1.Introdução Actualmente a escola mantém um papel discriminatório relativamente ao género pelo facto de tratar de forma idêntica rapazes e raparigas. Uma vez que a avaliação pressupõe um padrão de comparação no seio de cada turma, e que este se pauta pelo modelo de aluno ideal que é entendido no enquadramento do perfil feminino, os rapazes estão em desvantagem pois não são avaliados tendo em conta a sua especificidade de género. Os professores esperam deles padrões compatíveis com o comportamento, a aprendizagem e a postura de aluno, a qual é sempre representada por comparação ao género feminino. Chegou o momento de avaliar os rapazes enquanto rapazes e as raparigas enquanto raparigas. Será que a escola ao tratar todos de igual modo, está a promover a igualdade entre os géneros? Se os alunos são diferentes porquanto possuem géneros diferentes, é tomando em conta esta especificidade que deverão ser avaliados. 2. Apresentação dos dados A igualização das oportunidades escolares em ambos os sexos, possibilitou a escolarização feminina e o progressivo ingresso das raparigas em itinerários escolares outrora quase exclusivamente masculinos. Deste modo, nos últimos anos, a participação das raparigas tornou-se particularmente visível no crescimento escolar, em vários países, como Portugal, onde se tornaram sensivelmente maioritárias e apresentando uma dupla vantagem: mais numerosas e melhor sucedidas nas suas realizações escolares. A vantagem das raparigas sobre os rapazes em termos de aproveitamento escolar tornou-se bastante visível através das estatísticas oficiais do ensino escolar visto que nas últimas décadas a diferença de resultados entre rapazes e raparigas tem vindo a acentuar-se. Este facto que se patenteia em situações de reprovação e abandono escolar por parte do género masculino, aumenta exponencialmente à medida que acrescem os ciclos de escolaridade e atinge o seu auge no ensino universitário. Tabela 1. Alunos matriculados por nível de ensino consoante o género (2007/2008) M F Pré Escolar 129390 121239 Ensino Básico (1º/2º/3ºciclos) 580659 520025 Ensino Secundário 156190 173803 Ensino Superior 172515 197902 1 De facto, tal como se deduz da Tabela 1, as estatísticas portuguesas demonstram que no ensino pré-escolar o volume de rapazes é superior ao das raparigas (fruto da relação de masculinidade: por cada 100 nascimentos femininos, registam-se 105 do género masculino). O cômputo total do ensino básico que agrega três ciclos de escolaridade apresenta-nos também mais rapazes matriculados do que raparigas. Contudo, as reprovações e o abandono escolar, fenómenos predominantemente masculinos que ocorrem no decurso destes ciclos, alteram a proporção de rapazes e raparigas, que frequentam cada um deles. Este facto traduz-se num ensino secundário maioritariamente feminino e num ensino universitário que dá continuidade a esta tendência. A ilustração desta questão torna-se perceptível se atentarmos nas Tabelas 2, 3 e 4 que contemplam as taxas de retenção e desistência nos três primeiros ciclos de escolaridade, em Portugal continental, desagregadas por género, nos anos lectivos compreendidos entre 2005 e 2008. Tabela 2. Reprovação e desistência no 1º ciclo consoante o género (2005-2008) Género M F 2005/2006 Valores % absolutos 12051 5,0 8072 3,6 2006/2007 Valores % absolutos 10524 4,3 7428 3,3 2007/2008 Valores % absolutos 9577 3,9 6952 3,1 A taxa de desistência e reprovação no 1º ciclo permite constatar que este fenómeno é sempre superior no género masculino, quando comparado com o feminino. Embora esta taxa tenha vindo a manifestar uma tendência temporal no sentido do decréscimo as disparidades subsistem entre os dois géneros, com as raparigas a serem menos penalizadas do que os rapazes. 2 Tabela 3. Reprovação e desistência no 2º ciclo consoante o género (2005-2008) Género M F 2005/2006 Valores % absolutos 17463 13,6 7939 7,1 2006/2007 Valores % absolutos 16930 13,2 7612 6,8 2007/2008 Valores % absolutos 13164 10,0 6184 5,3 No 2º ciclo aumenta o fosso que separa rapazes e raparigas em termos de aproveitamento. Embora, tal como no primeiro ciclo, estes fenómenos se manifestem com tendência decrescente a diferença entre o aproveitamento masculino e feminino assume valores significativos. O volume de rapazes que reprovam e abandonam o sistema educativo representa o dobro dos valores femininos. Estas tendências mantêm-se no 3º ciclo, embora a diferença percentual entre os dois géneros não resulte numa efectiva duplicação. Podemos então equacionar a desistência rapazes que não chegaram a integrar este ciclo ou a sua mobilidade para cursos profissionalizantes, conducentes a um melhor aproveitamento. Tabela 3. Reprovação e desistência no 3º ciclo consoante o género (2005-2008) Género M F 2005/2006 Valores % absolutos 42085 22,2 28818 15,9 2006/2007 Valores % absolutos 41297 21,4 28182 15,4 2007/2008 Valores % absolutos 32348 15,9 22915 11,5 Como consequência, o ensino secundário é maioritariamente constituído por raparigas. Esta situação atinge o seu auge no ensino universitário onde o género feminino domina em praticamente todas as áreas, quer qualitativa quer quantitativamente. 