Defendant has been
convicted and sentenced, discovers fresh evidence which,
in its opinion, would found a fresh charge against him, the
Council shall report accordingly to the Committee established under Article 14 hereof, for such action as they may
consider proper, having regard to the interests of justice.
VII. EXPENSES
Article 30.
The expenses of the Tribunal and of the Trials, shall
be charged by the Signatories against the funds allotted for
maintenance of the Control Council of Germany.
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Neoconstitucionalismo e Juspositivismo: superação ou complementaridade?
161
NEOCONSTITUCIONALISMO E
JUSPOSITIVISMO: SUPERAÇÃO OU
COMPLEMENTARIDADE?
Rodrigo Andrade de Almeida
Professor do Curso de Direito do Grupo Universitário
Maurício de Nassau (Salvador), do Centro Universitário Jorge Amado
(Salvador), membro do Grupo de Pesquisas em Filosofia, Direito e
Constituição (Salvador).
RESUMO
Este artigo tem por objetivo investigar as principais
características da doutrina neoconstitucionalista, em contraste com o juspositivismo, a fim de que se possa melhor
compreender a relação que há entre ambas, seja de superação, seja de complementaridade. Pretende, portanto, analisar os principais fundamentos metodológicos e teóricos de
cada uma dessas correntes do pensamento jurídico, a partir
da obra de seus principais expoentes.
Palavras-chave: Juspositivismo. Neoconstitucionalismo. Direito e moral.
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Rodrigo Andrade de Almeida
ABSTRACT
This paper aims to investigate the main characteristics of the neoconstitutionalist doctrine, in opposition to legal positivism, in order to understand the rapport between
them, either of overcoming or complementation. Thus, intends to analyze both methodological and theoretical fundamentals of these lines of jurisprudential thought, beginning
from the work of their main writers.
Key words: Legal positivism. Neoconstitutionalism.
Law and morals.
SUMÁRIO
Introdução. 1. Do jusnaturalismo ao juspositivismo.
2. Do juspositivismo ao neoconstitucionalismo. 3. Do neoconstitucionalismo ao juspositivismo. Conclusão.
Introdução
A filosofia do direito vive um momento de intensa
ebulição reflexiva. Desde o final da Segunda Grande Guerra, inúmeras críticas foram dirigidas ao positivismo jurídico, sempre no sentido de responsabilizá-lo por fundamentar
teoricamente os regimes nazi-fascistas, na Europa. De acordo com seus críticos, o juspositivismo teria legitimado os
ordenamentos jurídicos nazi-fascistas, ao adotar uma visão
meramente formalista do direito, dissociando-o completamente de conteúdos morais e considerando válida qualquer
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Neoconstitucionalismo e Juspositivismo: superação ou complementaridade?
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norma posta pelo Estado, independentemente de seu conteúdo.
A rejeição ao conteúdo das normas jurídicas daqueles regimes e o firme propósito de evitar que tais práticas
ocorressem novamente, levou os chamados anti-positivistas a defender a construção de uma teoria do direito – o
neoconstitucionalismo­– que partisse da conexão conceitual
entre direito e moral, de tal forma que os valores morais
considerados essenciais à vida e à dignidade humana estivessem contidos na Constituição, que assumiria uma função
moralizante dos sistemas jurídicos nacionais. A constitucionalização da pauta moral vigente na sociedade dar-se-ia,
assim, por meio da inclusão de normas principiológicas no
texto constitucional, princípios esses norteadores da ação
estatal, tanto no momento da criação legislativa quanto no
da aplicação interpretativa por parte do juiz.
Os teóricos juspositivistas reagiram, reafirmando e
defendendo a tese da separação conceitual entre direito e
moral e buscando argumentos que invalidassem as críticas
anti-positivistas. Tal qual fizeram os primeiros teóricos positivistas ao refutar as bases metodológicas jusnaturalistas,
os juspositivistas contemporâneos atacam a tese da conexão
conceitual entre direito e moral, colacionando argumentos
como a pluralidade de sistemas morais vigentes nas sociedades hodiernas, a impossibilidade de justificação racional
de opções morais e a necessidade de defesa da segurança
jurídica, além da impossibilidade lógica de criticar o direito, quando assim reconhecido aquele que tenha respaldo em
um valor moral relevante, e as dificuldades que essa impossibilidade acarreta.
A cuidadosa análise dos argumentos dos contendores – tanto juspositivistas quando neoconstitucionalistas –
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Rodrigo Andrade de Almeida
não parece encaminhar a discussão de maneira conclusiva:
ao passo que neoconstitucionalistas decretam a morte do
juspositivismo e propugnam um novo paradigma epistemológico para o direito, juspositivistas denunciam o caráter
ideológico e as raízes jusnaturalistas do neoconstitucionalismo.
Cumpre, assim, a partir de uma análise meta-teórica
de ambas as doutrinas, averiguar se o neoconstitucionalismo representa, de fato, a superação do juspositivismo ou se,
ao contrário, ambas as abordagens se complementam, esta
representando uma teoria estruturalista, e aquela uma teria
funcionalista do direito.
1. Do jusnaturalismo ao juspositivismo
1.1 Da Racionalização da Doutrina do Direito Natural
O século XVI marca, no campo da filosofia do direito, o início de uma longa transição entre os pensamentos
jurídicos medieval e moderno (SANTOS, 2002); nessa época, floresce na Europa o contratualismo, doutrina política
que atribui a um acordo coletivo de vontades a origem do
Estado e, por consequência, do Direito (BOBBIO, 2000, p.
29-31).
A doutrina contratualista representa um giro importantíssimo na forma de pensar o Estado, o Direito e a Sociedade. Ao longo de toda a Idade Média prevaleceu a ideia de
que essa tríade tinha origem na vontade criadora de Deus,
onisciente, onipresente e onipotente, e de que haveria, portanto, uma natureza intrínseca a esses elementos sobre a
qual os seres humanos não teriam qualquer controle. A teRevista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau –
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Neoconstitucionalismo e Juspositivismo: superação ou complementaridade?
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oria contratualista, nesse sentido, desloca a origem do Estado para a vontade criadora do homem, e não mais divina,
constituindo como instrumento de ação daquele o Direito: o
jusnaturalismo medieval dá lugar, assim, ao jusnaturalismo
moderno, ou racional (BOBBIO, 2000; BITTAR e ALMEIDA, 2007, p. 245-6).
O jusnaturalismo moderno, portanto, parte de premissas metodológicas substancialmente diversas daquelas atribuídas ao jusnaturalismo medieval, sobretudo no que tange
à origem e ao fundamento do direito natural; basilares são,
nesse particular, os conceitos de universalismo ético e razão
humana (NINO, 1980, p. 28). A essa pressuposta existência
de valores eternos e imutáveis associa-se, na doutrina jusnaturalista moderna, a noção da razão humana como medida de todas as coisas, conceito que substitui, nessa corrente,
a vontade criadora de Deus como fundamento do direito
natural.
Para os modernos jusnaturalistas, o traço característico que distingue o ser humano dos outros animais é sua
racionalidade que, no âmbito da filosofia racionalista que
lhes dá suporte, é posta em termos ideais, ou seja, uma racionalidade essencialmente igual em todos os homens, com
características eternas e imutáveis. Essa razão idealizada é
o meio, o instrumento através do qual o ser humano tem
acesso aos valores morais e princípios de justiça universalmente válidos. Segundo essa teoria, portanto, o direito natural faz parte da própria essência humana, sendo acessível
a todos por meio da razão, daí referir-se a essa doutrina,
também, como jusnaturalismo racionalista (NINO, 1980, p.
29). É clara, nessa concepção, a conexão conceitual necessária entre direito e justiça, conforme o observa Ferrajoli:
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Rodrigo Andrade de Almeida
[...] È chiaro che entro un tale paradigma, sopravvissuto sotto molti aspetti nei sistemi di
common law, la scienza giuridica è immediatamente normativa, confondendosi di fatto
con lo stesso diritto, da essa stessa rielaborato e unificato. Veritas non auctoritas facit
legem, potremmo affermare, capovolgendo
la massima giuspositivistica di Hobbes, per
esprimere la norma di riconoscimento del
diritto entro questo tipo di esperienza. In assenza di un sistema formalizzato di fonti legislative, infatti, la validità di una norma giuridica dipende non già dalla sua positività,
ma dalla sua intrinseca giustizia o razionalità, ossia dalla sua valutazione e argomentazione come in sé giusta o razionale ovvero,
in senso lato, “vera” (FERRAJOLI, 2004).
Contudo, a premente dificuldade dos teóricos jusnaturalistas em chegar a um consenso em relação à definição
do elenco de direitos naturais inerentes ao ser humano representava um entrave à atuação garantidora do Estado; era
necessária a positivação desses direitos, para que se gerasse
segurança jurídica e o Estado pudesse atuar de forma mais
clara e consistente. A burguesia havia conseguido realizar
sua revolução, e precisava instaurar uma nova ordem, que
atendesse a seus interesses econômicos, políticos e sociais.
O fato de o direito tornar-se escrito contribuiu para importantes transformações na
concepção de direito e de seu conhecimento. A fixação do direito na forma escrita, ao
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Neoconstitucionalismo e Juspositivismo: superação ou complementaridade?
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mesmo tempo em que aumenta a segurança e
a precisão de seu entendimento, aguça também a consciência dos limites (FERRAZ
JUNIOR, 2003, p. 72).
Dito de forma ainda mais enfática,
O jusracionalismo jogou um importante papel, por seu esforço em construir o direito
sobre uma base de princípios e regras fundadas na razão, por reconhecer ao indivíduo,
ao menos intelectualmente, liberdades e direitos subjetivos que seriam inerentes à sua
natureza e, ainda, por sua tendência à unificação do direito e ao refundimento completo
do conteúdo do direito sobre a base do individualismo e da relevância atribuída à vontade humana como fonte criadora de vínculos jurídicos. A codificação a ele vincula-se
geneticamente, porque, na medida em que se
crê em uma ordem jurídica imutável e metaempírica, garante dos valores do indivíduo
e das suas aspirações, e na medida em que
esta ordem se quer ver traduzida em normas
e preceitos, “a idéia de código aparece como
o prestigioso compêndio no qual as esperanças se lançam e como meio insubstituível
para tornar certos e partilháveis os princípios
de direito natural” (COSTA, 2000, p. 174).
É com esse espírito que, a partir já do final do século
XVIII, mas sobretudo a partir do século XIX, o direito passa a ser codificado, conforme o aponta John Gilissen:
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Rodrigo Andrade de Almeida
Na época feudal, isto é, do século X ao XII,
não há muitas leis, nem muitas regras gerais;
a desigualdade predomina na vida social;
quando muito há, por aqui e por ali, privilégios, pazes e keures como manifestações de
uma vontade que se assemelha à que cria a
lei. Cada pequena comunidade de habitantes tem o seu próprio direito, essencialmente
consuetudinário.
No século XIX, depois da Revolução Francesa e por influência desta, o direito é estatal: cada Estado tem o seu direito, geralmente unificado. Este direito é estabelecido
sob a forma de leis, elaboradas por órgãos
legislativos. Pode-se calcular que na maior
parte dos Estados – salvo, talvez, a Inglaterra, com o seu sistema de common law – no
século XIX e sobretudo no século XX, cerca
de 90% das regras de direito são de origem
legislativa [...].
É também a época em que o costume é reduzido a escrito e adquire, pela sua promulgação, os caracteres essenciais da lei. Num
outro domínio, a prova escrita tende a ultrapassar a prova oral: ‘Documentos passam
à frente das testemunhas’, em vez de ‘testemunhas passam à frente dos documentos’
(GILISSEN, 2003, p. 237-8).
Para Ferrajoli, é precisamente a positivação do direito,
como meio de realizar a segurança jurídica, que caracteriza
o surgimento do paradigma jurídico moderno:
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Neoconstitucionalismo e Juspositivismo: superação ou complementaridade?
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Il diritto positivo moderno nasce allorquando si afferma, a garanzia della certezza del
diritto e della libertà contro l’arbitrio, il
principio di legalità quale sua meta-norma
di riconoscimento. Grazie a questo principio, espresso dalla massima hobbesiana
auctoritas non veritas facit legem, tutte le
norme giuridiche, e quindi tutte le regole
d’uso della lingua giuridica, in tanto esistono e sono valide in quanto siano “poste”
da autorità dotate, in base ad altre norme,
di competenza normativa. Ne consegue che
i discorsi della scienza giuridica cessano di
essere immediatamente normativi per divenire tendenzialmente “interpretativi” dei
testi legislativi, cioè esplicativi di un oggetto
– il diritto “positivo” – da essa autonomo e
separato (FERRAJOLI, 2004, p. 355).
A partir da codificação do direito, portanto, a doutrina do direito natural perde força e, enquanto na França
esse movimento resulta no desenvolvimento de uma compreensão exegetista do direito (BOBBIO, 1995, p. 63-89;
CAMARGO, 2003, p. 65-6) surgem na Alemanha as mais
contundentes críticas ao racionalismo jusnaturalista e exegetista, plantando as bases do que, no curso dos séculos
XIX e XX, tornar-se-ia a doutrina juspositivista.
