Introdução
Este trabalho tem como objectivo expor os argumentos apresentados
por David Lewis que sustentam a defesa da ideia de que as identidades
psicofísicas de tipos são meramente contingentes. Tendo em conta que o
artigo de D. Lewis, Mad Pain and Martian Pain, associa a exposição dos
argumentos a uma resposta à argumentação Kripkeana, inserida no ataque
ao materialismo especimen-especimen (que, como refere Lewis, não é a
Teoria da Identidade que este e Armstrong propõem), apresentada na obra
Naming and Necessity, é por uma breve exposição desta que iniciamos este
estudo; num segundo momento apresentar-se-á, então, a resposta de David
Lewis à posição de Saul Kripke, tal como aquela surge no artigo em
questão.
1. A Argumentação Kripkeana
Na página 144 do seu Naming and Necessity, Kripke identifica três
formas de identidade psicofísica que correspondem a três formas de
materialismo acerca do mental: 1) identidade de substâncias, exemplificada
pela identificação da mente com o corpo; 2) identidade de particulares
(identidade especimen-especimen), a qual se verifica na identificação de
um estado ou evento mental particular com um estado ou evento físico
particular1 (exemplo: a dor de Pedro em t foi a estimulação das suas fibrasC em t); 3) identidade de tipos (propriedades), de acordo com a qual cada
tipo de estado mental é idêntico a um tipo de estado físico2 (exemplo: “a
dor é a estimulação das fibras-C”).
Dedicando a sua atenção à identidade especimen-especimen, Kripke
apresenta a posição cartesiana que defende a distinção entre a mente e o
corpo com base na possibilidade daquela poder existir sem este último; o
que Kripke não aceita é uma primeira posição de crítica a esta
argumentação que aceita a premissa (a possibilidade da mente poder existir
sem o corpo) e rejeita a conclusão (a mente ser, de facto, distinta do corpo).
Kripke recusa esta argumentação com base na tese da necessidade da
identidade: seja “D” um designador rígido3 da mente de Descartes e “C”
um designador rígido do seu corpo, se “D” é idêntico a “C”, então, uma vez
1
Neste caso eventos mentais particulares são objectos irrepetíveis, não exemplificáveis. Qualquer
instância de um estado mental é identificada com uma instância de um estado físico.
2
Tipos mentais são objectos exemplificáveis. Todo o tipo mental é idêntico a algum tipo de estado físico,
ou seja, todas as instâncias de um tipo mental particular são instâncias de um tipo particular de estado
físico.
3
Um designador rígido de uma coisa designa essa coisa (e não outra) em todos os mundos possíveis em
que essa coisa existe.
1
que a identidade se verifica entre dois designadores rígidos, ela será
necessária, e “D” não poderá existir sem “C”, do mesmo modo que “C” não
poderá existir sem “D”. Seria possível apresentar como defesa da posição,
tal como o fazem os defensores deste tipo de identidade, uma analogia
como a da identidade do “Carteiro Geral” com o “inventor das lentes
bifocais”; no entanto, esta analogia, segundo Kripke, não é aplicável, uma
vez que não estamos perante o mesmo tipo de identidade, já que “o
inventor das bifocais” não é um designador rígido, pelo que um mundo no
qual as lentes bifocais não tenham sido inventadas não é um mundo no qual
Benjamin Franklin não tenha existido.4
Retome-se a argumentação de Kripke: seja “D” uma sensação de dor
particular numa dada ocasião; seja “C” um estado do cérebro que os
defensores da identidade pretendem identificar com “D”. De acordo com a
tese da necessidade da identidade, identidades verdadeiras não o são de
modo contingente, pelo que, se usamos designadores rígidos, e se “D” é
idêntico a “C”, então a identidade é necessária. No entanto, no caso do uso
de designadores flexíveis, tais como “a dor de estimação de Descartes” e o
“evento registado em t pela técnica de ultra-som”, se o argumento for
tomado de re (acerca da “dor de estimação de Descartes” e do “evento
registado em t pela técnica de ultra-som” o seguinte é o caso: são
necessariamente o mesmo evento), as descrições têm âmbito longo sobre os
operadores modais, e a premissa é verdadeira, e é-o de forma independente
do modo de apresentação dos eventos “D” e “C”.5 Por outro lado, segundo
Kripke, é logicamente possível que “C” possa existir sem a presença de
“D”, isto é, é perfeitamente concebível que o cérebro de Descartes esteja no
estado definido nessa mesma ocasião sem aquele sentir qualquer dor;
estamos num mundo possível m no qual o evento físico “C” ocorre e
Descartes não sente qualquer dor, pelo que o evento mental “D” não
ocorre, e portanto não existe em m. Desta forma, em m não se tem “D” =
“C”, pois aí “C” existe e “D” não. A réplica ao argumento, oferecida pelos
defensores da identidade, estabelece “ser uma dor” como uma propriedade
contingente de “D”, ou seja, coloca uma outra possibilidade: em m, o
evento “D” ocorre, mas não é uma dor, pelo que m não é um mundo onde
“C” exista e “D” não exista; m é um mundo onde o evento físico “C” existe
e o evento mental “D” (ou seja, “C”) existe, mas este último não é uma dor.
