O ENSINO FUNDAMENTAL DE NOVE ANOS COMO UMA POLÍTICA
PÚBLICA PARA A EDUCAÇÃO
RONSONI, Marcelo Luis – UFSM
[email protected]
Área Temática: Educação: Políticas Públicas e Gestão da Educação
Agência Financiadora: Não contou com financiamento
Resumo
O presente trabalho propõe discutir as implicações e desafios pedagógicos decorrentes da
obrigatoriedade da matrícula de crianças de seis anos no Ensino Fundamental, a partir da Lei
nº. 11.274, de 06 de fevereiro de 2006. Este trabalho analisa o Ensino Fundamental de Nove
Anos como uma política pública para a educação, voltada essencialmente para a inclusão
social e para recuperar perdas históricas no que se refere ao processo de alfabetização.
Objetivando contribuir nessa discussão, o presente projeto visa compreender e analisar como
a proposta de ampliação do Ensino Fundamental chegou às escolas e que mudanças provocou
no seu cotidiano. Ou melhor: ela chegou às escolas e provocou alguma mudança? Além
destas, devem ser consideradas questões adicionais, que vão interferir significativamente no
trabalho realizado em cada escola, como, qual professor deve assumir este trabalho, o da
Educação Infantil, que já tem certo conhecimento da clientela a ser atendida, ou o do Ensino
Fundamental, habituado a trabalhar com o processo de alfabetização? Para compreender a
complexidade das medidas de obrigatoriedade da matrícula de crianças de seis anos no Ensino
Fundamental e as relações dessas com o contexto escolar, utilizarei uma abordagem
qualitativa de caráter etnográfico. Pretendo apontar como resultado desta pesquisa, que a
obrigatoriedade da matrícula de crianças de seis anos no Ensino Fundamental implica,
necessariamente, em repensar e reelaborar toda a proposta pedagógica da escola e não só a do
Primeiro Ano, o que se constitui numa tarefa e em um compromisso para todos os segmentos
da comunidade escolar, conforme previsto na atual LDB, Lei nº. 9394/96, em especial em
seus artigos 12 a 14, sendo que a inclusão das crianças de seis anos no Primeiro Ano requer
um diálogo institucional e pedagógico entre os diversos níveis de ensino, sobretudo entre a
Educação Infantil e o Ensino Fundamental.
Palavras-chave: Políticas públicas; Ensino Fundamental de nove anos; Práticas pedagógicas.
Introdução
O presente trabalho apresenta, a partir da nova redação dada à Lei de Diretrizes e
Bases da Educação Nacional (LDB – Brasil, 1996) no que se refere à idade mínima
obrigatória de ingresso no Ensino Fundamental, tendo este a duração de nove anos, alguns
desafios para o alcance de uma educação de qualidade nesta etapa de ensino.
4459
Ao longo do texto dialogaremos com questões afetas à Educação Infantil. Isto se deve,
sobretudo, ao fato de que a nova organização do Ensino Fundamental com duração de nove
anos absorverá as crianças com seis anos de idade, as quais estavam, até o momento, inseridas
na “lógica” de funcionamento da Educação Infantil, com suas normalizações e orientações
pedagógicas específicas. Nesse sentido, abordaremos a questão da cultura escolar como um
conjunto de saberes e práticas presentes nas escolas, os quais exercem grande influência em
uma proposta de mudança educacional, como é o caso da alteração proposta pelo Ensino
Fundamental de nove anos.
Para as discussões aqui pretendidas, foram analisados materiais publicados pelo MEC,
os documentos de orientação, legislação, relatórios do programa, e o livro Ensino
Fundamental de Nove Anos: orientações para a inclusão da criança de seis anos de idade: + 1
ano é fundamental. Este último é considerado como um manual que prescreve formas de
como desenvolver a prática pedagógica em sala de aula, regulando e controlando a ação
docente, mas ao mesmo tempo permitindo um efetivo governamento da aula a ser dada e da
população infantil que se encontra nas escolas fundamentais.
