ERA UMA VEZ... O MONSTRO: DAS NARRATIVAS MITOLÓGICAS À
IMAGEM BURTONIANA DE “TERROR” - REVELAÇÃO E
REVITALIZAÇÃO DO COMPORTAMENTO HUMANO EM FILMES NO
ESPAÇO ESCOLAR.
Davi TINTINO
Mestrando do PPGEL - UFRN
Docente do IFRN
“Entra em teu barco de devaneio no lago do pensamento, e deixa o sopro do
firmamento encher tua vela. Com teus olhos abertos, acorda para o que está à
volta ou dentro de ti, e abre conversa contigo mesmo; pois é assim toda a
meditação”.
(Charles Sanders Peirce).
RESUMO
Este trabalho visa à discussão em torno da experiência vivida em sala de aula pelo autor
deste artigo, partindo de um conjunto de observações desenvolvidas em torno da
questão da alteridade e da íntima relação desta com o processo de monstrificação ao
longo da história humana, mais especificamente, no âmbito da Pós-Modernidade. Nesse
estudo, será descrito o processo em que se deu a aproximação da realidade de turmas do
Ensino Médio Integrado do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio
Grande do Norte - IFRN de discussões inerentes às relações entre o Eu (Mesmo) e o
Outro. Utilizaram-se, como aporte, as pertinentes contribuições dos seguintes teóricos:
Baudrillard (1990), Barthes (2007), Guimarães (2003) e Jeha (2007) e (2009), na
perspectiva de se propor um nova diretiva para a leitura de imagens em sala de aula,
considerando a própria condição historicoevolutiva da humanidade no que tange ao uso
do pictórico/imagético nas relações interindividuais e intergrupais. Para tanto,
desenvolveu-se um estudo direcionado para interpretações/reflexões a partir de dois
filmes do cineasta americano Tim Burton, quais sejam Beetlejuice “Os fantasmas se
divertem” (1988) e Edward Mãos-de-Tesouras (1990), buscando-se suscitar
proximidades entre as entidades monstruosas das produções filmográficas em foco e
aspectos da realidade concreta inerentes às representações arquetípicas construídas
socialmente, além do fulcro à imaginação de cada um, como reflexo de subjetividades.
Palavras-chave: Monstrificação. Imagem. Imaginário. Ensino.
O MONSTRO POR ELE MESMO: IMAGENS DE TERROR EM TIM BURTON
Quando o autor deste artigo se propôs a discutir a questão do Monstro com
grupos de alunos do Ensino Médio no IFRN, imaginava que haveria certa resistência
por parte deles em conseguir construir conexões entre questões pertinentes à
coletividade e, por consequência, à questão das subjetividades, e o processo de
construção de monstros pelas sociedades humanas.
Tudo isso por considerar que, no âmbito do olhar comum do homem Póscontemporâneo, impera a visão do superficial, onde o consumismo sobrepõe-se à
essência do ser. Pelo olhar do senso-comum, Monstro seria, simplesmente, a
personificação do Mal, aquilo que provoca medo, pânico, terror. Segundo o dicionário
Michaelis On-line, dentre as várias acepções conferiadas ao vocábulo, selecionaram-se
as seguintes:
sm (lat monstru) 1 Med e Vet Feto, humano ou animal, malformado
ou com excesso ou deficiência de partes; monstruosidade (...) 2 Ser de
conformação extravagante, imaginado pela mitologia. (...) 4 Pessoa
cruel, desumana, perversa. 5 Pessoa ou coisa muito feia, horrorosa. 6
(...) assombro (2011).
Monstro refere-se, destarte, a tudo aquilo que está relacionado a aspectos
socialmente considerados negativos, de conotações depreciativas e carregado de juízos
de valor. Essa visão pré-concebida se confirmou, logo num dos primeiros momentos,
quando, em sala de aula, foram realizadas aos alunos, em linhas gerais sobre
“monstros”, para, depois, chegar-se aos de filmes de terror do cineasta Tim Burton.
Foram elas:
1) O que é um monstro?
2) Por que, geralmente, os monstros são apresentados com aspectos repulsivos?
3) Atualmente, muitos dos monstros dos filmes são mostrados com uma certa beleza
externa, carregados de charme e de sensualidade. Por que isso estaria acontecedendo?
Diante dos questionamentos, várias foram as respostas, dentre as quais são
reproduzidas algumas, as mais pertinentes para este estudo:
PERGUNTA 1
Aluno 1: São bichos feitos para assustar!
Aluno 2: São criaturas da escuridão!
Aluno 3: São seres do mal!
PERGUNTA 2
Aluno 4: Para causar terror!
Aluno 5: Porque eles são monstros, ora!