Deste modo, cada particular físico é idêntico a um particular mental, e esta
identidade é necessária, contingente é a propriedade particular que
caracteriza o evento mental (“ser uma dor”). Kripke não fica satisfeito com
esta objecção e contra-argumenta recorrendo a um princípio essencialista:
se z é uma dor, então, necessariamente, se z existe, z é uma dor. Para
4
5
Cf. KRIPKE, Saul, Naming and Necessity, Oxford, Basil Blackwell, 1980, p.145.
Cf. BRANQUINHO, João, Contra o Materialismo, 2002, p.2.
2
Kripke, a tese materialista segundo a qual “D” (ou seja, “C”) pode ocorrer
em m sem ser uma dor, isto é, que toma a propriedade de “ser uma dor”
como uma propriedade contingente, pelo que no mundo actual “D”
exemplifica a propriedade de ser uma dor e não a exemplifica em m, no
qual “D” existe, é implausível. No fundo, o que o princípio essencialista de
Kripke impõe é que termos mentais como “dor” são rígidos, aplicando-se
rigidamente a z, ou seja, aplicam-se a z em todos os mundos possíveis nos
quais z exista.6
Para Kripke o erro de aceitar a propriedade de “ser uma dor” como
uma propriedade contingente do evento mental “D”, nasce da análise da
identidade (suposta) do estado do cérebro com o correspondente estado
mental à luz da identidade contingente de Benjamin Franklin com o
“inventor das lente bifocais”, pois “[…]tal como a sua actividade
contingente tornou Benjamin Franklin no inventor das bifocais, alguma
propriedade contingente do estado do cérebro o torna numa dor.”7 Neste
sentido, Kripke dirige explicitamente as suas críticas a David Armstrong e
David Lewis, e em particular ao tratamento que estes apresentam da
propriedade de “ser uma dor”: esta é uma propriedade do estado físico e
deve ser analisada em função do papel causal desse estado, no que
concerne aos estímulos que o causaram e ao comportamento que aquele
causou.8 É este papel causal que deve ser tido como uma propriedade
contingente desse mesmo estado, pelo que é uma propriedade contingente
desse estado ser um estado mental, o que é, segundo Kripke, “[…]autoevidentemente absurdo[…]que a dor que agora tenho poderia ter existido
sem ser um estado mental sequer.”9
Para resolver o caso converso, ou seja, da possibilidade da existência
da dor sem o correspondente estado do cérebro, Kripke introduz um
segundo princípio essencialista: se k é um estado do cérebro, então,
necessariamente, se k existe, então ser um estado do cérebro é uma
propriedade essencial desse estado do cérebro. Mais, não é apenas um
estado do cérebro, mas é um estado do cérebro com uma configuração de
células específicas num tempo t; em t, isto constitui “C”, é para este
essencial, e sem esta configuração específica em t, “C” não teria existido.10
Ora, se “D” e “C” são idênticos, então “D” não poderia ter existido sem
essa configuração específica, pois se “D” = “C” é verdadeira, então ela é
necessária, pelo que qualquer propriedade essencial de um estado será uma
propriedade essencial de outro, se idênticos; assim, o defensor da
6
Cf. BRANQUINHO, João, Contra o Materialismo, 2002, p. 3.
KRIPKE, Saul, Naming and Necessity, Oxford, Basil Blackwell, 1980, pp.146-147.
