Distúrbios do equilíbrio ácido básico e gasometria arterial: uma revisão crítica Trastornos del equilibrio ácido-base y gasometría arterial: una revisión crítica *Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia, UESB **Discente do IX semestre do curso de Fisioterapia da UESB Igor Larchert Mota* ** ***Docente Supervisor do Estágio em Fisioterapia Cardiorespiratória da Rodrigo Santos de Queiroz* UESB *** Graduado em Fisioterapia pela UESB [email protected] Especialização em Terapia Intensiva pela (Brasil) Universidade Castelo Branco. Salvador, BA Fisioterapeuta Intensivista do HGVC de Vitória da Conquista, BA Resumo O equilíbrio ácido-básico se refere aos mecanismos fisiológicos que mantêm a concentração de hidrogênio dos líquidos corpóreos numa faixa compatível com a vida. Para manter o pH em limites favoráveis ao processo vital, o organismo lança mão de uma série de mecanismos bioquímicos, respostas compensatórias que ocorrem nos pulmões e nos rins os quais são os pivôs na excreção de ácidos do corpo. A partir destas informações reconhecem-se os desequilíbrios ácido-básicos, os quais estão associados ao desenvolvimento de disfunções de órgãos e sistemas e ao aumento do número de óbitos em pacientes internados em terapia intensiva. A gasometria arterial é um exame invasivo que mede as concentrações de oxigênio, a ventilação e o estado ácido-básico reconhecendo através de análises os distúrbios ácido-básicos. Nesse sentido, o presente estudo tem como objetivo apresentar uma revisão crítica da literatura especializada na área a respeito do equilíbrio ácido-básico e seus distúrbios, bem como gasometria arterial e seus métodos diagnósticos. Para tal, foi realizada uma revisão de literatura, sendo as publicações pesquisadas nas principais bases de dados disponíveis na literatura e na internet tanto internacionais como nacionais. Reconhece-se, poranto, a existência de pouco conhecimento a respeito da gasometria arterial e das formas de análise de seus resultados, principalmente, no que diz respeito aos métodos especiais de análise das formas de compensação dos distúrbios do equilíbrio ácido-básico. Sendo assim, sugerem-se mais estudos voltados para estas formas de análise gasométrica, já que na saúde mundial busca-se atualmente cada vez mais pela excelência, representada pela realização de diagnósticos mais precisos e fidedignos. Unitermos: Equilíbrio ácido-básico. Gasometria arterial Abstract The acid-base balance refers to the physiological mechanisms that maintain the hydrogen concentration of body fluids in a range compatible with life. To keep the pH limits in favor of the life process, the body makes use of a series of biochemical mechanisms, compensatory responses that occur in the lungs and kidneys which are the pivots in the excretion of acid from the body. From this information it is recognized that acid-base, which are associated with the development of dysfunction of organs and systems and increasing the number of deaths among patients admitted to intensive care. Arterial blood gas analysis is an invasive test that measures the concentrations of oxygen, ventilation and acid-base status recognized by testing the acid-base disorders. Accordingly, this study aims to present a critical review of the literature in the area about the acid-base balance and its disorders, as well as arterial blood and their diagnostic methods. To this end, we conducted a literature review, and the publications surveyed in major databases available in the literature and the Internet both international and national. It is recognized, acquiring company, that there is little knowledge about the arterial blood gases and forms of analysis of their results, especially in regard to special methods of analysis of the forms of compensation for disturbance of acid-base. Therefore, we suggest further studies focused on these forms of blood analysis, as in global health investigators are currently increasing the excellence represented by the achievement of more accurate diagnosis and reliable. Keywords: Acid-base balance. Arterial blood gas analysis Introdução A Gasometria, ou análise de gases no sangue arterial, é um exame invasivo, básico e fundamental para uma Unidade de Terapia Intensiva (UTI) que tem por objetivo revelar valores de pH sanguíneo, da pressão parcial