Na seqüência, são apresentadas considerações acerca de outros aspectos julgados
relevantes para o equacionamento de um atendimento com o mínimo de qualidade e, como
item final, são apresentadas indagações com o intuito de destacar a necessária atenção a ser
dirigida à organização do Ensino Fundamental, para que aquilo que poderia representar um
ganho – mais um ano de escolaridade obrigatória -, não se transforme em prejuízo. Ressaltese que o momento parece bastante propício para que a atual estrutura e funcionamento da
escola de Ensino Fundamental, bem como toda a sua organização didático-pedagógica, sejam
reavaliados de modo a que consigamos garantir o que aqui entendemos por uma completa
democratização desse nível de ensino, ou seja, acesso, permanência e qualidade. Isto porque,
apesar da ampliação no número de vagas oferecidas, nossa escola de Ensino Fundamental
segue com grandes dificuldades para cumprir minimamente sua tarefa, mesmo que nos
refiramos apenas aos seus objetivos mais básicos, quais sejam os de ensinar nossas crianças a
lerem, escreverem e contarem. Assim, se ao longo do texto nortearemos nossa argumentação
tomando como referência principalmente os direitos da criança de seis anos de idade e as
necessárias alterações no Ensino Fundamental para que eles sejam minimamente atendidos, o
fato é que tais direitos, na verdade, não se limitam – ou não deveriam se limitar – a crianças
4460
dessa idade, mas, antes, eles dizem respeito a todas aquelas que freqüentam o primeiro ciclo
do Ensino Fundamental, ou seja, as de sete, oito, nove e dez anos.
Ensino Fundamental de Nove Anos
No Brasil, historicamente, a idade mínima para o ingresso na escolarização foi de sete
anos de idade. Nos últimos tempos, há um interesse crescente em ampliar este ingresso para
as crianças de seis anos e aumentar o período de duração do ensino obrigatório de oito para
nove anos. Esta intencionalidade pode ser constatada por meio das sucessivas leis que
amparam a educação brasileira: a Lei nº. 4.024/1961, que estabelece a obrigatoriedade do
ensino para quatro anos; o Acordo de Punta Del Este e Santiago/1970, que estende para seis
anos o ensino para todos os brasileiros; a Lei nº. 5.692/1971, que distende a obrigatoriedade
para oito anos; a Lei nº. 9.394/1996, que sinaliza para um Ensino Fundamental obrigatório de
nove anos, a iniciar-se aos seis anos de idade; a Lei nº. 11.114/2005, que altera a 9.394/1996 e
tornou obrigatório o início do Ensino Fundamental aos seis anos de idade, e, por fim, a Lei nº.
11.274/2006, que institui o Ensino Fundamental de nove anos de duração com a inclusão das
crianças de seis anos de idade.
O Ensino Fundamental de nove anos é uma política pública afirmativa de equidade
social implementada pelo Governo Federal. Esta política educacional inclui a criança a partir
de seis anos no Ensino Fundamental, altera a sua duração de oito para nove anos de idade e
estipula o prazo até 2010 para que todos os estados e municípios brasileiros implantem o novo
sistema. Tal implantação exigirá mudanças na proposta pedagógica, no material didático, na
formação de professor, bem como nas concepções de espaço-tempo escolar, currículo,
avaliação, infância, aluno, professor, metodologias... A ampliação em mais um ano de estudo
no Ensino Fundamental pode produzir um salto na qualidade da educação: inclusão de todas
as crianças de seis anos, menor vulnerabilidade a situações de risco, permanência na escola,
sucesso no aprendizado e aumento da escolaridade dos alunos.
Segundo o Plano Nacional da Educação (PNE, 2001), implantar progressivamente o
Ensino Fundamental de nove anos, pela inclusão das crianças de seis anos de idade, tem duas
intenções:“oferecer maiores oportunidades de aprendizagem no período da escolarização
obrigatória e assegurar que, ingressando mais cedo no sistema de ensino, as crianças
prossigam nos estudos, alcançando maior nível de escolaridade”. Em outras palavras, o
objetivo desta política pública afirmativa de equidade social é assegurar a todas as crianças
4461
um tempo mais longo de convívio escolar, maiores oportunidades de aprender e, com isso,
uma aprendizagem mais ampla. No que se refere à questão de direito, objetiva a
democratização da educação e a eqüidade social no acesso e na continuidade dos estudos. No
que tange a questão pedagógica, tem por fim a democratização do conhecimento e do acesso
até aos níveis escolares mais elevados, assim como mais tempo para aprender e respeito aos
diferentes tempos, ritmos e formas de aprender dos alunos.
