Cornelius Castoriadis: pistas luminosas para pensar o
humano
Lílian do Valle
«Ouvindo… coisas»? Perdoem-me se volto ainda, ao final do primeiro dia de
atividades deste encontro, a seu título, tão sugestivo, que funciona aqui diz o
folheto, como uma convocação a «experimentações sensíveis», tanto quanto à
reflexão e à autoformação – e tudo isso sob a égide do imaginário: é que,
pretendendo trazer algumas contribuições a partir do pensamento de Cornelius
Castoriadis, pareceu-me que, talvez, este título pudesse fornecer um percurso
suficientemente ilustrativo da relação que vimos mantendo com aquela que era,
para este filósofo, a característica mais essencial e própria do humano: a
imaginação.
«Ela fica ouvindo coisas», diz-se de alguém que decididamente alucina, e afirma
fazer a experiência direta de algo… que não tem existência, ou cuja existência, ao
menos, jamais poderá ser provada. Mas, o que ouvia ela, quando só para ela se
manifestavam essas «coisas»? Coisas que ela imaginava. Delírio. Ilusão. Fantasia.
A imaginação se intromete, diz-se então, na relação simples, direta e estável que
o indivíduo mantém com seus sentidos, pervertendo-a, introduzindo o falso, o
irreal. A sensação é corrompida pela imaginação, de modo que, pondo-se a «ouvir
coisas», é bem possível que a pessoa esteja entregue à sua imaginação, e não
mais a controle. Perda de controle: os humanos decerto são dotados de audição,
mas só aos loucos ocorre de ouvir coisas.

Professora titular de Filosofia da educação da UERJ. Autora, entre outros, de Os enigmas da
educação. Rio de Janeiro: Autêntica, 2002.
…Ou não? Pois é sempre possível invocar ainda o caso dos artistas, naturalmente
dados a transes e a fabulações. Que o diga o velho Olavo Bilac, que, contemplando
o infinito, pretendia ouvir… estrelas! Estrelas existem – e, sobre este ponto, o
poeta não se engana. Sobretudo este poeta, lídimo representante do movimento
que pretendia denunciar os excessos do romantismo, e seguir por uma via mais
racional, menos emotiva, intelectualizada! Mas eis que, também a ele, aconteceu
de sua imaginação o inflamar; e ele, cedendo a ela, tal como um «tresloucado», se
pôs, ele também, a ouvir coisas que não são ditas1. Ah, os poderes enganadores
da imaginação, que confundem as exigências do real, fazendo com que o
conhecimento seguro das coisas, aquele que se conquista na impessoalidade da
razão, se altere e se perca em puro frenesi! O poeta definitivamente «perdeu o
senso», ou neles perdeu-se, e encontra-se em um estado alterado; ele próprio
confessa-se «pálido de espanto» – pois seu arrebatamento não o impede de
reconhecer que de fato não esperava o que ouviu; e que, normalmente, ele não
deveria ouvir o que ouve.
Bilac se alinhava a um movimento que pretendia romper com as marcas, da
excessiva sensualidade, do transe, do devaneio que romantismo havia imposto
aos sentidos; mesmo assim, obrigou-se um dia a declarar que «…só quem ama
pode ter ouvido capaz de ouvir e de entender estrelas.»
Parece então que o problema é cultural, e que, pelos privilégios ou pelos
sortilégios de nossa formação, somos irremediavelmente ligados às sensações – e
é bem possível que assim o seja! Pois, as estrelas que outrora Bilac dizia ouvir,
Quintana as tinha, ainda há pouco tempo, em sua boca2, convocando não mais a
audição, mas o agora o paladar. Quintana sorri, e «um gosto de estrela», diz ele,
vem à sua boca. As estrelas têm então um gosto, o gosto do sorriso. Mas,
«Ora (direis) ouvir estrelas! Certo / Perdeste o senso!" E eu vos direi, no entanto, / Que, para
ouvi-las, muita vez desperto / E abro as janelas, pálido de espanto... E conversamos toda a noite,
enquanto / A via láctea, como um pálio aberto, / Cintila. E, ao vir do sol, saudoso e em pranto, /
Inda as procuro pelo céu deserto. Direis agora: "Tresloucado amigo! / Que conversas com elas?
Que sentido / Tem o que dizem, quando estão contigo?" E eu vos direi: "Amai para entendê-las! /
Pois só quem ama pode ter ouvido / Capaz de ouvir e de entender estrelas.» Olavo Bilac, “ViaLáctea”, Soneto XIII in Poesias, 1888.
