X Encontro Nacional de Educação Matemática Educação Matemática, Cultura e Diversidade Salvador – BA, 7 a 9 de Julho de 2010 A TRANSIÇÃO DO ENSINO MÉDIO PARA O ENSINO SUPERIOR Gilda de La Rocque Palis Departamento de Matemática da PUC-Rio Pós Graduação do Departamento de Educação da PUC-Rio Professor Colaborador da Pós-Graduação em Ensino de Matemática da UFRJ Resumo: Este texto faz uma apresentação inicial do programa de pesquisa & desenvolvimento curricular que vem sendo realizado em uma disciplina matemática oferecida no início do ciclo superior da área técnico-científica. A investigação levada a cabo visa à melhor compreender tanto as dificuldades dos alunos com os conteúdos matemáticos desenvolvidos na disciplina quanto os resultados das intervenções pedagógicas realizadas, objetivando construir conhecimentos para lidar com a problemática da transição ensino médio-superior. Palavras-chave: Educação Matemática Superior; Transição Ensino Médio-Superior; Pesquisa sobre a Própria Prática. INTRODUÇÃO1 Como acolher e orientar a aprendizagem dos estudantes que ingressam nos cursos universitários iniciais de matemática, requeridos para estudos nas áreas de engenharia, ciências e matemática, é algo que persiste como um desafio para nós e para diversas universidades pelo mundo. A transição matemática ensino médio-superior na área técnicocientífica tem sido objeto de preocupação internacional e se configura como um desafio para professores e uma barreira para alunos. Diversos problemas persistem nos cursos iniciais universitários de matemática, dentre eles: os absurdos índices de abandono e insucesso que afastam, de forma permanente, uma parcela expressiva de gerações que alcançam o ensino superior das carreiras na área técnico–científica; dificuldades de adaptação do alunado ao que se ensina na universidade, aos seus processos de instrução e às suas expectativas de aprendizagem. Para Bass (1998), a transição matemática ensino médio-superior na área técnicocientífica é uma das quatro áreas da educação matemática mais criticamente carentes de 1 Agradeço a todos os alunos, professores e pessoal administrativo e técnico envolvidos neste trabalho. Em particular às minhas colaboradoras neste desafio: Silvana Marini Rodrigues Lopes e Renata Martins da Rosa, professoras do Departamento de Matemática da PUC-Rio. Anais do X Encontro Nacional de Educação Matemática Palestra 1 X Encontro Nacional de Educação Matemática Educação Matemática, Cultura e Diversidade Salvador – BA, 7 a 9 de Julho de 2010 pesquisa sistemática. Harel (2006) confirma essa carência, ao dizer que tal transição não tem sido suficientemente examinada. Professores universitários não compreendem as questões envolvidas nesta transição do ponto de vista dos professores secundários, nem vice versa. Há necessidade urgente de uma melhor comunicação entre os dois setores educacionais. (HONG et al. 2009; CLARK e LOVRIC, 2008) O professor que trabalha na área de Matemática com alunos recém-ingressos no Ensino Superior não tem, em geral, uma percepção clara das aprendizagens anteriores dos alunos e tendem a supervalorizá-las ou subvalorizá-las. Além disso, se detém pouco a analisar a qualidade do conhecimento que o seu aluno está construindo. O professor universitário das disciplinas iniciais de matemática precisa reconstruir uma série de conceitos e de procedimentos cuja construção começou nos Ensinos Fundamental e Médio: por exemplo, os conceitos de número e de função, objetos básicos de trabalho em cursos de Cálculo. Este professor se pergunta: Com que formas de raciocínio, conceitos e processos matemáticos os meus alunos têm familiaridade? Que posso fazer para criar uma ponte entre o conhecimento já construído por eles e aquele que eu pretendo que construam? Há quinze anos, em Palis (1995), já procurávamos refletir sobre esta problemática e sobre porquê utilizar computadores em Cálculo, examinando quais necessidades educativas seriam potencialmente supridas nas disciplinas de transição ensino médio-superior pela integração de ferramentas computacionais neste segmento educacional. Além disso, dizíamos que uma proposta realista de superação de pelo menos alguns dos problemas existentes teria que levar em conta as características do alunado em termos de preparação anterior e, da mesma forma, considerar suas expectativas, interesses e necessidades tanto acadêmicas como profissionais futuras. E mais, o computador, por si só, não traria soluções, pois não há nenhum efeito benéfico automático ligado ao seu uso; muitos estudos ainda seriam necessários para mostrar em que circunstâncias o seu emprego poderia promover ou facilitar a aquisição de habilidades e conceitos matemáticos específicos. Desde 1995, procurando lidar com a problemática da transição