1.3 Da positivação do direito natural ao positivismo
jurídico
Na Alemanha do início do século XIX o cenário político não era propício à difusão do ideário iluminista francês,
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como aconteceu no restante da Europa. Lá, o racionalismo
cartesiano e a crença na existência de valores morais universais encontraram forte resistência por parte dos teóricos.
De fato, é na Alemanha que o jusnaturalismo e o exegetismo encontram seus mais robustos críticos, inicialmente
com a chamada Escola Histórica do Direito e, em seguida,
com o sociologismo e o positivismo jurídico. Tais críticas
partem da refutação dos dois principais pressupostos metodológicos que dão suporte a toda a teoria jusnaturalista, ou
seja, o racionalismo e o universalismo ético; nesse sentido,
a tradição teórica alemã fundar-se-á no empirismo e no relativismo ético.
Em primeiro lugar, os historicistas refutam a tese da
existência de uma razão universal ideal, isto é, não acreditam que a razão seja, como dizem os racionalistas, igualmente presente em todos os seres humanos, e que tenha uma
essência eterna e imutável. Historicistas que são, negam o
conceito racionalista de que exista “o homem”, e defendem
que o ser humano é mutável e mutante e que, portanto, a
razão não constitui instrumento adequado de compreensão
da realidade. O culto à razão, segundo a tradição empirista, não passa de uma forma de dominação engendrada pela
classe burguesa que, alegando a perfeição de seus postulados, busca legitimar a criação de um sistema de normas
supostamente derivados de uma moralidade perfeita, eterna
e imutável. Isto posto, defendem a ideia de que o direito não
deve ser imposto arbitrariamente pela razão, mas fruto do
desenvolvimento das relações sociais, uma natural construção histórica.
Céticos em relação à razão, os alemães também colocarão em dúvida a existência de valores morais e princípios
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de justiça eternos e imutáveis, assumindo posição relativista em matéria ética. Em defesa dessa tese, os relativistas argumentam que: (1) Os teóricos universalistas jamais
conseguiram elencar os valores com validade universal, e
(2) as escolhas morais não podem ser justificadas racionalmente, por tratar-se de juízos de valor, estranhos ao mundo
do “ser”.
O segundo argumento constitui o que se convencionou chamar, no âmbito das teorias críticas do jusnaturalismo, de falácia naturalista, por pretender obter, a partir de
juízos de fato, juízos de valor, coisa que seria, segundo os
relativistas, logicamente impossível (KELSEN, 1998, p.
140). Destarte, dirão os relativistas que é impossível justificar racionalmente opções morais e que, para justificá-los,
recorrer-se-á sempre a outros valores morais. Assim, dentre
as várias opções possíveis, a lei será sempre uma escolha
moral, e não fruto natural de uma razão perfeita e imutável,
como pretendem os racionalistas franceses.
Partindo desses pressupostos, tradição teórica que se
desenvolve na Alemanha refuta veementemente o jusnaturalismo e o exegetismo, e propugna a adoção de uma postura meramente descritiva em relação ao direito, já no final
do século XIX, quando o cientificismo positivista já havia
conquistado espaço suficiente para dar ensejo ao surgimento de uma ciência do direito.
2 DO JUSPOSITIVISMO AO
NEOCONSTITUCIONALISMO
O juspositivismo surge, portanto, com a proposta de
construção de um conhecimento científico sobre o direito,
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de natureza descritiva, avalorativa e objetiva (BOBBIO,
1995, p. 135), e encontra seu modelo mais acabado na Teoria Pura do Direito, de Hans Kelsen (SGARBI, 2006, p.
31), modelo tal que será amplamente aceito no campo do
conhecimento até o fim da Segunda Grande Guerra (LOSANO, 2004, p. 7). Deve-se ressaltar, contudo, que o juspositivismo, assim como o jusnaturalismo, não é uma corrente
teórica coesa e unitária, havendo em seu interior inúmeras
discussões, muitas vezes, levando a posições bastante diferentes, conforme o aponta o jusfilósofo argentino Carlos
Santiago Nino:
[...] Mucho más difícil resulta, en cambio,
caracterizar la concepción positivista del
derecho. Esto es así porque la expresión
“positivismo” es marcadamente ambigua:
ella hace referencia a posiciones diferentes que a veces nada tienen que ver entre
sí; que, en muchos casos, fueron explícitamente rechazadas por algunos autores
considerados positivistas, y que, en otros,
fueron sostenidas por juristas positivistas
pero no como parte esencial del positivismo por ellos defendido (NINO, 1980, p.
30).
Torna-se mais claro, assim, compreender o juspositivismo a partir de três perspectivas, conforme sugere Bobbio, em classificação muito bem recebida no âmbito da
teoria do direito (SGARBI, 2007, p. 714; PINO, 1999, p.
206): o juspositivismo como método de estudo, como teoria
e como ideologia do direito (BOBBIO, 1995, p. 131).
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Neoconstitucionalismo e Juspositivismo: superação ou complementaridade?
2.1
173
Perspectivas do Juspositivismo
2.1.2 O juspositivismo como método de estudo do
direito
Do ponto de vista metodológico, o juspositivismo se caracteriza pela tentativa de abordar avalorativamente o direito, a partir da distinção entre juízos
de fato e juízos de valor, adotando-se os primeiros e
excluindo os segundos do âmbito da teoria do direito.
Nas palavras do próprio Bobbio,
[...] o positivista jurídico assume uma atitude científica frente ao direito já que,
como dizia Austin, ele estuda o direito tal
qual é, não tal qual deveria ser. O positivismo jurídico representa o estudo do direito
como fato, não como valor: na definição
do direito deve ser excluída toda qualificação que seja fundada num juízo de valor
e que comporte a distinção do próprio direito entre bom e mau, justo e injusto. O
direito, objeto da ciência jurídica, é aquele
que efetivamente se manifesta na realidade
histórico-social (BOBBIO, 1995, p. 136).
Acerca dessa perspectiva do juspositivismo, comenta Adrian Sgarbi:
[...] O objetivo dessa distinção é relevante
para o jurista positivista porque ele estuda do
direito “real”, o direito tal como se apresenta
nas ordens jurídicas. Portanto, sua preocupaRevista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau –
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ção não é com o conteúdo do que descreve,
porquanto podem estar em sua análise prescrições que ofendam um “ideal valorativo”,
como, também, pode estar em sua análise
algo consentâneo com esse “ideal”. “Estar”
em “conformidade” com certo “ideal valorativo” ou “não estar” em “conformidade”
com este “ideal valorativo” não influencia
sua atividade (SGARBI, 2007, p. 715).
Do intuito de abordar avalorativamente o direito decorre a chamada tese da separação entre direito
e moral, conceito fundamental da doutrina juspositivista. Essa é uma tese conceitual, pois pretende unicamente delimitar o objeto da ciência do direito em
termos descritivos, e não valorativos. Daí falar-se,
também, em positivismo metodológico ou positivismo conceitual para designar essa abordagem (NINO,
1980, p. 37-43).
2.1.2 O juspositivismo como teoria do direito
Do ponto de vista teórico, o juspositivismo
constrói formulações sobre a natureza do direito que,
conforme Adrian Sgarbi, podem ser resumidas a seis
aportes principais:
[...] a) a teoria da coatividade (que supõe que
a força é um elemento essencial e típico do direito); b) a teoria imperativista (as normas jurídicas são comandos); c) a supremacia da lei
(as demais “fontes” do direito são subordinaRevista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau –
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Neoconstitucionalismo e Juspositivismo: superação ou complementaridade?
175
das à lei); d) a teoria da coerência (a defesa da
ausência de contradições entre as normas que
compõem o ordenamento jurídico); e) a teoria da plenitude (que nega que haja lacunas no
direito); e f) a interpretação mecanicista (que
considera ser a interpretação jurídica apenas silogística) (SGARBI, 2007, p. 715).
Todas as seis teses apresentadas por Bobbio sofreram críticas de opositores do juspositivismo. Entretanto, comenta o próprio autor:
Ora, sustentamos que as críticas às primeiras
três teorias não são consistentes e, de qualquer
maneira, tais teorias permanecem intactas na
sua essência, mesmo depois que se deu conta
das objeções a elas dirigidas. A crítica às últimas três teorias é, pelo contrário, fundada. De
fato: a) um ordenamento jurídico não é necessariamente coerente, porque podem coexistir
no âmbito do mesmo ordenamento duas normas incompatíveis e serem ambas válidas (a
compatibilidade não é um critério de validade);
b) um ordenamento jurídico não é necessariamente completo, porque a completitude deriva
da norma geral exclusiva, ou norma de clausura, que na maior parte dos casos – excluído
o direito penal – não existe; c) a interpretação
do direito feita pelo juiz não consiste jamais na
simples aplicação da lei com base num procedimento puramente lógico. Mesmo que disto não
se dê conta, para chegar à decisão ele deve semRevista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau –
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176
Rodrigo Andrade de Almeida
pre introduzir avaliações pessoais, fazer escolhas que estão vinculadas ao esquema legislativo
que ele deve aplicar.
As três primeiras e as três últimas concepções não têm, entretanto, a mesma importância no sistema da teoria juspositivista: as três
primeiras, na verdade, constituem as pilastras
de tal teoria, enquanto as três últimas têm importância somente secundária. Podemos assim
falar de uma teoria juspositivista em sentido
estrito e de uma teoria juspositivista em sentido amplo, em conformidade com as quais se
reúnem integralmente todas essas seis concepções, se não se reúnem apenas as primeiras três
(BOBBIO, 1995, p. 237).
De acordo com a observação de Bobbio no excerto citado, portanto, como teoria do direito o juspositivismo mantém sua legitimidade, uma vez que as
críticas a ela dirigidas não a invalidam.
2.1.3 O juspositivismo como ideologia do direito
Ao contrário do que inicialmente propugna, o
juspositivismo não logrou manter-se totalmente neutro em relação ao seu objeto de estudo. Assim, a par de
teoria, isto é, abordagem descritiva do direito, o juspositivismo pode ser identificado também, na construção
de alguns de seus teóricos, como ideologia, ou seja,
abordagem normativa do direito. Quando posto em
termos ideológicos, o juspositivismo estatui o dever
moral de obediência ao direito positivo, independenRevista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau –
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Neoconstitucionalismo e Juspositivismo: superação ou complementaridade?
177
temente de seu conteúdo (versão forte do positivismo
ideológico), ou o dever moral de obediência ao direito
positivo, desde que o mesmo conduza aos objetivos
sociais propostos, independentemente de sua justiça
(versão fraca do positivismo ideológico). Nesse particular, Nino observa que
[...] la tesis que estamos considerando no es
de índole conceptual sino que involucra una
posición ideológica o moral. Ella combina
espuriamente una definición de derecho en
términos puramente fácticos, como la que
los positivistas propugnan (por ejemplo, “el
derecho es el conjunto de normas impuestas
por los que tienen el monopolio de la fuerza
en una sociedad”) con la idea iusnaturalista
de que toda norma jurídica tiene fuerza obligatoria moral (idea que es coherente con la
posición iusnaturalista de que una regla no
es jurídica si no satisface exigencias morales
o de justicia) (NINO, 1980, p. 33).
O próprio Bobbio aduz que o único a quem se
pode atribuir a defesa da versão forte do positivismo
ideológico é Thomas Hobbes, mesmo assim com ressalvas (BOBBIO, 1995, p. 228); segundo o autor italiano, a versão fraca do positivismo ideológico pode
ser mais frequentemente encontrada entre os juspositivistas, entretanto
[...] neste caso são injustificadas as críticas
que da extremidade jusnaturalista foram
a ele dirigidas, pois a versão moderada da
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178
Rodrigo Andrade de Almeida
ideologia juspositivista não leva em absoluto à estatolatria e ao totalitarismo político
(BOBBIO, 1995, p. 236).
A despeito da defesa do juspositivismo feita por
Bobbio, inúmeras foram as críticas dirigidas a essa
doutrina, sobretudo após do fim da Segunda Grande
Guerra, por considerar-se que sua declarada neutralidade axiológica teria legitimado juridicamente o regime nazi-fascista, contribuindo para a perpetração das
atrocidades imputadas àqueles regimes. Segundo esses críticos, o direito não pode ser analisado a despeito
de seu fundamento moral, pois não é desejável e, mais
ainda, é perigoso admitir a existência de uma ordem
jurídica que não seja comprometida com a realização
da justiça e não esteja arrimada no respeito de defesa
de direitos fundamentais mínimos, consubstanciados
na Declaração Universal dos Direitos Humanos, de
dezembro de 1948. O juspositivismo, acusado de realizar a separação entre o direito e a moral, e de assim
funcionar como instrumento do nazi-fascismo, é desacreditado como legítima teoria do direito, e um novo
paradigma passa a ser construído.
Esse “novo” paradigma encontra fundamento da Declaração Universal dos Direitos do Homem, e na inclusão, no corpo das constituições do
pós-guerra, de valores e direitos fundamentais tidos
como indispensáveis a todo ser humano. Declarando a supremacia normativa da Constituição e a fundamentalidade dos direitos individuais ali previstos,
os teóricos passam a defender a adequação de todo
o ordenamento jurídico aos ditames constitucionais,
em um movimento que se chamou de constitucioRevista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau –
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Neoconstitucionalismo e Juspositivismo: superação ou complementaridade?