Os indicadores nacionais apontam que, atualmente, das crianças em idade escolar,
3,6% ainda não estão matriculadas. Entre aquelas que estão na escola, 21,7% estão repetindo
a mesma série e apenas 51% concluirão o Ensino Fundamental, fazendo-o em 10,2 anos em
média. Acrescenta-se, ainda, que em torno de 2,8 milhões de crianças de sete a 14 anos estão
trabalhando, cerca de 800 mil dessas crianças estão envolvidas em formas degradantes de
trabalho, inclusive a prostituição infantil (MEC, 2004). Esses dados reforçam o propósito de
ampliação do Ensino Fundamental para nove anos, uma vez que permite aumentar o número
de crianças incluídas no sistema educacional. Os setores populares deverão ser os mais
beneficiados, visto que as crianças de seis anos das classes favorecidas já se encontram
majoritariamente incorporadas ao sistema de ensino – na pré-escola ou na primeira série do
Ensino Fundamental.
A opção pela faixa etária dos seis aos 14 e não dos sete aos 15 anos para o Ensino
Fundamental de nove anos segue a tendência das famílias e dos sistemas de ensino de inserir
progressivamente as crianças de seis anos na rede escolar. Entretanto, esta inserção não se
traduz em transferir para estas crianças os conteúdos e atividades da tradicional primeira série,
mas sim conceber uma nova estrutura de organização dos conteúdos, considerando o perfil de
seus alunos; tampouco não pode constituir-se em medida meramente administrativa. O
cuidado na seqüência do processo de desenvolvimento e aprendizagem destas crianças
implica o conhecimento e a atenção às suas características etárias, sociais e psicológicas. As
orientações pedagógicas, por sua vez, deverão estar atentas a essas características para que as
elas sejam respeitadas como sujeitos do aprendizado.
Muito nos preocupa, de fato, a concepção que os professores e as escolas têm desse
novo Primeiro Ano. A situação que tínhamos anterior à nova lei, era de uma Educação
Infantil que se via tomada, contaminada pelas atividades, conteúdos e objetivos da antiga 1ª
série, ou seja, a Educação Infantil estava perdendo seu espaço de ludicidade, de brincadeira,
de livre expressão, para passar a ser um ambiente alfabetizar muitas vezes, ou pré-
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alfabetizador, atividade que não consta em suas atribuições. A cultura escolar das séries do
Ensino Fundamental estava invadindo o espaço da Educação Infantil, modificando sua forma
de atuação, sua cultura.
Cultura Escolar
Quando entramos em uma escola estamos em um lugar bem conhecido. Um local que
freqüentamos por longos anos e do qual temos muitas recordações. Ali as coisas têm mudado
muito pouco. Nós conhecemos bem a organização deste espaço físico, o tipo dos móveis, as
diferentes disposições do ambiente e a forma de sua edificação e não nos causam surpresas
seus padrões de relacionamento e convivência social, suas expectativas de comportamento,
seus ritos, sua disciplina, seus horários de trabalho e lazer e seus procedimentos pedagógicodidáticos. Tudo isso se instituiu numa cultura específica, que se organizou em práticas e
hábitos de natureza burocrática e conservadora.
A cultura escolar predominante nas nossas escolas se revela como "engessada", pouco
permeável ao contexto em que se insere, aos universos culturais das crianças e jovens a que se
dirige e a multiculturalidade das nossas sociedades. Como afirma Vera Candau (2008, online),
Parece que o sistema público de ensino, nascido no contexto da modernidade,
assentado no ideal de uma escola básica a que todos têm direito e que garanta o
acesso a todos dos conhecimentos sistematizados de caráter considerado "universal",
além de estar longe de garantir a democratização efetiva do direito à educação e ao
conhecimento sistematizado, terminou por criar uma cultura escolar padronizada,
ritualística, formal, pouco dinâmica, que enfatiza processos de mera transferência de
conhecimentos, quando esta de fato acontece, e está referida à cultura de
determinados atores sociais, brancos, de classe média, de extrato burguês e
configurado pela cultura ocidental, considerada como universal.
A dinâmica cristalizada na cultura escolar apresenta uma enorme dificuldade de
incorporar os avanços do desenvolvimento científico e tecnológico, as diferentes formas de
aquisição de conhecimentos, as diversas linguagens e expressões culturais e as novas
sensibilidades presentes de modo especial nas novas gerações e nos diferentes grupos
culturais.