ensino médiosuperior, a PUC-Rio oferece um currículo diferenciado para alunos de engenharia e Anais do X Encontro Nacional de Educação Matemática Palestra 2 X Encontro Nacional de Educação Matemática Educação Matemática, Cultura e Diversidade Salvador – BA, 7 a 9 de Julho de 2010 ciências que têm um desempenho considerado insuficiente2 na seleção anual de novos candidatos para o seu Centro Técnico Científico. Neste novo currículo3, o programa usual da disciplina semestral Cálculo de uma variável (Cálculo I) é coberto em dois semestres, nas disciplinas Cálculo A e Cálculo B.4 De forma bem resumida, Cálculo A trabalha, atualmente, uma revisão e aprofundamento de pré-requisitos algébricos ao Cálculo, funções polinomiais, trigonométricas, Cálculo Diferencial e aplicações; enquanto Cálculo B trata de funções racionais, logarítmicas, exponenciais e Cálculo Integral. Neste texto, tratamos da disciplina Cálculo A na qual o software Maple 5 foi integrado, há quatro anos.6 A criação da disciplina Cálculo A, então denominada Introdução ao Cálculo, está apresentada em Palis (1995); diferentes estágios da integração do Maple a Cálculo A vem sendo descritos em Palis (2007, 2008, 2009a, 2009b) A integração do Maple à disciplina Cálculo A (CA) é bastante abrangente, o software é usado para desenvolvimento conceitual, resolução de problemas e avaliações. Não se trata somente de uma justaposição de atividades baseadas no Maple, como um anexo, em uma disciplina essencialmente inalterada em outros aspectos. Os comandos do Maple não são ensinados em separado dos conteúdos da disciplina; os comandos são introduzidos na medida em que vão sendo necessários ao longo do semestre buscando um equilíbrio entre o computador e o trabalho com papel e lápis (P & L). Atualmente, a disciplina Cálculo A (CA) é ministrada em oito aulas de 50 minutos por semana, metade delas em salas equipadas com lousas tradicionais, datashow e um computador por aluno (menos de 30 alunos por turma). A PUC-Rio possui uma licença de uso do Maple; os professores das disciplinas em que este programa é usado e os novos alunos recebem uma cópia licenciada do mesmo. A equipe de professores de CA é composta de professores universitários de matemática ou engenharia com tempo integral, 2 A coordenação do Ciclo Básico do Centro Técnico Científico é responsável pela indicação dos alunos que devem se matricular neste currículo. 3 Esta é a configuração dos últimos três anos; este semestre estendido tem sofrido muitas modificações desde sua criação em 1995. 4 A maior parte dos estudantes nestas disciplinas é de Engenharia 5 O Maple é um software do tipo CAS (Computer Algebra System), em português chamado de Sistema de Computação Algébrica (SCA) ou Sistema de Cálculo Algébrico Simbólico. Uma parte substancial do que é dito sobre a integração do Maple pode se aplicar a outros sistemas de computação algébrica. 6 Em anos subseqüentes, o software Maple foi sendo integrado nas demais disciplinas de Cálculo. Atualmente todas as disciplinas de Cálculo o utilizam em atividades didáticas, com diferentes abrangências. Anais do X Encontro Nacional de Educação Matemática Palestra 3 X Encontro Nacional de Educação Matemática Educação Matemática, Cultura e Diversidade Salvador – BA, 7 a 9 de Julho de 2010 professores de matemática (com mestrado ou doutorado em matemática ou educação matemática) em tempo parcial, e monitores. Nas salas de aula equipadas com computadores, os professores integram “fala e giz” com projeções das telas de seu computador; os alunos integram papel e lápis com o trabalho em seus computadores. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA Esta integração tecnológica que se dá em uma disciplina de transição do ensino médio para o superior é um programa inovador que se apóia num processo cíclico de desenvolvimento curricular e investigação de sua realização prática, no âmbito de uma pesquisa qualitativa longitudinal que se caracteriza como participante ou pesquisa sobre a própria prática (PALIS, 2009). Seu estudo global se filia ao paradigma da avaliação iluminativa (PARLETT e HAMILTON, 1972). A avaliação iluminativa se preocupa mais com descrições e interpretações do que medidas e predições. Procuramos ir alem de saber se os alunos atingem ou não certos padrões em critérios preestabelecidos. Para nós o mais importante é aprender o que os alunos aprendem face às novas circunstâncias pedagógicas e tecnológicas presentes na inovação para aprendermos “o que” podemos ensiná-los e “como” ensiná-los. O nosso foco são os processos desenvolvidos pelos alunos e pelos professores, sempre nos questionando se estes poderiam ser de outra forma. Ao início de nossa integração computacional a CA, desenhamos um currículo7 para a disciplina que pudesse acomodar o