179
nalização do direito, e a teoria que lhe deu suporte, de neoconstitucionalismo. Nesse sentido, e em
síntese, observam Oto Duarte e Susanna Pozzolo:
O Estado Constitucional contemporâneo,
ao contrário, vê: (1) a supremacia da Constituição sobre a lei ordinária e, portanto,
(2) a subordinação da vontade legislativa
ao conteúdo de justiça constitucionalmente
previsto: a Constituição não constitui um
mero invólucro político e de inspiração para
o sistema, mas sim introduz um vínculo substancial à criação do direito positivo, que
é (3) rígida e (4) garantida. A capacidade
permeável do texto fundamental, pleno de
princípios e de conteúdos de valores, irradiase por todo o ordenamento jurídico e determina a sua constitucionalização. Logo, (5) a
aplicação direta da Constituição às relações
privadas, o que implica (6) a imposição de
obediência diretamente aos cidadãos, e não
mais somente aos órgãos do Estado (DUARTE e POZZOLO, 2006, p. 87).
A partir da identificação das características dos
novos ordenamentos jurídicos europeus do pós-guerra, acima apontadas, os teóricos do direito começam a
decretar a morte do juspositivismo, por considerá-lo
metodologicamente incapaz de compreender e explicar essa nova conformação do direito ocidental capitalista (COMANDUCCI, 2005, p. 82-3). Conforme a
observação de Giorgio Pino,
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180
Rodrigo Andrade de Almeida
Fra i diversi elementi di complessità che
caratterizzano gli ordinamenti giuridici degli Stati contemporanei, l’attenzione è spesso
concentrata sulle novità introdotte nel panorama delle fonti del diritto dalle moderne
costituzioni rigide, novità tali da indurre i
più a parlare di una nuova forma di Stato,
lo Stato costituzionale; il diritto costituzionale (contemporaneo) viene assunto come
banco di prova dalle nuove teorie antipositiviste per dimostrare l’incapacità teorica
del vecchio positivismo giuridico a comprendere la struttura e l’essenza stessa degli ordinamenti giuridici contemporanei; di
conseguenza, si sottolinea l’esigenza di un
approccio nuovo ai problemi classici della
teoria e della filosofia del diritto (ad esempio: il rapporto tra diritto e morale, la teoria
dell’interpretazione, i compiti della scienza
giuridica, la tutela dei diritti, la teoria della
sovranità) (PINO, 1999, p. 203).
Assim, uma série de críticas passa a ser dirigida
ao juspositivismo, sobretudo no que toca ao seu fundamento metodológico da separação conceitual entre
direito e moral. Passa-se a construir uma tradição teórica anti-positivista, genericamente chamada de neoconstitucionalismo, por conta do papel desempenhado
pela Constituição no centro dessa teoria. Resta analisar, conforme far-se-á no item subseqüente, os contornos dessa proposta teórica.
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Neoconstitucionalismo e Juspositivismo: superação ou complementaridade?
181
3 DO NEOCONSTITUCIONALISMO AO
JUSPOSITIVISMO
Conforme explicitou-se no item precedente, o neoconstitucionalismo fez ressurgir a discussão acerca das relações entre o ordenamento jurídico e os anseios sociais,
entre o direito e a justiça. Evidenciou-se, também, a grande
diversidade de posições teóricas que caracterizam o movimento, conforme observa Miguel Carbonell:
Lo que haya de ser el neoconstitucionalismo en su aplicación práctica y en su dimensión teórica es algo que está por verse.
No se trata, como se acaba de apuntar,
de un modelo consolidado, y quizá ni siquiera pueda llegar a estabilizarse en el
corto plazo, pues contiene en su interior
una serie de equilibrios que difícilmente
pueden llegar a convivir sin problemas
(CARBONELL, 2005, p. 11).
Assim, analogamente ao que se fez na análise do juspositivismo, adotar-se-á o modelo meta-teórico proposto
por Paolo Comanducci (2005, p. 75-98; DUARTE e POZZOLO, 2006, p. 24) que, tendo como base as três perspectivas do juspositivismo apresentadas por Bobbio, analisadas
no item anterior, aponta as características do neoconstitucionalismo como método de estudo, como teoria e como
ideologia do direito.
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182
Rodrigo Andrade de Almeida
3.1 Perspectivas do neoconstitucionalismo
3.1.1 Neoconstitucionalismo teórico
Em sua construção teórica, o neoconstitucionalismo parte do pressuposto de que o método e a teoria
juspositivista são insuficientes para compreender os
sistemas jurídicos contemporâneos (COMANDUCCI,
2005, P. 83). Sustentam essa tese com o argumento
de que as principais características do método juspositivista, quais sejam, o estatalismo, o legicentrismo
e o formalismo interpretativo tornaram-se obsoletas,
em face do novo contexto histórico dos países democráticos ocidentais (DUARTE e POZZOLO, 2006, p.
87-8). Propõem, assim, os teóricos neoconstitucionalistas, uma nova teoria do direito, arrimada em novos
pressupostos metodológicos.
Nesse intento, e a partir desse diagnóstico, os
neoconstitucionalistas seguem dois caminhos distintos: (1) propõem uma teoria que funciona como uma
continuação do juspositivismo, a partir da ampliação
do seu objeto, numa espécie de adequação do positivismo jurídico ao novo contexto histórico do pósguerra, adotando como objeto de estudo o modelo descritivo da constituição como norma; ou (2) propõem
uma teoria completamente diferente da juspositivista,
por considerarem o objeto de estudo substancialmente
diferente, requerendo, portanto, a adoção de uma metodologia completamente diversa, já que tomam como
objeto o modelo axiológico da constituição como
norma (COMANDUCCI, 2005, p. 83). Neste segundo caso, trata-se menos de uma teoria do que de uma
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Neoconstitucionalismo e Juspositivismo: superação ou complementaridade?
183
ideologia, razão pela qual Comanducci analisa suas
características ao tratar do neoconstitucionalismo ideológico. Essa é, também, a compreensão de Susanna
Pozzolo, para quem:
Pode-se questionar essa reconstrução
“científico-descritiva”, que torna necessária
a escolha pelo neoconstitucionalismo, senão
outro, porque isso que vem apresentado
como um objetivo do modelo institucional
pode ser reconstruído com uma peculiar
concepção de Constituição. A adoção do
modelo prescritivo da Constituição como
norma não é uma necessidade, mas uma escolha: o modo de conceber o papel e a função da Constituição é o que determina a reconstrução do modelo positivo (DUARTE e
POZZOLO, 2006, p. 88).
Os neoconstitucionalistas teóricos que adotam o
modelo descritivo de constituição consideram, em geral, que o que diferencia sua interpretação em relação
à legislação infraconstitucional é o seu grau, e não sua
qualidade. Nesse caso, contudo, uma vez que se aceita a conexão somente contingente (e não necessária,
como propugna o neoconstitucionalismo ideológico)
entre o direito e a moral, a teoria neoconstitucionalista
não é incompatível com o juspositivismo metodológico, “[...] al contrario, podríamos decir que es su hijo
legítimo” (COMANDUCCI, 2005, p. 87).
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Rodrigo Andrade de Almeida
3.1.2 Neoconstitucionalismo ideológico
O neoconstitucionalismo ideológico, além de
descrever as conquistas oriundas do processo de constitucionalização do direito, valora-os positivamente e
propugna sua defesa e ampliação. Adota, assim, o modelo axiológico da constituição como norma, a partir
da pressuposta conexão necessária entre direito e moral, fato que geraria no indivíduo a obrigação moral de
obediência às normas constitucionais e infraconstitucionais em conformidade com aquelas, aproximando
essa concepção à do positivismo ideológico e, portanto, podendo-se aplicar-lhe as mesmas críticas dirigidas a este (COMANDUCCI, 2005, p. 85-6).
O principal problema do neoconstitucionalismo
ideológico é, contudo, a diminuição do grau de segurança jurídica como consequência do aumento da
indeterminação ex ante, em decorrência da interpretação moral da constituição e da técnica de ponderação
dos princípios constitucionais. Caso existisse uma
moral objetiva, conhecida e observada pelos juízes, e
caso estes construíssem sempre um sistema integrado
de direito e moral, internamente consistente, tal indeterminação poderia ser reduzida. Entretanto, essas
condições não são observadas na prática (COMANDUCCI, 2005, p. 91-2).
Em suma, enquanto o positivismo ideológico tinha como principal objetivo proteger o sistema jurídico moderno de supostos riscos de retorno a concepções
jurídicas pré-modernas, a finalidade precípua do neoconstitucionalismo ideológico é, segundo Comanducci,
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Neoconstitucionalismo e Juspositivismo: superação ou complementaridade?
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[...] la adecuación del Derecho a los
cambios sociales, tomar decisiones “al por
mayor”, ofrecer criterios generales a los órganos inferiores, establecer metas de reforma social, la delegación de poderes para determinar el contenido del Derecho, es decir,
en general, la hetero y/o auto-atribución a
los jueces de una parte del poder normativo,
etcétera (COMANDUCCI, 2005, p. 93).
3.1.3 Neoconstitucionalismo metodológico
Em sua feição metodológica, o neoconstitucionalismo considera os princípios constitucionais e os
direitos fundamentais como a ponte entre o direito e a
moral, donde extraem a tese da sua conexão, conceitual ou justificatória (PINO, 1999, p. 213-4). Isso significa que “[...] cualquier decisión jurídica, y en particular la decisión judicial, está justificada si deriva,
en última instancia, de una norma moral” (COMANDUCCI, 2005, p. 94) ou, dito em outras palavras,
O moralismo jurídico faz depender o reconhecimento da validade das normas jurídicas
e sua interpretação de elementos vinculados
a valores (e correspondentes mandamentos)
de origem moral. Admite-se, assim, a tese da
necessária conexão (junção, vinculação) entre direito e moral.
Dessa forma, o moralismo jurídico adota
uma perspectiva normativa, afirmando que
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Rodrigo Andrade de Almeida
o direito deve estar vinculado à moral. Isto
é um mandamento endereçado tanto ao legislador como ao intérprete/aplicador do direito, devendo todos levar em consideração
a moral na tomada de decisões. Isto significa
que os moralistas propugnam pela correção
do direito nos dois sentidos do termo (DIMOULIS, 2006, p. 87-8).
Essa fulcral distinção entre os métodos juspositivista e neoconstitucionalista é também analisada por
Susanna Pozzolo:
Convém notar que, desse modo, o conceito
descritivo de validade (pertinência) cede espaço a favor de um conceito normativo, já
que a afirmação sobre a validade de uma
norma comporta a expressão de um juízo de
dever ser que implica razões para justificar
ações ou decisões de natureza moral [...]
Esta última exigência permite pôr em evidência a diversa orientação entre a abordagem do tipo juspositivista e aquela do tipo
neoconstitucionalista: enquanto o primeiro
visa descrever o funcionamento do direito, o
segundo visa justificar ou oferecer os critérios para julgar justificado o direito; enquanto
o primeiro não diz nada sobre a obrigação
política de respeito ao direito, o segundo a
pressupõe e por isso prescreve a forma e o
conteúdo que o direito deve ter. Para o juspositivismo, “o direito vale porque vale, se
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Neoconstitucionalismo e Juspositivismo: superação ou complementaridade?
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vale; explicar por qual razão será tarefa dos
sociólogos, dos filósofos, dos homens políticos, dos moralistas; não interessa porque
vale o direito, mas, se vale; que coisa vale
como direito em certas circunstâncias” (DUARTE e POZZOLO, 2006, p. 83-4).
Do ponto de vista epistemológico, esse posicionamento apresenta sérios problemas. Se a validade de
uma norma jurídica depende da identificação de seu
suporte moral, deve-se questionar: norma moral em
que sentido (COMANDUCCI, 2005, p. 94)?
Dimitri Dimoulis (2006, p. 167-8), após apresentar o conceito de moral, identifica três possíveis
sistemas morais: (1) moral dominante, entendida
como o sistema de normas de conduta e suas respectivas sanções, vigorando em uma dada sociedade e momento histórico; (2) ética particular, significando os
valores morais aceitos e seguidos por cada indivíduo;
e (3) moral crítica, designando os valores obtidos por
meio de investigação e crítica filosófica aos demais
sistemas morais. A esses três sistemas morais, Comanducci acrescenta um quarto, composto por uma moral
objetiva verdadeira, cuja suposta existência é propugnada pelas teorias universalistas (COMANDUCCI,
2005, p. 95).
Em termos taxionômicos, os quatro sistemas
morais apontados apresentam, basicamente, duas espécies de solução para o problema: soluções objetivistas (moral objetiva verdadeira e moral crítica) e soluções subjetivistas (ética particular ou moral individual
e moral dominante ou positiva).
