O PAPEL ARGUMENTATIVO DOS VALORES EM AÇÕES DE LIBERDADE DO SÉCULO XIX NA COMARCA DO RIO DAS MORTES1 THE ROLE OR ARGUMENTATION OF VALUES IN 19TH CENTURY LAW SUITS AT THE DISTRICT OF RIO DAS MORTES Carla Leila Oliveira Campos* Cristiano Lima da Silva** Sabrina Marcília de Oliveira*** Resumo Este trabalho se insere no quadro teórico da Análise do Discurso e objetiva analisar os valores enquanto estratégias argumentativas em ações de liberdade do século XIX na Comarca do Rio das Mortes. Analisamos dois processos: Anna Crioula (1838) e Julia Affricana (1885). Nessas análises, observamos que o próprio discurso em defesa da alforria é atravessado pelas restrições da formação discursiva escravocrata. Palavras-chave: Discurso, História, Valores, Ações de Liberdade. Abstract Within the theoretical framework of Discourse Analysis this article aims to investigate the role of values as argumentative strategies in freedom lawsuits of the nineteenth-century in the district of Rio das Mortes. We analyzed two cases: Anna Crioula (1838) and Julia Affricana (1885). In these analyses we observe that the defense discourse of slave's freedom is crossed by the restriction of the slavery discursive formation. Key words: Discourse, History,Values, Freedom Lawsuits. 1 Introdução O presente trabalho se insere no quadro teórico da Análise do Discurso (AD) e tem como objetivo analisar os valores evocados enquanto estratégias argumentativas que sustentavam as ações de liberdade de Anna Crioula, datada de 1838, e a de Júlia Affricana, de 1885, movidas na Comarca do Rio das Mortes, que tinha São João del-Rei2 como sede administrativa. Para tanto, levando-se em consideração que para a AD os efeitos de sentido criados pelo texto – enquanto manifestação discursiva – não podem ser compreendidos fora do contexto sóciohistórico de produção e circulação desses textos, destacamos a adoção de uma abordagem interdisciplinar que articula aspectos teóricos e metodológicos da teoria da linguagem proposta com uma abordagem das configurações históricas do século XIX, bem como das relações entre os sujeitos sociais envolvidos nesses processos de ação de liberdade. Dessa forma, este trabalho subdivide-se em três momentos. Em um primeiro, apresentaremos o quadro teórico-metodológico de análise do corpus, abordando alguns conceitos fundamentais da AD, a metodologia de análise e uma discussão sobre os valores enquanto estratégias argumentativas. Em um segundo momento, será realizada uma breve contextualização histórica do período em que os processos ocorreram, bem como da tramitação legal desses processos. Finalmente, apresentaremos a análise do corpus mencionado com base nos aspectos teóricos descritos. 2 A Abordagem Teórico-metodológica da AD A AD nasceu tendo como base a interdisciplinaridade ao englobar em suas preocupações não só a linguística, como também a história e a psicologia. Assim, para Maingueneau (1997), a escola francesa de análise do discurso filia-se a certa tradição intelectual europeia (sobretudo francesa) acostumada a unir reflexões sobre texto e história. Tomando-se como pano de fundo esse caráter essencialmente interdisciplinar da AD, podemos defini-la como o estudo linguístico das condições de produção de um enunciado. Linguístico, porque ela se apoia nos métodos e conceitos da linguística para realizar suas análises, adotando, no entanto, uma metodologia que ultrapassa os estudos linguísticos realizados até a época de seu surgimento. A significação discursiva é formada por meio da inter-relação entre dois espaços de produção de sentido externo e interno e da inter-relação entre dois espaços enunciativos, de produção e interpretação com interposição de uma avaliação, sendo que ambas se articulam ao mesmo tempo uma sobre a outra. Assim, para Possenti (2007), a AD é marcada por profundas rupturas com relação aos outros campos da linguística, sendo que falar em ruptura é o mesmo que estabelecer uma problemática nova, ou seja, a ocupação do mesmo campo "de outra forma". Para o autor, a AD formula uma teoria da leitura que começa rompendo, fundamentalmente, com a Análise do Conteúdo e com a filologia. Os pressupostos teóricos da AD se desenvolveram no campo da sociologia, da história e da psicologia, trazendo para o interior das análises linguísticas as contribuições desenvolvidas nesses campos do conhecimento. Desse