Nelson Piletti - o autor de livros didáticos e professor da faculdade de educação da Universidade de São Paulo G aúcho de Bento Gonçalves, Nelson Piletti formou-se em Filosofia pela Universidade de Caxias do Sul, tendo lecionado em escolas de ensino fundamental e médio da região. Transferindo-se para São Paulo, graduou-se em Jornalismo e Pedagogia. Tornou-se Mestre, Doutor e Livre-Docente em História da Educação Brasileira pela Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, na qual é professor desde 1974 e exerceu diversos cargos administrativos. Entre suas obras, estão livros didáticos nas áreas de Educação (Sociologia da Educação, Psicologia Educacional, História da Educação no Brasil, Estrutura e Funcionamento de Ensino Fundamental, Estrutura e Funcionamento de Ensino Médio e História da Educação, e História (História do Brasil, História e Vida: as Américas, e Toda a História). Também escreveu livros paradidáticos: Mercosul e sociedade global, e A questão da terra no Brasil, A reforma Fernando de Azevedo: a educação como desafio, 1º prêmio no Concurso “Grandes Educadores Brasileiros” de 1985 do INEP, e Ensino de 2º grau: educação geral ou profissionalização?, 1º lugar em Concurso da Organização Internacional do Trabalho uma biografia, Dom Helder Câmara: entre o poder e a profecia. ABC: Você acredita que as mudanças na legislação após a LDB (Leis de Diretrizes e Bases) foram benéficas? 1 Na esteira da Constituição de 1988, a atual LDB (lei nº 9394, de 20 de dezembro de 1996) trouxe consideráveis avanços no sentido da democratização da educação brasileira: pluralismo de idéias e de concepções pedagógicas, gestão democrática do ensino público, garantia de padrão de qualidade, valorização do profissional da educação escolar, valorização da experiência extra-escolar, igualdade de condições para o acesso e permanência na escola, autonomia da escola prevendo a elaboração de um projeto pedagógico próprio, possibilidade de organização de ciclos, de reclassificação dos alunos e de adequação do calendário escolar, flexibilização curricular, formação em nível superior dos professores até 2007, além de outros, são dispositivos legais que apontam no sentido da melhoria da educação escolar, desde que sejam de fato implementados pelos sistemas de ensino e pelas instituições escolares. Entretanto, do Legislativo à instituição escolar, numerosas ingerências burocráticas acabam desvirtuando o espírito da lei e, muitas vezes, dificultando ou até inviabilizando a sua aplicação. Assim, a autonomia da escola é atropelada pela imposição de um modelo único, a flexibilização curricular é limitada pelos parâmetros nacionais, a igualdade de condições para o acesso e permanência na escola é inviabilizada pela falta de iniciativas no sentido de neutralizar as enormes desigualdades socioeconômicas, a organização de ciclos é reduzida à progressão automática etc., numa comprovação diuturna da discrepância entre os objetivos proclamados e os objetivos reais que tem marcado historicamente as instituições escolares brasileiras, conforme a análise de Anísio Teixeira. ABC: Qual a sua opinião sobre os sintomas de avaliação externa, como o provão, o SAEB e o ENEM? Nada contra a avaliação, fator indispensável à melhoria do ensino em todos os níveis e modalidades. Tudo contra uma avaliação autoritária, unilateral, que não leva em conta os educadores e educandos envolvidos no processo nem as peculiaridades das escolas. E, principalmente, tudo contra uma avaliação que não produz conseqüências efetivas no sentido da melhoria do ensino. Ou seja: a partir de resultados deficientes nas avaliações, que providências concretas foram tomadas para melhorar o ensino, além de mudanças cosméticas com vistas à 2 melhoria das estatísticas educacionais? O que me parece é que se procura modificar os efeitos sem atacar as suas causas. ABC: Você acredita que irão ocorrer mudanças no sistema de ingresso nas Universidades públicas a médio prazo? Caso ocorram mudanças, serão benéficas? Não acredito que ocorram mudanças substanciais, que contrariem os poderosos interesses envolvidos, como os dos cursos pré-vestibulares que, no caso, instrumentalizam as Universidades em seu benefício, aproveitando-se das características históricas do modelo organizacional da educação brasileira – o “modelo coimbrão”, segundo Laerte Ramos de Carvalho – no qual os níveis superiores determinam os níveis inferiores de ensino. Assim, o que temos é o Ensino Superior condicionando o Ensino Médio vestibular. Mudanças no sistema de ingresso são necessárias e urgentes, para um avanço na democratização do ensino, em busca da realização do princípio constitucional de igualdade de acesso e permanência na escola. Mas isso só será possível com profundas transformações na organização do sistema educacional, que levem à melhoria da qualidade de Ensino Básico, à criação de mais Universidades públicas, à supressão ou à mudança do vestibular, levando-o a corresponder às reais características do Ensino Médio etc. ABC: Como você definiria o papel e o perfil dos cursos de licenciatura ministrados na atualidade? Creio que não se pode generalizar, pois, além das normas comuns, os cursos de licenciatura podem obedecer as políticas, objetivos e peculiaridades dos diversos sistemas e instituições de ensino. O que se pode afirmar é que a formação em nível superior dos professores sempre foi descurada no Brasil, apesar de, já em 1932, no manifesto dos pioneiros da Educação Nova, surgiu a proposta de que todos os professores deveriam ter curso superior, meta que a LDB estabelece para 2007. O fato é que cursos superiores de formação de professores só foram organizados no Brasil a partir da década de 1930. O atual modelo dos cursos de licenciatura data dos anos 1960 e, em consonância com o contexto