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Rodrigo Andrade de Almeida
As soluções objetivistas apresentam problemas
epistemológicos importantes: como não há consenso
ou certeza acerca da efetiva existência de uma moral
objetiva verdadeira, e não há um sistema moral crítico único (DIMOULIS, 2006, p. 169), no fim das contas, o intérprete/aplicador do direito teria de escolher,
a seu gosto, o sistema moral que julga verdadeiro ou
adequado para validar a norma jurídica a ser interpretada/aplicada. Isso reduziria ambas as propostas a uma
escolha pessoal do juiz, ou seja, a uma questão de moral individual (COMANDUCCI, 2005, p. 95).
O mesmo se pode dizer da solução subjetivista
que propugna o recurso à moral positiva: ainda que
se considerasse possível, nas sociedades hodiernas, a
existência de homogeneidade moral, ter-se-ia como
pressuposto a existência de um juiz-sociólogo, um intérprete que tivesse os instrumentos necessários para
identificar, de forma exata, o conteúdo das normas
morais de sua sociedade. Como as sociedades contemporâneas caminham, cada vez mais, para a heterogeneidade de sistemas morais (DIMOULIS, 2006,
p. 187), no fim das contas, o juiz acaba fazendo uma
escolha, de cunho pessoal, daquele sistema que julga
ser o mais adequado, o que também reduz a proposta
do recurso à moral positiva à utilização, na prática, de
uma moral individual (COMANDUCCI, 2005, p. 97).
As incongruências e os riscos dessa escolha metodológica são explicitados por Susanna Pozzolo:
[...] se a reflexão moral individual de um
único juiz (ou de alguns “sábios”) é considerada superior à discussão intersubjetiva,
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Neoconstitucionalismo e Juspositivismo: superação ou complementaridade?
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qual o sentido de se manter um procedimento para a tomada de decisões coletivas
do tipo democrático? A manutenção da Constituição, se entendida como documento
autoveiculante estabelecido pelos cidadãos,
não teria razão de ser porque o juízo moral
de um único juiz seria sempre mais justo do
que aquilo que é definido pelas normas constitucionais. E existem ainda outros problemas. Um dos quais é do tipo salvaguarda
institucional: quem controla o controlador?
[...] não havendo atualmente nenhum acordo
sobre o conjunto determinado de normas
morais, a operação que transfere para esse
plano os direitos, retirando-os da esfera jurídica, cria a ilusão de sua segurança, ocultando a sua intrínseca fragilidade (DUARTE
e POZZOLO, 2006, p. 101-2).
Isso porque, ainda segundo Pozzolo,
[...] A perspectiva neoconstitucionalista se
baseia na premissa do “bom juiz dotado de
bom senso”. Contudo, do ponto de vista consitucionalista-legalista, seria melhor adotar a
perspectiva do “bad man”, já que o direito
apresenta duas faces: uma de garantia e outra
de opressão (idem, p. 103).
Ao analisar as críticas neoconstitucionalistas
à tese da separação conceitual entre direito e moral,
Écio Duarte conclui:
Revista
Revista
do Curso
da Faculdade
de Direito
deda
Direito
Faculdade
Maurício
Maurício
de Nassau
de Nassau
– –
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191-208 – 2010
2008
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Rodrigo Andrade de Almeida
Nesse sentido, pensamos que a crítica à separação entre direito e moral tenha mais motivações políticas que teóricas. O neoconstitucionalismo tem se tornado porta-voz dessas
exigências de fundação, argumentação e justificação do direito e, também, das eleições
políticas que estão por trás (idem, p. 56).
Todos esses argumentos indicam que o neoconstitucionalismo, em sua dimensão metodológica, é menos adequado do que o juspositivismo metodológico,
pelas razões explicitadas por Dimoulis:
O PJ [Positivismo Jurídico] stricto sensu é
superior às teorias moralistas porque evita
duas tendências equivocadas. Por um lado,
a tendência anarquista que autoriza o indivíduo a desobedecer ao direito se o considerar injusto e/ou imoral (na versão pura do
anarquismo, isso deve acontecer sempre,
pois todo direito é opressor e injustificado).
Por outro lado, a tendência apologética que
aceita, na prática, qualquer conteúdo jurídico pelo simples fato de ter sido criado pelas
autoridades que detêm o poder.
A abordagem juspositivista possui a vantagem política da sinceridade. Separa a
constatação da validade de sua crítica, não
disfarça a discordância nem cria a falsa
impressão que o aplicador pode corrigir a
norma insatisfatória ou encontrar a solução
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Neoconstitucionalismo e Juspositivismo: superação ou complementaridade?
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moralmente adequada. Rejeita-se aqui a
tendência moralista de “ancorar a juridicidade na aprovação ideológica dos conteúdos
do ordenamento jurídico”. Devemos, como
dizia Luhmann, entender que o combate dos
regimes autoritários não passa pela tentativa
de corrigir seu direito mediante interpretação: “o importante é a vigilância política e
não a vigilância justeórica” (DIMOULIS,
2006, p. 203-4).
Tem-se, assim, que a separação conceitual entre
direito e moral propicia uma compreensão mais adequada de ambas as esferas, permitindo ao estudioso
e/ou aplicador do direito a crítica do próprio direito,
o que seria impossível a partir das perspectivas do
positivismo ideológico, do jusnaturalismo e do neoconstitucionalismo metodológico, conforme explicita
Santiago Nino:
[...] Cuando uno dice que un objeto es un
mal cuchillo, o que una persona es un mal
profesor, no dice que sea un mal objeto o
una mala persona, sino que son malos como
cuchillo o como profesor. Si el mero hecho
de ser malos los excluyera de la clase de los
cuchillos o de los profesores, ya no podríamos criticarlos por ser un cuchillo o profesor
que no satisfacen las condiciones para ser un
buen exponente de su clase. Lo mismo ocurre
con el concepto de derecho, si decidiéramos
que éste sólo es aplicable a sistemas que son
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buen o justos. No podríamos hacer comparaciones entre un sistema jurídico bueno y otro
malo, porque este último sistema no sería un
sistema jurídico. De este modo, obscurecemos los rasgos fácticos comunes que tienen
tanto el uno como el otro sistema y dejamos
de percibir con claridad cuál es el peculiar
disvalor que puede presentar un sistema con
esas propiedades fácticas (NINO, 1980, p.
41-2).
A distinção conceitual entre direito e moral,
portanto, apresenta a virtude de possibilitar uma melhor compreensão e crítica do direito, razão pela qual
o método juspositivista ainda é preferível ao neoconstitucionalista, o que não implica em, necessariamente,
adotar-se também a ideologia juspositivista (PINO,
1999, p. 208). Nas palavras de Bobbio,
[...] Com efeito, a assunção do método positivista não implica também na assunção da
teoria juspositivista. A relação de conexão
entre o primeiro e a segunda é uma relação puramente histórica, não lógica [...]
Do mesmo modo, a assunção do método e
da teoria juspositivista não implica a assunção da ideologia do positivismo ético. Isso
é demonstrável seja no plano lógico, visto
que nunca é possível extrair de um fato um
juízo de valor deste, seja no plano histórico,
pois a teoria juspositivista parece geralmente
ligada a concepções éticas relativistas bem
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distantes da concepção do Estado ético e das
outras concepções éticas que comportam o
princípio da absoluta obediência à lei (BOBBIO, 1995, p. 234).
Da análise feita até aqui permite-se, portanto,
concluir pela possibilidade de adotar-se o método e a
teoria juspositivista, concomitantemente à ideologia
neoconstitucionalista (PINO, 1999, p. 204), permitindo-se, assim, distinguir uma análise estruturalista de
outra funcionalista do direito, conforme abordar-se-á
no tópico seguinte.
3.2 JUSPOSITIVISMO E NEOCONSTITUCIONALISMO:
ESTRUTURALISMO E FUNCIONALISMO NA TEORIA
DO DIREITO
Observa Bobbio, em obra originalmente publicada
em 1970, que
Se aplicarmos à teoria do direito a distinção
entre abordagem estruturalista e abordagem
funcionalista, da qual os cientistas sociais fazem grande uso para diferenciar e classificar
as suas teorias, não resta dúvida de que, no
estudo do direito em geral (de que se ocupa a teoria geral do direito), nesses últimos
cinqüenta anos, a primeira abordagem prevaleceu sobre a segunda (BOBBIO, 2007, p. 53).
Bobbio refere-se, sem a menor sombra de dúvida, à
teoria juspositivista do direito. Segundo o citado autor no
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excerto transcrito, em sede de teoria do direito e, explicite-se aqui, teoria juspositivista do direito, a abordagem estruturalista tem prevalecido, em detrimento de abordagens
funcionalistas.
Uma teoria estruturalista caracteriza-se por sua natureza descritiva, isto é, pelo fato de buscar analisar e descrever seu objeto de estudo tal qual se apresenta na realidade,
ou seja, tal qual ele “é” de fato, independentemente do juízo
que o pesquisador ou o leitor possa fazer dessa realidade.
Nesse sentido, o pesquisador busca manter uma postura
neutra diante do seu objeto, analisando-o da forma mais objetiva possível e evitando enunciar juízos de valor.
Diferentemente, uma teoria funcionalista tem natureza normativa pois, ao buscar definir a função de seu objeto
de estudo, termina por mostrá-lo não como é de fato, mas
como deveria ser para que se tornasse apto a realizar a função que lhe foi atribuída. Dessa forma, o pesquisador se
posiciona acerca do objeto, emite juízos de valor e procura
influenciar a realidade que está pesquisando.
Destarte, parece óbvia a conclusão de que a teoria
juspositivista do direito é uma teoria estruturalista do direito (BOBBIO, 2007, p. 54). De fato, os juspositivistas não
fazem mais do que analisar a estrutura do direito, independentemente de sua função para a sociedade, e esse é o intuito declarado do próprio positivismo jurídico.
O século XIX, berço do positivismo jurídico, caracterizou-se pela rígida divisão do trabalho entre os juristas,
de acordo com os três principais problemas da teoria do
direito: o problema ontológico, o problema deontológico, e
o problema fenomenológico, respectivamente incumbidos
ao cientista do direito, ao filósofo do direito e ao sociólogo
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Neoconstitucionalismo e Juspositivismo: superação ou complementaridade?
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(BOBBIO, 2001, p. 45-68). O cientista do direito, portanto,
assume a tarefa de estudar o direito tal qual é na realidade,
independentemente de sua justiça ou eficácia, e o faz através do método juspositivista. O próprio Kelsen, na Teoria
Pura do Direito, declara essa pretensão, conforme o observa
Norberto Bobbio:
Na obra de Kelsen, não só a análise funcional
e estrutural estão declaradamente separadas,
como esta separação é a base teórica sobre
a qual ele funda a exclusão da primeira em
favor da segunda. Como todos sabem, para o
fundador da teoria pura do direito, uma teoria científica do direito não deve se ocupar
da função do direito, mas tão-somente dos
seus elementos estruturais. A análise funcional é confiada aos sociólogos e, talvez, aos
filósofos [...] (BOBBIO, 2007, p. 54).
O juspositivismo, assim, declara explicitamente tratar-se de uma teoria estruturalista do direito. O neoconstitucionalismo, partindo da definição moralizante do direito e
pretendendo conferir-lhe legitimidade por meio da realização de uma determinada pauta moral, constitui uma teoria
funcionalista do direito.
A função do direito, segundo a construção neoconstitucionalista, muito além da função garantidora da paz social, conforme definiam os juspositivistas, é a realização e
efetivação de uma gama de valores morais calcados na ideia
de dignidade humana, valor que passa a ocupar o mais alto
grau dentre os valores norteadores dos sistemas jurídicos
ocidentais capitalistas contemporâneos.
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Rodrigo Andrade de Almeida
Pode-se extrair do exposto que a função do direito é,
para os teóricos neoconstitucionalistas, a defesa, proteção
e realização da dignidade humana, entendida como noção
básica de moralidade, da qual todos os demais direitos fundamentais decorrem.
Juspositivismo e neoconstitucionalismo são, assim,
respectivamente, teoria estruturalista e teoria funcionalista
do direito. Ambas as abordagens são extremamente importantes para uma melhor compreensão do fenômeno jurídico, e o estudo das dimensões de cada uma delas demonstrou
que não existe, necessariamente, relação de mútua exclusão
entre ambas. Ao contrário, a adoção do método juspositivista, caracterizado pela distinção conceitual entre direito
e moral, juntamente com a ideologia neoconstitucionalista,
caracterizada pela tentativa de maximizar os direitos fundamentais e a pauta moral constitucionalizada, com arrimo no
princípio da dignidade humana, pode contribuir para uma
melhor compreensão do direito, tal qual é, e uma mais adequada definição dos objetivos que o mesmo deve realizar.
Juspositivismo e neoconstitucionalismo, assim, são teorias
complementares, e não mutuamente excludentes, como defendem alguns teóricos de ambos os lados.
CONCLUSÃO
O presente trabalho procurou analisar as principais
teorias do direito na modernidade, de tal forma que se pudesse compreender a atual discussão acerca das relações
entre direito e moral.
Para tanto, partiu do estudo do jusnaturalismo moderno, de matiz racionalista, passou pela apresentação do jusRevista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau –
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Neoconstitucionalismo e Juspositivismo: superação ou complementaridade?