modo, para a AD, o sentido de um texto só pode ser compreendido levando-se em consideração suas condições de produção, ou seja, sua contextualização histórica e as relações sociais existentes entre os sujeitos produtores desse texto. A ruptura da AD com a Análise de Conteúdo se dá tanto pela crítica da leitura baseada em categorias temáticas quanto por uma diferente abordagem do sentido. Em lugar de seu tratamento como informação, a AD introduz a noção de efeito de sentido (efeitos de linguagem presentes na superfície textual e que levam os leitores a perceberem determinado(s) sentido(s) para o texto) entre interlocutores. Essa noção de efeito de sentido também é fundamental para que se compreenda a ruptura com a filologia, que se acreditava capaz de conhecer a significação ou a intenção do produtor textual (Pêcheux, 1969 apud Possenti, 2007, p. 358). Nesse sentido, um dos principais pressupostos teóricos da AD – e que vem romper com a tradição linguística – é o fato de que a língua não é transparente, não é representação direta da realidade, pois toda construção linguística é clivada pelos efeitos da história e da sociedade em que se inscreve. Assim, não se pode aceitar que, dada uma palavra, seu sentido seja óbvio, independentemente das relações sociais existentes entre os sujeitos que a produziram. Não há, portanto, um sentido único para uma palavra, pois esse sentido se constrói na relação entre todas as palavras de um texto e na relação destas com o contexto sócio-histórico em que esse texto foi produzido. Não basta, portanto, o estudo imanente do texto sem se considerarem as relações que este estabelece com seu contexto de produção e com as formações discursivas em que se inscreve. Segundo Possenti (2007), para a AD o texto não é uma unidade de análise se não associarmos texto e contexto. A relevância do texto para a AD decorre do fato de que cada texto é parte de um arquivo, podendo ser tomado como uma superfície discursiva, uma manifestação de um processo discursivo específico. Um texto faz sentido não somente por sua relação com o contexto, ou em decorrência de conhecimentos do leitor, mas por incluir-se em uma formação discursiva3, em função de uma memória discursiva, do interdiscurso, que o texto retoma e do qual é parte. Todo texto significa em relação às suas condições de produção e ao interdiscurso. As condições de produção referem-se ao conjunto dos elementos que estão envolvidos na produção discursiva (como o destinatário, o destinador, o referente e as eventuais antecipações de imagens), sendo que o elemento dominante pode variar de caso para caso. A questão do sentido para a AD, segundo Possenti (2007), refere-se ao fato de que o sentido de uma palavra se resolve na medida em que uma delas pode ser substituída por outra, no interior de uma certa formação discursiva. Uma palavra é formada por inúmeros significados, pois existe uma mútua substituibilidade. Assim, se há a possibilidade de escolha entre diferentes formas de dizer, a pergunta que se coloca é: por que o que foi dito o foi dessa forma e não de outra? Brandão (1993) destaca com bastante ênfase a questão do papel das formações discursivas que possibilitariam a determinação dos elementos que compõem o discurso, a saber: os objetos que aparecem, coexistem e se transformam em um "espaço comum" discursivo; os diferentes tipos de enunciação que podem permear o discurso; os conceitos em suas formas de aparecimento e transformação em um campo discursivo, relacionados em um sistema comum; e os temas e as teorias, isto é, o sistema de muitas estratégias capazes de prestar conta de uma formação discursiva, permitindo ou excluindo certos temas ou teorias em favor de outros. Essas regras de formação discursiva sempre põem adiante um sistema de relações entre objetos, tipos enunciativos, conceitos e estratégias. A autora caracteriza o discurso, portanto, como um sistema de estratégias das quais o locutor se utiliza para transmitir o enunciado. Permitindo ou excluindo certos temas ou teorias de seu discurso, o sujeito busca apagar as contradições e as formas de conhecimento que negam o seu dizer, dando a ideia de unicidade (Brandão, 1993). Para Maingueneau (2007), entretanto, essa unicidade é apenas aparente, já que as formações discursivas não podem ser compreendidas enquanto blocos fechados de controle dos sentidos. Para o