DISCUTINDO A DIVERSIDADE ATRAVÉS DA LITERATURA E DE FILMES INFANTIS Graciele Fernandes Ferreira Mattos1 [email protected] Silvana Sousa de Mello Neves2 [email protected] 1 INTRODUÇÃO A diversidade vem ganhando destaque no novo paradigma mundial. Diversidade esta, entendida como as diversas formas possíveis da existência humana que aqui, em particular, abrange a discussão sobre as minorias excluídas socialmente, por apresentarem condições físicas, intelectuais, sociais, emocionais, lingüísticas dentre outras diferentes dos padrões legitimados pelo paradigma da modernidade. Neste sentido, ser negro ou branco, ser alto ou baixo, ser homem ou mulher, ter deficiência ou não, ser rico ou pobre são apenas algumas das inúmeras probabilidades de ser humano. Desta maneira, entendemos que a literatura infantil e a mídia cinematográfica podem e devem ser utilizadas pela educação como estratégias no processo de ensino-aprendizagem, com o intuito de refletir sobre a diversidade, a fim de propiciar uma prática pedagógica que vise atender a todos os alunos com qualidade, independente de suas características individuais que lhes são próprias. Vale ressaltar que em momento algum pensamos em deixar de contar histórias para nossas crianças ou presenteá-las com belíssimas produções cinematográficas e sim, aproveitar seu encantamento pelo mundo fantástico da imaginação levando-as a perceber e respeitar as diferenças. A presente oficina teve como finalidade traçar o cenário do mundo Atual que vem rompendo com as concepções de mundo e de homem construídas no período histórico da Modernidade, refletindo e problematizando tais questões através da literatura infantil, principalmente dos livros: O patinho feio (Hans Cristian Andersen); O coelhinho que não era de 1 Mestre em Educação pela Universidade Federal de Juiz de Fora e professora do Departamento de Psicologia e Orientação Educacional da Faculdade de Educação da UFJF e do curso de Especialização em Educação e Diversidade da Faculdade de Educação da UFJF. 2 Mestre em Educação pela Universidade Federal de Juiz de Fora, professora da Rede Municipal de Ensino de Juiz de Fora e do curso de Especialização em Educação e Diversidade da Faculdade de Educação da UFJF. 2 páscoa (Ruth Rocha); Menina bonita do laço de fita (Ana Maria Machado); A cor da vida (Semíramis Paterno); Um amigo diferente? (Claudia Werneck) e O campeão (Carmem Lúcia Campos) e do filme O Corcunda de Notre Dame, um clássico da Walt Disney que nos desvela padrões e concepções consolidadas na Modernidade. Os clássicos literários e cinematográficos, em sua maioria, produzidos a partir de livros escritos ainda na Modernidade, carregam em suas imagens e textos o apontamento e marcação do diferente em detrimento das diferenças inerentes ao ser humano. Padrões de comportamentos a serem seguidos, segregação dos considerados desviantes do padrão, estigmas, preconceitos e estereótipos são veiculados a todo instante e vêm se perpetuando entre nossas crianças e jovens. Tais características devem ser problematizadas e refletidas tendo como base as construções e desconstruções sociais. 2 MODERNIDADE E O SUJEITO PADRÃO Historicamente, o ser humano percorreu o caminho que vem da exclusão, constatada ainda na Antigüidade, no intuito de chegar à celebração da diversidade, o que podemos chamar de paradigma da inclusão, que contempla todas as formas de existência humana. A sociedade passou por três grandes momentos de mudanças: O Advento do Cristianismo, que teve como demarcação de tempo a passagem de Jesus Cristo, separando-o em antes e depois; O Renascimento, na Idade Média, que deu início à Modernidade e o terceiro sendo o momento Atual3, onde convivem pensamentos da era Moderna e da Atualidade, demarcando o movimento de ruptura e início do deslocamento de concepções que gera uma outra visão de mundo e de homem. Com o advento do Cristianismo, ambas as categorias, criança e pessoas com deficiência, passaram a ser consideradas sagradas, merecendo a proteção da sociedade. Dessa forma, não era mais concedido o direito de exterminá-las oficialmente, no entanto sabemos que isso não deixou de acontecer e que hoje ainda acontece em algumas sociedades. 3 Denominamos o momento Atual por Atualidade e não Pós-modernidade, como muitos autores definem, por considerar o referido período como o de transição entre os pressupostos da Modernidade e uma nova era que ainda se encontra em construção. 