PERFIL por GUILHERME VELLOSO Recuperar antigos vinhedos e p r á t i c a s t r a d i c i o n a i s d e c u lt i va r a vinha é a missão que o basco Telmo Rodríguez, um dos produtores m a i s c u lt u a d o s n o m u n d o , vem perseguindo, com indiscutível s u c e s s o , e m s e u pa í s 73 Embora considere o debate absurdo e mal colocado, o es- panhol Telmo Rodríguez é uma espécie de metralhadora giratória quando discute o que é tradição e o que é modernidade no atual panorama do vinho espanhol. “Eu represento a modernidade, mas a luta que travo junto com outros produtores novos (Alvaro Palacios e Benjamin Romeo são dois citados por ele) é buscar a tradição”. Por buscar a tradição entendase, entre outras coisas, trabalhar com castas autóctones, plantar em “vaso” e não em espaldeira, usar apenas leveduras naturais e recuperar antigos vinhedos praticamente abandonados, como Rodríguez fez em Málaga e Palacios, antes dele, no Priorato. Uma bodega tradicional, explica Rodríguez, “não é uma bodega cheia de teias de aranha, mas uma bodega onde haja um fio condutor com uma viticultura do passado”. Na Espanha de hoje, dispara, “há exemplos de bodegas que têm 100 anos, mas a única coisa que tem de velho é o logotipo”. Na visão de Rodríguez, a partir do século 19, quando a praga da filoxera dizimou os vinhedos europeus, a Espanha adotou um caminho essencialmente comercial, aproveitando a oportunidade de se tornar grande pro- o gesto”. Não surpreende que a Lopez dutora e exportadora de vinhos. Segundo de Heredia (Vinã Tondonia) seja a única ele, isso mudou a face de regiões produto- bodega que reconhece como verdadei- ras tradicionais da Espanha, como a Rio- ramente “tradicional” na Rioja de hoje ja, onde muitas bodegas se converteram (ver reportagem sobre a Tondonia publi- em verdadeiras indústrias. “Não conheço cada em Wine Style nº 27). nenhuma grande bodega que produza milhões de garrafas que faça um vinho excepcional”, diz ele, e continua: “exceto Bordeaux ou Champagne, não conheço bodega alguma que faça 300 mil garrafas “Para fazer um bom vinho, é preciso quase esquecer o business” de um grande vinho. Creio que os gran- de suas referências, não por acaso todas maior notoriedade a partir do trabalho de francesas, em vinho. Além de Chave, Jean Alvaro Palacios na região de Bierzo. Telmo Claude Leflaive, Château Rayas, Méo- fala com entusiasmo também de seu projeto Camuzet. Do primeiro, guarda uma lição em Cebreros, onde está recuperando anti- des vinhos são produtos limitados”. Irrequieto e crítico, Telmo talvez deva que gosta de repetir. “Grandes vinhos não gos vinhedos de Garnacha, plantados a mais em parte esses traços de sua personalidade são feitos por grandes enólogos, mas pelos de mil metros de altitude. para a suas origens. Ele nasceu há 47 anos em grandes lugares” (“sítios” em espanhol). se entender a filosofia Irún, cidade do país basco situada na fron- que orienta os proje- teira entre Espanha e França. Os bascos são lançou no projeto de recuperar antigos vi- tos de Telmo. “Para conhecidos pelo orgulho com que cultivam nhedos. Nascia assim a Cia. de Vinhos Tel- mim, a viticultura é suas tradições, a começar pela língua, e por mo Rodríguez. Hoje, ele trabalha em sete um gesto”, diz ele. “É sua posição de quase rebeldia em relação ao regiões produtoras da Espanha e tem vinhe- o saber podar, o saber governo espanhol. O pai tinha proprieda- dos próprios em cinco delas, inclusive Rioja vindimar, o saber en- des agrícolas e empresas industriais, mas a e Ribera del Duero. São vinhedos pequenos da Espanha, mais do que um dogma, é uma xertar, num trabalho ligação com o vinho só começou em 1964, (menos de 30 hectares) que ele mesmo defi- decisão consciente de Rodríguez. Ele não que é ancestral”. Para quando iniciou o projeto de recuperação ne como de “tamanho humano, para fazer se considera um “talibã” em relação a essa explicar a importância de uma propriedade tradicional da Rioja, vinhos de uma forma muito diferente de o questão e chegou a plantar castas “estrangei- da ancestralidade, ele a quinta Remelluri, onde Telmo viveu parte que se fez na Espanha ao longo do século ras”, como Viognier, Marsanne e Roussane, em dá um exemplo que re- da infância e da adolescência com os irmãos. 