de gás carbônico (PaCO2) e oxigênio (PaO2), íon Bicarbonato (HCO3-) e Saturação da Oxi-hemoglobina, entre outros, avaliando principalmente o equilíbrio ácido-básico orgânico. Isso, pois os distúrbios ácido-básicos estão associados ao maior risco de disfunção de órgãos e sistemas e óbitos em pacientes internados em terapia intensiva1. Por este motivo, o conhecimento dos mecanismos fisiológicos homeostáticos de controle do equilíbrio ácido-base é de fundamental importância. Nesse sentido, o presente estudo tem como objetivo apresentar uma revisão crítica da literatura especializada na área a respeito do equilíbrio ácido-básico e seus distúrbios, bem como gasometria arterial e seus métodos diagnósticos. Para tal, foi realizada uma revisão de literatura, sendo que as publicações foram pesquisadas nas bases Google acadêmico (maio de 2009 a agosto de 2009), Scielo (Maio de 2009 a Julho de 2009), Medline (Junho de 2009 a Julho de 2009), Lilacs (Junho de 2009 a Julho de 2009), e periódicos Capes (Maio de 2009 a Julho de 2009), com as seguintes palavras-chave: gasometria arterial, distúrbios do equilíbrio ácido-básico e métodos de diagnóstico. Todas as publicações, no período de Maio de 2009 a Julho de 2009, foram selecionadas. Como critérios de inclusão, os estudos escolhidos deveriam preencher as seguintes condições: Estudo epidemiológico (série de casos, transversal, caso-controle ou coorte) ou experimental; Artigos, resumos ou ensaios publicados em inglês, português ou espanhol; Com informações sobre gasometria arterial ou venosa; Com a utilização de método padrão (observacional, entrevistas ou questionários) na avaliação da exposição; Foram excluídos os artigos sobre distúrbios do equilíbrio hidroeletrolítico e outros exames laboratoriais a não ser gasometria. 1. Fisiologia básica O equilíbrio ácido-básico se refere aos mecanismos fisiológicos que mantêm a concentração de hidrogênio dos líquidos corpóreos numa faixa compatível com a vida, pois estes íons reagem prontamente com moléculas protéicas (blocos de construção das enzimas catalisadoras celulares vitais), alterando a composição das proteínas estruturais e funcionais, funções enzimáticas, excitabilidades das membranas, dissociação e movimento iônico e reações químicas2,3,4. Os sistemas orgânicos enfrentam dois desafios básicos para a manutenção do Equilíbrio Ácido-Básico (EAB). O primeiro é a disposição da cota fixa de ácidos, ingerida na dieta diária. O segundo é o destino dado ao CO2 gerado como produto final do metabolismo. Os íons hidrogênio formados no organismo se originam tanto dos ácidos voláteis quanto dos ácidos fixos (não voláteis). Os ácidos voláteis se originam e estão em equilíbrio com seus componentes gasosos dissolvidos. O único ácido volátil de importância fisiológica do organismo é o ácido carbônico (H2CO3), o qual se encontra em equilíbrio com CO2 dissolvido2. Para manter o pH em limites favoráveis ao processo vital, o organismo lança mão de uma série de mecanismos bioquímicos, com destaque para o papel desempenhado pelo chamado sistema tampão. O sistema tampão do organismo pode ser dividido em três grandes componentes: bicarbonato/ácido carbônico, proteína e fosfatos5. Uma solução tampão resiste às alterações do pH quando um ácido ou uma base é adicionada. Os tampões são uma mistura de componentes ácidos e básicos 2. Entre os tampões do espaço extracelular, o bicarbonato e as proteínas plasmáticas desempenham um papel relevante, enquanto a hemoglobina e os fosfatos estão em primeiro plano no compartimento intracelular 5. Num processo denominado tamponamento isoídrico, a maioria do H+ produzido não provoca alteração do pH ao nível tecidual porque a hemoglobina desoxigenada recém-formada imediatamente combina com ele. Quando o sangue atinge os pulmões, a hemoglobina libera íons hidrogênio para formar CO2. Graças a estes sistemas de tamponamento, pequenas alterações do EAB manifestam-se por um deslocamento do equilíbrio da reação dos tampões com atenuação de modificações significativas da concentração dos íons H+livres ou do pH. O tampão bicarbonato é o mais importante, principalmente por ser um sistema aberto. Ou seja, o H2CO3, encontra-se em equilíbrio com o CO2 dissolvido, o qual é imediatamente removido pela ventilação. A ventilação remove o dióxido de carbono da