3 Ao longo da Idade Média, no entanto, atitudes contraditórias se desenvolveram com relação às pessoas com deficiência, já que, ao serem consideradas filhas de Deus, não mais eram abandonadas à própria sorte ou exterminadas e sim segregadas e confinadas em asilos. Este processo, denominado institucionalização, substituiu, de certa forma, em algumas sociedades, o suplício4 antes comumente praticado. A institucionalização serviu e serve ainda hoje para segregar e manter as categorias excluídas longe do convívio social. Assim, a posição de cada indivíduo estaria definida conforme o espaço a ele destinado em um determinado ambiente sociocultural (...). Muito da sua dificuldade de inserção social e de expansão de seus horizontes de realização decorre do seu enquadramento num espaço ínfimo para ele reservado e por ele ocupado no cenário social (CMARQUES, 2001, p. 34). A instituição torna-se mais eficiente por dar a idéia de caridade, bondade para com o excluído, protegendo-o das maldades da sociedade, porém, como veremos mais adiante esta não é a verdadeira intenção de tal processo. Até a Idade Média, pelo discurso religioso, acreditava-se que Deus tinha controle absoluto de tudo que o homem pensava e fazia. A idéia era de que o homem foi criado à imagem e semelhança de Deus e Ele tudo comandava. A partir do Renascimento, mudanças significativas começaram a ser desencadeadas, tanto no aspecto científico e social, quanto no político, econômico e filosófico, contrapondo-se à visão Teocêntrica da Idade Média. Sendo assim, o conhecimento, o mundo e o sujeito passaram a ser percebidos de outra maneira. A visão teológica, tradicional e supersticiosa, foi substituída por uma visão científica, Antropocêntrica, baseada na razão, inaugurando a Modernidade. Isso causou no homem uma instabilidade não só filosófica, de conhecimento, mas, acima de tudo, psicológica, visto que, a partir de então, ele deixou de ser um ser passivo e foi forçado a se assumir como sujeito histórico, que participa e transforma a realidade em que vive. Dessa maneira, toma-se consciência de que o conhecimento pode ser construído pelo homem e não somente reproduzido. A ciência foi um dos principais instrumentos responsáveis por esta ruptura. Na Idade Média, o ser humano era visto como incapaz de produzir o conhecimento, subordinado aos 4 Foucault (1989) define suplício como castigo ou pena corporal dolorosa, cuja imaginação dos homens para a barbárie e a crueldade é um fenômeno inexplicável. 4 preceitos da igreja, sendo incapaz de pensar por si próprio. A tomada de consciência, na Modernidade, de que o homem era capaz de agir e pensar por conta própria fez com que ele se lançasse no mundo como sujeito e não mais como objeto. Daí recorreu-se ao conhecimento científico, para garantir seu novo lugar perante o universo, tendo a necessidade psicológica de se afirmar como sujeito. A partir de então, a ciência assumiu estatuto científico, passando a ter grande importância como tinha o saber religioso na Idade Média, tornando-se também um dogma, isto é, verdade absoluta, priorizando as ciências físicas e naturais. A Anatomia foi a que mais se desenvolveu, já que antes o corpo era tido apenas como um instrumento de reprodução. O homem moderno, sentindo a necessidade de se conhecer melhor, fez uma separação entre as coisas do homem e as da natureza, supervalorizando a ciência como algo inquestionável. Daí tem-se a falsa pretensão de que tudo poderia e deveria ser explicado apenas pelo saber científico. Legitima-se tal conhecimento, nomeando algumas pessoas como “especialistas”, que em nome desse saber científico, passam a ter o poder sobre a vida e a morte das pessoas, principalmente daquelas que se enquadravam fora do padrão universal estabelecido, decidindo se essas deveriam conviver ou não na sociedade, bem como delimitando o espaço a ser freqüentado por elas, colocando-as em instituições. A transição da era medieval para a Modernidade se caracteriza pela construção, difusão e imposição de padrões e instrumentos de medidas, sendo o princípio do universal a característica maior da Modernidade. Esta, trazendo em si a idéia do absoluto, do ideal, veio, então, dar estatuto de legitimação à exclusão arrastada desde a Antigüidade, através do estabelecimento de