autor, aliás, os limites das formações discursivas não estão claramente determinados, havendo uma primazia do interdiscurso com relação ao intradiscurso. Levando em conta, portanto, o caráter essencialmente interdisciplinar da AD e as considerações acerca do sentido e do papel das formações discursivas na produção desse sentido, elegemos os valores como categoria de análise dos processos que compõem o corpus da pesquisa. Nossas análises objetivam, portanto, compreender como os valores expressos nos textos dos processos trabalham enquanto estratégias argumentativas que procuram sustentar o pedido de alforria desses escravos em uma sociedade na qual, em muitos dos casos, não havia lei que justificasse tal liberdade. Nessas análises, procurando respeitar a abordagem metodológica da AD, consideraremos esses textos enquanto superfície de manifestação das relações sociais vigentes na época em que os mesmos foram produzidos. Nosso trabalho se desenvolverá, portanto, na relação entre as propriedades internas do discurso e o exterior linguístico, "procurando apreender como no linguístico as condições sócio-históricas de produção" se manifestam (Brandão, 1993, p. 83). 2.1 Os Valores Enquanto Estratégias Argumentativas Segundo Perelman e Olbrechts-Tyteca (2005), juntamente com as hierarquias e os lugares do preferível, os valores são objetos de acordo em torno dos quais se busca a adesão apenas de grupos particulares: Estar de acordo acerca de um valor é admitir que um objeto, um ser ou um ideal deve exercer sobre a ação e as disposições à ação uma influência determinada, que se pode alegar numa argumentação, sem se considerar, porém, que esse ponto de vista se impõe a todos. A existência dos valores, como objetos de acordo que possibilitam uma comunhão sobre modos particulares de agir, é vinculada à ideia de multiplicidade de grupos (p. 84). Para os autores, são nos campos político, jurídico e filosófico, principalmente, que os valores intervêm como base de argumentação do desenvolvimento do discurso. Nesses campos, a utilização dos valores como base do processo argumentativo motiva o ouvinte a fazer certas escolhas ao invés de outras, justificando as primeiras de forma a se tornarem aceitáveis. Dessa forma, enquanto em outros campos os valores são adotados como ponto de partida para a argumentação, nos campos citados eles são utilizados ao longo de todo o processo argumentativo. Daí o porquê de propormos um trabalho utilizando os valores como categorias de análise do discurso jurídico. Assim, se os valores relacionam-se a grupos particulares, identificar aqueles que um locutor defende, ou apresenta como justificativa para suas ações e projetos em seu discurso, é localizá-lo no grupo social de que faz parte. Outra importante característica dos valores, segundo Perelman e Olbrechts-Tyteca (2005), que talvez justifique a sua utilização estratégica no campo jurídico, é o fato de "não podermos subtrairnos ao valor negando pura e simplesmente" (p. 85). Em face de um valor, o interlocutor pode desqualificá-lo, subordiná-lo a outros valores ou interpretá-lo, mas não simplesmente rejeitá-lo. Apesar de os valores estarem associados a grupos particulares, alguns deles, quando inseridos num determinado sistema de crenças, valorizáveis aos olhos de todos, podem receber o estatuto de fatos ou verdades. Esses valores são aqueles chamados pelos autores citados de valores absolutos, ou seja, aqueles que não se encontram no âmbito do discutível, por exemplo, o bem, o verdadeiro, o belo, o absoluto. Assim, mesmo o mentiroso jamais se porá a argumentar contra o valor do verdadeiro. Segundo Perelman e Olbrechts-Tyteca (2005), semelhantes valores só podem ser considerados objetos de acordo universal enquanto categorias genéricas, de conteúdo não específico, pois, à medida que se precisa seu sentido, os mesmos já encontram sua adesão apenas em auditórios particulares. Assim, ninguém se colocará contrário ao belo de forma geral; entretanto, o que pode estar no campo do belo, para um grupo específico, não estará para outro grupo. Esse valor, portanto, perde seu estatuto universal, pois não é mais objeto de acordo do auditório universal. "É, portanto, na medida em que são vagos que esses valores se apresentam como universais e pretendem um estatuto semelhante ao dos fatos", como afirmam Perelman e Olbrechts-Tyteca (2005, p. 