2 «Não sei por que, sorri de repente. E um gosto de estrela me veio na boca». Mario Quintana,
“Noturno” in: Poesia completa. Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar, 2005, p. 204.
1
aparecendo do nada, sem razão de ser, as estrelas marcam a presença da
sensação, quando lá já não está presente o objeto que as provocava. É sob a
forma de lembranças que as estrelas abruptamente intervêm no passeio do
poeta, lembranças que nos trazem de volta um cheiro familiar, uma imagem que
já não vemos. Por isso mesmo, não é tanto uma sensação, mas, de novo, o poder
de sua imaginação aquilo que que Quintana experimenta. Ao desdobrar os
sentidos e prolongá-los na ausência do objeto que um dia os havia despertado
(em nosso caso, as estrelas) a imaginação faz-se memória. Contudo, ainda nesta
acepção a imaginação pode nos pregar algumas peças, nos fazendo reviver o que
jamais vivemos, nos lembrar do que jamais aconteceu, ouvir o que jamais nos foi
contado. Decerto não saboreamos, nem jamais poderemos saborear as estrelas!
O resto é loucura. Ou então é poesia. Se não, apenas engano, mistificação.
Tudo indica, portanto, que ali onde há experiência sensível, tanto quanto ali onde
busca se realizar o trabalho da razão, imiscui-se a imaginação, e com ela o risco
de perda de controle, ou pelo menos de deturpação da sensação ou da atividade
racional. De forma que, convocando-nos a «ouvir coisas», este encontro parece,
pois, nos expor a uma série de perigos, dos quais o mais extremo e mais evidente
é o da perda da razão. Porém, mais cotidiana e insidiosamente, o risco que
corremos é o de que, à percepção dos objetos sensíveis, nossa imaginação
acrescente uma ideia, uma forma, uma imagem que lá não estava; e de que, à
atividade puramente intelectual, venha se somar por obra ainda da imaginação
como que a sensação que o objeto examinado não autorizou e não provocou em
nós.
Ora, a expressão «pista luminosa» – que aqui empreguei para assinalar as outras
possibilidades de pensar o humano que, a meu ver, a obra de Cornelius
Castoriadis oferece – é, não por acaso, empregada pelo autor em um artigo que
tem por questão principal, justamente, a «descoberta da imaginação» 3. O termo
«descoberta» não tem evidentemente aqui o sentido que lhe atribui usualmente a
Cornelius Castoriadis, A descoberta da imaginação, in Encruzilhadas do labirinto II – Domínios
do homem. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987, pp. 335-372.
3
ciência: não é da «invenção» de uma nova faculdade que Castoriadis vai falar,
mas do encobrimento sistemático, em toda história do pensamento, da
capacidade de criação humana.
As «pistas luminosas» referem-se assim, neste artigo, à ruptura provocada nessa
longa tradição filosófica, primeiramente pela elaboração de Aristóteles e, muitos
séculos mais tarde, por Kant.
Quanto ao encobrimento histórico, ele visou e visa ainda as duas faces da
atividade criadora humana: na dimensão social-histórica, o imaginário radical,
que é a forma social da imaginação, ou o imaginário instituinte das sociedades e
dos tipos humanos que, a uma só vez, as fazem existir e por elas existem; e, na
dimensão individual, a imaginação como forma de atividade psíquica, igualmente
radical, porque capaz de fazer ser a alteridade, o novo.
No plano social, isso implicou em excluir qualquer ideia de que a sociedade
pudesse ser decorrente de uma atividade de auto-instituição, não se explicando
nem pela vontade de Deus, dos deuses, nem pela força da natureza ou da história
feita tradição ou feita Razão. A autocriação da sociedade foi inteiramente
encoberta, absorvida por estas outras instâncias supra-humanas ou extra-sociais.
Porém, no plano individual não era possível esconder a imaginação de forma tão
acabada: aqui o encobrimento foi apenas parcial. Sob este aspecto, diz
Castoriadis, a tradição limitou-se [e aqui eu passo a parafrasear o autor, para
evitar a citação exaustiva] eu dizia, a tradição limitou-se a reproduzir a primeira
formulação que a imaginação recebeu, no tratado [sobre a psique] de
Aristóteles4: ali, inicialmente, o filósofo descreve a íntima relação que sempre se
estabelece entre, por um lado, a imaginação e, por outro, a sensação ou a
intelecção – descrição esta que, enfatizando o caráter simplesmente reprodutivo
e recombinatório da imaginação, a concebe como inteiramente dependente da
experiência sensível. É desse modo que os produtos da imaginação aparecem, ou
Trata-se do De Anima, III, 3, onde Aristóteles «…fixa aquelas que se tornarão, a seguir, as
convenções segundo as quais será pensada – ou seja, não será pensada – a imaginação.» C.