reação, impedindo-o de atingir equilíbrio com os reagentes (Eq. 2.1). Consequentemente, a atividade de tamponamento pode continuar sem ser retardada ou interrompida 2: A partir desta reação química, é possível deduzir a Equação de Henderson – Hasselbach (Eq. 2.2), fundamental para o entendimento do equilíbrio acidobásico2: Assim, é possível concluir que a manutenção do pH depende, fundamentalmente da função renal (numerador da equação) e da função respiratória (denominador da equação) (Eq. 2.3)5. Portanto, observa-se que a conservação do potencial hidrogênio iônico em limites compatíveis com os processos vitais é obtida através de mecanismos de tamponamentos físicoquímicos (extra e intracelulares), compensação respiratória através do controle plasmático da pressão do gás carbônico (PaCO2) e subsequente evolução da volatilidade do ácido CO2, controle plasmático de bicarbonato (HCO3-) através das mudanças na secreção e reabsorção renal de H+ e produção de bicarbonato e, por fim, excreção de ácidos voláteis 6. O potencial hidrogeniôico (pH) é um índice que indica a acidez, neutralidade ou alcalinidade de um meio qualquer, com um valor normal variando na literatura de 7,34- 7,42 para 7,35-7,45 que equivalem a [H+] de 37-46 ou 35-45 nmol/L numa temperatura de aproximadamente 37°C 2,4. O pH é uma transformação matemática (pH= -log[H+]) que varia inversamente com concentração de hidrogênio. Quando [H+] aumenta, o valor do pH diminui, e vice-versa. Ao abordar um distúrbio ácido-base intuitivamente mais fácil raciocinar em função da concentração de H+, a exemplo de qualquer outro eletrólito. Entretanto, a concentração de hidrogênio ionte não pode ser determinada diretamente. Ao contrário, ela é estimada a partir da medida do pH, cujo valor no sangue se situa em torno de 7,4. Além disso, a atividade biológica de H+ é uma função do seu potencial químico, que se relaciona mais proximamente com o logarítimo de [H+] do que com seu valor absoluto, portanto, o pH reflete mais fielmente os efeitos fisiológicos do hidrogênio ionte7. As respostas compensatórias principais do organismo humano ocorrem nos pulmões e nos rins que são os pivôs na excreção de ácidos do corpo. Os pulmões somente podem excretar ácido volátil (CO2), o qual é eliminado pela ventilação, por isso os pulmões removem rapidamente grandes quantidades de ácidos fixos do sangue 8. Os rins também removem ácidos fixos, mas de uma maneira relativamente lenta. Nos indivíduos saudáveis os mecanismos de excreção de ácido dos dois órgãos encontram-se num equilíbrio delicado Nas condições em que a habilidade renal de manter a homeostase foi perdida, os pulmões compensam o desequilíbrio de forma aguda ou crônica, para preservar um pH fisiologicamente aceitável 8. Nos indivíduos doentes, a falha de um sistema pode ser parcialmente contrabalanceada por uma resposta compensatória do outro2. A partir destas informações reconhecem-se os desequilíbrios ácido-básicos, os quais estão associados ao desenvolvimento de disfunções de órgãos e sistemas e ao aumento do número de óbitos em pacientes internados em terapia intensiva. Sendo assim, observa-se que os desequilíbrios ácido-base decorrem de uma alteração na concentração do hidrogênio ionte no Líquido Extracelular. E a caracterização de qualquer distúrbio necessita apenas da medida de duas variáveis, pH e pCO2, e da derivação de uma terceira, HCO3-, sem necessidade de termos ou derivações adicionais. A diminuição do pH do sangue é chamada acidemia, enquanto o distúrbio que causou recebe o nome de acidose. Do mesmo modo, o aumento do pH do sangue, alcalemia, é causado pelo distúrbio chamado alcalose 7. Distúrbios respiratórios ocorrem se a principal mudança á a alteração da pCO 2, já os distúrbios metabólicos acontecem quando as alterações primárias envolvem a concentração plasmática de HCO3-. Deste modo, se a pCO2 estiver aumentada (ex. asfixia, doenças pulmonares crônicas e casos de hipoventilação tais como por administração de opiáceos) ou diminuída (ataques de ansiedade, altas altitudes e hiperventilação voluntária) estes distúrbios são referidos como acidose e alcalose respiratórias respectivamente. E se a concentração plasmática de HCO3- estiver diminuída através da adição de ácidos voláteis (ex. diabetes mellitus não controlada, insuficiência renal, diarréia