político 3 autoritário então vigente, apresenta um viés acentuadamente tecnicista (ênfase nos métodos e técnicas de ensino) e individualista (enfoque psicologizante no desenvolvimento do indivíduo). Trata-se, a meu ver, de um modelo desgastado e inadequado às atuais necessidades de preparação dos professores, que deve ter como preocupação básica as características do trabalho escolar, de acordo, inclusive, com a indicação CEE/SP nº 7/2000: “Diferentemente de outras situações profissionais, o exercício da profissão de ensinar só é possível no quadro institucional da escola, que deve ser o centro das preocupações teóricas e das atividades práticas em cursos de formação de professores. O professor precisa ser formado para enfrentar os desafios da novidade escolar contemporânea”. ABC: Na sua opinião, a classe do magistério possui poder reivindicatório? Em meio à enorme variedade de situações (escolas públicas e privadas; Ensino Fundamental, Médio e Superior; escolas centrais, periféricas e rurais; diferenças regionais; faixas salariais etc.), acredito que podem ser identificadas diversas condições que contribuem para diluir o poder reivindicatório do magistério, de um modo geral: a grande rotatividade de professores atuando em dada escola, dificultando a sua mobilização e organização; o magistério encarado como “bico” por muitos docentes; a dispolitização decorrente tanto da formação autoritária de muitos professores quanto dos escassos resultados obtidos em movimentos reivindicatórios etc. Acredito que, a médio e longo prazo, esse quadro possa ser revertido, à medida que os professores se conscientizarem de que só com sua mobilização, organização e participação política poderão promover mudanças que melhorem o ensino e tragam sua valorização profissional. ABC: Se os cursos técnicos no Brasil desfavorecem o acesso do jovem à Universidade pública, qual o lado positivo do Ensino Médio profissionalizante? Em primeiro lugar, é preciso dizer que na vigência da atual LDB, complementada pelo Decreto nº 2.208, de 17 de abril de 1997, não há mais 4 Ensino Médio profissionalizante. O que existem são cursos profissionais em nível médio, articulados ou não com o Ensino Médio. Se articulados, fornecerão ao concluinte um diploma de “técnico”. Tais cursos, propiciando uma profissionalização de nível médio, poderão facilitar o acesso ao mercado de trabalho, especialmente para aqueles jovens que precisam trabalhar precocemente, não pretendem freqüentar um curso superior ou não dispõem de condições objetivas para tanto. ABC: Qual sua opinião sobre a crescente indústria da educação, explicitada na criação de cursos pré-vestibulares, novos cursos superiores e em novos centros universitários? Por um lado, a Constituição e a LDB possibilitam a coexistência de instituições públicas e privadas de ensino. Os cursos pré-vestibulares são de livre organização e novos cursos superiores e centros universitários estão previstos na legislação que, segundo entendo, pretendeu com isso facilitar e agilizar a formação em nível superior, atrelando-a mais diretamente às necessidades específicas do mercado de trabalho. O que ocorre, no entanto, é que com a retração do poder público e o avanço da iniciativa privada, cujo objetivo muitas vezes é o lucro puro e simples, o direito dos brasileiros à educação acaba sendo desrespeitado, já que a grande maioria não dispõe de recursos para pagar um curso pré-vestibular e uma faculdade particular. Nesse sentido, entendo ser fundamental a ação do governo para garantir a todos o direito à educação e a qualidade de ensino ministrado, conforme propõe o próprio Stuart Mill, clássico do liberalismo: “Em questões de educação, é justificável a intervenção do governo, porque o caso não é daqueles nos quais o interesse e o discernimento do consumidor são garantia suficiente de bondade de mercadoria”. ABC: Como tornar possível o acesso dos jovens de baixo poder aquisitivo às vagas das Universidades públicas, tomadas por estudantes vindos de uma classe socioeconômica elevada? Entendo que a constatação de que, em relação ao Ensino Superior no Brasil, quem pode não paga, porque tem condições socioeconômicas que lhe 5 permite chegar às Universidades públicas, e quem não pode é obrigado a pagar, pois geralmente só tem acesso a escolas superiores particulares, não deve ser encarado como um argumento favorável à privatização do ensino. Antes pelo contrário, deve levar-nos à defesa intransigente da ampliação do Ensino Superior público, para que muito mais jovens, incluindo os de baixo poder aquisitivo, possam ter acesso a ele. Além disso, é preciso investir pesado na melhoria do Ensino Básico, condição indispensável para o acesso a Universidades públicas. ABC: Como é possível resgatar o prestígio da educação e do professor no Brasil? Tenho sérias dúvidas a respeito da existência de tal prestígio em alguma época da nossa História, principalmente se tomarmos por critério de análise a promoção de iniciativas reais no sentido de valorizar a educação e os educadores. Providências no sentido de expansão da oferta do ensino só foram adotadas em resposta a intensas pressões populares. Quanto à melhoria da qualidade, então, nem se fala, pouco ou nada evoluímos. É preciso que, além do discurso, a educação se transforme realmente em prioridade nacional, em termos de preocupação e de investimento. Os princípios orientadores de tal movimento regenerador estão na própria Constituição: pluralismo, gestão democrática, autonomia da escola, valorização do educador e do educando etc. Trata-se de um processo no qual todos devemos participar se aspiramos a um futuro melhor para nossos filhos e netos, inspirados em Guimarães Rosa, para quem “o real não está na saída nem na chegada: ele se dispõe para a gente é no meio da travessia”. voltar 6