86). Esses autores distinguem ainda valores concretos e valores abstratos. O valor concreto é aquele que se vincula a um ente vivo (a França, a Igreja, a Constituição) e seu valor argumentativo está relacionado à sua valorização enquanto único, pois, como argumentam, "desvelar o caráter único de alguma coisa é valorizá-la pelo próprio fato" (p. 87). Já os valores abstratos, por não levarem em conta entes vivos, podem servir para a crítica, pois são usados como critérios para modificar a ordem estabelecida. A utilização argumentativa dos valores concretos e abstratos se dá, muitas vezes, de forma diversa. Ora se utilizam valores concretos para fundar valores abstratos, ora é o caminho inverso que é feito. A importância de analisar os valores enquanto estratégias argumentativas para justificar a liberdade dos escravos nos processos em questão deve-se a dois motivos: em primeiro lugar, pelo seu próprio poder argumentativo e persuasivo, pois, segundo Perelman e Olbrechts-Tyteca (2005), os valores são objetos de acordo que possibilitam uma comunhão sobre modos particulares de agir; em segundo lugar, por representarem o sistema de crenças que circulava na época em que o discurso foi produzido, já que o discurso jurídico não é alheio a seu tempo, refletindo a visão da sociedade na qual se insere. Dessa forma, por meio da identificação dos valores enquanto estratégias argumentativas, podemos observar as relações estabelecidas entre discurso, estrutura social e historicidade, procurando examinar como as afinidades sociais são negociadas nas práticas discursivas, atentando-nos para os efeitos do discurso no momento sócio-histórico de sua produção. 3 Ações de Liberdade, Valores e Discurso – uma proposta de análise As ações de liberdade são processos jurídicos por meio dos quais os escravos, representados por seus curadores, recorriam, nas instâncias jurídicas, ao direito de se tornarem livres por considerarem ilegítimo o cativeiro ao qual se encontravam submetidos. Sem dúvida, uma das mais importantes fontes para análise de disputas judiciais envolvendo senhores e escravos no Brasil é a "Ação de Liberdade". O trabalho mais conhecido sobre esse processo judicial é o livro Liberata: a lei da ambiguidade – as ações de liberdade da Corte de Apelação do Rio de Janeiro no século XIX, escrito pela historiadora Keila Grinberg (1994). Nele, a autora analisa minuciosamente a ação de liberdade impetrada, em 1813, por Liberata, escrava de José Vieira Rebello, que, por intermédio do seu curador, inicia uma longa disputa judicial junto ao juiz municipal do Desterro até alcançar sua tão almejada liberdade no final do século XIX. Mas... como se dava o processo de uma ação de liberdade? Segundo Grinberg (1994), um processo de ação de liberdade constituía-se dos seguintes passos: O escravo que não conseguisse um curador não podia dar prosseguimento à ação. A questão fundamental destacada por Chalhoub (1990), no que diz respeito às Ações de Liberdade, é a intervenção do Estado no universo privado das relações estabelecidas entre senhores e escravos, uma vez que, legalmente, estes seriam propriedades daqueles e, portanto, somente o senhor deteria poder de decisão de libertar ou não o seu cativo. Além disso, segundo esse autor: a concentração do poder de alforriar exclusivamente nas mãos dos senhores fazia parte de uma ampla estratégia de produção de dependentes, de transformação de ex-escravos em negros libertos ainda fiéis e submissos a seus antigos senhores (p. 100). Entretanto, se, de um modo geral, as leis resguardavam o poder dos senhores proprietários de escravos, por outro lado, apresentavam brechas, que permitiam aos escravos transitarem pelos caminhos jurídicos em direção à tão sonhada liberdade. Com a intervenção do Estado, "os escravos passavam a ter meios institucionais de obter alforria à revelia do poder senhorial. Que isso comprometia a política de domínio na escravidão parece óbvio" (Chalhoub, 2003, p. 186). Segundo Slenes (1985), no Brasil, os escravos começaram a recorrer à justiça, com mais frequência, a partir do século XIX, isso por que: Com o crescimento do Estado no século XIX, o sistema judiciário se tornava cada vez mais presente, ao nível local, como regulador de propriedade e mediador entre pessoas; como resultado, outros fatores permanecendo iguais, o escravo ia aparecendo no cartório com mais