8
Cf. KRIPKE, Saul, Naming and Necessity, Oxford, Basil Blackwell, 1980, p.147.
9
KRIPKE, Saul, Naming and Necessity, Oxford, Basil Blackwell, 1980, p.147.
10
Cf. KRIPKE, Saul, Naming and Necessity, Oxford, Basil Blackwell, 1980, p.147.
7
3
identidade não pode aceitar as intuições cartesianas da existência de “D”
sem “C” e de “C” sem “D”, ou seja, “[…]que a presença correlativa de
alguma coisa com propriedades mentais é meramente contingente a “B”
[“C”], e que a presença correlativa de qualquer propriedade física
específica é meramente contingente a “A” [“D”]. Ele tem de mostrar estas
intuições, mostrando como elas são ilusórias.”11 Desta forma, a identidade
de “C” com “D” é necessária, e uma propriedade essencial de um estado é
uma propriedade essencial do outro, pelo que os defensores da tese da
identidade não podem simplesmente aceitar as intuições cartesianas de que
um pode existir sem o outro.
Kripke passa então à análise da analogia, tida como segura, entre a
identificação materialista da dor com a estimulação das fibras-C e a
identificação do calor com o movimento molecular, no âmbito da
identidade tipo-tipo. A ideia generalizada é a de que é concebível que a
identificação do calor com o movimento molecular e da dor com a
estimulação das fibras-C são ambas contingentes. Num primeiro momento
da argumentação, Kripke retoma a tese da identidade entre designadores
rígidos: “calor” é um designador rígido e “movimento molecular” também,
logo a identidade será necessária; ora, o mesmo se verificará para “dor” e
“estimulação das fibras-C”, uma vez que, segundo o princípio essencialista
atrás introduzido, se algo é uma dor, é-o essencialmente, pelo que a dor não
poderia ter sido outro fenómeno para além daquele que é – a identidade
entre “dor” e “estimulação das fibras-C” é necessária. A contraargumentação dos materialistas pretenderá mostrar a aparente
possibilidade da dor não ser a estimulação das fibras-C, recorrendo à
aparente possibilidade do movimento molecular ter existido na ausência
do calor; efectivamente, de acordo com Kripke, o calor é necessariamente
idêntico ao movimento molecular, pois a aparente contingência da
identidade deriva do facto de se conceber o calor através de um
intermediário, isto é, a sensação de calor, a qual possui de facto uma
ligação contingente com a energia cinética molecular, ou seja, é a sensação
de calor que parece contingentemente associada com o movimento
molecular, não o próprio calor físico12; assim sendo, o que parece possível
é a existência do movimento molecular sem a sensação de calor. No caso
da aparente possibilidade da existência das fibras-C na ausência do
sentimento de dor, o mesmo tipo de argumento já não corre, como refere
Kripke, uma vez que, introduzindo um novo princípio essencialista (se z é
uma dor, então, necessariamente, se z existe, então z é sentida como uma
11
KRIPKE, Saul, Naming and Necessity, Oxford, Basil Blackwell, 1980, p.148.
Cf. ROSENTHAL, David, Identity Theories, in S. Guttenplan (ed), A Companion to the Philosophy of
Mind, Oxford, Basil Blackwell, p. 354.
12
4
dor13), existir para um dado estado físico sem ser sentido como dor é, para
ele, existir sem dor14; daqui resulta uma nítida contradição com a tese da
identidade necessária da dor com o correspondente estado físico. No caso
do calor e do movimento molecular, existe um intermediário entre o
fenómeno externo e o sujeito, no entanto, não existe um tal intermediário
no caso físico-mental, pois o fenómeno físico é considerado idêntico ao
fenómeno interno; por outro lado, a dor não é identificada pelas suas
propriedades acidentais (ex: a propriedade de produzir a sensação de calor),
mas antes pelas suas propriedades essenciais, pela propriedade de ser uma
dor, “[…]pela sua qualidade fenoménica imediata. Assim a dor, ao
contrário do calor, é não apenas rigidamente designada por “dor” mas a
referência do designador é determinada por uma propriedade essencial do
referente.”15 No caso da dor não existe uma diferença entre o estado e a
sensação, pois ser uma dor para um dado estado é necessariamente ser
sentido como uma dor.