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positivismo e analisou a proposta neoconstitucionalista, te
tal forma que se pudesse compreender o fundamento subjacente de cada uma dessas abordagens do direito, bem como
as motivações políticas e ideológicas que as engendraram.
Procurou, ainda, distinguir teorias estruturalistas ou descritivas de teorias funcionalistas ou normativas, a fim de que
se pudesse classificar adequadamente as teorias estudadas
e, assim, perceber de forma mais acurada o papel e os limites de cada uma delas.
Nesse sentido, constatou-se que o jusnaturalismo correspondeu aos anseios de legitimação de uma nova ordem,
fundamentada na razão, em detrimento do fundamento de
viés religioso outrora vigente na Europa medieval. A teoria
jusnaturalista moderna pressupunha a existência de valores
morais ou princípios de justiça eternos e imutáveis, universalmente válidos, naturalmente presentes na consciência e
acessíveis ao homem através da razão. Destarte, qualquer
norma de direito positivo que viesse de encontro às normas
de direito natural seria inválida e, portanto, não seria direito.
Não obstante o êxito do jusnaturalismo moderno, no
sentido de legitimar a ordem burguesa que se instaurava,
o alto grau de indefinição dos direitos naturais e a necessidade de sua adequada definição, para fins de proteção por
parte do Estado moderno, levaram à codificação do direito,
e à substituição do costume pela lei como fonte primária do
direito. Desse movimento, de viés igualmente racionalista
e inspiração iluminista, decorreu o chamado exegetismo,
tradição hermenêutica de natureza normativa, que pregava
a estrita aplicação da lei pelo juiz, por meio de mera subsunção. Tal postura foi duramente criticada pelo historicismo alemão que, contradizendo as bases racionalistas e uniRevista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau –
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versalistas do exegetismo francês, defendeu a aplicação do
direito por meio da pesquisa dos valores sociais vigentes,
o chamado Volksgeist (espírito do povo), criando as bases
do sociologismo que, décadas mais tarde, seria fundamental
para o desenvolvimento do positivismo jurídico.
O positivismo jurídico nasce, portanto, da necessidade de se construir uma teoria estruturalista do direito, de natureza descritiva, nos moldes do método científico em voga
ao longo do século XIX e parte do século XX.
Para tanto, em termos metodológicos, propõe a separação conceitual entre direito e moral, a fim de que se
possa analisar o direito de forma neutra, descrevendo-lhe as
características fáticas, a despeito da função que exerça na
sociedade. Assim, o conceito de direito não deve fazer alusão a seu conteúdo, mas tão-somente à sua forma, e caracteriza-se, portanto, por ser um sistema de normas postas pela
autoridade estatal competente, segundo as normas de estrutura que prescrevem a criação de normas jurídicas válidas.
O direito pode, destarte, ter qualquer conteúdo, desde que
sua criação obedeça aos requisitos estatuídos pelo próprio
ordenamento, independentemente de ser justo ou injusto.
Em termos teóricos, o juspositivismo se coloca a tarefa de elaborar uma teoria geral do direito, composto por
uma teoria da norma jurídica e uma teoria do ordenamento
jurídico.
Ao contrário do que inicialmente propôs, o juspositivismo também se constituiu como ideologia, consubstanciada na idéia de aplicação obrigatória do direito, independentemente de seu conteúdo. O direito, segundo essa perspectiva, sendo válido, possuía força moral obrigatória, não
cabendo ao intérprete perquirir a sua moralidade ou justiça.
Após o fim da Segunda Grande Guerra, e em reação às
atrocidades perpetradas pelos regimes nazi-fascistas, os teóRevista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau –
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Neoconstitucionalismo e Juspositivismo: superação ou complementaridade?
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ricos do direito começam a propugnar a criação de uma nova
teoria do direito, arrimada em valores como a dignidade humana, a vida, a liberdade e a defesa dos direitos fundamentais, constitucionalmente protegidos. Surge, assim, o neoconstitucionalismo que, assim como o juspositivismo, apresenta três faces: metodologia, teoria e ideologia do direito.
Como metodologia, o neoconstitucionalismo prega a
conexão conceitual entre direito e moral, assemelhando-se,
nesse sentido, à tradição jusnaturalista. Não é correto, contudo, afirmar que o neoconstitucionalismo seja uma forma
de retorno ao jusnaturalismo, pois este é essencialmente
universalista em matéria ética, enquanto o neoconstitucionalismo não parte de uma perspectiva universalista, ao contrário, defende a realização de valores que considera historicamente delimitados.
A conexão conceitual entre direito e moral, defendida
pelo neoconstitucionalismo, apresenta problemas para uma
adequada compreensão do fenômeno jurídico. Admiti-la
significa excluir da teoria do direito a possibilidade lógica de criticar seu objeto, uma vez que somente seria conceituado como direito aquilo que fosse considerado justo
e perfeito. Dessa consequência, exsurge outra: a de definir
qual perspectiva moral se deve ter em conta ao se buscar
uma definição para o direito. As sociedades contemporâneas caracterizam-se pela pluralidade de sistemas morais,
o que torna extremamente difícil e problemático o trabalho
do estudioso do direito, já que não se pode falar em superioridade de um sistema moral em relação a outro. Nesse
sentido, a proposta metodológica juspositivista permanece
sendo a mais adequada para a melhor compreensão do fenômeno jurídico.
Como teoria, o neoconstitucionalismo não representa, necessariamente, um contraponto ao juspositivismo teRevista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau –
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órico. Pode ser, ao contrário, seu complemento, sua atualização em face das transformações ocorridas no direito a
partir da segunda metade do século XX. Desde que se adote
o modelo descritivo da constituição como norma, a teoria
neoconstitucionalista complementa a teoria juspositivista, ao ampliar a noção de norma jurídica para englobar os
princípios constitucionais e as regras de textura aberta. Se,
ao contrário, adota-se o modelo normativo da constituição
como norma, deixa-se de ter uma teoria, para se ter uma
abordagem ideológica do direito.
Como ideologia o neoconstitucionalismo propugna a
defesa e realização de uma pauta moral constitucionalizada, arrimada no princípio da dignidade humana. Os valores
morais e princípios de justiça positivados em sede constitucional são aqueles inspirados nas declarações de direitos
humanos, e passam a ter eficácia horizontal, aplicando-se
também às relações privadas, e não mais somente às relações verticais entre o indivíduo e o Estado.
Não parece restar dúvida de que a ideologia neoconstitucionalista é pautada na traumática experiência das Grandes Guerras do século XX, e busca, de alguma forma, evitar
que as atrocidades perpetradas durante aqueles conflitos se
repitam. Nesse sentido, desempenha uma função importante, sobretudo quando fornece elementos teóricos para a
construção de uma teoria funcionalista do direito.
Positivismo jurídico e neoconstitucionalismo, portanto, complementam-se para formar uma teoria do direito
que melhor compreenda o direito ocidental capitalista contemporâneo. A metodologia do positivismo jurídico, aliada
à ideologia neoconstitucionalista podem concorrer para a
construção de uma completa teoria do direito, que dê conta
de explicar as características atuais do direito, não só no
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Neoconstitucionalismo e Juspositivismo: superação ou complementaridade?
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momento de sua criação, mas também no que toca ao processo de sua aplicação.
Destarte, ao invés de disputarem o monopólio da verdade sobre o direito, construindo paradigmas isolados e
permanecendo ilhados, mais proveitoso deve ser unirem-se,
no que for possível, o juspositivismo e o neoconstitucionalismo, este como teoria funcionalista, de natureza normativa, aquele como teoria estruturalista, de natureza descritiva
do direito, a fim de que se possa compreender de maneira
mais adequada o fenômeno jurídico, e o mais preciso conhecimento da estrutura do direito, aliado ao debate acerca
de sua função social possam ensejar a sempre tão desejada
aproximação do direito com o ideal de justiça, funcionando,
quiçá, como ponte entre ambos. Afinal, pontes são melhores do que ilhas.
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Sobre a prova na reforma processual penal
205
SOBRE A PROVA NA REFORMA
PROCESSUAL PENAL
Roque de Brito Alves
Doutor em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade
Federal de Pernambuco, Professor de Direito Penal do Curso de Direito da Faculdade Maurício de Nassau e da Faculdade de Ciências
Humanas de Pernambuco, Membro da Academia Pernambucana de
Letras, Advogado.
RESUMO
O presente artigo traz à baila questões controvertidas acerca da prova no processo penal, máxime sobre uma
perspectiva analítica a partir da reforma proposta no projeto de reforma do Código de Processo Penal em tramitação
no Congresso Nacional. São analisados aspectos dogmáticos e filosóficos, além de apresentada uma contraposição
da legislação nacional comparada com estatutos de outros
países; nesta perspectiva apresenta-se como homenagem À
memória de Nelson Hungria (Brasil), Hans-Heinrich Jescheck (Alemanha), Giuseppe Bettiol (Itália) e Marc Ancel
(França), Mestres da Ciência Criminal Contemporânea que
honraram o autor com amizade e consideração.
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206
Roque de Brito Alves
SUMÁRIO
1. Os textos; 2. Elementos probatórios diferentes; 3.
Síntese sobre a compreensão filosófica de “verdade”; 4. Sobre a “verdade processual”; 5. Compreensão do “in dubio
pro reo”; 6. Direito comparado; 7. Uma conclusão; 8. A
convicção do juiz; 9. Nossa tese fundamental: não existe “a
prova do fato” e sim “a prova de uma versão ou interpretação do fato”.
1. – OS TEXTOS
a) Arts. 413, 414, 415 e 483 da Lei nº 11.689/2008 sobre
a instituição do júri;
b)Arts. 155, 156, 157 e 386 da Lei nº 11.690/2008 sobre
a prova;
c) Lei nº 11.719/2008: arts. 383 e 384: Aditamento da
Denúncia (“emendatio libelli”) e alteração da acusação (“mutatio libelli”);
d)O Projeto de Lei do Senado nº 156 de 2009 sobre o
Novo Código de Processo Penal: Título VIII do Livro
I – “Da Prova” –: do art.162 até o art. 251 (89 artigos):
1.As provas serão propostas pelas partes” (art.
162) porém o juiz poderá esclarecer dúvida sobre a prova produzida antes de proferir a sentença (par. un. do art. 162);
2.Não se admite as provas produzidas por meios
ilícitos, direto ou indiretamente (art. 164): teoria dos frutos da árvore envenenada (“fruits of
the poisonous tree”);
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Sobre a prova na reforma processual penal
207
3.A convicção do juiz será pela livre apreciação
das provas em juízo e deve ser fundamentada
(art. 165);
4.“A existência de um fato não pode ser inferida
de indícios, salvo quando forem graves, precisos e concordantes” (Parágrafo Primeiro do art.
165);
5.As declarações de co-autor ou participe de crime “só terão valor se confirmadas por outro elemento de prova que atestem a sua credibilidade” (parágrafo segundo do art. 165); não existe
o interrogatório do acusado como meio de prova porém existem as declarações da vítima a tal
respeito (art. 187);
6. O projeto do Novo CPP não tem dispositivo ou
artigo sobre o ônus da prova porém em nosso
entendimento o mesmo cabe a quem alega, a
quem afirma e no Processo Penal é o M.P. que
tem que provar a materialidade do fato, a autoria (ou co-autoria ou participação) e a culpabilidade e a defesa que nega isso não tem de provar, como por exemplo não tem de provar que
o acusado agiu protegido por uma justificativa
ou uma dirimente penal (causa de exclusão de
crime ou de exceção de pena). Em verdade, se o
atual inciso VI do art. 386, com a nova redação
da Lei 11.690/08 determina que o juiz absolverá o acusado quando “houver fundada dúvida”
da existência de justificativa ou dirimente penal
lógica e juridicamente conclui-se que a defesa não tem de provar nada, basta apresentar-se
uma dúvida a tal respeito e assim o M.P. tem
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Roque de Brito Alves
de provar que o acusado praticou um crime e
tem de ser punido, que o acusado não agiu com
a causa de exclusão de crime ou de isenção de
pena e não que a defesa tem de provar que o
acusado não praticou o fato ilícito ou que não
merece ser punido. Incontestável, assim, que
a acusação tem de provar a materialidade do
fato, a autoria ou participação e a culpabilidade como os elementos fundamentais para uma
condenação e previamente para uma procedência de uma acusação. Quem afirma é quem deve
provar e não quem nega;
7.O projeto exige para pronúncia a existência de
“indícios suficientes de autoria ou participação” (art. 315), não o de simples indício e obviamente a impronúncia em sua ausência ou no
convencimento do juiz (art. 316);
8.Sobre a sentença: no projeto do Novo CPP: a
absolvição em seu art. 410 por 7 (sete) causas
de absolvição, sendo que em caso de ser por
justificativa ou dirimente penal (nº VI do art.