e mais frequência (p. 172). Em todo o país, tramitaram vários processos, sendo que, nas regiões Sudeste e Sul, eles ocorreram com maior frequência. No Arquivo do IPHAN de São João del-Rei, o processo mais antigo encontrado data de 1838. Trata-se da ação de liberdade de Anna Crioula, que analisaremos adiante. Numerosos são os argumentos utilizados pelos curadores para justificar a obtenção da liberdade dos escravos: o direito à carta de alforria, a alegação de que o escravo (ou sua mãe, avó, bisavó...) já havia sido libertado antes; a tentativa de compra da alforria, as acusações de violência e a alegação de o escravo ter chegado ao Brasil após o término do tráfico negreiro. Considerando o fundamento histórico-social que envolvia as ações de liberdade, podemos contextualizar o enquadramento dos sujeitos em uma sociedade dividida em senhores e escravos, na qual ambos desempenhavam diferentes papéis e assumiam interesses distintos. Nesse sentido, os sujeitos devem ser concebidos historicamente, levando-se em conta os valores que criavam e reproduziam a partir dos lugares que ocupavam na estrutura social e, especialmente, das diferentes relações que estabeleciam entre si no processo de conquista/concessão da alforria (Silva, 2008). Assim, não havendo nenhuma regulamentação legal para a libertação do escravo até a Lei de 1871 (mais conhecida como a "Lei do Ventre Livre"), esta se dava mediante diferentes acordos estabelecidos entre senhores e escravos. Um cativo poderia reclamar na justiça o direito à sua alforria quando, por exemplo, possuísse a quantia referente ao seu valor de mercado. Contudo, caberia unicamente ao seu senhor o direito de outorgá-la ou não. É interessante notar, como destaca Cunha (1984), o fato de, antes de 1871, a lei se silenciar a respeito desses processos, pois o que pesava nessa relação era o direito de propriedade, garantido na Constituição de 1824. Como bem salienta a autora, o direito à liberdade passava, portanto, pelos caminhos da lei costumeira, e o fato de reconhecer o senhor como o único capaz de se pronunciar a respeito da alforria não feria o seu direito de propriedade e reforçava ainda mais a dependência do escravo com relação à vontade do seu senhor. Os motivos que fundamentavam o direito à alforria eram diversos e, na maioria dos casos, ressaltam a generosidade ou afeição do senhor pelo seu escravo e a fidelidade e os bons serviços desse último (Cunha, 1984, p. 55), fato esse comprovado nas análises que seguem. Como foi dito anteriormente, compõem o corpus deste trabalho dois processos de ação de liberdade datados, respectivamente, de 1838 e 1885. No primeiro processo, a escrava Anna Crioula, de origem africana, e seus filhos, brasileiros, movem uma ação de liberdade alegando que, embora o seu senhor, o Capitão Manoel Gomes d'Almeida Coelho, tenha morrido sem fazer o seu testamento (ab intestato), havia prometido libertá-los após a sua morte. Além da vontade que o senhor teria em libertar os seus escravos, os argumentos que justificam o direito à alforria se baseiam em valores abstratos, tais como lealdade, fidelidade, solidariedade, disciplina e igualdade, como podemos constatar em alguns trechos dos depoimentos da embargante e das testemunhas arroladas no processo: Lealdade, amizade e amor: "Ele, em gratidão e reconhecimento pela amizade e mesmo pelo amor de criação que lhes consagrava; constante e publicamente dizia que a primeira, suplicante e todos os seos filhos e descendentes, por sua morte ficariam libertos, não passando a outro cativeiro e que, além disso, lhes deixaria arranjos de vida. Nesta esperança, a conduta dos suplicantes jamais fez com que desmerecessem a contemplação do dito, seo senhor e bem feitor, que até o seo falecimento não mudou de vontade." Fidelidade, disciplina, humildade, respeito e amor: "Porque os Embargantes nunca dismerecerão a contemplação do Abintestado, e antes prestando-lhes bons serviços; sempre se portarão com elle com muita umildade e respeito, circunstancias estas que fizerão ratificar o seo amor e predilecção tanto assim" (Testemunha). Igualdade, Solidariedade: "E do quatro disse, que pela freqüentação que fazia na caza do Abintestado, por ser lavadeira, que em alguns Domingos que elle paçava nella em Mathosinhos, depois que jantava, fazia ella testemunha jantar também na mesa com os embargantes e Severino que