aprendizado do próprio Maple e aproveitar as potencialidades do programa no desenvolvimento de conceitos e resolução de problemas. Diversos estudos empíricos e teóricos fornecem embasamento ao nosso trabalho. A seguir, citamos alguns destes estudos. Empregamos, por diversas vezes, tecnologia computacional como um instrumento mediador para aprofundar e ampliar o aprendizado matemático de alunos em mini-cursos 7 “Currículo” aqui denota bem mais do que uma lista de conteúdos; abrange os conteúdos e a forma como estes conteúdos se organizam pedagogicamente na sala de aula ou laboratório e também o material de apoio instrucional e avaliativo, i.e, inclui metodologias de ensino e práticas pedagógicas acopladas aos conteúdos de ensino. Anais do X Encontro Nacional de Educação Matemática Palestra 4 X Encontro Nacional de Educação Matemática Educação Matemática, Cultura e Diversidade Salvador – BA, 7 a 9 de Julho de 2010 para professores de nível secundário e em projetos extracurriculares no âmbito de disciplinas iniciais de matemática na universidade. (PALIS, 1991, 1999, 2000; PALIS e SANTOS, 1999). Em Palis (1999), observamos a necessidade de caracterizar cuidadosamente a diferença entre aproximação (saída numérica de dados do computador) e exatidão (resultados matemáticos teóricos), erros de arredondamento e como a aparência de um gráfico muda com as escalas usadas para traçá-lo em um ambiente computacional. Em Palis e Santos (1999), sugerimos que as limitações do computador devidas à sua natureza finita pareciam colaborar no aprendizado: a oposição entre o caráter infinito da abordagem teórica e o caráter finito da abordagem gráfico-numérica experimental podia dar significado a ambas e convencer alguns alunos da necessidade de argumentos teóricos ao estudar o comportamento de sequências numéricas. Nossos estudos empíricos prévios e o trabalho aqui descrito compartilham idéias teóricas sobre o uso de representações múltiplas e quadros de trabalho distintos, como expressas em Douady (1986) e Duval (1993,1999). A Teoria APOS, desenvolvida por Dubinsky e colaboradores, tem sido um referencial importante em nosso trabalho, tanto na escolha dos comandos do Maple a trabalhar com os alunos como na construção e análise de situações de aprendizagem. (DUBINSKY E MCDONALD, 2001; PALIS, 2002) VISÃO GERAL DO CONTEÚDO DO CURRÍCULO ATUAL Em anos prévios à integração do Maple, a disciplina CA já havia sido planejada e vinha sendo implementada com base em uma pedagogia subjacente que valoriza: participação ativa dos estudantes em atividades de sala de aula; interações entre diferentes registros de representação e quadros de trabalho; discussão dos alunos a respeito de diferentes resoluções de problemas e explicitação de raciocínios que as fundamentam. Este quadro de referência pedagógico foi mantido quando o Maple foi introduzido; além isso: interações entre diferentes registros de representação foram intensificadas e a abordagem funcional da álgebra pré-universitária foi ampliada. Ao mesmo tempo, para acomodar e aproveitar o ambiente computacional incluímos: o estudo de problemas de otimização resolvidos em contexto gráfico; um número maior de análises qualitativas de funções a partir de seus gráficos; construção de diversas seqüências de Anais do X Encontro Nacional de Educação Matemática Palestra 5 X Encontro Nacional de Educação Matemática Educação Matemática, Cultura e Diversidade Salvador – BA, 7 a 9 de Julho de 2010 aproximações de números reais; mais ênfase em transformações realizadas no mesmo registro de representação (algébrico ou gráfico), métodos numéricos para calcular aproximações de zeros de funções usando o comando “for” e construção de aproximações de funções mais complicadas por funções polinomiais, por exemplo. Com a integração do Maple, também ampliamos a ênfase no desenvolvimento de processos de auto regulação pelos alunos, enfatizando a necessidade de pensar no que se está fazendo e usar a ferramenta disponível na busca de significados e para verificações de respostas encontradas. Acreditamos que o aluno deva ser incentivado a desenvolver habilidades de controle de seus processos e resultados, o que pode ser facilitado pelo uso de um CAS, em teoria. Pollack (1987) diz que “a verificação é uma estratégia crucial em matemática em todos os níveis: O que você está fazendo é razoável de qualquer ponto de vista concebível? O fator principal do sucesso em matemática é o instinto de pensar nas mais variadas formas de verificar o que se fez”. O currículo desenhado ao início da implementação do Maple foi sendo modificado em decorrência dos estudos avaliativos realizados e da incorporação gradual de novas atividades apoiadas pelo Maple. Atualmente, o currículo de CA adquiriu uma certa estabilidade. Abaixo