410) ou seja com fundamento nos arts. 23, I,
II, III, 24 e 25: (exclusão de crime) ou isenção
de pena: “arts. 21, 22, 26 e parágrafo primeiro
do art. 28 do Código Penal vigente), ou mesmo
se houver fundada dúvida sobre a sua existência (nº VI do art. 410), o que demonstra que a
defesa não tem de provar que o acusado agiu
amparado por uma dirimente ou uma justificativa penal, basta uma dúvida a tal respeito, a
acusação é que deve provar que o acusado agiu
criminosamente. O texto atual a respeito está no
art. 386 do CPP;
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209
9.Além disso, o nº VII do art. 410 do Projeto determina a absolvição quando não “existir prova
suficiente para a condenação, isto é exige-se
certeza de culpabilidade do acusado que não
deixe margem a nenhuma dúvida ou hipótese
favorável ao acusado;
10. Outras causas de absolvição pelo art. 410:
1. Prova do fato não ter existido; 2. Não haver
prova da existência do fato; 3. O fato é atípico,
não constitue uma infração penal; 4. Está provado que o acusado não concorreu para a infração penal; 5. Não existir prova de que o acusado
concorreu para a infração penal.
Assim sendo, o Projeto do Novo Código de Processo
Penal na parte referente à prova manteve os textos da lei nº
11.690 de 09 de julho de 2008, porém sem o texto sobre
o ônus da prova e também entre os “meios de prova” não
incluiu o interrogatório do acusado, o que é jurídica ou tecnicamente um erro injustificável porém incluiu como tais as
“declarações da vítima” (art. 187).
11.
O Projeto manteve os textos da Lei
11.689/2008 em relação ao procedimento acerca do Tribunal do Júri, art. 309 a 398 do Projeto. Entretanto, essencialmente são diferentes
os quesitos do seu art. 385 que devem ser respondidos pelos jurados que ficaram reduzidos
a três: a) “Se deve o acusado ser absolvido”; b)
“Se existe causa de diminuição de pena alegada
pela defesa”; c) “Se existe circunstância qualificadora ou causa de aumento de pena recoRevista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau –
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nhecidas na pronúncia”. Caso seja respondido
positivamente o primeiro quesito pela maioria
de quatro jurados, a votação será encerrada e
o acusado absolvido, porém se for negado por
maioria o primeiro quesito que é se o acusado
deve ser absolvido, haverá a condenação porém
o juiz tem de indagar os quesitos sobre as causas de diminuição de pena ou as qualificadoras
ou agravantes.
2. ELEMENTOS PROBATÓRIOS DIFERENTES
Tecnicamente, distinguimos os elementos probatórios
que são indispensáveis para uma denúncia, um decreto de
prisão preventiva, uma decisão de pronúncia e uma sentença, respectivamente: indícios leves ou imprecisos de autoria, de co-autoria ou de participação para uma denúncia;
indícios suficiente a tal respeito para um decreto de prisão
preventiva ou uma sentença de pronúncia; prova suficiente,
sinônima de prova cabal, concludente, absoluta, de certeza
para uma sentença criminal condenatória, a qual, em nossa
compreensão, não pode basear-se em prova indiciária ou
indireta que por sua própria natureza não pode gerar certeza
de autoria ou de culpabilidade e sim apenas probabilidade
a tal respeito.
3. SÍNTESE SOBRE A COMPREENSÃO
FILOSÓFICA DE “VERDADE”
Na problemática da verdade, é mais correta a sua
compreensão como “a conformidade do intelecto com a realidade” (com o objeto, a coisa) – “adaequatio intellectus
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et rei” –, e não a sua compreensão contrária ou seja “adaequatio rei et intellectus”, isto é a relação da ideia de verdade
com a ideia do objeto pensado como se a realidade estivesse
“mentalizada em nosso pensamento”. Na matéria, ainda é
válida a fórmula de Aristóteles sobre a verdade: “sustentar, negar aquilo que é afirmar aquilo que não é, é falso,
enquanto afirmar que é e negar o que não é, é verdade”.
Ainda, no século passado, não seria diferente a teoria do
grande filósofo Heidegger ao proclamar que uma proposição ou enunciado é verdadeiro quando o que expressa ou
afirma está conforme com a coisa enunciada ou afirmada.
Por outra parte, filosoficamente conceitua-se “a ignorância” como a ausência de conhecimento, “erro” é o
conhecimento equivocado que não corresponde a uma verdade ou a uma realidade, “mentira” é a dolosa distorção ou
deturpação da verdade, “meia verdade” é a sua não expressão total como pode ser encontrada na prova testemunhal.
Ainda, a “probabilidade” é a ante-sala ou ante-câmara da
verdade, é um “tudo indica” que um certo fato ou resultado
tenha existido ou ocorrido porém ainda não é “a certeza” a
tal respeito.
A moderna Teoria do Conhecimento ou Gnosiologia
(“Theorie de la Connaissance”, “Theory of Knowledge”,
“Erkentnisstheorie”) demonstra que existe obrigatoriamente uma relação ou união entre o sujeito e o objeto (coisa,
realidade), implicando sempre em três elementos: o sujeito
que conhece (cognoscente), o objeto cognoscível e ato de
união entre os dois, iniciando-se o conhecimento através da
percepção, dos nossos sentidos que apreendem a realidade
(Hessen). Então, surge a certeza que é a identificação da
mente com a realidade que gera a ideia verdadeira, e o fato
ou a realidade já está lá ou esteve lá, o fato já existe ou exisRevista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau –
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tiu, é algo objetivo e assim verdadeiros ou falsos serão os
fatos que serão captados ou não apreendidos.
Assim sendo, na Justiça e no Direito, a certeza tem
que estar conforme ou concordando com a realidade dos
fatos, a realidade objetiva, concreta, positiva e ainda na Legislação Processual Penal a certeza que se busca é a judiciária na medida da possível, da alcançável e processualmente válida. Tal verdade judicial não é absoluta, puramente
metafísica é a objetiva ou processualmente válida, possível.
Por outra parte, afirma-se que juridicamente o que não
está nos autos ou não está provado não estaria no mundo.
Em conclusão se filosoficamente a verdade é a conformidade do intelecto (mente) com a realidade (“adaequatio
mentis ad rem”), juridicamente a verdade real ou a verdade
possível é aquela que se ajusta ao fato que já existe ou existiu na demonstração de uma sua versão ou interpretação.
Afinal, a Teoria do Conhecimento como a parte da
Filosofia que trata da origem, da natureza, do valor e dos
limites da nossa faculdade de conhecer ao analisar a problemática da verdade auxilia muito a compreensão jurídica
acerca da verdade processual.
4. SOBRE A “VERDADE PROCESSUAL”
Fala-se muito na doutrina e na jurisprudência que a
finalidade do Processo Penal é a busca da “verdade real” e
a do Processo Civil “a verdade formal”, porém talvez, em
nossa compreensão em vez de falar-se na expressão ou na
obtenção da “verdade real” como a finalidade do Processo
Penal fale-se em termos de “verdade possível” ou verossimilhança com base em um “juízo de probabilidade” devido
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Sobre a prova na reforma processual penal
213
à impossibilidade do ser humano de atingir de uma forma
absoluta o que é a verdade e consequentemente também “a
verdade real” e esta em nossa compreensão seria aquela que
é conforme a um fato real.
5. compreensão do “IN dUbio pro rEO”
Entendemos que com a dúvida não existirá verdadeiramente a prova e não como é costume afirmar-se que “a
prova é precária, é frágil, é insuficiente” pois a dúvida é
a negação da prova, é a sua antítese, com ela a prova inexiste. “Dúvida” e “Prova” são dois vocábulos ou conceitos
incompatíveis entre si, que se excluem ou se negam mutuamente pois a dúvida é inconciliável com a verdade pois
vai eliminar também a certeza, sendo a dúvida um estado
de incerteza, afirma-se alguém é “invadido pela dúvida”,
hesitando entre “um sim e um não”, se um fato é verdadeiro
ou é falso, não podendo portanto haver decisão judicial baseada em dúvida que se opõe à verdade e a certeza. Assim
sendo sustentamos que com a dúvida não existe “prova” e
não somente que a prova é “insuficiente, frágil” impossibilitando uma condenação.
6. DIREITO COMPARADO
Destaquemos que nos três grandes sistemas europeus
contemporâneos de valorização da prova – o “beyond reasonable doubt” inglês, o da “intime conviction” francês, e
o do “libero convincimento del giudice” italiano – é realmente unânime a compreensão de que apenas uma certeRevista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau –
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Roque de Brito Alves
za absoluta (na medida em que o ser humano pode atingir
uma certeza absoluta sobre qualquer coisa ou problema) de
culpabilidade ou de responsabilidade penal pode legitimar
uma condenação criminal, a evidência de culpabilidade
para uma sentença criminal condenatória é uma exigência
básica da Declaração Universal dos Direitos Humanos da
ONU de 1948 pois está unida intimamente ao princípio de
presunção de inocência de qualquer acusado até que a sua
culpabilidade seja devidamente comprovada e presunção,
aliás, também acolhida na vigente Constituição Federal de
05 de outubro de 1988. Presunção de inocência, em síntese,
em termos de não culpabilidade de acusado. Em um Estado
Democrático de Direito condenação somente baseada em
certeza, em prova suficiente e não em indícios que por sua
própria natureza nunca podem gerar uma certeza de culpabilidade do acusado.
7. UMA CONCLUSÃO
Se filosoficamente sustenta-se que o ser humano não
pode atingir a verdade absoluta ou suprema (somente Deus
é que é a verdade absoluta ou suprema) e que em sua conceituação a verdade é a conformidade ou adequação entre o
intelecto e a realidade (coisa), juridicamente no estrito campo da processualística penal podemos proclamar que a mesma atualmente mais do que a denominada “verdade real”
em termos de fatos reais, fatos verdadeiros, de evidência
melhor seria dito que a sua finalidade é a busca da “verdade possível”, a verdade processualmente válida sempre em
termos dos elementos probatórios existentes na ação penal.
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Sobre a prova na reforma processual penal
215
8. A CONVICÇÃO DO JUIZ
A convicção do juiz pela livre apreciação da prova colhida em juízo não significa que tal liberdade seja sinônima
de puro arbítrio ou despotismo judicial, tem de atender a
prova dos autos, aos elementos probatórios colhidos em juízo. Tal princípio está estabelecido no art. 165 do Projeto do
Novo CPP, com a ressalva ou esclarecimento do seu parágrafo primeiro de que a existência de um fato não pode ser
deduzida, concluída ou inferida de indícios, a não ser quando forem graves, precisos e concordantes, situação muito
difícil de ocorrer em um processo criminal pois existem os
contra-indícios e sobretudo que os mesmos não podem gerar uma condenação, o que se deduz do número VII do art.
410 desde que a prova indiciária não pode gerar a certeza
indispensável para uma condenação.
A livre apreciação das provas pelo juiz, conforme a
doutrina, é feita através da lógica, da psicologia e da experiência de vida do julgador porém, reafirme-se não é simples
convicção íntima, não é capricho, arbitrariedade do julgador, não pode alienar-se das provas ou decidir contrariamente aos elementos probatórios colhidos em juízo.
9. NOSSA TESE FUNDAMENTAL: NÃO EXISTE
“A PROVA DO FATO” E SIM A PROVA DE “UMA
VERSÃO OU INTERPRETAÇÃO DO FATO”
Em síntese, sustentamos que não está correto quando
se afirma ou se enfatiza em obras doutrinárias de processo penal e em decisões de juiz e tribunais sobre “a prova
do fato” pois “a prova” verdadeiramente não é “a prova do
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Roque de Brito Alves
fato” desde do que o fato já existe, é pré-existente à prova,
é seu antecedente, não é algo “criado” pela prova, não se
“origina” da prova. Em conseqüência, sustentamos que essencialmente a prova é “a prova de uma versão ou interpretação do fato” e não do próprio fato em si que não é criado
pela prova.
Em conseqüência, a prova demonstra ou evidencia
uma certa versão ou interpretação de um fato ocorrido e
não, em absoluto, a existência do próprio fato que não é
criado com a mesma.
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Constitucionalização dos direitos dos animais
217
CONSTITUCIONALIZAÇÃO DOS
DIREITOS DOS ANIMAIS
Tagore Trajano de Almeida Silva
Professor da Faculdade Maurício de Nassau/Salvador/Bahia.
Mestre em Direito Público e pesquisador da Universidade Federal da
Bahia (UFBA). Visiting Scholar da Michigan State University (MSU/
USA). Pesquisador Visitante da University of Science and Technology
of China (USTC/China).
RESUMO
Este ensaio pretende apresentar ao leitor uma discussão sobre a constitucionalização das normas ambientais. As
transformações trazidas pela Constituição de 1988 não se
restringem aos aspectos estritamente jurídicos, mas se entrelaçam com as dimensões ética, biológica e econômica
dos problemas ambientais. O direito animal surge alternativa de dilatação dos fundamentos éticos a fim de abranger
os demais animais, reconhecendo um direito inerente a todo
reino animal. Assim, a vedação de toda e qualquer prática
de crueldade tornará os animais não-humanos em titulares/
beneficiários do sistema constitucional, devendo o Poder
Público e a coletividade buscar a implementação de polítiRevista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau –
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218
Tagore Trajano de Almeida Silva
cas públicas que visem à concretização da norma constitucional.