grave, ingestão de cloreto) ou aumentada (ex. vômitos excessivos, ingestão crônica de bicarbonato de sódio etc), estes distúrbios são referidos como acidose e alcalose metabólicas respectivamente6. Destacam-se os distúrbios ácido-básicos os quais podem ser divididos clinicamente em simples, duplos e triplos: acidose metabólica, alcalose metabólica acidose respiratória aguda e crônica, e alcalose respiratória aguda e crônica (SIMPLES); acidoses e alcaloses mistas, acidose metabólica mais alcalose respiratória, alcalose metabólica mais acidose respiratória (DUPLOS), acidose mista mais alcalose metabólica, alcalose mista mais acidose metabólica (TRIPLOS) 9. É importante assinalar que os distúrbios ácido-básicos produzem no organismo respostas compensatórias conhecidas e que podem ser previstas através de fórmulas matemáticas. Caracteriza-se como distúrbio ácido-básico simples, aquele que apresenta resposta compensatória normal, ou seja, dentro da faixa esperada e calculada pela fórmula. Quando ocorre resposta compensatória anormal diz-se, então, que existe um distúrbio associado ou secundário 10. É a partir das respostas compensatórias dos pulmões e dos rins que se podem identificar os distúrbios como simples ou misto, e o passo fundamental para isto é a realização do diagnóstico hemogasométrico 9,11 . 2. Exame gasométrico e diagnósticos dos desequilíbrios ácido-básicos 2.1. Gasometria Arterial8 A gasometria arterial é um exame invasivo que mede as concentrações de oxigênio, a ventilação e o estado ácido-básico. Tipicamente, os valores gasométricos são obtidos quando o quadro clínico do paciente sugere uma anormalidade na oxigenação, na ventilação e no estado ácido-básico. Os níveis dos gases arteriais também são obtidos para avaliar alterações na terapia que podem afetar a oxigenação, tal como a mudança na concentração de oxigênio inspirado (FiO 2), níveis aplicados de pressão expiratória final positiva (PEEP), pressão das vias aéreas, ventilação (mudança de freqüência da respiração, alterações do volume corrente) ou equilíbrio ácidobásico (administração de bicarbonato de sódio ou terapia com acetazolamida). De uma forma geral se recomenda que a coleta de sangue arterial se dê com o paciente sentado, exceto naqueles acamados, com o paciente em repouso pelo menos 10 minutos antes da punção, e antes de qualquer manobra de função pulmonar. No pedido de gasometria devem constar todos os dados de interesse, como identificação do paciente, uso de medicamentos (broncodilatadores e vasodilatadores) e/ou oxigenoterapia, para uma correta interpretação clínica do exame. Ao escolher o local da punção deve-se considerar a facilidade de acesso ao vaso e o tipo de tecido periarterial, já que músculos, tendões e gordura são menos sensíveis à dor que periósteo e fibras nervosas. Normalmente, essa amostra é coletada na artéria radial, perto do punho, mas também poderá ser coletada pela artéria braquial ou femoral. A técnica de punção arterial deve seguir os passos: 1. 2. 3. 4. 5. paciente e médico devem estar em posição confortável; escolher o local de punção; limpeza da pele com álcool; perguntar ao paciente se tem alergia a anestesia e se está usando anticoagulante; injetar via SC pequena quantidade de anestésico local (0,3ml), que não contenha adrenalina, fazendo um botão anestésico que será massageado. Utiliza-se seringa de insulina com agulha fina. Como a anestesia local evita a dor, diminui a ansiedade e a hiperventilação, deve-se insistir na anestesia para punção arterial; 6. colocar o punho do paciente hiperestendido; 7. utilizar preferencialmente seringas de vidro (menor resistência), pequenas (3ml), previamente lubrificadas com heparina; 8. introduzir a agulha com o bisel voltado contra a corrente, formando um ângulo aproximado de 45 graus com a pele; 9. em condições ideais, deve-se obter um fluxo de sangue capaz de elevar o êmbolo da seringa de forma passiva (sem aspirar), colhendo entre 2-5ml; 10. comprimir com força o local da punção por aproximadamente 5 minutos, para prevenir a formação de hematoma. Alguns pacientes necessitam uma compressão mais prolongada; 11. garantir o fechamento hermético da seringa utilizando pasta na ponta da agulha, ou outro meio semelhante. A correta manipulação da amostra sanguínea arterial por técnico qualificado é tão