padrões, deixando à margem do sistema social aqueles que não conseguiam os resultados esperados, ressaltando, desta forma, a homogeneização e a hierarquização que instituem o sujeito padrão. O estabelecimento de padrões e a demarcação das pessoas e de seus comportamentos dentro ou fora deles, retrata o poder que estava imposto nesta nova visão dicotômica de sociedade Moderna que, instaurando as dualidades nos aspectos ético, estético e econômico, demarca quem pode e quem não pode fazer parte dessa nova ordem social, através da concepção de corpo produtivo trazida pelo Capitalismo. A tendência é considerar como normais os padrões da classe dominante. Assim, como herança tem-se, dentre muitas outras, as polaridades: melhor/pior, capaz/incapaz/, bom/mau, 5 válido/inválido, normal/anormal, sendo a última importante foco para fundamentação deste trabalho. De acordo com CMarques (1994, p. 80), a visão funcionalista de sociedade faz com que a mesma seja vista como um corpo estruturado, com órgãos, e onde cada órgão tem uma função social muito precisa. Da mesma forma que no corpo humano, os órgãos devem se relacionar entre si, trazendo uma harmonia fisiológica para esse corpo. Para que se mantenha o equilíbrio, não deve existir órgãos estragados ou em mau funcionamento. O sentido de anormalidade é bem definido por CMarques (2001, p. 50), como “contraponto necessário para a construção do sentido de normalidade.” O homem moderno cria o conceito de normalidade para se sentir seguro e afirma-se psicologicamente como estando no caminho certo. Assim, a sociedade começou a se organizar e a se disciplinar para atender às necessidades dos indivíduos, com base em valores previamente estabelecidos como normais. Dessa forma, os considerados desviantes ou anormais eram vistos como desestruturadores da ordem e do bom funcionamento social. Sendo assim, as vítimas das patologias sociais, com desvios de normalidade, são, permanentemente, vigiadas e excluídas do convívio social, sofrendo discriminações e sendo condenadas a viver à margem da sociedade como desviantes da normalidade para que não “contamine” o restante da sociedade. Nesta perspectiva, categorias de anormais foram se concretizando, sendo a pessoa com deficiência a mais evidenciada dentre elas, porém, neste contexto de exclusões sociais, que constitui a formação ideológica dominante, não escapava qualquer indivíduo que se diferenciasse do padrão. Daí, também a criança, o negro, o homossexual, a mulher, o velho... todos foram sendo colocados à margem da sociedade. Este fato pode ser analisado como um dado social, já que as formas de discriminação, de opressão e de controle se dão nas relações sociais. Conforme CMarques (2001), a anormalidade está fundamentada no pensamento Moderno, para se instituir a noção do normal, podendo assim excluir realidades, constituindo um mundo de acordo com suas próprias preferências e semelhanças. Sendo assim, o anormal é considerado o inadaptado, aquele que não se ajusta aos padrões da sociedade, um desviante e, por sua vez, estigmatizado, estereotipado e marginalizado do processo. 6 Conseqüentemente, estabelecidos os critérios de “pertencimento” ou não à faixa de normalidade, a sociedade passa a avaliar seus membros conforme parâmetros por ela mesma definidos. Sant’Anna (1988), ao analisar o processo de controle e discriminação do desvio, conceitua como “normal” aquilo que é reto, perpendicular e “anormal” como sendo qualquer coisa que se incline para a direita ou para a esquerda. A partir daí, identifica dois critérios para detectar o anormal: o critério ontológico e o estatístico. O primeiro se dá quando o indivíduo desviante se afasta do modelo ideal e o segundo, quando o desviante não se enquadra estatisticamente na maioria dos casos de uma determinada cultura. Uma vez detectados por sua suposta anormalidade, tais sujeitos são isolados ou carregam as marcas dos preconceitos e dos estigmas, criados historicamente e facilmente identificados em nossa sociedade. O tratamento dispensado à diferença está intimamente ligado à trama de relações sociais. Diz-nos Omote (1990, p. 11): Não é algum atributo ou comportamento que tem inerente nele esse caráter algo especial. Depende de como esse atributo ou comportamento é interpretado pelo grupo social. Em função dessa interpretação é que um atributo ou um comportamento