Castoriadis, A descoberta da imaginação, in Encruzilhadas do labirinto III – Domínios do homem.
Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987, p. 346.
4
como inconsistentes, nada trazendo de novo à experiência, ou, na medida
exatamente em que acrescentam algo que aí não estava, como ilusórios, falsos e
delirantes.5
Apesar disto, como Castoriadis se preocupa em destacar, já nesta primeira
formulação a posição aristotélica supera de modo definitivo a forma toda
negativa pela qual a imaginação aparece no uso comum da língua – que a associa
continuamente ao inexistente, ao sonho, ao delírio; e supera, muito
especialmente, a concepção platônica – para a qual a imaginação era
essencialmente uma imitação daquilo que existe, acrescida de uma «falsa
crença». E, de fato, em Aristóteles a imaginação é, já de saída, instalada entre as
potências por meio das quais o humano julga e conhece a realidade. Isto significa
que a imaginação conquista, no pensamento aristotélico, e pela primeira vez, um
status de positividade. Porém, não é essa ainda a «descoberta» a que se refere
Castoriadis – já que, segundo esta definição, é essencial que a imaginação decorra
da sensação, estando completamente subordinada a ela, tanto quanto à
intelecção: de outra forma, a imaginação se faria apenas causa de erro e de ilusão
– que são, repita-se, para Aristóteles, possibilidades, e não uma característica
intrínseca à atividade imaginativa. 6
Mas para que serve, então, a imaginação, é justo que nos perguntemos, se tudo
que ela faz se resume bem na simples reprodução e recombinação do que já está
dado? No que consistiria o «avanço» identificado por Castoriadis no tratado
sobre a psique? Ele reside na dupla função que a teoria aristotélica,
contrariamente à platônica, concede à imaginação. E, de fato, no pensamento de
Aristóteles a imaginação é, para começar, poder de fixação da sensação, sob
forma da produção de um correlato psíquico, de uma «representação» que
permanece mesmo quando a sensação já se foi. É essa representação, e não a
própria sensação tal como se ela se produz nos órgãos sensoriais, que é retida
pela psique. A imaginação se converte e realiza, portanto, a simples memória, que
nada mais é do que retenção da experiência da sensação, agora transformada,
5
6
Id., p. 338.
Id., p. 348.
porém, em experiência psíquica. Pelo trabalho da imaginação, a memória se
instala, permitindo ao sujeito a consciência das diversas experiências que faz –
de si, dos outros e do mundo que o rodeia; pelo trabalho da imaginação, ele
escapa, assim, da infinita repetição, da frívola reiteração de sensações e de
experiências que se extinguiriam sem nada deixar para trás, que jamais se
acrescentariam umas as outras, mas simplesmente passariam, condenando o
humano ao silêncio desta imediatez, tornando-o prisioneiro de um instante de
experiências sem qualquer valor duradouro.
Mas Aristóteles atribui, ainda, uma outra função para a imaginação: a evocação
ou, em seus termos, a reminiscência, isso é, a capacidade convocar e de tornar
presente a experiência sensível, e isto independentemente do ato da sensação.
Em outras palavras, a atividade realizada pela psique é agora inteiramente
causada pela imaginação do sujeito – prescindindo do ato da sensação, tal como
da presença do objeto sensível que o teria provocado. Era precisamente em
virtude dessa possibilidade de presentificar o ausente, que a imaginação
consistia, para Platão em uma forma de pensamento pouco seguro. Mas
Aristóteles critica, como vimos, esta concepção: segundo ele, não faz sentido
dizer que a evocação é falsa ou verdadeira, como se diria de um julgamento7.