3 Tabela 5. Evolução dos alunos diplomados no ensino superior por género (2003- 2008) 2003/2004 32,8 67,2 M F 2004/2005 34,8 65,2 2005/2006 34,6 65,4 2006/2007 38,6 61,4 2007/2008 40,4 59,6 3. Razões para a existência de diferentes resultados entre os géneros: a) Questões biológicas e estereótipos sociais Os comportamentos entre os dois géneros apresentam-se já diferenciados ao nível do ensino pré-escolar, com as raparigas a manifestar mais autonomia, auto-controlo e maturidade físico-motora. Corroborando esta questão, os estudos de imagiologia cerebral, revelaram que os cérebros dos rapazes possuem funções mais especializadas, pois tendem a delegar determinadas tarefas para um ou outro lado do cérebro consoante essa tarefa é ou não predominante. Inversamente, o cérebro das raparigas, ao utilizar os dois lados, apresenta maior amplitude. Deste modo, durante as tarefas verbais a actividade cerebral das raparigas é tão intensa no seu hemisfério direito como no esquerdo, enquanto que nos rapazes a actividade cerebral é muito mais acentuada no hemisfério esquerdo. Independentemente destas predisposições genéticas, os próprios estereótipos sociais relativos a cada sexo, associados às condições económicas e sociais do quotidiano contribuem para a adopção de comportamentos diferentes em rapazes e raparigas, afectando o tipo de linguagem e ainda o desenvolvimento nos mais diversos níveis, nomeadamente emocional, motor, intelectual e social. É também em conformidade com as características inatas a cada género que os comportamentos assumem características distintas. Assim, os jogos físicos violentos são bastante mais frequentes entre os rapazes que passam uma parte significativa dos seus tempos livres mais envolvidos em actividades competitivas de grupo como o futebol. Os seus jogos sociais envolvem ainda grupos maiores e uma organização hierárquica mais desenvolvida do que os das raparigas. Nestas, o cérebro inicia muito mais cedo o desenvolvimento das zonas do sistema frontal relacionadas com a moderação dos comportamentos sociais, da concentração e a compreensão dos sentimentos dos outros. Destas predisposições femininas, advém a capacidade de aquisição precoce das letras e dos números. 4 Os rapazes estão assim em desvantagem face às raparigas desde o ensino préescolar, e desde as dificuldades de aprendizagem à dislexia, pode considerar-se que o seu desenvolvimento é globalmente mais lento. Paradoxalmente, nunca é referido que o número de rapazes sobredotados supera o das raparigas, nem que possuem um leque substancialmente mais amplo de capacidades do que aquelas. Isto significa que, seja qual for a aptidão, são muitos mais os rapazes que apresentam valores do topo da tabela e valores do limite mais baixo. Como resultado, não só um número muito maior de rapazes é considerado “incapaz de aprender”, como também há muito mais rapazes identificados como “sobredotados”. Com efeito, os rapazes, além de evidenciarem uma maior propensão para problemas de comportamento do que as raparigas, apresentam actualmente um atraso a todos os níveis, em quase todas a matérias escolares. Duas investigações de âmbito internacional levadas a efeito sobre a capacidade de leitura - a PISA 2000 e a PIRLS 2001 – salientaram também esta disparidade de desempenho entre os sexos. Em conjunto, estes dois estudos avaliaram a capacidade de leitura de crianças em mais de 50 países e os resultados revelaram que aos nove e aos quinze anos de idade, a capacidade de leitura dos rapazes era inferior à das raparigas em quase todo o mundo. Por seu turno, as igualdades de género que preexistiam em treze países em 1991, converteram-se em desigualdades a favor do desempenho feminino em 2001. Além disso, entre as duas datas, a disparidade entre os resultados médios das capacidades de leitura para cada sexo aumentaram em todos os países. Embora historicamente, os rapazes sempre tivessem revelado tendência para superar as raparigas nas disciplinas de Matemática e Ciências, actualmente, devido ao aumento da discrepância na capacidade de leitura entre os sexos, as raparigas começaram a ultrapassá-los nestas matérias. 