Aluno 6: O mal é feio!
Aluno 7: Porque os monstros representam aquilo que mais tememos em nós mesmos. A
gente joga para ele aquilo que somos!
PERGUNTA 3
Aluno 7: Tudo hoje é beleza!
Aluno 8: Para enganar as pessoas!
Aluno 9: É como se fossem políticos, só tem rosto bonito, mas no fundo são maus!
Essas perguntas foram realizadas antes de os filmes serem exibidos, de
modo a se perceber as ideias que normalmente se tem acerca das tradicionais imagens
de monstruosidades que são contruídas em filmes. Concluída essa etapa da proposta de
ensino, seguiu-se a projeção de uma citação de Célia Magalhães (200),
monstro:
sobre o
O monstro no Renascimento era objeto de especulações
cósmicas: originário dos desígnios de Deus ou do diabo,
daquilo que era determinado pela conjunção de estrelas ou
cometas, da cópula da espécie humana com outras espécies ou
dos defeitos de anatomia dos progenitores. [...] o monstro é
resultado de uma desordem na imaginação materna que apaga a
figura do pai e concetra-se em outra figura como modelo para o
rebento que virá a ser. (MAGALHÃES, 2003: 24)
A exibição desse trecho da obra de Magalhães objetivou colocar os alunos
em contato com o processo histórico de construção de conceitos ao longo da evolução
humana, apresentando uma nova perspectiva para aquilo que seria discutido mais
adiante, após o término do filme.
Seguindo o roteiro inicial, projetou-se outro fragmento da obra de
Magalhães (2003), agora, pendendo para a visualização de uma nova vertente da
imagem que existe sobre o Monstro, além da concebida pelo senso-comum:
A etimologia da palavra dá margem a tradições distintas mas
complementares de interpretação da noção de monstro. Derivado do
latim, monstrare (mostrar), o monstruoso na tradição de leitura do
Renascimento significava o sinal ou a mensagem enviada por Deus,
“demonstrando” sua vontade ou ira; ou do latim monere (avisar). [...]
Ainda com relação à etimologia da palavra, Calabrese (1988:106)
ressalta que o monstrum é o espetacular, ou “aquele que se mostra
para além da norma”; ele é também o monitum, ou o mistério de um
aviso oculto da natureza para ser adivinhado pelos homens [...]
sintetizando os dois significados de “monstro”, remete-nos a Foucault
e à sua referência às performances feitas por loucos, internos de asilos,
até o século XIX: o monstro é algo ou alguém para ser mostrado
(monstrare), servindo ao propósito de revelar o produto do vício e da
desrazão como um aviso (monere). [...] o monstruoso é uma
transgressão tal dos limites da natureza que se transforma em aviso
moral. [...] o monstro é aquele que se rebela, desobedece e quebra as
ligações naturais de obrigação para com os amigos e as relações de
sangue, especialmente os pais (MAGALHÃES, 2003: 24-25)
A partir desse ponto, parte do propósito inicial estava cumprido,
considerando que as discussões, antes mesmo de se exibirem os filmes, estavam bem
consistentes, principalmente, em torno da etimologia da palavra. Segundo os próprios
alunos: “o homem tem o hábito de transformar as coisas”; “O monstro então não é algo
tão ruinzinho como se parece”; “Por isso que no filme Monstros S.A os monstros são
uns coitadinhos”, dentre inúmeras outras observações apontadas por eles.
O passo seguinte foi a exibição, em horário inverso aos de aula, dos dois
filmes supracitados: Beetlejuice (Os fantasmas se divertem) e Edward Scissorhands
(Edward Mãos-de-Tesouras), dos quais seguem as sinopses, extraídas do site Wikipédia
(2011):
Adam Maitland e sua esposa Barbara são um casal residindo em
Winter River, Connecticut. O casal decide entrar de férias, mas no
caminho tem um acidente de carro e caem no rio. Quando voltam para
casa, não se lembram de como voltaram - e quando Adam tenta traçar
o caminho de volta para ponte encontra um deserto com minhocas
gigantescas. Voltando para casa, os Maitland descobrem um livro
intitulado Manual para os recém-falecidos, fazendo-os perceberem
que morreram. Logo o casal descobre que a irmã de Barbara vendeu a
casa para os Deetz, uma família de yuppies de Nova Iorque. A família
é constituída do empresário Charles, sua esposa escultora Delia, e
Lydia, a filha adolescente e gótica. Adam e Barbara decidem expulsar
os Deetz, mas como não podem ser vistos pelos vivos, suas tentativas
não surtem efeito. Decidem então ir para o mundo dos mortos atrás de
ajuda, e descobrem ser um local marcado por burocracia, com uma
enorme sala de espera. Após pegarem uma senha e serem chamados,
são informados que têm de passar 125 anos em sua casa, e recebem
um livro para aprender a assombrar. Após tentativas frustradas (que só
fazem Lydia percebê-los), decidem pedir ajuda ao fantasma
especializado em "exorcizar vivos" Betelgeuse/Beetlejuice.