A fórmula aristotélica é bastante conhecida: a imaginação «é o movimento que
sobrevém a partir da sensação em ato». Os termos nos são pouco familiares, por
isso convém que nos expliquemos: a imaginação é movimento, isto é, é atividade
que ocorre à psique, é a psique pondo-se em ação, em seguida à atividade
sensível, ao ato de se ter a sensação de um objeto sensível. Em primeiro lugar, a
imaginação produz aquilo que corresponde, na psique, à atividade direta dos
órgãos de sentido – à audição, à visão, ao paladar, ao olfato e ao tato. O
«movimento» ou a atividade da imaginação não é, pois, necessariamente falso ou
ilusório, longe de lá: no caso da atividade que acompanha essas sensações mais
simples, próprias a cada um dos cinco sentidos, a chance de erro é mesmo quase
nenhuma.
7
Id., p. 350.
Mas a coisa já se complica bem mais quando se trata, para a imaginação, de julgar
sobre sensações combinadas – quando combinamos, por exemplo, a visão e a
audição para imaginar a origem de um som ou, exemplo mais tradicional, quando
vemos de longe uma sombra branca que imaginamos ser alguém que
conhecemos… Neste caso, não é possível separar claramente a sensação da
imaginação, pois nem sequer há um órgão sensorial que corresponda à
experiência sensorial que condensa uma série de sensações simples. No que se
refere à esta combinataória dos sentidos, o erro e a falsidade já não podem ser
descartados.
E assim emerge, repentinamente, no tratado aristotélico dedicado à psique, uma
segunda acepção para a imaginação, em ruptura com a tradição que o próprio
filósofo acabava de inaugurar. Nesta passagem de difícil interpretação, que
parece contrariar o que foi dito anteriormente, o que a imaginação produz, como
bem assinala Castoriadis, já não pode ser descrito como mera conservação ou
repetição daquilo que foi dado pelos sentidos (já que tudo que estes forneceram
foram suas sensações próprias) mas deve, pelo contrário, ser entendido como
uma autêntica criação – como instauração de alguma coisa inteiramente nova,
que não estava lá antes e que não tem outra fonte senão a própria atividade
imaginativa.
Os estreitos limites em que a imaginação se encontrava contida, como simples
repetição e reiteração da sensação estão, segundo Castoriadis, rompidos, e essa
ruptura é consolidada pela afirmação aristotélica de que o sujeito, ou a psique,
jamais pensa sem imaginação8. Portanto, conclui Castoriadis, em tudo que
fazemos, «sempre há fantasia, nós imaginamos sempre». Vê-se logo que já não é
mais de uma atividade particular, de uma experiência pontual que se está
falando, mas da própria constituição do humano, para quem viver é o mesmo que
dar sentido, é o mesmo que fazer existir para si, como sentido – a si próprio, ao
mundo, aos outros, às coisas, às ideias e valores, aos medos e aspirações.
O termo grego é phantasía, que foi correntemente traduzido por «imagem»: no entanto, não se
trata tanto do que a psique precisa ver, quanto daquilo a que ela deve, mais amplamente, fornecer
sentido. Cf. C. Castoriadis, A descoberta da imaginação, op. cit., p. 356-361.
8
E eis que, de atividade derivada e secundária em relação à sensação, a
imaginação se torna a condição necessária para que possa haver, para o sujeito,
isso que se pode denominar de experiência sensível – e que vai sempre muito
além do ato da sensação – e para que possa haver o que, de forma bastante
ampla, podemos denominar de pensamento.
Nos dois casos, a imaginação implica na fixação do sentido – na memória,
entendida como capacidade de o sujeito se dar consciência – e na evocação deste
sentido – na reminiscência, como livre possibilidade de mobilizar tal ou tal ideia
ou noção, tal ou tal fantasia, ao invés de outra.
Haveria, pois, diz Castoriadis, como atividade originária e constitutiva do sujeito,
uma imaginação racional e deliberativa – pela qual se conhecem e se julgam os
dados da sensibilidade – e uma imaginação sensível – pela qual somente se pode
conhecer e dar sentido ao que, sem isto, seria uma abstração não
correspondendo a nada.9
Mas não é exatamente a essa possibilidade de dar sentido ao que, de outro modo,
não corresponderia a nada para nós, que alude o convite de que partimos, que
enfatiza a necessidade de realização de «experimentações sensíveis»? Como, no
humano, corpo e psique não são dimensões separadas, mas compostos, não
existe para nós o que poderíamos chamar de uma «abstração pura»,
completamente independente da sensação, ou de um correlato psíquico que faça
as vezes da sensação, da mesma forma que são inapreensíveis os objetos em sua
«pura materialidade». É a imaginação que, a cada vez, realiza a possibilidade da
apreensão, fornecendo o apoio necessário para que à materialidade, tanto
quanto à abstração, corresponda um sentido pleno. Pela imaginação, o sensível e
o inteligível se fundem na autoformação constante do composto humano.