4. O papel diferencial da escola face a cada um dos géneros Apesar de possuírem as mesmas capacidades cognitivas que os rapazes, as raparigas têm melhores notas e são mais favoravelmente avaliadas pelos professores. Donde se deduz que além de os professores valorizarem aspectos do comportamento feminino mais conformes com as suas representações do bom aluno, ou do aluno ideal, a escola também premeia as disposições fundamentais da socialização feminina e, sob certos aspectos, as realizações escolares das raparigas. 5 Assim, as identidades de género e as correspondentes disposições biológicas, que no caso das raparigas lhes permitem adquirir precocemente maior estabilidade motora, maior auto controlo e autonomia, conferem-lhes vantagem face aos rapazes nas tarefas escolares e permitem-lhes ser mais valorizadas pelos professores. Por outro lado, as raparigas devem o seu melhor aproveitamento, à aquisição precoce das competências interaccionais, que utilizam e aperfeiçoam nas tarefas específicas da sala de aula. Mais compatíveis com as normas escolares, as raparigas têm neste aspecto uma vantagem decisiva sobre os rapazes, acrescida do facto de a instituição escolar, premiar e reforçar as suas prestações sociais e académicas. Por seu turno, a diferença comportamental manifesta por cada um dos sexos em contexto de recreio da escola demonstra que os rapazes agem com um mínimo de regras e um máximo de barulho, ocupando o máximo de espaço e mobilizando um grande número de parceiros, enquanto as raparigas ocupam economicamente o espaço, com o máximo de regras e um pequeno número de parceiros. O prolongamento destes comportamentos no contexto da sala de aulas beneficia o sexo feminino, visto que o domínio de todo o conjunto das interacções, que incluem entre outros, os trabalhos de grupo, lhe permite tirar melhor partido das aprendizagens escolares. Neste contexto, podemos ainda presumir, que uma parte da vantagem do aproveitamento feminino não traduz necessariamente diferenças de aprendizagem escolares reais, uma vez que os professores, sobreavaliam as raparigas relativamente aos rapazes, pelo facto de utilizarem os mesmos indicadores. Deste modo, a tradicional definição do género masculino, intrínseca à valorização física e a todas as condutas associadas, nomeadamente a turbulência e a agressividade, compõem uma relação menos favorável às exigências das aprendizagens escolares, ao mesmo tempo que sugerem um consequente prolongamento no contexto escolar. Relativamente às raparigas, existe a tendência geral para um acentuado investimento escolar relacionado com uma maior concentração nas tarefas e um maior sentido de cooperação. Deste modo, as raparigas, são as que melhor realizam os ideais de excelência escolar, seja no seu aproveitamento seja no seu comportamento, uma vez que combinam a atenção e a concentração nas tarefas escolares com um sentido elevado de competição, procurando ainda estar em primeiro plano, para responder às solicitações dos 6 professores. Além de procurarem frequentemente, no espaço físico da sala de aula, ficar mais perto dos professores, com quem habitualmente contactam no fim da aula, aplicam-se no trabalho e cultivam a autodisciplina. Embora estas atitudes aparentem um conformismo com as normas escolares, constituem condutas orientadas para enfrentar da melhor forma a situação escolar. Ou seja, as suas competências relacionais encontram-se especialmente bem orientadas para as aprendizagens escolares. Destas atitudes advêm muito provavelmente outros prolongamentos, nomeadamente no que concerne à capacidade do sexo feminino em decifrar as situações e apreender as expectativas dos outros, contrariamente ao sexo masculino, cuja socialização específica é negativamente valorizada no contexto escolar, quer pelo facto de não desenvolverem tanto as competências relacionais, quer pelo facto de desenvolverem condutas mais instáveis e turbulentas. 