(Beetlejuice - Os fantasmas se divertem - 1988)
Edward é um jovem que foi criado por um inventor maluco, e que
como peculiaridade possuiu tesouras no lugar das mãos. Antes de
morrer, o "pai" de Edward iria presenteá-lo com um par de mãos
criadas por ele no natal. Porém, antes que pudesse colocá-las em
Edward, ele vem a falecer. Após o falecimento de seu "pai", Edward
fica sozinho onde eles viviam, uma mansão enorme e bastante
envelhecida. Um certo dia, uma vendedora de cosméticos bate à porta
de Edward e encontra-o lá, completamente só. Ela então resolve leválo para casa, onde Edward tem muita dificuldade em conviver, devido
principalmente ao preconceito demonstrado pela vizinhança. Mas,
pouco a pouco vai-se tornado popular devido aos talentos que tem. No
entanto, há pessoas determinadas a afugentá-lo de novo para a sua
mansão. (Edward Scissorhands - Edward Mãos-de-Tesouras - 1990)
A exibição dos filme ocorreu num ambiente descontraído, sem a pressão
conteudista imposta no ambiente de sala de aula, além do “clima” propício, ao se
considerar que uma das marcas dos filmes de Tim Burton é exatamente o tom de humor
que ele imprime nas mais sutis imagens, mesmo naquelas em que, outrora, deveria
haver uma maior densidade dramática. Houve muito riso e, ao longo das exibições, em
algumas cenas, foram sendo apontadas pelos próprios alunos aspectos relacionados às
discussões informativas desenvolvidas nas etapas arroladas acima.
Em momento posterior à exibição, houve discussões mais formais em torno
das impressões provocadas pelos filmes, mais especificamente em torno das
personagens “monstruosas” Beetlejuice e Edward. Os alunos apontaram aspectos
importantes do filme no que pertine às relações entre as demais personagens, antes,
durante e depois da chegada dos Monstros. Segundo os alunos, houve uma clara
transformação na vida das pessoas nos filmes, onde as entidades monstruosas eram
mostradas com a missão, além da comum, ou seja, de assustar, de trazer também
significativas mudanças nos territórios ocupados pelos “vivos”.
Se por um lado Beetlejuice causou inúmeros transtornos nas famílias dos
Deetz e dos Maitland, e Edward tumultou todo o bairro onde passou a residir, deve-se,
contudo, perceber a profundidade maior de todo esse conflito: eles não chegaram
unicamente para provocar medo e terror, mas, como foi mostrado em momento anterior,
etimologicamente, os Monstros chegaram e “mostraram” aspectos da vida dos
personagens envolvidas no enredo obscurecidos pelas tintas intencionais do criador.
Nesse espaço, propôs-se uma discussão em torno da linguagem que a
imagem carrega, as suas particularidades e, no instante, o professor fez referência às
ideias de Roland Barthes (2007) acerca da linguagem mítica, muito importante no
âmbito das discussões ora propostas:
O mito não se define pelo objeto da sua mensagem, mas pela maneira
como a profere: o mito tem limites formais, contudo não substanciais.
Logo, tudo pode ser mito? Sim, julgo que sim, pois o universo é
infinitamente sugestivo. Cada objeto do mundo pode passar de uma
existência fechada, muda, a um estado oral, aberto à apropriação da
sociedade, pois nenhuma lei, natural ou não, pode impedir-nos de falar
das coisas. [...] O mito é uma fala escolhida pela História. [...] Esta
fala é uma mensagem. [...] A fala mítica é formada por uma matéria já
trabalhada em vista de uma comunição apropriada: todas as matériasprima do mito – quer sejam representativos, quer gráficas –
pressupõem uma consciência significante, é por isso que se pode
raciocinar sobre elas, independentemente de sua matéria. Esta, porém,
não é indiferente: a imagem é certamente mais imperativa do que a
escrita, impondo a significação de uma só vez, sem analisá-la e
dispersá-la. (BARTHES, 2007:200-201)
Com a leitura desse fragmento da obra de Barthes, engendrou-se um novo
caminho na perspectiva do estudo acerca da imagem do Monstro, como entidade que
traz à tona aspectos das subjetividades das personagens envolvidas no enredo. Assim,
buscando-se fulcro nas palavras do semiólogo, passou-se a discutir a pertinência de se
buscar enxergar além do que a imagem superficialmente mostra. Conduziu-se a
conversa para a relação dos Monstros com a linguagem mítica.