adquire o sentido de desvio ou de deficiência. São os grupos sociais que criam as regras sociais e, por conseguinte, criam o desvio rotulando os indivíduos como marginais e desviantes. Dessa maneira se manifestam as diversas formas de controle, discriminação e opressão para com os considerados desviantes (CMARQUES, 1994). Foucault (1999) identifica e explicita três passos trilhados pelo pensamento moderno para trabalhar com o desvio: a conceitualização; o isolamento ou institucionalização e a transferência para o plano simbólico. A conceitualização se refere à teorização do normal e do anormal para defender e justificar a normalidade do homem moderno, como já discutimos. O isolamento em instituições serviu para segregar as pessoas sob a proposta de beneficiálas com tratamento, cura, recuperação, reabilitação, proteção, educação e/ou treinamento para que estas, futuramente, pudessem ser reconduzidas ao convívio com as demais pessoas. Assim sendo, criou-se uma “estrutura paralela” sob a forma de hospitais psiquiátricos, asilos, escolas especiais, 7 dentre outras instituições, sob a desculpa de proteger os isolados da sociedade; todavia, a existência dessa “estrutura paralela”, segundo CMarques (1994), inverte o sentido do papel atribuído às instituições assistencialistas, pois a maior beneficiária desse processo é a sociedade e não o indivíduo assistido. Reforça-se ainda mais o aspecto negativo do desvio, facilitando a identificação das pessoas assistidas por esta estrutura e evidenciando o preconceito e a discriminação. Por último, a transferência do concreto para o “plano simbólico”, discursivo. Os ditos normais foram legitimados a falar sobre e por aqueles que estavam isolados. Assim se deu o surgimento dos especialistas (Terapeuta, Psiquiatra, Orientador e Supervisor Escolar, por exemplo), que foram autorizados a falar e tomar decisões pelos “isolados” como detentores do saber científico. Foucault (1985, 1989), ao longo de sua obra, mostra como os mecanismos sociais são construídos e como funcionam. Valoriza o poder do discurso que consolida no “plano simbólico” a exclusão, pois trabalha no plano imaginário, criando um discurso, consolidando uma imagem e alimentando os preconceitos e os estereótipos. No que tange ao preconceito, Amaral (1998) afirma que: Como a própria construção da palavra indica, é um conceito que formamos aprioristicamente, anterior, portanto à nossa experiência. Dois são seus componentes básicos: uma atitude (predisposições psíquicas favoráveis ou desfavoráveis em relação a algo ou alguém - no caso aqui discutido, desfavorável por excelência) e o desconhecimento concreto e vivencial desse algo ou alguém, assim como de nossas próprias reações diante deles (p. 17). A mesma autora acrescenta que a concretização e a personificação do preconceito se dão através dos estereótipos, e que a todo o momento, deparamos com eles: negros, judeus, homossexuais, prostitutas, deficientes, dentre outros. Afirma ainda “que as ações e os comportamentos discriminatórios, dirigidos a um alvo específico (pessoas ou grupos significativamente diferentes), concretizam-se em relações interpessoais mediadas por estereótipos” (AMARAL, 2002, p. 237). Dessa forma, afirma existirem alguns tipos de estereótipos, ou seja, de concretizações de nossos conceitos e preconceitos: os particularizados no caso das pessoas com deficiência, como, por exemplo, o deficiente físico ser “o gênio intelectual” ou o cego “o gênio musical”; existem também três outros estereótipos generalistas que são empregados cotidianamente, não só às pessoas com 8 deficiência, mas a todos aqueles apontados ideologicamente como diferentes, como exemplificado acima, pelos meios de comunicação, pelo teatro, pela música, pela literatura... estes são compostos pelos estereótipos de herói, vilão e vítima. Ao primeiro cabe sempre o papel daquele que supera todos os obstáculos, ultrapassa todas as barreiras, é “o bom” – corporificação do bem – e até mesmo o melhor; ao segundo cabe o papel de agente desestruturador, destrutivo, de ser “o mau” – corporificação do mal; ao terceiro cabe o papel de impotente, de coitadinho (AMARAL, 1998, p. 18). Outra maneira muito utilizada para discriminar seria os estigmas, ou seja, as “marcas negativas” (Goffman, 1988) que na Modernidade deixaram de ser marcas corpóreas, para serem simbólica, ou