Nossas experimentações sensíveis não ocorrem, portanto, apesar de nosso
pensamento, assim como nosso pensamento não se realiza «como se não
tivéssemos corpo»: os dois só existem para nós como tal em virtude da atividade
da imaginação radical.
9
Id., p. 355.
De formaCastoriadis observa que, contrariamente à tradição filosófica, a
sensação não é, para Aristóteles, pura receptividade de uma mente que
passivamente registraria o que se passa por meio dos órgãos de sentido; e,
mesmo quando é provocada pelo «encontro» do sujeito com o objeto sensível, a
imaginação não é simples reprodução, ela acrescenta uma imagem, uma
representação que não está no objeto. Como isto se dá já no nível mais elementar
e aparentemente mais imediato da experiência sensível, acreditamos que o
processo é automático e não percebemos que até mesmo a sensação é, no
humano, instituída, que ela depende da imaginação.
E, mesmo ali onde já não parece mais possível distinguir completamente a obra
da imaginação da aquisição de uma noção, ou de um pensamento abstrato, a
atividade criadora da imaginação tem um papel suplementar, que é, se assim
posso dizer, o de integrar essa abstração, o conceito, a ideia em uma rede mais
ampla de sentido, enfim, de unificá-la em um sujeito encarnado que todos somos,
de forma que possa haver uma relação entre nossos pensamentos e nossos
desejos, entre nossa atividade reflexiva e nossa vontade; de modo que possa
haver, enfim, liberdade e deliberação.
A má compreensão desta dinâmica, em grande parte alimentada pela tradição do
pensamento, leva-nos a opor sensibilidade e inteligibilidade, acreditando que um
possa existir sem o outro; leva-nos a supor que temos a opção entre a «pura
abstração» e «realidade concreta», leva-nos a acreditar que possa haver uma
apreensão do «puramente abstrato», assim como de «realidades concretas».
Em um nível mais elementar, vale a pena repetir, a imaginação radical é o que
permite que haja sensação, tanto quanto intelecção. Não há erro e, de modo
geral, não há falha neste nível. Mas a atividade da imaginação não pára aí, pois
ela é contínua e essencialmente um movimento de fazer existir a realidade sob a
forma de sentido; de modo que a imaginação está na origem não apenas das
percepções imediatas, das ideias mais simples, mas também de nossos
pensamentos mais complexos, de nossa capacidade poética tanto quanto de
nossa capacidade teórica.
Mas, assim como em múltiplas pequenas e grandes ocasiões, parecendo falhar, o
acordo normalmente operante entre corpo e psique a nós se revela, revelando a
real indissociabilidade das duas «dimensões», da mesma forma, reitera-se para
nós a exigência de sentido a cada vez que ele parece faltar, e que o que se
apresenta formalmente a nós como ideia, conceito ou teoria não encontra
nenhuma correspondência em nós. O que, sem que o percebamos, a cada vez se
mostra deficitário são as condições em que se realiza a imaginação criadora
(pleonasmo aqui necessário); e então o que se tem do pensamento abstrato, da
teoria, é apenas a casca, que não serve, nem para nos apoiar em nossas ações e
deliberações – coerência que fornece significação à atividade do pensamento –
nem para nos permitir, como diriam os psicanalistas, «dar um destino às nossas
pulsões», decidir sobre quem somos e quem pretendemos ser, sobre o queremos
e o que pretendemos rejeitar. É a imaginação que faz com que possamos fazernos um com nossos pensamentos – e não ser apenas a imediatez de nossas
sensações.
Todas essas reflexões são, creio eu, de extrema importância para a formação
humana, na medida em que nos indicam que, em toda parte, a existência humana
é imaginação, é atividade criadora, ou auto-criadora. A «descoberta da
imaginação» realizada por Aristóteles levou Castoriadis a insistir sobre o caráter
instituído da sensação e da imaginação, abrindo assim uma enorme perspectiva
para se pensar a educação.
Não seria evidentemente possível tratar de todas as importantes implicações que
uma «redescoberta da imaginação» teria para a crítica dos lugares comuns, dos
limites e das falácias de muitas das teorias que vêm servindo correntemente à
prática educativa, nem tampouco explorar toda a amplitude do verdadeiro
programa investigativo que a questão da imaginação abre para aqueles que estão
comprometidos com a prática da formação humana. Mas há ainda um aspecto da
questão que não pode ser deixado em silêncio.