foi seo escravo ficando o Abintestado de pé, repartindo bebidas" (Testemunha). Amizade, amor: "Vivendo sempre o abintestado no estado de solteiro em que não teve filhos, e nem parentes em qualquer grau neste Império, amava com extremo aos Embargantes tanto pela amizade contrahida com a primeira, como pelo amor de criação que consagrava a seos filhos decendentes" (Testemunha). Lealdade, respeito e humildade: "... que os embargantes prestavam bons serviços a seo senhor, portando-se para com este com muita humildade e respeito ..." (Testemunha). Igualdade: "... que sabe por certo que a embargante Anna alterou algumas razoins com Manoel Pereira, o qual, para vingar, pretendeu comprá-la e falando nisso ao Abintestado, elle lhe respondeu asperamente, que a mesma Embargante, hera tam bôa como elle e mesmo heram todos os seos filhos ..." (Testemunha). Como se pode perceber pelos exemplos citados, confirma-se a afirmação de Cunha (1984) de que, na falta de leis que regulamentassem a libertação de um escravo, o direito costumeiro baseava-se em serviços prestados, fidelidade e relações de amizade, amor e gratidão entre o senhor e os seus cativos. Segundo Paiva (1995), as justificativas mais comuns declaradas pelos senhores em seus testamentos para conceder as alforrias como dádivas pias também se referem aos "bons serviços prestados", "fidelidade" e "pelo amor de Deus". Argumentando sobre isso, o autor observa que, muitas vezes, para o cativo: Tornar-se ou fazer-se passar por passivo, amável e fiel resultou em muitas cartas de alforrias justificadas nos "bons serviços prestados", na "lealdade e sujeição", expressões recorrentes nos testamentos e empregadas mesmo quando tratava-se de manumissões pagas. Nesse momento as estratégias engendradas no dia-a-dia obtinham sucesso (p. 107). Nessa perspectiva, a proximidade afetiva e a confiança depositada pelos senhores em seus escravos, em muitos casos, foram bem aproveitadas por estes na tentativa de conquistar as próprias alforrias e a de seus filhos. Silva (2008) observa que os escravos domésticos gozavam de certos privilégios conquistados a partir da delicada relação estabelecida entre senhores e escravos, obtendo preferência na concessão de alforrias. No entanto, como nosso objetivo neste trabalho não é fazer um estudo puramente histórico das ações de liberdade, vejamos como a análise discursiva dos valores pode nos revelar as relações sociais e de poder estabelecidas no intradiscurso. Inicialmente, há de se considerar a relação de propriedade estabelecida entre senhor e escravos, assegurada pela Constituição de 18244, que determinava ao senhor unicamente a vontade ou não de conceder alforria ao escravo. Assim, mesmo que o escravo oferecesse a seu senhor uma quantia em dinheiro para a compra da carta de alforria, ainda assim o senhor poderia negá-la. Isso pode ser percebido pelos trechos descritos anteriormente, que deixam clara essa relação de poder sendo que os exemplos destacam como motivo principal para a libertação dos escravos a vontade expressa de seu senhor. Outro ponto importante revelado pelos exemplos analisados e que cabe destacar é o fato de se utilizarem como motivação para essa vontade do senhor em libertar os escravos, justamente, valores que vão contra essa visão do escravo enquanto propriedade unicamente. Desse modo, justifica-se a vontade de dar a alforria aos escravos mediante valores que destacam uma relação de afetividade, gratidão, lealdade, igualdade e outros sentimentos, como vimos. Ora, podemos tirar duas importantes conclusões a partir dessas constatações. Primeiro, o fato de que o discurso apaga os temas ou teorias que contradizem ou negam seu dizer. Assim, se o escravo era considerado apenas um bem, ou seja, uma propriedade, e a lei vigente assegurava o pleno direito à propriedade, esse tema deveria ser abolido do discurso, dando lugar a outros temas, por exemplo, o reconhecimento do escravo enquanto ser humano, capaz de despertar e desenvolver relações afetivas com seu senhor. Em segundo lugar, se as formações discursivas determinam em uma época dada, de acordo com as relações sociais e de poder vigentes, o que pode e o que não pode ser dito, percebemos que, mesmo em um processo que objetivava a libertação de um escravo, não era permitido questionarse o direito à propriedade, já que se tratava de uma sociedade escravocrata em