Palavras-chave : constituição – Direito Animal – Direito Ambiental
ABSTRACT
This essay presents the reader with a discussion about
Environmental Constitution Law. The changes brought by
the 1988 Constitution are not restricted to the strictly legal,
but is interwoven with the ethical, economic and biological
environmental problems. The animal law appears alternate
expansion of the ethical foundations to cover the other animals, recognizing a right inherent in every animal kingdom.
Thus, the sealing of any practice of cruelty will make nonhuman animals in holders / beneficiaries of the constitutional system, and the Public Authority and the community
seek to implement public policies that aim at implementing
constitutional norms.
Keywords: Constitution – Animal Law – Environmental Law
1. INTRODUÇÃO
Antes de afirmarmos que a Constituição de 1988 estabeleceu como um dos objetivos do Estado brasileiro a proteção dos animais, cumpre-nos fazer um pequeno retorno à
história.
No Brasil, o processo de constitucionalização dos
direitos foi demorado. Laerte Levai lembra que o primeiRevista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau –
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Constitucionalização dos direitos dos animais
219
ro registro de uma norma a proteger animais de quaisquer
abusos ou crueldade, foi o Código de Posturas, de 6 (seis)
de outubro de 1886, do Município de São Paulo1, em que
o artigo 220 dizia que os cocheiros, condutores de carroça
estavam proibidos de maltratar animais com castigos bárbaros e imoderados, prevendo multa.
A constitucionalização somente viria com o advento da Constituição de 1988, momento em que as normas
ambientais adquiririam status constitucional. O direito à
proteção ambiental passou a ser considerado direito fundamental2. As transformações trazidas pela Constituição de
1988 não se restringem aos aspectos estritamente jurídicos,
mas se entrelaçam com as dimensões ética, biológica e econômica dos problemas ambientais3.
O direito animal surge, então, como uma alternativa
de dilatação dos fundamentos éticos a fim de abranger os
demais animais, reconhecendo um direito inerente a todo
reino animal.4 Dentro do ordenamento jurídico, a vedação
de toda e qualquer prática de crueldade tornará os animais
não-humanos em titulares/beneficiários do sistema constitucional, devendo o Poder Público e a coletividade buscar
a implementação de políticas públicas que visem à concretização da norma constitucional que transcrevemos abaixo:
Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem
1 LEVAI, Laerte Fernando, Direito dos Animais. Op. cit.. p. 27-28.
2 MEDEIROS, Fernanda Luiza Fontoura. Meio Ambiente: direito e dever fundamental.
Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004 . p. 110.
3 BENJAMIN, Antônio Herman. Constitucionalização do ambiente e ecologização da
Constituição brasileira. In: CANOTILHO, José Joaquim Gomes; LEITE, José Rubens
Morato. Direito constitucional ambiental brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 109..
4 FENSTERSEIFER, Tiago. Direitos fundamentais e proteção do ambiente: a dimensão ecológica da dignidade humana no marco jurídico-constitucional do estado socioambiental de direito.Porto Alegre : Liv. do Advogado , 2008 p. 25-39.
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Tagore Trajano de Almeida Silva
de uso comum do povo e essencial à sadia
qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo
e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.
§ 1º - Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao Poder Público:
VII - proteger a fauna e a flora, vedadas, na
forma da lei, as práticas que coloquem em
risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais
à crueldade.
Ao incluir a proteção animal sob a tutela constitucional, o constituinte delimitou a existência de uma nova dimensão do direito fundamental à vida e do próprio conceito
de dignidade da pessoa humana5. A Constituição Federal
de 1988 será, portanto, o marco para o pensamento sobre
os direitos dos animais no Brasil, uma vez que ao proibir
em âmbito constitucional que o animal não-humano seja
tratado de forma cruel, reconhece ao animal não-humano o
direito de ter respeitado o seu valor intrínseco, sua integridade, vida e liberdade. Uma legislação infraconstitucional
de proteção animal não pode suprimir determinado direito
estabelecido pelo constituinte6.
Existiria um mínimo existencial que abrangeria também os animais não-humanos. Ter uma existência digna,
fazendo com que os direitos dos outros seres sejam respei
tados é interpretação que pode ser feita com base na consti5 MEDEIROS, Fernanda Luiza Fontoura. Meio Ambiente. Op. cit.. p. 113.
6 BARROSO, Luís Roberto. O Direito Constitucional e a Efetividade de suas normas. 5. ed. São Paulo, Saraiva, 2001. p. 159.
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tuição7. Para Fábio de Oliveira, o fato de muitos homens viverem aquém do mínimo existencial não exime o Estado de
cumprir seu papel de defesa dos direitos dos animais. Não
se pode esperar solucionar as mazelas da humanidade para
que somente após a solução destas se passe a considerar os
interesses dos animais8.
2. O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL E A CRUELDADE CONTRA OS ANIMAIS NO BRASIL
Encontra-se ao analisar a jurisprudência do Supremo
Tribunal Federal brasileiro que o debate sobre maiores direitos para os animais já se iniciou. Apesar da relutância
de alguns operadores jurídicos em permitir processos que
versem sobre a temática dos direitos dos animais, casos envolvendo crueldade para com os animais vem aparecendo
no Supremo Tribunal. Partindo de normas constitucionais e
infraconstitucionais, os Ministros têm definido o que vem
a ser maus-tratos com animais e práticas cruéis. Com base
na Constituição Brasileira ao dispor que: 1. Não se pode
excluir da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direitos; 2. Ninguém será processado nem sentenciado
senão pela autoridade competente; e, 3. Ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo
legal; os Ministros iniciam uma discussão com o intuito de
regulamentar o artigo 225, parágrafo 1, inciso VII da Constituição.
7 OLIVEIRA, Fábio Corrêa Souza de. Categorias dos direitos humanos aplicadas aos direitos dos animais não-humanos: do caminho em curso ao caminho a percorrer. In Anais
do I Congresso Mundial de Bioética e Direito Animal. Salvador: Evolução, 2008. Disponível em: www.nipeda.direito.ufba.br. p. 07.
8 OLIVEIRA, Fábio Corrêa Souza de. Categorias dos direitos humanos aplicadas aos
direitos dos animais não-humanos: do caminho em curso ao caminho a percorrer. Op.
cit.. p. 07.
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Tagore Trajano de Almeida Silva
Para o Supremo Tribunal Federal, os mandamentos
constitucionais e infraconstitucionais estariam direcionados àqueles que têm o status de pessoa. Este pensamento partiria da interpretação do Código Civil e Processo
Civil que requer a personalidade na aplicação do artigo
primeiro do Código Civil que estabelece: “toda pessoa é
capaz de direito e deveres no ordenamento brasileiro” e
do artigo segundo ao dispor que ”A personalidade jurídica começa com o nascimento com vida, mas são reconhecidos alguns direito ao nascituro desde a concepção”.
Igualmente, no artigo sétimo do Código de Processo Civil pode-se encontrar que “Toda pessoa é capaz de ir a
juízo reclamar pelos seus direitos”.
Ao combinar estes enunciados, parte dos juízes
brasileiros tem chegado à conclusão que somente os seres humanos têm standing para reivindicar seus direitos
perante o Judiciário. Ocorre que por muito tempo o direito tem criado um muro de obstáculos evitando que se
conceda direito aos animais com base no dogmatismo
que impera na sua teoria.
Thomas Kelch afirma que o status de propriedade
dos animais impede com a possibilidade dos animais serem autores em causas judiciais, já que desde o momento
em que os animais são considerados propriedade, eles não
tem direitos e seus representantes não podem apelar em
favor deles. Para o autor, apenas depois de alguns anos, a
Suprema Corte dos Estados Unidos tem reconhecido que
animais domésticos são um pouco mais que propriedade,
pelo fato de serem seres vivos com sentimento, emoções
e afeição, ou seja, mais que objetos9.
9 KELCH, Thomas G.. Toward a non‐property status for animals. 6 N.Y.U. Envtl. L.J.
(1998). p. 537.
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Constitucionalização dos direitos dos animais
223
Porém, qual o caminho que o sistema brasileiro tem
seguido? A lógica do sistema brasileiro é impregnada por
atitudes conservadoras. As decisões dos tribunais brasileiros, exceto raras exceções, são embebidas por um alto legalismo que faz com que o animal seja ainda pensado em
função dos desejos de seu dono. Juízes e promotores não
tem ainda dado o devido reconhecimento para os casos envolvendo animais não-humanos. Pode-se dizer que este entendimento é visto mesmo no Supremo Tribunal Federal.
Contudo, algumas decisões se destacam e talvez possam
servir para a possibilidade de mudança de paradigma a ser
seguido em um futuro próximo.
Em 1997, o caso da farra do boi chegou aos tribunais
brasileiros. A farra do boi é uma tradição Ibérica trazida por
portugueses e espanhóis para o Brasil. Um boi é amarrado
com uma vara de pescoço ao rabo, a fim de que os participantes do evento corram e fujam do animal.
Evidenciado o sofrimento do animal e a forma desumana que ele é submetido, associações de Proteção Animal
foram a juízo demonstrar que a festa era um exemplo de
maus tratos com os animais e por isso deveria cessar. Na
primeira instância o juiz não aceitou o pleito, afirmando
que não existiam fundamentos legais para o fim da prática
cultural, sendo necessário apelar para o tribunal de Santa
Catarina e logo após para o Supremo Tribunal Federal.
No STF o responsável pela relatoria do caso foi o Ministro Francisco Rezek. De acordo com o parecer do Ministro, o
artigo 225 parágrafo 1, VII da Constituição Brasileira deveria ser imediatamente aplicado ao caso, visto ser uma forma
evidente de crueldade com os animais. Para Rezek não seria
necessário o Judiciário esperar pelo Legislativo ou Executivo, uma vez que a norma continha aplicabilidade imediata.
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Tagore Trajano de Almeida Silva
Como veremos nas próximas seções, o Ministro Rezek
dirá que questão importante a ser questionada será a respeito da possibilidade de uma sociedade de proteção animal de
outro estado ir a juízo se manifestar sobre o caso. Será que
uma sociedade como essa teria interesse no problema? Ou
mesmo se um “mero interesse no problema” seria motivo
para o Tribunal reconhecer a capacidade de uma organização estar em juízo? O Ministro Rezek conclui que em um
Estado federativo, onde diversos são os problemas existentes caberia sim a uma associação de defesa do bem estar dos
animais o dever de agir no instante em que ninguém mais
atuou, nem os poderes públicos, Para o Ministro, o sistema
judicial estava obrigado a receber o caso.
A sentença do STF foi no sentido de que a farra do boi
seria um espetáculo extremamente cruel que geralmente resulta na morte do animal durante as festividades. Consoante
a opinião de Rezek, afirmar que a farra do boi é uma manifestação cultural é desconsiderar as reportagens, fotos e comentários sobre a festa que constam nos autos do processo.
Para ele, prática salutar é daqueles Estados brasileiros nos
quais há práticas culturais, porém não causam mal as formas de vida. Ao invés, utilizam animais de papel, fantasias
para se manifestar, evitando assim a violência e a crueldade
com os animais. Por estes motivos, o relator defendeu que
a farra de boi fosse declarada inconstitucional e banida da
sociedade brasileira.
O julgamento seguiu nessa direção, contudo, cabe relatar o voto dissidente do Ministro Maurício Corrêa. Para o
Ministro Corrêa, o Supremo Tribunal Federal não poderia
proibir a farra do boi por se tratar de uma manifestação cultural também suportada por mandamentos constitucionais.
Segundo ele, os artigos 215 e 216 da Constituição Federal
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garantem ao festival uma proteção do Estado brasileiro, já
que constitui uma manifestação cultural.
Art. 215. O Estado garantirá a todos o pleno
exercício dos direitos culturais e acesso às
fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais.
§ 1º - O Estado protegerá as manifestações
das culturas populares, indígenas e afro-brasileiras, e das de outros grupos participantes
do processo civilizatório nacional.
Art. 216. Constituem patrimônio cultural
brasileiro os bens de natureza material e
imaterial, tomados individualmente ou em
conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira (…)
Para o ministro Corrêa, o STF deveria cobrar do Estado de Santa Catarina que se mobilizasse e exercesse seu
poder de polícia com o intuito de reprimir práticas de violência ou crueldade com os animais durante a festa. Para
ele, o papel do judiciário é o de ajudar o Estado em não
permitir práticas cruéis, não de proibir uma prática cultural.
Outro caso a trabalhar com questões relacionadas à
crueldade com os animais é o referente à briga de galo. O
primeiro caso sobre briga de galo a chegar ao Supremo Tribunal Federal foi em 1957. Este caso teve como relator o
Ministro Candido Mota. Para o Ministro, briga de galo não
poderia ser considerada esporte ou manifestação cultural,
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mas sim prática de maus-tratos aos animais que são colocados em combate. De acordo com o Ministro e com base no
artigo 64 da Lei de contravenções-penais, qualquer um que
participasse ou fizesse parte da prática deveria ser conduzido à delegacia. Para Candido Mota, os galos são obrigados
a diversos regimes de treinamento onde se busca adaptar os
músculos e o coração para as lutas, tudo isso com o único
objetivo de matar rapidamente seu oponente. Ainda naquela
época, outras duas decisões podem ser encontradas no Supremo Tribunal Federal.
Em 1958, o Estado de São Paulo editou um regulamento com o intuito de proibir a crueldade com os animais.