seja, manifestações práticas das relações culturais de rejeição daqueles que se distinguem, pejorativamente, das demais pessoas. Muito mais do que um dado cultural, tais manifestações assumem um papel filosófico no processo de construção dos valores éticos e políticos dos povos (CMARQUES, 1994). Sendo assim, de acordo com Amaral (2002, p. 238), que compartilha das proposições de Goffman (1988): O estigma não está referido a determinadas características (etnia, classe social, origem, orientação sexual, deficiência etc.), mas sim à leitura social que delas é feita no contexto das relações interpessoais - nessas relações, que o autor chama de “mistas”, campos de força antagônicos se explicitam a partir dos posicionamentos de dois atores sociais: o estigmatizador e o estigmatizado. Algumas conseqüências drásticas advêm quando o estigma está presente: há a desumanização/coisificação daquele que o recebe e há a potencialização daquele que o impinge. Ao primeiro cabe o lugar da falta, da falha e do erro; ao segundo o da completude e do acerto. Na vida social, a demarcação de fronteiras e a classificação determinam esta relação de poder, o qual separa a sociedade em grupos bem definidos, de dominantes que impõem seus valores aos dominados num processo de hierarquização. As oposições binárias nós/eles, masculino/feminino, determinam a categorização e por conseqüência a normalização, que é arbitrária, ao eleger um padrão a ser comparado, avaliado e hierarquizado. De acordo com CMarques (2001, p. 36), “o poder de vigilância - e em muitos casos o próprio poder de punição - é assim exercido por todos os membros da sociedade, uns sobre os outros, de modo a assegurar a reciprocidade necessária para a manutenção da ordem.” 9 Esta estratégia é descrita por Foucault (1985) como o “panoptismo”, isto é, condição na qual todos, ao mesmo tempo, são vigiados e vigilantes. Como podemos perceber, na Modernidade o mundo e, conseqüentemente o homem, foram definidos a partir de padrões previamente estabelecidos, sendo socialmente marginalizados aqueles indivíduos que diferiam da considerada “normalidade”. Contudo, novas formas de se pensar o mundo estão sendo colocadas em prática, abrindo caminhos para diferentes maneiras de concebermos a vida humana. Isso é o que veremos ao refletirmos sobre a Atualidade. 3 ATUALIDADE E O SUJEITO DIVERSO Com base na tese de CMarques (2001), o final do século XX caracterizou-se como um período de grandes transformações, as fronteiras perderam seus limites, o mundo se abriu totalmente às janelas da Atualidade. O espaço está cada vez mais expandindo-se; a indústria das telecomunicações tem se desenvolvido intensamente, proporcionando redes mundiais de comunicação informatizada, como a internet que possibilita ao homem locomover-se virtualmente pelas várias direções do espaço. Por conseguinte, velhas concepções e idéias da Modernidade estão sendo desconstruídas e inicia-se a construção de novas tomadas de decisões, estabelecendo-se novos discursos com diversos sentidos. Essa abertura do espaço social e a facilitação de acesso a todos os locais por todos os cidadãos, real ou virtual, possibilitam pensar na retirada de barreiras arquitetônicas, de modo a privilegiar o relacionamento e o reconhecimento de que a inserção social do cidadão é uma condição inerente à existência humana. Para o fenômeno da globalização, que possibilita pensar o novo partindo de inovações tecnológicas e científicas e não da elaboração de projetos sociais, importa mais a capacidade de acessar as informações e não o acúmulo de conhecimento proveniente da memorização de informação (CMARQUES, 2001). O advento das transformações tecnológicas vem provocando mudanças substanciais no cenário e principalmente na dinâmica do mundo Atual. O novo modo de organização cultural, política e econômica reflete diretamente nas relações, tanto em seus aspectos interpessoais, quanto nos sociais. 