Os
processos
de
aquisição-construção-desconstrução-reconstrução
do
conhecimento, em profunda crise na sociedade atual, onde caminhos e linguagens
diversificadas se impõem, aparecem no dia a dia das salas de aula de modo homogêneo e
4463
repetitivo, através de formas estereotipadas, na grande maioria das situações. Chama atenção
quando se convive com o cotidiano de diferentes escolas, como são homogêneos os rituais, os
símbolos, a organização do espaço e dos tempos, as comemorações de datas cívicas, as festas,
as expressões corporais, etc. Mudam as culturas sociais de referência, mas a cultura da escola
parece gozar de uma capacidade de se auto-construir independentemente e sem interagir com
estes universos. É possível detectar um "congelamento" da cultura da escola que, na maioria
dos casos, a torna "estranha" aos seus habitantes.
Essa
cultura
escolar,
tão
cristalizada
e
enraizada
em
padrões
culturais
homogeneizadores, pode fazer com que a alteração prática do Ensino Fundamental de oito
para nove anos venha a se constituir de modo arbitrário, ou seja, o Primeiro Ano seja
responsável pelas mesmas atividades da 1ª série, em decorrência de ser o mesmo professor, e
muitas vezes, o mesmo espaço físico ocupado pela aquela turma.
Colocar o aluno/criança de camadas populares na escola do Ensino Fundamental aos
seis anos (pois são estes os que estão fora do atendimento e longe de intervenções
qualificadas), sem uma proposta pedagógica qualificada significa apenas antecipar o fracasso
escolar. É preciso analisar e compreender os princípios e conceitos deste paradigma, pois sem
essa compreensão, corre-se o risco de perpetuar o fracasso, a reprovação, a não aprendizagem.
É preciso pensar e refletir a própria prática pedagógica sob este novo olhar: O QUE SE FAZ
E COM QUAIS OBJETIVOS SE FAZ, ou seja, como estamos e o que precisamos mudar,
pois ninguém muda se não tem consciência do que precisa mudar, planejar e melhorar.
Orientações do Ministério da Educação
Em maio de 2006, o MEC, por meio de sua Secretaria de Educação Básica, publica o
terceiro relatório com orientações para a organização do Ensino Fundamental de nove anos
assim intitulado: “Ampliação do ensino fundamental para nove anos: 3º relatório do
programa”. (BRASIL, 2006).
Do conteúdo desse documento, gostaríamos de destacar alguns aspectos. Em primeiro
lugar, é preciso reconhecer o esforço, por parte do MEC, em levantar experiências que já
vinham se dando pelo país a fim de conhecer e divulgar possibilidades para a organização
dessa nova organização do Ensino Fundamental; bem como em elaborar orientações
específicas visando a dirimir dúvidas e a auxiliar os sistemas a se estruturarem de modo a
atenderem a lei sem, contudo, incorrer em erros administrativos e pedagógicos que pudessem
4464
redundar em maiores prejuízos à qualidade da educação. Em que pese esse reconhecimento,
todavia, é preciso problematizar algumas das orientações oferecidas, não tanto pela sua
natureza, embora em alguns aspectos também por isto, mas principalmente pelas suas reais
possibilidades de interferir na realidade de cada sistema, uma vez que, além de outras razões,
tais orientações não possuem caráter mandatório.