Em virtude das necessidades de exposição, nos ocupamos até aqui da imaginação
apenas da perspectiva da individuação, e deixamos de lado sua presença na outra
face do mesmo processo de formação humana, que é a socialização. Fomos
habituados a pensar que individuação e socialização se opõem, porque
acreditamos que a singularização se dá como reação àquilo que, no indivíduo,
deveu-se à influência da sociedade, ou que a construção comum se realiza
sempre sobre os destroços da individualidade. Esta perspectiva, inteiramente
falsa, é uma herança que recebemos da modernidade, que confundiu a
autonomia do sujeito com seu isolamento e foi criticada por muitos autores da
filosofia e da psicanálise. Mas Castoriadis, em especial, que levou esta reflexão
muito longe, em toda sua obra, costumava repetir que a oposição indivíduo e
sociedade é, rigorosamente falando, um equívoco. «A oposição, a polaridade
irredutível e inquebrantável é a da psique e da sociedade. Ora, a psique não é o
indivíduo.» 10 A psique, segundo a concebe Castoriadis, apresenta-se como uma
mônada, uma instância fechada nela mesma, que para sobreviver precisa abrir-se
ao «exterior». Ora, do ponto de vista da psique primitiva, são «exteriores» tanto o
mundo quanto o próprio corpo. O processo de ruptura do fechamento monádico
implica na primeira forma de produção pela imaginação, de tais correlatos
psíquicos de que falávamos, correspondentes ao corpo e suas sensações (fome,
dor, satisfação) e ao mundo, geralmente representado pela figura materna. Para
que a psique sobreviva, é preciso, pois, que ela seja capaz de investir em outros
«objetos» além dela própria; este objetos que eram do ponto de vista da psique
primitiva, imperceptíveis, inapreensíveis, deverão pela instituição da sensações,
passar a existir, encontrando, portanto, primeiramente o corpo como apoio.
Mas esta abertura ainda situa o humano no nível das necessidades fisiológicas e
das sensações mais simples, que a espécie compartilha com a maioria dos seres
vivos; o processo de formação deve prosseguir, levando paulatinamente os
sujeitos a instituírem outros objetos de investimento pulsional, até que sejam
capazes de investir em objetos imperceptíveis aos sentidos, objetos socialmente
instituídos, que só existem em e pela sociedade, encontrando aí prazer (no
sentido psíquico) e sentido.
Tudo isto pode se realizar em razão da extraordinária labilidade da psique
humana, que é capaz de se dar novos objetos de investimento, ao invés de
C. Castoriadis, Encruzilhadas do labirinto III. O mundo fragmentado. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 1992, p. 57.
10
persistir sempre nos mesmos. Esta labilidade permite a sublimação – que é a
passagem dos objetos mais imediatos e privados de investimento aos mais
mediatos e públicos – como a arte, a teoria, a justiça e a democracia. Mas
labilidade, sublimação, deslocamento das pulsões e instituição de novos objetos
de investimento pulsional – nada disso seria possível sem o poder da imaginação,
que faz ser o novo.
Creio que jamais deixarei de me surpreender e me maravilhar com este simples
fato de que a socialização da psique implica que os sentidos que existem para o
humano são, a um só tempo, próprios a ele, que os institui, e necessariamente
comuns, já que sua constituição depende da experiência no mundo.
Podemos, assim, entender que, se a sensação é, como dissemos, instituída, ela
define, concomitantemente a um modo de sentir próprio do sujeito, uma
sensibilidade comum – que, tal como a racionalidade, definem um modo de ser
que ele partilha com a coletividade. É ainda aqui o milagre da imaginação, de nos
permitir tecer juntos sensibilidade, vontade e razão, na construção de nossa
autonomia individual; e o privado e o público na construção de um modo de ser,
de agir, de esperar, de desejar que é nosso e que comprometemos na construção
da autonomia coletiva. E é pelo milagre da imaginação que tudo isto que somos
como indivíduos e como sociedade pode se oferecer constantemente à nossa
reflexão: porque não estamos limitados ao aqui e agora, e não estamos presos à
fatalidade do que somos, podemos ousar imaginar, para a frente, a alteridade,
sob a forma de novas formas de sermos como sujeito e como sociedade.
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