importante quanto a adequada manutenção técnica dos aparelhos de medição, mesmo que se utilizem aparelhos automatizados. É imprescindível a anticoagulação da amostra com heparina, lembrando que uma quantidade excessiva da mesma pode alterar os resultados. Entre a coleta da amostra e sua análise não devem ultrapassar 10-15 minutos em condições normais, mantendo a hermeticidade da agulha todo o tempo. Se não há possibilidade de análise no referido tempo, a amostra arterial deve ser guardada em gelo moído, objetivando diminuir o metabolismo eritrocitário, evitando assim a diminuição da PO 2 e aumento da PCO2. Existem vários fatores que podem levar a erro na medida e, em conseqüência, a uma interpretação incorreta dos valores gasométricos, os quais são listados a seguir: 1. 2. 3. 4. 5. 6. 7. 8. 9. 10. 11. punção arterial dolorosa; punção venosa; excesso de heparina na seringa; bolhas na amostra; contaminação da amostra com ar; demora na análise da amostra; exposição da amostra ao calor; falta de calibração adequada do aparelho; falta de controle de qualidade; falta de manutenção preventiva; desconhecimento da FIO2 respirada pelo paciente, etc. Através da amostra de sangue arterial, o laboratório pode determinar as concentrações de oxigênio e de dióxido de carbono, assim como a acidez do sangue, que não pode ser mensurada em uma amostra de sangue venoso. 2.2. Diagnósticos dos distúrbios do equilíbrio ácido básico pela análise gasométrica A avaliação acido-básica do sangue é feita na grande maioria dos doentes que são atendidos em UTI, qualquer que seja a patologia de base. A sua avaliação é fundamental, pois, além dos desvios do equilíbrio acidobásico, propriamente ditos, pode fornecer dados sobre a função respiratória do doente e sobre as condições de perfusão tecidual. O diagnóstico das alterações do EAB é feito pela análise dos valores obtidos através da gasometria sangüínea. Como em todo exame laboratorial, existem fatores que podem influenciar seus resultados: a hiperventilação causada pelo temor induzido pelo procedimento; a heparina que é ácida e pode influenciar os valores do pH, pCO2 e pO2, em amostras pequenas; a presença de leucocitose e grande número de plaquetas que reduzirá o valor do pO2, dando a falsa impressão de hipoxemia; o resfriamento aumenta o pH e a saturação de oxigênio e diminui a pO2 além do halotano que aumenta falsamente os valores do pO2, porque o eletrodo para o pO2, no aparelho de gasometria, também responde ao halotano. A análise gasométrica mensura diretamente pH, pCO2 e pO2. O bicarbonato pode ser calculado através da equação de Henderson–Hasselbalch ou do método de Stewart 3,12, enquanto o Standerd Base Excess e o Excesso de Base (BE) são derivados de nomogramas computadorizados4. A análise gasométrica pode provê informações sobre função cardiopulmonar e homeostase bioquímica, as quais têm um valor inestimável para o diagnóstico e monitorização de intervenções terapêuticas. Talvez por isso, a interpretação hemogasométrica seja muitas vezes encarada como complexa e confusa13. Antes da análise das possibilidades diagnósticas da gasometria arterial, é importante que se definam os valores normais de seus parâmetros. Existem discordâncias na literatura especializada sobre gasometria a respeito destes valores de referência de normalidade, no entanto, por conveniência adotam-se os seguintes valores normais: Muitos profissionais intensivistas encontram dificuldades na interpretação clínica da gasometria arterial, e geralmente utilizam apenas os dados gasométricos para montar o diagnóstico, no entanto, a literatura especializada recomenda a utilização de formas mais precisas na composição dos diagnósticos, como as fórmulas de compensação e dosagem de eletrólitos9,13. De acordo com Bonniatti (2006)14, não há discordância, no entanto, quanto à necessidade de utilizar métodos que permitam entender a natureza destes distúrbios e conseqüentemente identificar atitudes que possam evitá-los e/ou corrigi-los. Os métodos mais utilizados para a realização do diagnóstico dos distúrbios do equilíbrio ácido-básico são o de Astrup e o Standerd Base Excess (SBE). O primeiro avalia o pH, a pressão parcial de gás carbônico no sangue arterial (PaCO2), o bicarbonato (HCO3-), e os gaps: anion gap, Δanio gap, anion gap urinário e gap osmolar. Em