Discutiu-se que tudo pode ser mito, desde que apresente substância
suficiente para gerar sugestões em torno de determinado objeto/ser. Como propõe
Barthes, o mito é uma fala, histórica e aberta para o imaginário. Destarte, a imagem do
Monstro passou a despertar em cada aluno um novo olhar diante da possibilidade de se
enxergar as monstruosidades como, muitas vezes, necessárias para deslindar nuances
dos seres humanos obscurecidos pelas convenções sociais.
Propôs-se, ainda, na mesma esteira do pensamento de Roland Barthes, que,
sendo o Monstro uma imagem historicamente construída e dotada de uma gama de
valores incutidos em sua constituição, valores estes de cunho majoritariamente
depreciativos, serve ao propósito de ensejar falas que, diante de sua aspereza e de seus
aspectos abomináveis, projetaria, conforme comentado por um aluno, medos e possíveis
deformidades de caráter de quem visualiza os monstros pela perspectiva única do medo
e do terror.
Quando Barthes diz que “ a imagem é certamente mais imperativa do que a
escrita, impondo a significação de uma só vez, sem analisá-la e dispersá-la”, pensa-se
que a imagem é dotada de uma particularidade que não é comum ao signo linguístico,
qual seja a de possuir o poder de “dizer” mensagens de modo peculiar, despertando o
leitor-observador para múltiplas realidades. Para acessá-las, faz-se necessário utilizar-se
não somente do caminho construído pelas representações sociais dos produtos culturais,
mas, principalmente, iniciar uma caminhada pelo espaço imaginário que reside em cada
um.
Considerações
Diante do exposto acima, não se deve refletir e vislumbrar entidades
monstruosas unicamente pelo ângulo da superficialidade, apenas buscando o que
“estaria por trás” das imagens dos monstros, mas visando, primordialmente, o processo
dialético que elas despertam em quem as contempla. Procurou-se mostrar para os
alunos, a partir de suas impressões pessoais em torno dos filmes e dos preceitos teóricos
com os quais eles tiveram contato em momento anterior, que o mais importante em
leituras, seja de signos linguísticos, seja de recursos imagéticos, não é somente o que o
autor intencionou dizer, mas, principalmente, o que se desperta no leitor, partindo de
sua sensibilidade para sentir e para viver o mundo. A imagem torna-se, desse modo, um
instrumento eficaz em sala de aula, porque traz, à tona, um mundo resguardado pelas
teias do tempo, lá longe, quando o homem ainda era um ser bruto e que captava o
mundo por meio dos seus seus ouvidos, de sua pele, de seus olhos... era lá nas imagens
rupestres desenhadas no fundo das cavernas que ele esboçava a sua natureza imaginária
de um quase-deus.
Como sugere a epígrafe de Pierce, que abre este estudo, deve-se sentir o
mundo como um barco que sai à deriva, levado pela sensibilidade de sentir, sem que a
imposição do “ter-que-entender”, despido de representações historicamente préconcebidas, como se fossem verdades inquestionáveis e absolutas. Assim, é
imprescindível deixar que o “barco” do imaginário seja conduzido pelo “vento” da
liberdade, onde o ser, em sua inteireza, livre de amarras sociais, consiga enxergar aquilo
que a aspereza da realidade imposta exige faz sucumbir pelo medo e pela verticalização
do poder e do dever-ser.
Referências
BARTHES, Roland. Mitologias. 3. ed. Difel. Rio de Janeiro:2007.
BAUDRILLARD, Jean. A transparência do mal: ensaio sobre os fenômenos extremos.
10. ed. Papirus Editora. Campinas-SP: 1990.
JEHA, Julio. (Org.). Da fabricação de monstros. UFMG Editora. Belo Horizonte: 2009.
_____. Monstros e monstruosidades na literatura. UFMG Editora. Belo Horizonte:
2007.
MAGALHÃES, Célia. Os monstros e a questão racial na narrativa modernista
brasileira. UFMG Editora. Belo Horizonte: 2003.
WIKIPEDIA. Beetlejuice. Disponível em: < http://pt.wikipedia.org/wiki/Beetlejuice>
Acesso em 12 de junho de 2011, às 17h25min.
_____. Edward Scissorhands. Disponível em: <
http://pt.wikipedia.org/wiki/Edward_Scissorhands> Acesso em 12 de junho de 2011, às
17h20min.
____. Tim Burton. Disponível em: < http://pt.wikipedia.org/wiki/Tim_Burton> Acesso
em 12 de junho de 2011, às 17h15min.
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