que as relações que uniam as duas partes eram determinadas por fatores econômicos. Assim, mesmo que se reconhecesse a presença de laços afetivos entre elas, o elo econômico que as unia era muito maior. Nesse aspecto, faz-se interessante destacar a afirmação de Maingueneau (2007) de que as formações discursivas não são estruturas fechadas, mas que se relacionam interdiscursivamente com as demais formações discursivas, mesmo aquelas que lhe parecem diversas. Segundo o autor, as formações discursivas revelam-se como esquemas de correspondências entre campos à primeira vista heterônimos, e os discursos que emergem delas se entrecruzam em todos os sentidos. Nesses termos, ainda que os processos de ações de liberdade tenham por objetivo a alforria de um escravo, sobrevive em seu interior o discurso Outro (aquele que reconhece o escravo enquanto um bem), que se configura enquanto um sistema de restrições da instância enunciativa. No segundo processo que compõe nosso corpus, apesar de ainda imperar o direito à propriedade, percebemos que o motivo que justifica a libertação da escrava em questão é outro. Vejamos. Nesse processo, outra africana de nome Júlia, escrava de Joaquim Rodrigues de Macedo, recorre à Justiça pelo seu direito de liberdade, que é justificada por seu curador e advogado pela evidência de que sua importação foi muito posterior à lei de 7 de julho de 18315, configurando, segundo ele, a "prova inabalável da illegalidade de seu captiveiro e base sufficiente para que se lhe restitua a liberdade, de quem tem sido criminosamente despojada". Assim, observamos que o argumento de tal ação se justifica por meio de um valor concreto, assegurado por uma lei comprovada: Pela matricula dos escravos, junta aos autos vê-se Julia Affricana tem trinta annos de idade, e que por tanto veio para o Brasil depois da lei de sete de Novembro de mil oitocentos e trinta e um, a qual considera livres todos os escravos que vierem para o Brasil. Nesse exemplo, percebemos, portanto, que a justificativa para a libertação da escrava constrói-se com base na Lei de 7 de novembro de 1831, dispensando a necessidade de se apresentar qualquer outro argumento para esse fim. Mantém-se ainda o direito à propriedade, já que cabe aos herdeiros da escrava a decisão de conceder-lhe ou não a carta de alforria. Entretanto, concordando com Perelman e Olbrechts-Tyteca (2005), para quem mais importante do que identificar os valores aceitos em uma época é reconhecer como eles são organizados em escala, percebemos que a Lei, sem dúvida nenhuma, ocupa o topo da escala no discurso jurídico e, consequentemente, na sociedade na qual esse discurso se insere, dispensando qualquer outra motivação ou justificativa para a concessão da alforria. Assim, observamos que, na existência de uma lei que regulamentasse a libertação do escravo, esta era utilizada enquanto único valor para a solicitação da alforria. Já na ausência dessa lei, caso do primeiro processo analisado, adotavam-se, como justificativa para a pretensa liberdade, valores abstratos que envolvem lealdade, fidelidade, solidariedade, disciplina e igualdade. Cabe lembrar que, em ambos os casos, mesmo quando a lei colocava-se favorável ao escravo, a palavra final quanto à alforria cabia ao senhor; e que o próprio discurso que tinha por finalidade a defesa do direito à alforria era atravessado pelas restrições da formação discursiva escravocrata vigente na época, pois a liberdade havia de ser comprada (os escravos pagavam um valor em dinheiro pela carta de alforria), e o desejo do senhor de libertar ou não o escravo era ressaltado ao longo de todo o desenvolvimento discursivo. Essas questões eram mais enfatizadas na ausência de lei que regulamentasse a alforria, e menos quando da existência desta. Porém, em ambos os casos, a decisão última cabia ao senhor. 