A portaria nº 74 de 03 de agosto de 1956 dizia:
O Secretário do Estado dos Negócios da Segurança Pública, no uso de suas atribuições
legais, tendo em vista a representação da
união Internacional Protetora dos Animais e,
Considerando que nas rinhas de galo são os
animais tratados com crueldade, configurando-se tipicamente, a infração do artigo 64 da
Lei de Contravenções Penais;
Considerando que dessa infração decorre
invariavelmente outra, não menos perniciosa, a do jogo de azar - que a polícia cumpre
combater;
Resolve:
Ficam terminantemente proibidas em todo
o território estadual as rinhas de galo, devendo as autoridades policiais instaurar os
competentes processos contravencionais não
só contra os seus responsáveis, como contra
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quem promover a luta desses animais, dentro
como longe das rinhas, ainda mesmo em lugar privado, sem prejuízo dos a que estarão
sujeitos os que participaram das respectivas
apostas.
Publique-se e Cumpra-se
No mesmo ano, o STF decidiu em outro caso que briga de galo seria uma contravenção penal tipificada pelo artigo 64 da lei de contravenção penal. O Ministro Henrique
D´Avila foi o relator e asseverou que as pessoas tem um
dever de gratidão para com os animais, devendo evitar qualquer tipo de prática cruel. Para o Ministro, a luta por ideais
de justiça passam pelo cuidado com os animais. Com base
no artigo 24.645/1934 e na lei de contravenções penais, os
Ministros decidem na total proibição da briga de galo no
país, visto ser considerado ato de crueldade para com os
animais e devendo-se ser punidas de forma exemplar, além
de multa.
Com o advento da Constituição de 1988, novos casos
de briga de galos retornaram aos tribunais brasileiros. Três
diferentes Estados brasileiros promulgaram legislação permitindo e regulando a briga de galo. O primeiro estado foi
o Estado do Rio de Janeiro que publicou a lei de número
2.895, autorizando campeonatos de briga de galo. O STF
decidiu que a norma era inconstitucional, já que era contra
o que previa o artigo 225, parágrafo 1, VII. Esta decisão foi
criticada na época pelo governador do Estado que afirmava
que com a regulamentação da atividade ficaria mais fácil
supervisionar e controlar a atividade, gerando uma integração maior entre os competidores e mais empregos para o
Estado. Para o governador seria constitucional porque reguRevista da Faculdade de Direito Maurício de Nassau –
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Tagore Trajano de Almeida Silva
la uma tradição popular. Já para o presidente do poder Legislativo, a lei não ofenderia a Constituição que não trata de
animais domésticos e sim da fauna e flora como um todo.
Contudo, para o Ministro Carlos Velloso, o relator do
processo, briga de galo é crueldade com os animais de acordo com o artigo terceiro do decreto 24.645/34. Velloso buscou fundamentos no caso da farra do boi para afirmar que
nenhuma manifestação cultural pode violar os dizeres da
Constituição Brasileira. Outro Estado a incorrer no mesmo
erro foi o de Santa Catarina ao publicar uma legislação que
afirmava que briga de galo era uma manifestação popular
realizada com galos que vivem para o combate. Isto poderia
segundo a petição inicial ser verificado, já que os mesmos
não seriam próprios para o consumo humano. Briga de galo
seria um esporte tal como a corrida de cavalos. O Ministro
Eros Grau foi o relator deste caso e por unanimidade a lei
foi declarada inconstitucional, o mesmo acontecendo com
outro caso semelhante no Estado do Rio Grande do Norte.
3. LAURENCE TRIBE E AS LIÇÕES DO DIREITO
CONSTITUCIONAL ESTADUNIDENSE
Será com base nas lições de Laurence Tribe, professor da Faculdade de Direito da Universidade de Harvard,
que buscaremos uma fundamentação para a teoria de que os
animais podem ser sujeitos de direito, sendo fundamental o
reconhecimento deles como pessoas no nosso ordenamento
jurídico, podendo assim estar em juízo e reivindicar seus
interesses através seja de um substituto ou representante
processual.
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Constitucionalização dos direitos dos animais
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Com base na Constituição dos Estados Unidos, Laurence Tribe afirmará que o Direito Constitucional tem evoluído em um processo através do qual tem se buscado proteger outras espécies além da humana. Tribe, então, escreve
dez lições a ser aprendida através do estudo da Teoria Constitucional dos Estados Unidos sobre o tema dos direitos dos
animais. Entendendo as diferenças entre o sistema brasileiro e o sistema norte-americano, poderemos partir das lições
desse autor para desenvolver o direito animal constitucional
no Brasil.
Para Tribe, a concepção de direitos não deve ser vista
como algo assustador a ser reconhecida ou conferida, desde
que direito não é algo absoluto. Afirmar que animais nãohumanos têm direitos não deve ser confundido com dar
sempre prioridades aos animais não-humanos em questões
jurídicas contra os humanos10. Reconhecer direitos é fundamentalmente chamar atenção a determinadas circunstâncias
em que tais direitos poderiam ser subscritos.
Tribe afirma que se queremos levar a concepção de
direito a sério, não importa se são direitos de uma pessoa
ou de outro animal, deve-se não permitir invasões da integridade física ou liberdade do indivíduo em qualquer situação gratuita ou desnecessária, inútil ou dolorosa. Tribe
ainda afirma que 90% de todas as experimentações feitas
em nome da ciência não passam de simples testes que poderiam não ter sido feitos em animais e sim em computadores.
Para o direito constitucional, diz ele, deve-se prevalecer o
princípio em que se deve escolher a técnica menos invasiva
assim como os métodos alternativos.
10 TRIBE, Laurence H. “Ten Lessons Our Constitutional Experience Can Teach Us
About the Puzzle of Animal Rights: The Work of Steven M. Wise,” 7 Animal Law 1
(2001). p. 02.
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Tagore Trajano de Almeida Silva
Para Tribe existe um mito ensinado pela doutrina jurídica. O mito de que em nosso ordenamento jurídico, o
direito constitucional nunca intitulou outros seres, atribuindo-lhes o status jurídico de pessoa. A concepção de direitos
não será afastada ao se atribuir direitos aos animais. Ele
ainda assevera que mesmo no sistema jurídico americano
marcado pela incoerência e falta de firmeza, ao longo dos
anos tem sido reconhecido direitos a entidades que não são
seres humanos. Igrejas, sociedades, corporações, sindicatos, família, municípios, mesmo estados têm seus direitos
assegurados de forma semelhante ao que acontece no Brasil.
De fato, nós às vezes classificamos entes como pessoas para uma ampla gama de propósitos. Há uma ampliação
do círculo de consideração jurídica ou mesmo uma ampliação da definição de personalidade. Para Laurence Tribe, o
que acontece em geral é matéria de aculturação11. O sistema
jurídico pode reconhecer personalidade para os chimpanzés, bonobos e talvez um dia até para computadores que
irão além de apenas ganhar de Gary Kasparov, mas passarão a sentir pena ao vê-lo perder. Para Tribe, é totalmente
possível que seja concedida personalidade a animais nãohumanos através de medidas legislativas.
É sabido que esta atribuição de direitos apenas assegura uma proteção perante o sistema jurídico. Sabe-se que
entidades, as quais são atribuídas alguns direitos não são
realmente pessoas, este conceito é na verdade uma ficção.
11 Tom Regan afirmará que “[...] devidamente aculturados, nós internalizamos, sem críticas, o paradigma cultural. Vemos os animais como nossa cultura os vê. Como o paradigma na cultura americana em particular – e na cultura ocidental em geral – vê os outros
animais como seres que existem para nós, não tendo outro propósito para estar no mundo
senão o de atender às necessidades e aos desejos dos humanos, nós também vemos dessa
maneira. Assim, os porcos, por exemplo, mostram sua razão de ser ao se transformar em
fatias de presunto entre duas bandas de pão”. In Jaulas Vazias. Porto Alegre: Lugano,
2006. p. 28.
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Constitucionalização dos direitos dos animais
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Ter reconhecido seus direitos pode fazer uma vasta diferença para uma real ou ficcional proteção de novos sujeitos de
direitos no mundo real12.
Por isso, reconhecer que os animais têm direitos em si
mesmo através de legislação apropriada significaria a possibilidade de eles irem a juízo em nome próprio, reivindicando direito próprio. Neste caso, a chimpanzé Suíça poderia
ir a juízo como autora de sua demanda, ou mesmo através
de um substituto processual como aconteceu. Para os animais, poderia ser designado um guardião tal como hoje é
feito com uma criança ou com uma pessoa com problemas
mentais sérios ou ainda pessoas com Alzheimer. Dar esta
voz virtual aos animais irá ampliar muito a proteção que
os animais recebem sob as leis atuais e esperançosamente
desenvolveria a eles direitos básicos retirados ao longo dos
anos. Tribe mostra que a história do direito constitucional
está repleta de exemplos de concessão de direito de ação
tais como esse.
Laurence Tribe demonstra que ao ser dizer que alguém perdeu ou não tem direitos constitucionais não necessariamente se quer dizer que se reduziu algo ao status
de uma coisa. Contudo, direitos constitucionais conferem
proteção pela identificação e proibição de injustiças, criando um escudo contra crueldade. Formas de proteção podem
ser criadas através de leis ordinárias estaduais e federais ou
até mesmo por juízes no sistema da common law e mais
modernamente no sistema do civil law. Para ele, é importante ressaltar que proteções criadas por legislação estadual
ou pela common law podem algumas vezes ser mais eficazes se comparadas aos direitos constitucionais.
12 TRIBE, Laurence H. “Ten Lessons Our Constitutional Experience Can Teach Us
About the Puzzle of Animal Rights: The Work of Steven M. Wise. Op. cit. p. 03.
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Já nas últimas lições, Laurence Tribe tece uma crítica a visão de Steven Wise no que se refere a supor uma
fórmula científica para decidir quais seres teriam autonomia suficiente para ter dignidade. Para ele, esta fórmula não
funciona, já que transforma esta concepção em um valor
impossível de ser alcançado. O autor explica que o sistema
constitucional e suas tradições reconhecem direitos aos seres humanos pelo simples fato de serem seres humanos, incluindo as crianças, deficientes mentais e pessoas com doenças graves. Não é preciso equações para incluir pessoas
em coma, ou seja, individuais circunstâncias. Deste modo,
se nos opomos a traçar uma linha de direito e de proteção a
nossa própria espécie, nós precisamos de uma melhor razão
para fazer isso com as demais espécies13.
Tribe acrescenta as críticas a Wise, afirmando que
se insistimos que direitos dependem de posses individuais
como auto-sensibilidade ou habilidade de ter um sistema
nervoso complexo ou razões morais; continuaremos pensando direitos como um privilégio dos seres humanos. Direito dos animais será, por conseguinte, mera matéria de
graça ou opção grata dos seres para com os animais não-humanos. Talvez seja esta a lição que Tribe tem a nos ensinar.
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
1. Existiria um mínimo existencial que abrangeria os
animais não-humanos, obrigando o Estado a cumprir seu
papel de defesa dos direitos dos animais;
2. Os operadores do direito (juízes, promotores, doutrinadores, advogados e estudantes, dentre outros) teriam
13 TRIBE, Laurence H. “Ten Lessons Our Constitutional Experience Can Teach Us
About the Puzzle of Animal Rights: The Work of Steven M. Wise. Op. cit. p. 07.
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um dever de impedir um retrocesso dos direitos fundamentais relacionados aos animais não-humanos; deve-se impedir que ao relacionar normas constitucionais e infraconstitucionais, interpretes restrinjam os direitos dos animais,
não reconhecendo standing para estes seres no ordenamento brasileiro;
3. Decisões sobre maus-tratos de animais podem servir para a possibilidade de mudança de paradigma em direção ao reconhecimento de direitos aos animais, uma vez
que a evolução natural do direito faz com que em seu processo ele busque proteger outras espécies além dos humanos. A concepção de direitos não deve ser vista como algo
assustador, direitos não são absolutos. Afirmar que animais
não-humanos têm direitos não deve ser confundido com dar
sempre prioridades aos animais não-humanos em questões
jurídicas contra os humanos. Reconhecer direitos é fundamentalmente chamar atenção a determinadas circunstâncias
em que tais direitos poderiam ser subscritos. Há uma ampliação do círculo de consideração jurídica;
4. Reconhecer que os animais têm direitos em si mesmo através de legislação apropriada significa possibilitar
não-humanos irem a juízo em nome próprio, reivindicando
direito próprio;
5. O sistema constitucional e suas tradições reconhecem direitos aos seres humanos pelo simples fato de serem
seres humanos, incluindo as crianças, deficientes mentais e
pessoas com doenças graves. Não é preciso equações para
incluir pessoas em coma, ou seja, individuais circunstâncias
para desenhar a linha dos direitos dos animais. Deste modo,
se nos opomos a traçar uma linha de direito e de proteção a
nossa própria espécie, nós precisamos de uma melhor razão
para fazer isso com as demais espécies. Direitos não devem
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ser pensados como um privilégio dos seres humanos. Não
é um objeto de graça ou opção dado de acordo com os interesses humanos;
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