Com relação às implicações pedagógicas, o documento afirma a necessidade de que
haja:
[...] com base em estudos e debates no âmbito de cada sistema de ensino, a reelaboração da proposta pedagógica das Secretarias de Educação e dos projetos
pedagógicos das escolas, de modo que se assegure às crianças de 6 anos de idade seu
pleno desenvolvimento em seus aspectos físico, psicológico, intelectual, social e
cognitivo. (BRASIL, 2006, p.9)
Observe-se a preocupação em garantir o que estava contido na LDB (Brasil, 1996) em
relação à Educação Infantil no que se refere às crianças de seis anos de idade, ou seja, o
direito a um desenvolvimento integral. Além disso, observa-se uma preocupação para que
tanto os sistemas, por meio de suas Secretarias de Educação, quanto as escolas, re-elaborem
seus projetos pedagógicos a fim de atender o objetivo acima mencionado; todavia, alerta-se
para a necessidade de que tal re-elaboração ocorra mediante “estudos e debates”. O que a
experiência até aqui observada tem evidenciado, com algumas exceções, é que boa parte das
escolas tem elaborado seus projetos pedagógicos apenas para serem enviados às Secretarias
onde, por sua vez, são apenas carimbados e burocraticamente homologados; em ambas as
instâncias trata-se, em geral, de um cumprimento meramente formal das exigências legais em
vigor. Além disso, o que se tem constatado é que, em função do Fundo de Manutenção e
Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério (FUNDEF), muitos
sistemas já vinham matriculando crianças de seis anos no Ensino Fundamental sem, contudo,
realizar qualquer debate, fosse no âmbito do próprio sistema, fosse no da escola. No momento
em que escrevemos este artigo, por força da lei, muitos sistemas já elaboraram sua ordenação
legal própria para que em 2007 tivesse início o funcionamento do Ensino Fundamental de
nove anos e, até onde temos acompanhado, a preocupação centrou-se muito mais em questões
formais do novo sistema de atendimento do que em sua organização didático-pedagógica.
Assim, embora o MEC tenha se preocupado com a questão, os sistemas parecem não ter
condições – ou vontade política – para uma preparação de sua estrutura que preveja um
4465
mínimo de qualidade antes que a implantação do Ensino Fundamental de nove anos ocorra.
Aliás, deve-se lembrar que esta parece ser uma regra em nosso sistema educacional: primeiro
sanciona-se a lei, depois se corre atrás de sua viabilização e, enquanto isso, alunos e
professores são, em geral, os que mais sofrem durante os períodos de “transição”.
Quanto ao item destinado ao currículo, o documento destaca pontos importantes.
Primeiro, enfatiza que:
O primeiro ano do ensino fundamental de nove anos não se destina exclusivamente à
alfabetização. [...] É importante que o trabalho pedagógico implementado possibilite
ao aluno o desenvolvimento das diversas expressões e o acesso ao conhecimento nas
suas diferentes áreas. (BRASIL, 2006, p.9)
Em seguida, afirma-se que: “Faz-se necessário elaborar uma nova proposta curricular
coerente com as especificidades não só da criança de 6 anos, mas também das demais crianças
de 7, 8, 9 e 10 anos, que constituem os cinco anos iniciais do Ensino Fundamental.”
(BRASIL, 2006, p.9)
Cumpre observar o mérito do documento ao chamar a atenção para o fato de que
mudanças curriculares são necessárias não apenas em função das crianças de seis anos, mas
em função do conjunto de crianças que freqüentam o primeiro ciclo – os anos iniciais – do
Ensino Fundamental. Entretanto, dada a realidade encontrada na maioria dos sistemas e
escolas, não é possível abandonar certo ceticismo, pois se o trabalho do MEC, bem como do
governo em suas diferentes esferas, se limitar a orientações, sem um forte e claro
investimento formativo – o que implica em recursos financeiros – é de se esperar poucas
alterações, ao menos no curto prazo. Como afirma Antônio Nóvoa (1995): “não há ensino de
qualidade, nem reforma educativa, nem inovação pedagógica, sem uma adequada formação
de professores”.
Ainda em relação ao item destinado ao currículo, o documento do MEC enfatiza:
Quanto à avaliação da aprendizagem no 1º ano do ensino fundamental de nove anos,
faz-se necessário assumir como princípio que a escola deva assegurar aprendizagem
de qualidade a todos; assumir a avaliação como princípio processual, diagnóstico,
participativo, formativo, com o objetivo de redimensionar a ação pedagógica;
elaborar instrumentos e procedimentos de observação, de registro e de reflexão
constante do processo de ensino-aprendizagem; romper com a prática tradicional de
avaliação limitada a resultados finais traduzidos em notas; e romper, também, com o
caráter meramente classificatório. (BRASIL, 2006, p.10)
4466
Não seria mais fácil, e mais corajoso, preconizar, de modo claro, a não retenção, ao
menos no primeiro ano do Ensino Fundamental de nove anos, para não dizer em todos os anos
iniciais dessa etapa? A preocupação parece ser tanta que o texto chega a ser redundante
quanto à definição do que seria um princípio “adequado” de avaliação: “processual,
diagnóstico, participativo, formativo e com o objetivo de redimensionar a ação pedagógica”.