4 Considerações Finais Neste trabalho, por meio de uma metodologia interdisciplinar que buscou configurar a proposta teórico-metodológica da AD de linha francesa e os estudos históricos sobre a escravidão no Brasil, analisamos dois processos de ação de liberdade ocorridos na Comarca do Rio das Mortes. Compreendendo que todos os elementos linguísticos presentes na estrutura textual são passíveis de sofrer a influência das relações sócio-históricas da época em que se inscrevem, adotamos como categoria de análise os valores enquanto estratégias argumentativas para justificar a liberdade dos escravos nesses processos. A importância da análise por esse viés deve-se a dois motivos: em primeiro lugar, pelo seu próprio poder argumentativo e persuasivo, pois, segundo Perelman e Olbrechts-Tyteca (2005), os valores são objetos de acordo que possibilitam uma comunhão sobre modos particulares de agir; em segundo lugar, por representarem o sistema de crenças que circulava na época em que o discurso foi produzido, já que o discurso jurídico não é alheio a seu tempo, refletindo a visão da sociedade na qual se insere. Nossas análises permitem observar, por meio dos valores expressos na superfície textual, como a rede semântica que delimita a especificidade de um discurso coincide com a definição das relações desse discurso com o seu Outro. Assim, observamos que, mesmo quando a justificativa da libertação do escravo baseava-se em valores que reconheciam neste um ser humano dotado de e capaz de despertar sentimentos, tal discurso vinha atravessado pelo reconhecimento do escravo enquanto um bem, alimentando a relação de propriedade entre ele e seu senhor. Dessa forma, observamos as relações estabelecidas entre discurso, estrutura social e historicidade, procurando compreender como as afinidades sociais foram negociadas nas práticas discursivas, atentando-nos para os efeitos do discurso no momento sócio-histórico de sua produção e, além disso, para os efeitos das condições de produção no interior das práticas discursivas. Notas 1 Artigo resultante de projeto de pesquisa desenvolvido no IPTAN – Instituto de Ensino Superior Presidente Tancredo de Almeida Neves (São João del-Rei/MG) –, sob o fomento da FUNADESP e da FAPEMIG. 2 Segundo Graça Filho (2002), a vila de São João del-Rei foi instituída cabeça da Comarca do Rio das Mortes no Alvará de 6 de abril de 1714. Embora tenha sofrido inúmeras alterações em sua geografia administrativa desde a sua criação, inicialmente sua jurisdição estendia-se pelo centro-sul, a sudoeste da capitania, compreendendo os termos de Jacuí, Baependi, Campanha da Princesa, Barbacena, Queluz, Nossa Senhora de Oliveira, São José do Rio das Mortes e Tamanduá. Destarte, no início do século XIX, já se configurava como a mais extensa em área habitada e a mais populosa da então capitania de Minas Gerais. Com a transferência da Corte para o Brasil, em 1808, São João del-Rei configurou-se como sendo um importante eixo de escoamento da produção regional e de abastecimento interno para a Praça do Rio de Janeiro, permanecendo como importante centro administrativo e jurídico da Comarca do Rio das Mortes durante todo o século XIX. 3 Uma Formação Discursiva (FD) é um conjunto de regras anônimas, históricas, sempre determinadas no tempo e no espaço, que definem em uma época dada, e para uma área social, econômica, geográfica ou linguística dada, as condições de exercício da função enunciativa (Foucault, 1996 apud Maingueneau, 1997, p. 14). 4 Primeira Constituição do Brasil, outorgada por D. Pedro I, a 25 de março de 1824. Após a dissolução da Assembleia Constituinte, o imperador nomeou uma comissão, presidida por ele próprio e composta de dez brasileiros natos, para elaborar a nova Carta, que foi submetida à aprovação das Câmaras Municipais, como mera formalidade. A Constituição, nos seus 179 artigos, estabelecia a monarquia hereditária e constitucional. Sendo o Imperador inviolável e sagrado, não podia ser responsabilizado por seus atos (Botelho e Reis, 2001, p. 217). 5 Trata-se da lei antitráfico, promulgada em 7 de novembro de 1831 pelo então ministro da Justiça, o padre liberal Diogo Antônio Feijó, durante a vigência da Regência Trina Permanente, que confirmava o compromisso assumido pelo Governo do Brasil com a Inglaterra, no Tratado de 1826, para abolir o tráfico negreiro. Regulamentada pelo Decreto de 2 de abril de 1832, previa a libertação de todos os escravos que desembarcassem a partir de então, determinando multas aos traficantes, que também seriam obrigados a reenviar os escravos para a África (Botelho e Reis, 2001, p. 256). Referências ARQUIVO do IPHAN de São João del-Rei. Cópia da Ação de Julia Affricana (1885), caixa n. 001. ______. Cópia da Ação de Liberdade de Anna Crioula (1838), caixa n. 001. 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Data de recebimento: 31 mar. 2009 Data de aprovação: 28 ago. 2009