contra partida, o Standerd Base Excess é um método que avalia o pH, PaCO2 e o próprio SBE9. Segundo Astrup (1960)15, qualquer desvio da tensão normal de dióxido de carbono (PCO2 arterial) reflete um distúrbio ácido-básico primário ou compensatório. E qualquer desvio em relação ao teor normal de base no sangue reflete um distúrbio ácido-base não-respiratório, quer primário ou compensatório. O conteúdo básico deve ser expresso em Standard bicarbonato, ou como Excesso de Base ou déficit de base. Standard bicarbonate é a concentração de bicarbonato no plasma, quando o sangue inteiro foi equilibrado com o dióxido de carbono em uma PCO2 de 40 mmHg a 38 ° C, e quando a hemoglobina está totalmente oxigenada16. Excesso de base ou déficit de base diretamente expressam a quantidade (em mEq) de uma base forte (ou ácido) adicionado por litro de sangue, quando a média normal é arbitrariamente fixada em zero. Zero, portanto, corresponde à normal média para bicarbonato padrão (22-9 mEq. / l). Quando o termo base excess (BE) é utilizado exclusivamente os valores positivos irão expressar o excesso de base, enquanto que os valores negativos irão expressar o déficit de base (= excesso de ácido), e isto torna a simplicidade na prática17. 3. Causas mais comuns dos distúrbios do equilíbrio ácido-básico Acidose respiratória: A elevação da pCO2 acima do intervalo normal indica inadequada ventilação alveolar como resultado de fracasso muscular respiratório, patologia do Sistema Nervoso Central ou intoxicações medicamentosas. Outras causas incluem: a produção de CO2 em excesso por estados de hipercatabolismo, inadequadas ventilações volume minuto ou administração exógena de CO2 (por exemplo, insuflação peritoneal durante laparoscopia) 4 . Alcalose respiratória: estimulação do Centro Respiratório Bulbar (CRB) (encefalites, emoção, febre e infecções sistêmicas, intoxicação por salicilato, hipoxemia); reflexo (choque); por estimulação de receptores torácicos (atelectasia, pneumopatias agudas); vários mecanismos (assistência ventilatória, insuficiência hepática/amônia, lesões do SNC, infecções, hipoxemia, hipertireoidismo) 5. Alcalose metabólica: a causa primária é usualmente hiperventilação alveolar causando uma queda na PaCO2. É importante analisar a PaO2 e determinar se é hiperventilação para compensar uma hipóxia arterial e uma patologia pulmonar subjacente. As causas centrais incluem dor, ansiedade e doença do SNC. Há também a possibilidade de perda de ácido forte, seja de forma aguda (vômitos) ou crônica (diarréia crônica, corticóides, diuréticos) em que há perda de potássio. O ganho de bicarbonato TAM bem deve ser considerado, e pode acontecer nas formas: Aguda exógena (infusão de bicarbonato); Aguda endógena (“stress”); Crônica (ingestão de antiácidos) 4,5. Acidose metabólica: Por adição de ácido forte: Aguda exógena (infusão de NH4Cl); Aguda endógena (acidose láctica/ácido láctico, acidose diabética/corpos cetônicos, cetose de jejum, azotemia por IRA/ácido sulfúrico, ácido fosfórico), Crônica: azotemia/IRC. Por perda de bicarbonato: Aguda (diarréia); Crônica (fístula pancreática, acidose tubular renal)18. 4. Princípios gerais do tratamento dos distúrbios do equilíbrio ácido-básico5 Antes de comentar sobre as condutas a serem tomadas nos casos de distúrbios do equilíbrio ácido- básico destacam-se alguns preceitos devem ser seguidos para um adequado tratamento dos desvios do EAB, lembrando-se sempre que a gasometria é um exame subsidiário que deve ser analisado em conjunto com os dados clínicos do paciente. Observa-se que: o tratamento deve fundamentar-se em dosagens frequentes e seriadas dos gases e do pH sangüíneo; não se deve confiar de forma absoluta em qualquer resultado de laboratório; não corrigir as alterações muito rapidamente; normalizar, inicialmente, o volume sanguíneo e a perfusão tecidual e não corrigir o pH, o cálcio e o potássio isoladamente. 