2. A Argumentação de David Lewis
David Lewis responde à argumentação Kripkeana no artigo
denominado “Mad Pain and Martian Pain”; neste, Lewis coloca duas
situações possíveis: a) suponha-se a existência de um homem que sente a
dor, mas que esta difere da nossa nas suas causas e efeitos – esta é causada
por exercício e um estômago vazio, cujos efeitos são um aumento
exponencial da concentração quando envolvido na resolução de problemas
matemáticos e cuja intensidade não provoca a emissão de gemidos, mas
antes um cruzar de pernas ou um estalar de dedos; em suma, a dor que este
indivíduo sente não ocupa o seu papel causal16 típico; b) suponha-se a
existência de um marciano, cuja dor difere da nossa na sua realização
física, mas que é sentida tal e qual como um humano a sente – não ocorre
um disparar das fibras-C, mas antes a inflamação das minúsculas cavidades
existentes nos seus pés, acompanhada por gemidos e diminuição da
concentração associada a uma actividade particular; este marciano não
apresenta os mesmos estados corporais que, em nós, são a dor ou a
acompanham, mas sente-a efectivamente. Destes dois exemplos
apresentados por Lewis, retiram-se duas hipóteses: a) a dor está
13
Cf. BRANQUINHO, João, Contra o Materialismo, 2002, p. 4.
Cf. KRIPKE, Saul, Naming and Necessity, Oxford, Basil Blackwell, 1980, p.151.
15
KRIPKE, Saul, Naming and Necessity, Oxford, Basil Blackwell, 1980, p.152-153.
16
Por papel causal entenda-se a rede de conexões entre o estado em questão e os estímulos (inputs)
recebidos do meio ambiente, o estado em questão e outros estados mentais, e este mesmo estado e um
output comportamental. Cf. BRANQUINHO, João, Contra o Materialismo, 2002, p. 7. Cf. LEWIS,
David, Mad Pain and Martian Pain, in MARTINICH and SOSA (ed), Analytic Philosophy, An
Anthology, Oxford, Basil Blackwell, 2001, p. 272.
14
5
contingentemente associada com o seu papel causal e b) a dor está
contingentemente conectada com a sua realização física; segue-se,
obrigatoriamente, a seguinte questão: “Como podemos caracterizar a dor à
priori em termos do papel causal e da realização física, e no entanto
respeitar ambos os tipos de contingência?”17
Segundo Lewis, a sua proposta de uma teoria materialista da mente
conjuga a identidade psicofísica de tipos com um modo funcionalista de
caracterização dos estados mentais (como a dor); de acordo com o próprio,
enquanto filósofo, o que se pretende é uma caracterização à priori do estado
mental em questão, enquanto materialista, é a sua caracterização como um
fenómeno físico. É partindo deste ponto de vista que Lewis apresenta o
conceito de um estado mental (por exemplo, da dor) como um conceito de
um estado que ocupa um certo papel causal, ou seja, um estado com
determinadas causas e efeitos; assim sendo, este é o conceito de um estado
que está simultaneamente apto a ser causado por determinados estímulos e
a provocar ou ser causa de um certo comportamento; em suma, trata-se do
conceito de um estado que está apto a ser causado por estímulos associados
a outros estados mentais e, por outro lado, se encontra igualmente apto para
provocar ou causar, em conjugação com outros estados mentais, um
determinado comportamento.18 Se se tomar o conceito da dor, o conceito
desta será o conceito do estado que ocupa um determinado papel causal,
pelo que, qualquer que seja o estado que ocupa esse papel, esse estado é a
dor. É importante realçar, como indica Lewis, que o conceito da dor não é o
conceito desse estado em particular, pois o conceito daquela aplicar-se-ia a
qualquer outro estado que ocupasse aquele papel causal; a dor poderia não
ter sido a dor, pois o ocupante de um papel causal poderia não tê-lo
ocupado (um outro estado poderia estar naquele lugar); algo que não é dor
poderia tê-lo sido. O que está aqui em jogo é o tomar do conceito de dor
como um conceito não-rígido – do mesmo modo, o termo “dor” é um
designador não-rígido; a que estado o conceito e o termo se aplicam é
perfeitamente contingente, pois tal depende, como refere o autor, do que é
que causa o quê (isto mesmo vale para os restantes conceitos e nomes
aplicados a outros estados mentais)19. Desta forma, a propriedade de um
certo estado ter um determinado papel causal é contingente; trata-se, pois,
de uma propriedade que um estado tem, mas poderia não ter: um certo
estado do cérebro que no mundo actual tem a propriedade de ter o papel
causal característico da dor pode perfeitamente num mundo possível p não
17
LEWIS, David, Mad Pain and Martian Pain, in MARTINICH and SOSA (ed), Analytic Philosophy,
An Anthology, Oxford, Basil Blackwell, 2001, p. 272.