De fato, a questão da avaliação e do sistema de fluxo entre as séries iniciais do Ensino
Fundamental merece destaque, pois a prevalecer a lógica dominante, teremos uma grande
probabilidade de que os índices de retenção sejam ampliados, atingindo um grande
contingente de crianças antes dos sete anos de idade.
Algumas Problematizações Referentes ao Ensino Fundamental de Nove Anos
O que deduzo dessa política pública é que certamente propostas educacionais de
acordo com o período histórico foram configuradas, procuraram conformar um tipo
específico, não só de docente e de aluno, mas também de uma metodologia de trabalho. O
Ensino Fundamental de Nove Anos traz sua proposta, e ele também projeta o seu ideal de
cidadão com tais normatizações. E para que ele constitua um cidadão crítico, que possa
intervir em sua realidade, emanam da proposta de inclusão das crianças de seis anos,
sugestões, técnicas e procedimentos que governam a aula a ser dada, mas, sobretudo,
procuram levar os sujeitos alunos a uma adequação “desde o início à regra de relação tanto
com os outros como com um determinado tipo de percurso” (Ó, 2007, p.43).
A escola, mais uma vez, é colocada como a melhor possibilidade de melhoria de vida,
não só no campo intelectual e profissional, mas ela também vem revestida de uma
responsabilidade cada vem mais investida do social. Ao apresentar o Ensino Fundamental
como a melhor opção para as crianças de seis anos, privilegia-se um formato escolar,
reconhecidamente institucional, que desde seu surgimento foi atrelado à transmissão do
conhecimento e da cultura mundial acumulados. Sujeitos auto-regulados e auto-confiantes,
que possam gerir suas vidas, são sujeitos econômicos para uma racionalidade política
neoliberal. Por isso, não basta somente ser alfabetizado, mas é preciso ser letrado, ser um
sujeito proficiente, que saiba resolver seus problemas e interagir em sociedade, o que justifica
o investimento em escolarizar também o letramento, assim como ocorreu com a alfabetização.
Vejo nessa proposta a regularização do governamento da ação do professor em sala de
aula, pois ele é responsável por construir estratégias para a superação das dificuldades de seus
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alunos, então ele precisa saber conduzir adequadamente sua ação pedagógica para que exista
um bom rendimento em aula. Ao que parece, se algo não ocorrer como deveria, a
responsabilidade pela modificação é do professor, principalmente porque é sobre o terreno da
subjetividade que os documentos falam. É necessário que se trabalhe com a auto-estima do
aluno.
Dessa forma, ao investir em sua subjetividade e sujeitá-lo a uma forma particular de
ver o mundo, ele sentir-se-á integrado a realidade escolar. Com isso se valida não só o
discurso que sustenta a inclusão da criança de seis anos no Ensino Fundamental, como se
obtém a produção de um sujeito que pense criticamente sobre sua condição social. Ao ser
esclarecido sobre as condições que o tornam um sujeito excluído, esse futuro cidadão
trabalhador procurará aprender formas para que ele mesmo consiga sair de uma margem de
risco social. Tornar-se sujeito prudente, parece-me uma lógica muito presente nas orientações
do Ensino Fundamental de Nove Anos. Segundo Garcia, “a utilização calculada do tempo
escolar submete os corpos e suas ações, o pensamento e suas operações” (2002, p.99), mas
para que este tempo seja organizado produtivamente e os alunos aprendam a se autoregularem e tornarem-se sujeitos produtivos para uma racionalidade neoliberal, é importante a
ação condutora dos docentes. A utilização dos termos auto-estima e autoconfiança se dá no
sentido de estabelecer “algum tipo de relação do sujeito consigo” (LARROSA, 1994, p.38).
Alunos motivados e interessados, certamente terão melhores condições de concluir
exitosamente o Ensino Fundamental.
É interessante destacar que agora os professores devem ver a criança de seis anos
como um aluno, um sujeito que se encontra cognitivamente em um momento de passagem
para um ensino formal, vindo ou não da Educação Infantil. Agora a legislação posiciona esse
aluno em um outro nível, como se a forma de viver a infância se alterasse de forma positiva e
qualitativa para esse aluno, por meio de uma medida legal. Isso me leva a pensar que por
meio das “políticas curriculares e de regulação da educação, no cotidiano da escola, são
validados discursos pedagógicos que mudam histórica e culturalmente” (TRAVERSINI;
BALEM; COSTA, 2007, p.4).