4.1. Tratamento da acidose respiratória Oxigenação e ventilação adequadas: manutenção das vias aéreas livres, correção da hipóxia e/ou hipercapnia, remoção de secreções e tratamento da infecções respiratórias, quando presentes. Um erro frequente é a administração de bicarbonato de sódio com base apenas no valor do pH. 4.2. Tratamento da alcalose respiratória O objetivo é combater a hiperventilação com sedação de pacientes ansiosos e histéricos. É um distúrbio freqüente em pacientes submetidos a assistência respiratória, principalmente se curarizados. A diminuição da hipoventilação pode ser tentada pelo aumento do espaço morto, diminuição do volume corrente e pela utilização da Ventilação Mandatória Intermitente (IMV), que tem por característica a normalização da pCO2, uma vez que permite a respiração espontânea, intercalada pelo auxílio do respirador. 4.3. Tratamento da acidose metabólica Utiliza-se o bicarbonato de sódio, cuja quantidade necessária para a correção da acidose, em mEq, é fornecido pela Fórmula de Mellengard-Astrup: O tratamento da acidose metabólica pode ser feito por estimativa, caso não se disponha dos dados gasométricos, utilizando-se, em média, 2 mEq/Kg de bicarbonato de sódio como dosagem inicial, seguidos de dosagens criteriosas. Erro comum é o emprego desta solução alcalina em excesso, que pode aumentar muito a osmolaridade do sangue, dificultando as trocas celulares, ou, ainda, induzir arritmias cardíacas pela alcalose metabólica. O bicarbonato de sódio é, universalmente, o elemento utilizado para tratar a acidose metabólica na parada cardíaca. Tem sido estudada a utilização do tampão TRIS (THAM), que teria a vantagem de não ser doador de gás carbônico e não necessitar de hiperventilações, além de sua provável ação superior nas correções das acidoses intracelulares. Como não se observa a utilização rotineira do tampão TRIS, pode-se inferir que, em termos de custo- benefício, não deva haver grandes vantagens sobre o uso do bicarbonato de sódio. 4.4. Tratamento da alcalose metabólica Reposição de cloretos, acetazolamida, cloridrato de arginina, HCl (0,1N), NH4Cl . Desde os anos setenta, a utilização do cloridrato de arginina foi utilizado no Centro de Terapia Intensiva do Hospital das Clínicas de Ribeirão Preto. A sua administração era empírica (7,5 g/12 horas), uma vez que só a sua fração catabolizada seria acidificante. Conseguiam-se reversões parciais da alcalose metabólica, que se recuperavam algumas horas depois. Com o tempo, passou- se a utilizar mais a reposição de cloreto de potássio em associação com a acetazolamida, a qual, inibindo a anidrase carbônica, aumenta a excreção urinária de bicarbonato. A experiência com HCl foi pequena e nunca se utilizou o NH4Cl por ser neurotóxico. Considerações finais Os distúrbios ácido-básicos estão associados ao maior risco de disfunção de órgãos e sistemas e óbitos em pacientes internados em terapia intensiva. Por este motivo, o conhecimento dos mecanismos fisiológicos homeostáticos de controle do equilíbrio ácido-base é de fundamental importância. Para reconhecer esses mecanismos, é essencial a realização do diagnóstico do distúrbio do equilíbrio ácido-base. Para tanto, se utiliza a gasometria arterial que é uma das formas mais comuns de investigação clínica em situações de emergência e de cuidados críticos, tendo valor inestimável para o diagnóstico e acompanhamento das intervenções terapêuticas. No entanto reconhece-se a existência de pouco conhecimento a respeito deste exame e das formas de análise de seus resultados, principalmente, no que diz respeito aos métodos especiais de análise das formas de compensação dos distúrbios do equilíbrio ácido-básico. Percebe-se a urgência em incentivar os profissionais intensivistas a compreenderem e utilizarem de métodos de diagnóstico gasométrico na busca da realização de exames corretos e precisos. Sendo assim, sugerem-se mais estudos voltados para estas formas de análise gasométrica, já que na saúde mundial busca-se atualmente pela excelência, representada pela realização de diagnósticos cada vez mais fidedignos. Referências 1. Rhodes A, Cusack RJ. Arterial blood gás analysis and lactate. Current Opinion in Critical Care. 2000;6: 227-231. 2. SCALAN G; WILKINS RL; STOLLER, JK. Fundamentos da Terapia Respiratória de Egan. 7.ed. São Paulo: Manole, 2000. 3. Sirker AA, Rhodes A, Grounds RM et al. Acid-base physiology: the “traditional” and the “modern”approaches. Anaesthesia. 2002;57:348-56. 4. Hubble SMA. Acid-base and blood gas analysis. Anaesth Intensive Care. 2004;7(11):427-431. 5. Évora PRB et al. Distúrbios do equilíbrio hidroeletrolítico e do equilíbrio acido básico: Uma revisão prática. 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