uma visão geral do mesmo. Revisão e extensão da álgebra escolar (sem Trigonometria). Comportamento e gráfico de funções, problemas de otimização (recursos gráficos do Maple para estudo de funções diferentes das quadráticas). Ajuste de curvas a dados empíricos. (Integração com a Física Introdutória). Funções potências, raiz quadrada, 1/x, polinomiais. Derivadas, comportamento e gráficos de funções, problemas de otimização. (uso P&L e recursos gráfico-algébricos do Maple). Funções trigonométricas e suas derivadas. Operações com funções. Regras do produto, quociente e da cadeia para diferenciação. Aplicações: comportamento e gráficos de funções, problemas de otimização e taxas relacionadas, cálculo de zeros de funções por bisseção, iteração e Newton, aproximações de funções por funções polinomiais. Anais do X Encontro Nacional de Educação Matemática Palestra 6 X Encontro Nacional de Educação Matemática Educação Matemática, Cultura e Diversidade Salvador – BA, 7 a 9 de Julho de 2010 Há vários motivos para esta organização do programa de CA, cuja ordem não é a ordem padrão encontrada nos livros-textos de Cálculo: O estudo qualitativo do comportamento de funções no contexto de problemas de otimização é introduzido logo ao início do semestre; os alunos precisam ter muitas oportunidades para desenvolver seu raciocínio funcional. O ensino médio, em geral, lida muito com incógnitas e pouco com variáveis. Este estudo, possibilitado pelos recursos do Maple, é um tópico novo para nossos alunos; assim, mais motivador e muitas vezes mais fácil de apreender do que conteúdos escolares já vistos e provavelmente revistos. Começamos o trabalho com derivadas aproximadamente na mesma época em que nossos alunos encontram “velocidades" em Introdução á Física. O operador diferencial D do Maple é introduzido assim que começamos derivadas para que os alunos possam calcular derivadas com P&L e/ou com o software. Funções trigonométricas são estudadas após o trabalho com derivadas e aplicações envolvendo várias outras classes de funções; de início, para que o início do estudo com estas funções já encontrassem os alunos com uma concepção de função mais adequada para enfrentar a transição da trigonometria do triângulo para a trigonometria de uma variável real. Esta providência se mostrou depois necessária por outros motivos, intrínsecos ao programa computacional usado. O Maple não resolve desigualdades trigonométricas e não dá a solução completa nem de equações simples como sen(x)=1. Para encontrar pontos de máximo / mínimo / inflexão, intervalos de crescimento / decrescimento e concavidades de uma função, como por exemplo, f ( x ) x 2 (sin( x )) , os alunos precisam associar um trabalho algébrico e gráfico com P&L e Maple. Se o aluno não está acostumado com tal amálgama de procedimentos, o problema é percebido como uma tarefa impossível. O adiamento deste tipo de estudo colocou o trabalho com funções trigonométricas em um momento no qual os alunos já estão familiarizados com abordagens diferentes para resolver um mesmo problema. Desta forma estão preparados para encarar a possibilidade ou necessidade de usar uma associação de procedimentos para resolver problemas envolvendo funções trigonométricas Anais do X Encontro Nacional de Educação Matemática Palestra 7 X Encontro Nacional de Educação Matemática Educação Matemática, Cultura e Diversidade Salvador – BA, 7 a 9 de Julho de 2010 Temos enfrentado muitos desafios complexos durante a realizalçao deste projeto de pesquisa e desenvolvimento. Segundo Lopez (1999): “A maior parte dos professores universitários que escolhem usar um sistema de computação algébrico em sala de aula não compreendem realmente as dificuldades com as quais terão que se defrontar”. Duas questões importantes se colocaram para nós desde o início deste trabalho? O que fazer com relação às dificuldades algébricas dos alunos nos mais variados aspectos, englobando manipulações algébricas, construções conceituais e o próprio vocabulário técnico em matemática? Como integrar o uso do computador nas avaliações da disciplina? Trataremos destes temas na apresentação oral deste trabalho. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BASS, H., Research on university-level mathematics education: (Some of) what is needed, and why? Pre-Proceedings of the ICMI Study Conference on the Teaching and Learning of Mathematics at University Level. 1998. CLARK, M; LOVRIC, M. Suggestion for a Theoretical Model for Secondary-Tertiary Transition in Mathematics. Mathematics Education Research Journal, v. 20, n. 2, p. 2537, 2008. DOUADY, R. Jeux de cadres et dialectique outil-objet. Recherches en didactique des mathématiques, v. 7.2, p. 5-31, 1986. DUBINSKY, E.; MCDONALD, M. 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