10 Novas perspectivas começaram a surgir na Atualidade. Pouco a pouco, a ideologia da exclusão começa a ceder lugar à valorização da diversidade humana e ao direito à diferença, na medida em que conceitos e práticas assumem cada vez mais um caráter efêmero e de possibilidades múltiplas. Acompanhamos à construção de um novo entendimento do que seja normalidade e deficiência e, por conseqüência, novas formas de lidar com tal condição, principalmente no campo educacional. Portanto, ao falarmos do paradigma da inclusão, nos referimos a todas as formas possíveis da existência humana, conforme elucidamos anteriormente. Tais questões, ao se entrecruzarem com a crise da Educação, colocam inúmeros desafios no momento de se pensar um projeto de recuperação e requalificação da escola e da sociedade. O principal desafio, de acordo com Bonamino e Brandão (2002), é o de encaminhar uma proposta política de educação, que diminua os problemas da escola e viabilize alternativas às questões postas pela complexidade conjuntural da discussão sobre esta. E isto, sem abandonar as exigências de uma educação comum para atender a uma população diversa. Diante disso, a educação deve retomar seu compromisso de transformação social, sendo capaz de organizar uma sociedade em torno da solidariedade, igualdade e liberdade, conceitos e atitudes que durante toda a vivência humana foram compreendidos, mas que na prática, até então, nunca foram, de fato, garantidos e tidos como direitos de toda a humanidade. Percebemos que a diferença no contexto do mundo Atual ainda não é aceita, porque perturba, uma vez que possibilita que cada um se lembre de suas próprias limitações, de suas fragilidades, de seus defeitos; por isso que a mulher perturba o homem, os fracos perturbam os fortes, os altos perturbam os baixos, as pessoas com deficiência perturbam as pessoas que não têm deficiência. E esta nossa incapacidade de lidar com a diversidade humana é construída e legitimada principalmente em nossa formação escolar e acadêmica. Nossa educação nos prepara para lidar com o que se encaixa em nosso padrão de normalidade preestabelecido. Estudamos sobre o outro de acordo com as concepções e conhecimentos que temos desse outro, mas na realidade não o conhecemos, pois não o deixamos manifestar-se, emergir entre nós, ser conhecido de fato, uma vez que estamos sobre a ilusão de normalidade que nos impede de conhecermos uns aos outros (SKLIAR, 2002). Ferré (2001) elucida que não existem identidades especiais e sim diversidade humana, mas, lamentavelmente, a sociedade e suas organizações, principalmente as educacionais, insistem 11 em fazê-las existir. Esta existência se faz a partir dos padrões de normalidade instalados previamente aos sujeitos, antes mesmo de seu nascimento, pois não é permitido o surgimento de algo novo, inesperado, e sim de algo antes determinado, definido, limitado ao já desejado. Segundo Guirado (1998, p. 197) todas as instituições sociais, inclusive a escola, são ocasiões para a reprodução da mesmidade e para a produção da diferença, uma vez que diante de tantas certezas quanto à metodologia adequada, à boa relação professor-aluno, à melhor forma para a aprendizagem, a escola institui certos padrões de conduta, de pensamento e de discurso. A escola demarca nossos lugares e prevê nossos papéis. Larrosa (1998) fala da importância de não definirmos a priori o que o outro, enquanto sujeito, deve ser, pois é algo que não podemos antecipar. Não é presa de nosso poder, mas requer nossas iniciativas, não está no lugar que lhe damos, mas requer um lugar que o receba. É neste sentido que a literatura e a mídia cinematográfica podem servir à educação como estratégias que propiciam discutir, desmistificar e repensar padrões de comportamentos estabelecidos na Modernidade e que ainda hoje são veiculados, sem serem questionados. Estamos diante de uma mudança paradigmática, na qual o mundo e nós educadores devemos nos apresentar abertos à aparição de algo novo, que devemos receber, quem sempre por nós foi negado, afastado, mesmo que para recebê-lo tenhamos que renovar todas nossas crenças, concepções e estruturas. Este é o paradigma da inclusão. “O nascimento constitui a possibilidade de tudo quanto escapa ao possível ou, em outras palavras, do que não está determinado pelo que sabemos ou pelo que podemos” (LARROSA, 1998, p. 81). A proposta de uma Educação Inclusiva deve passar pelo crivo da discussão sobre a identidade, diferença, diversidade, alteridade, mesmidade e outridade. No geral, segundo Silva (2000), a posição socialmente aceita e pedagogicamente recomendada é de respeito e tolerância, que de acordo com Skliar (2003), é entendida como um sentimento de não reconhecimento do outro; de simplesmente suportá-lo, mas não aceitar e conviver com este de fato; não estabelecer uma relação pautada pela alteridade. Tomamos aquilo que somos como referência àquilo que não somos. A diferença pode ser considerada como um produto derivado da identidade, pois “as afirmações sobre diferença só fazem sentido se compreendidas em sua relação com as afirmações sobre a identidade” (SILVA, 2000, p. 75). 