Neste momento o professor precisa identificar-se com a idéia de que o aluno de seis
anos é responsabilidade do Ensino Fundamental e que cabe à escola a tarefa de educar,
escolarizar, alfabetizar e letrar esse aluno. Existe um investimento, nas orientações do MEC,
para mobilizar os professores a assumirem um determinado modo de agir em relação à sua
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prática. O Ensino Fundamental de Nove Anos não se configura somente como uma política
pública do âmbito legal, ele procura administrar os docentes da educação, prescrevendo e
ensinando como trabalhar em sala de aula.
A busca pela melhoria da qualidade do ensino e da alfabetização em nosso país é
histórica, embora, como lembra Marzola (2003), diferentes períodos defenderam propostas
que prometiam o salto qualitativo, a erradicação do analfabetismo e a melhoria na
aprendizagem do aluno. De forma resumida, é possível apontar alguns movimentos que se
destacaram na educação nacional como, a educação popular na década de 80, a pedagogia
crítico social dos conteúdos (conteudistas) e as idéias construtivistas (de forte influência
psicológica) na década de 90. Mas, como a autora argumenta, “apesar das boas intenções
dessas pedagogias, que se propuseram a reinventar e revolucionar a escola, os resultados desta
em termos de ensino efetivo, foram insignificantes” (MARZOLA, 2003, p. 15). É possível
ver, como já demonstrado, que a busca pela melhoria dos índices da educação nacional ainda
é objetivamente perseguida pelo Estado, ou seja, ainda não os alcançamos. Isto me faz pensar
que ainda se busca a ponta do novelo de lã, o que não significa que chegaremos algum dia até
ela.
Considerações Finais
A obrigatoriedade da matrícula de crianças de seis anos no Ensino Fundamental
implica, necessariamente, em repensar e reelaborar toda a proposta pedagógica da escola e
não só a do Primeiro Ano, o que se constitui numa tarefa e em um compromisso para todos os
segmentos da comunidade escolar, conforme previsto na atual LDB, Lei nº. 9394/96, em
especial em seus artigos 12 a 14, sendo que a inclusão das crianças de seis anos no Primeiro
Ano requer um diálogo institucional e pedagógico entre os diversos níveis de ensino,
sobretudo entre a Educação Infantil e o Ensino Fundamental. Não é fácil mudar certos
paradigmas, e uma reorganização do trabalho pedagógico necessita passar também por um
processo de capacitação e formação continuada do corpo docente, bem como de
conscientização da comunidade escolar. Dessa maneira, acreditamos que a matrícula
obrigatória das crianças de seis anos no Ensino Fundamental possa possibilitar acesso
universal ao direito subjetivo das crianças à escolarização e oportunidade de um processo
mais efetivo de alfabetização que não tem início com a entrada na escola e tampouco culmina
nesta etapa inicial da primeira série, agora ampliada para Primeiro e Segundo Anos.
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A obrigatoriedade da matrícula das crianças com seis anos no Ensino Fundamental de
nove anos, instituída no Brasil pela Lei Federal de nº. 11.274, de 06 de fevereiro de 2006, não
é, obviamente, a “solução mágica” para a questão educacional brasileira, mas pode, como
uma política afirmativa, no conjunto de outras ações políticas e pedagógicas, colaborar na
qualidade do ensino, especialmente o público. Não sem um amplo e irrestrito debate sobre o
conjunto da Educação Básica no Brasil. Não sem antes procurarmos responder a velhas, mas
sempre pertinentes questões: Qual escola? Qual infância? Qual currículo? Quais capacidades
a serem desenvolvidas? Quais materiais? Qual avaliação? Qual alfabetização? Qual formação
docente? Quais articulações políticas? Essas questões encontram-se impregnadas em uma
cultura escolar definida e presente em nossas escolas. A cultura escolar parece-nos ser o cerne
da questão quando discutimos o sistema de ensino, visto que uma mudança precisa ser
incorporada pela cultura já existente, moldada a partir dos seus interesses, para poder fazer
parte dela.
REFERÊNCIAS
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4470
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