18
Cf. LEWIS, David, Mad Pain and Martian Pain, in MARTINICH and SOSA (ed), Analytic
Philosophy, An Anthology, Oxford, Basil Blackwell, 2001, p. 272.
19
Cf. LEWIS, David, Mad Pain and Martian Pain, in MARTINICH and SOSA (ed), Analytic
Philosophy, An Anthology, Oxford, Basil Blackwell, 2001, p. 273.
6
ter esse papel, pelo que em p não tem essa propriedade, logo não é uma
dor, pois analiticamente, um estado y é uma dor se, e só se, y tem o papel
causal característico da dor. Daqui resulta que a identidade da dor com um
determinado estado neuronal é contingente, pois a sua verificação varia de
mundo para mundo. Neste ponto preciso David Lewis sublinha um ponto
importante: não se está a afirmar que existem dois estados, a dor e um
estado neuronal, que são contingentemente idênticos neste mundo e
diferentes num outro; o que se afirma é que o conceito e o nome de dor se
aplicam contingentemente a um estado neuronal no mundo actual e não
num outro. O que é contingente é que o facto do conceito não-rígido de dor
se aplicar a um estado em vez de outro.20 Tem-se um estado que é dor, e é
necessariamente idêntico a si mesmo.21 Enquanto que é analítico que um
estado y é uma dor se, e só se, y tem o papel causal característico da dor, é
contingente e à posteriori que y tem esse papel causal se, e só se, y é o
disparar de fibras-C; logo, é contingente e à posteriori que y é uma dor se, e
só se, y é o disparar de fibras-C.22 Temos, então, a redução do conceito de
estado mental ao conceito de um papel causal determinado. Toda esta
argumentação visa colocar em causa a tese Kripkeana segundo a qual o
termo e o conceito de dor são designadores rígidos, isto é, que determinam
o mesmo estado em todas as situações possíveis; para Lewis, dores e
estados do cérebro são contingentemente idênticos.
Regressemos à análise dos dois exemplos inicialmente apresentados;
uma vez que, de acordo com Lewis, todas as actualidades são
possibilidades, e a pluralidade destas incluem a pluralidade das
actualidades, se um conceito e um nome não-rígidos se aplicam a diferentes
estados em diversas situações, então aplicam-se a diferentes estados em
casos actuais diferentes.23 Se o termo “dor” se aplica a um estado particular
no mundo actual m, e designa um outro num mundo possível p, em virtude
de uma estrutura interna diferente evidenciada pelas correspondentes
contrapartes, então designa um estado na Terra e outro em Marte, ou
melhor, designa um estado para os Terráqueos e outro para os Marcianos.24.
Pode então afirmar-se que um estado ocupa um papel causal para uma
população. Se o conceito de dor é o conceito do estado que ocupa o papel
20
Cf. LEWIS, David, Mad Pain and Martian Pain, in MARTINICH and SOSA (ed), Analytic
Philosophy, An Anthology, Oxford, Basil Blackwell, 2001, p. 273.
21
O seguinte é o caso: é uma identidade contingente que o estado y que ocupa o papel causal
característico é dor. - DE DICTO é Verdadeira. Acerca do estado y e do estado que ocupa o papel causal
característico da dor o seguinte é o caso: são contingentemente idênticos. - DE RE é falsa.
22
Cf. BRANQUINHO, João, Contra o Materialismo, 2002, p. 7.
23
Cf. LEWIS, David, Mad Pain and Martian Pain, in MARTINICH and SOSA (ed), Analytic
Philosophy, An Anthology, Oxford, Basil Blackwell, 2001, p. 273.
24
Cf. LEWIS, David, Mad Pain and Martian Pain, in MARTINICH and SOSA (ed), Analytic
Philosophy, An Anthology, Oxford, Basil Blackwell, 2001, p. 273.