12 Em conformidade com o pensamento de Ferré (2001), nossa identidade se constitui a partir do outro, tomando por base sua própria identidade. Portanto, identidade e diferença são processos fabricados por nós nas relações sociais e culturais. A afirmação da identidade e a marcação da diferença implicam em operações de incluir e de excluir, demarcar quem está dentro e quem está fora. Para Silva (2000), a identidade está sempre ligada a uma forte separação entre “nós” e “eles”. E esta demarcação de fronteiras afirma e reafirma relações de poder. Assim, como a definição da identidade depende da diferença, a definição do normal depende da definição de anormal. A definição daquilo que é considerado desejável, aceitável, natural, é inteiramente dependente da definição daquilo que é considerado abjeto, rejeitável e antinatural. O papel da escola diante desse sistema de representação seria possibilitar em seu currículo e práticas o desenvolvimento da criticidade e questionamento dos sistemas e formas dominantes de representação da identidade e diferença. A identidade é instável, contraditória, fragmentada e inconsistente. Está ligada a estruturas discursivas e narrativas; está ligada a sistemas de representação (SILVA, 2000). A questão da identidade, da diferença e do outro é um problema social e pedagógico. Social porque vivemos em um mundo heterogêneo e o encontro com o outro é inevitável. Pedagógico porque além da escola ser também um espaço atravessado pela diversidade, esta problemática de identidade e diferença deve perpassar o currículo escolar. Perante a exposição que traçamos quanto às nossas concepções sobre os termos identidade, diferença e diversidade, fazemos a defesa pelo deslocamento da formação ideológica da exclusão e segregação, rumo à formação ideológica inclusiva, na qual os sujeitos deixam de ser percebidos como os diferentes, para serem concebidos em suas diferenças, ou seja, em sua diversidade. Para tanto, não podemos esperar que a sociedade, assim como a escola, se prepare para lidar com tal diversidade, pois isso só acontecerá a partir do momento que todos estiverem participando e convivendo em sociedade, ou seja, quando todos tiverem que lidar com essa diversidade, ressignificando seus conceitos. Assim sendo, a literatura infantil e a mídia cinematográfica são importantes instrumentos para a discussão e a reflexão do exposto no texto. Sabemos que existem diversas maneiras de 13 utilização de tais recursos didáticos, comumente usados na sala de aula, e nossa intenção foi apresentar mais uma alternativa para o uso destes, visando propiciar o desenvolvimento, a aprendizagem e, enfim, uma educação integral a todos os alunos sem distinção. Enfim, como bem sintetiza Marques e Marques (2003, p. 239), “não há um caminho a se trilhar, mas a se construir (...) Assumir a diversidade é, em suma, assumir a vida como ela é: rica e bela na sua forma plural de ser vida”. É construir um novo sentido ético e moral para viver e conviver socialmente. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS AMARAL, Lígia Assumpção. Diferenças, Estigma e Preconceito: o desafio da inclusão. In: OLIVEIRA, Marta Kohl de; REGO, Teresa Cristina; SOUZA, Denise Trento R. (orgs.). Psicologia, Educação e as temáticas da vida contemporânea. São Paulo: Moderna, 2002. p. 233- 248. ______. Sobre crocodilos e avestruzes: falando de diferenças físicas, preconceitos e sua superação. In: AQUINO, Julio Goppa. Diferenças e preconceitos na escola: alternativas teóricas e práticas. São Paulo: Summus, 1998. p.11-30. BONAMINO, Alícia Catalano de; BRANDÃO, Zaia. Posfácio. In: BRANDÃO, Zaia (org.). A crise dos paradigmas e a educação. 8. ed. São Paulo: Cortez, 2002. p. 88-102. FERRÉ, Nuria Pérez de Lara. Identidade, diferença e diversidade: manter viva a pergunta. In: LARROSA, Jorge; SKLIAR, Carlos. Habitantes de Babel. Belo Horizonte: Autêntica, 2001. p. 195-214. FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. 5. ed. 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