5. Recomendações Relativamente a esta desigualdade de aproveitamento entre géneros, têm sido enunciadas diversas teorias e sugeridas muitas formas de actuação para a resolver. Um dos argumentos mais comuns é o de que os rapazes levam mais tempo a amadurecer e que, portanto, seria mais vantajoso iniciarem a sua educação formal mais tarde, de forma a conseguirem acompanhar as raparigas. Nos Estados Unidos, onde os rapazes estão a abandonar o ensino a um ritmo superior ao das raparigas (30%), as escolas oficiais foram autorizadas a abrir turmas diferenciadas. Por seu turno, no Reino Unido, as escolas do ensino Pré Escolar receberam instruções para reforçarem os exercícios de escrita com “materiais engraçados” junto dos rapazes de 3-4anos, de modo a reduzir as fortes diferenças entre os sexos na escrita e leitura, que se fazem sentir no início do 1º ciclo. Ou seja, visa-se estabelecer a igualdade nos desempenhos académicos mediante um reforço escolar direccionado aos rapazes. Neste contexto, as recomendações britânicas relativamente à desigualdade de aprendizagem entre géneros, pressupõem um ensino diferenciado de modo a resolver esta questão. Assim, o empenho mais acentuado nas actividades de papel e lápis envolvendo grafismos e pressupondo concentração foram sugeridas para os rapazes, com o objectivo destes conseguirem acompanhar as raparigas aquando da entrada no ensino formal. 7 Contudo, embora esta diferenciação apareça justificada e sustentada com o desfasamento que se faz sentir, sobretudo ao nível da escrita, entre rapazes e raparigas, estamos numa idade (5 anos) que ainda pressupõe a realização de inúmeras actividades lúdicas e a inexistência de maturidade físico-motora susceptível de permitir a realização de actividades escritas. No entanto, consideramos que este reforço deverá de facto existir, se quisermos promover a igualdade de géneros relativamente à aprendizagem. Porém, a ênfase deverá ser colocada essencialmente ao nível da motivação para a escrita e não da “obrigatoriedade” de manusear materiais característicos do ensino formal. O jogo de futebol, ou outro, constitui, por exemplo, uma excelente oportunidade para introduzir conteúdos formais. Esta motivação lúdica, que poderá passar pela separação das crianças consoante o género, durante alguns momentos do dia deverá ser alvo de um planeamento rigoroso, com objectivos bem definidos e onde a componente aprendizagem/valorização da escrita surja sempre associada à componente lúdica. Este ensino diferenciado, pressupõe ainda a consciencialização dos profissionais educativos relativamente às limitações motoras e de concentração que caracterizam os rapazes. Não se pode exigir o que está para além das suas capacidades, mas vamos colocá-los a par das raparigas. Em qualquer área, só se consegue promover a igualdade, se se atender às especificidades dos indivíduos. Não é pois, por acaso, que as estatísticas divulgadas pelo governo britânico demonstram após a implementação desta medida se verificou uma melhoria nos resultados académicos dos rapazes. Embora alguns especialistas aleguem que se está a acelerar o desenvolvimento humano e que tal é prejudicial para as crianças, um olhar para o futuro permitirá antever, que se esta medida não for tomada, teremos uma geração de rapazes excluídos dos sistemas escolares e profissionais por incapacidade de rivalizar com o género oposto. Os pais têm de ser alertados para estas consequências e as escolas deverão conseguir dosear as actividades de correr, saltar e brincar com a motivação para a leitura e a escrita no que respeita ao género masculino. Trata-se de um novo desafio social que se encontra subjacente à Lei de Bases do Sistema Educativo, aprovada em 1986, onde se atribui ao estado a responsabilidade de “assegurar a igualdade de oportunidade para ambos os sexos” e que no ensino préescolar, “cada educador tem autonomia e responsabilidade para gerir o currículo”, 8 devendo “estimular o desenvolvimento da criança tendo em conta as suas características individuais”. Logo, é dentro deste “espaço de manobra” que em todos os ciclos, permite que os professores organizem dentro das salas de aula o contexto mais facilitador da aprendizagem para cada aluno. BIBLIOGRAFIA MENDONÇA, ALICE, (2009). O Insucesso Escolar: Políticas Educativas e Práticas Sociais - Um Estudo de Caso sobre o Arquipélago da Madeira. Lisboa: Edições Pedago. MENDONÇA, ALICE, (2009) "Contributo Epistemológico para a Compreensão do Insucesso Escolar"in Rodrigues, Liliana & Brazão, Paulo, (org). Políticas Educativas: Discursos e Práticas. CIE-UMa, Funchal, Grafimadeira, pp. 235-258. MENDONÇA, ALICE & PENTEADO, CÂNDIDA (2009),"A Identidade de Género no Jardim de Infância -Que Construção social?" in Actas do V Colóquio CIE / DCE-UMa, Pesquisar para Mudar (a Educação). 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