7
causal característico de dor, então, esse estado é dor para uma população.25
O estado que ocupa o papel causal para os humanos é a dor humana,
enquanto que o estado que ocupa o papel causal da dor para os marcianos é
a dor marciana. Como refere David Lewis, “um estado ocupa um papel
causal para uma população, e o conceito de ocupante desse papel aplica-se
se e somente se, com raras excepções, quando um membro dessa população
está nesse estado, o seu estar nesse estado tem o tipo de causas e efeitos
dados por esse papel.”26 Para o caso da dor marciana, um marciano tem
uma dor porque ele exemplifica um estado que ocupa o papel causal da dor
para os marcianos. Um terráqueo tem uma dor porque ele exemplifica um
estado que ocupa o papel causal característico de dor para os terráqueos.
No caso da “dor louca”, o que acontece é que um certo indivíduo
exemplifica um estado que ocupa o papel causal da dor para a humanidade,
mas não ocupa o papel causal da dor para ele, ou seja, o estado que ocupa o
papel causal da dor característico para a humanidade não ocupa o papel
causal da dor para esse indivíduo.
De uma forma sucinta, o que se pode afirmar é que “XPTO” tem
uma dor se e somente se ele exemplifica um estado que ocupe o papel
causal característico de dor para uma população apropriada (tipo de
criaturas ou espécie animal)27. Com esta argumentação Lewis pretende
associar contingentemente a dor com o seu papel causal (ao permitir
membros excepcionais no domínio de uma população) e evidenciar a
associação contingente da dor com a sua realização física (não impedindo a
possibilidade da dor marciana). Para além do mais, apresenta-se uma
resposta à objecção colocada pelo argumento da realizabilidade múltipla
(possibilidade de um e o mesmo tipo mental ser exemplificado por criaturas
de variável constituição física). Quanto à questão do carácter
fenomenológico do estado exemplificado por um indivíduo, para Lewis,
qualquer que seja o papel causal ou a natureza física, se aquele é sentido
pelo indivíduo como dor, então é dor; isto deriva do facto de “[…]para um
estado ser uma dor e ser sentido como doloroso é o mesmo. Uma teoria do
que é para um estado ser uma dor é inescapavelmente uma teoria do que é
estar nesse estado, de como esse estado se sente, do carácter
fenomenológico desse estado.”28
25
Cf. LEWIS, David, Mad Pain and Martian Pain, in MARTINICH and SOSA (ed), Analytic
Philosophy, An Anthology, Oxford, Basil Blackwell, 2001, p. 273.
26
LEWIS, David, Mad Pain and Martian Pain, in MARTINICH and SOSA (ed), Analytic Philosophy,
An Anthology, Oxford, Basil Blackwell, 2001, p. 273.
27
Cf. LEWIS, David, Mad Pain and Martian Pain, in MARTINICH and SOSA (ed), Analytic
Philosophy, An Anthology, Oxford, Basil Blackwell, 2001, p. 274.
28
LEWIS, David, Mad Pain and Martian Pain, in MARTINICH and SOSA (ed), Analytic Philosophy,
An Anthology, Oxford, Basil Blackwell, 2001, p. 276.
8
Bibliografia
KRIPKE, Saul, Naming and Necessity, Oxford, Basil Blackwell, 1980.
LEWIS, David, Mad Pain and Martian Pain, in MARTINICH and SOSA
(ed), Analytic Philosophy, An Anthology, Oxford, Basil Blackwell, 2001.
LEWIS, David, Reduction of Mind, in S. Guttenplan (ed), A Companion to
the Philosophy of Mind, Oxford, Basil Blackwell, pp. 412-431.
BRANQUINHO, João, Contra o Materialismo, 2002.
ROSENTHAL, David, Identity Theories, in S. Guttenplan (ed), A
Companion to the Philosophy of Mind, Oxford, Basil Blackwell, 2001, pp348-355.
BLOCK, Ned, Functionalism (2), in S. Guttenplan (ed), A Companion to
the Philosophy of Mind, Oxford, Basil Blackwell, 2001, pp.323-332.
LYCAN, William, Functionalism (1), in S. Guttenplan (ed), A Companion
to the Philosophy of Mind, Oxford, Basil Blackwell, 2001, pp. 317-323.
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