20”. As produções são igualmente peque- Remelluri. O mais importante, na sua visão, mete a sua ligação com Ele estudou Biologia na Espanha e chegou a nas, não mais de cinco mil garrafas, no caso é respeitar a vocação e a tradição de cada o Rhône: “Hermitage trabalhar uns tempos com o pai, mas tinham de seus vinhos top. A exceção é o branco terroir. Foi essa visão que o levou a seu feito é uma encosta muito visões profundamente diferentes. “Meu pai Basa Rueda, do qual são produzidas anu- mais reconhecido no mundo do vinho – o res- conhecida, porque ali é um homem de negócios. Eu sou um ho- almente mais de 50 mil caixas. “Precisava gate dos vinhos doces da região de Málaga. se planta uva há 800 mem do vinho e sempre achei que para fa- fazer para financiar meus outros projetos”, “O espírito dos meus projetos é recuperar vi- anos. Para fazer gran- zer um bom vinho é preciso quase esquecer admite. Mesmo produzido em quantidade nhedos esquecidos e o vinhedo mais evidente des vinhos é preciso estudar essa ances- o lado business”. Assim, sua visão como maior, é um vinho delicioso, de boa tipi- como declaração de intenção desse projeto tralidade”, acrescenta, e volta ao debate produtor de vinhos foi moldada, princi- cidade e preço acessível (US$ 29.50). Em era Málaga”, explica. O vinho doce de Mála- tradicional x moderno. “Eu sou moder- palmente, nos anos em que viveu na Fran- sua mais recente visita ao Brasil, Rodríguez ga, à base da uva Moscatel, foi uma referência no, mas planto em vaso e quase enlou- ça onde estudou Enologia em Bordeaux mostrou também os novos vinhos da linha nos séculos 17 e 18, quando tinha mais fama queço para fazer uma viticultura de luxo, e trabalhou, sobretudo em Bordeaux e no Gaba do Xil, que está produzindo em que o próprio Jerez. Depois, saiu de moda e os que é uma viticultura de tradição, de não Rhône, com produtores tradicionais como Valdeorras, na Galizia, com castas típicas vinhedos foram abandonados. Coube a Tel- plantar em locais onde antigamente não Chave. São nomes que hoje integram o por- espanholas: o branco é 100% Godello, uva mo recuperar um vinhedo de nove hectares se plantava. Vinhos são memórias, por isso tfólio da importadora de vinhos que mon- ainda pouco conhecida mesmo em seu país onde hoje produz o Molino Real. Com uvas é preciso recuperar a memória, recuperar tou na Espanha e que dão uma clara ideia de origem; e o tinto, 100% Mencia, ganhou compradas de viticultores locais que apoia ele Ancestralidade, gesto e memória são palavras-chave Quando voltou à Espanha, Rodríguez se “Não conheço nenhum vinho de que goste que seja tecnológico” Telmo Rodríguez trabalha em sete regiões da Espanha, mas só tem vinhedos próprios em cinco: Rioja, Ribera del Duero,Málaga, Cebreros (Ávila) e Valdeorras (Galícia). O único vinho que produz em grande quantidade é o ótimo Basa Rueda (abaixo), como ele mesmo diz, “para financiar meus outros projetos” Trabalhar apenas com castas autóctones 75 produz também o M.R., servido no casamento do Príncipe de Astú- Pingus x Vega isso o governo escapa de sua metralhadora. Ele critica, por exemplo, Telmo Rodríguez considera o Pingus, forma tradicional, por espaldeira. E a proibição, pelo Conselho Regu- projeto dinamarquês lador de Ribera Del Duero, de usar a uva branca Albillo no corte de vi- Peter Sisseck, que se tornou, como nhos tintos, como se fazia tradicionalmente na região. E dá a entender ele o diz, do um melhor Duero, enólogo “sucesso vinho ainda admiração de midiático”, de que Ribera del “caríssimo”. Rodríguez vem A do rias, herdeiro do trono espanhol. A publicidade foi boa, mas nem por a decisão de financiar a substituição de vinhedos plantados em vaso, a que à noite, quando faz os cortes de seus vinhos, ignora a proibição. Ele também é contra a tradicional classificação dos vinhos espanhóis em crianza, reserva e gran reserva que, na sua opinião, não reflete a quali- fat o d e q u e S i s s e c k d e c i d i u fa z e r dade do vinho, apenas o tempo em que permaneceu em barricas. um vinho sofisticado e de grande q u a l i d a d e e x c l u s i va m e n t e c o m T i n t o produtor visionário, que busca o caminho da modernidade numa volta Fino ao passado? Se há, é muito pequeno. “Não conheço vinho algum de de (Tempranillo), vinhas antigas, proveniente numa época (década de 90) em que a maioria dos produtores fa l ava em adicionar Haveria espaço para a moderna tecnologia na concepção desse que goste que seja tecnológico”, diz ele. E acrescenta: “costumo dizer que nem o enólogo é importante para fazer um grande vinho. Não co- Cabernet Sauvignon ou Petit Verdot nheço o nome do enólogo do Romanée Conti, do Clape, do Chave ou a s e u s t i n t o s pa r a t o r n á - l o s m a i s do Beaucastel”. Por isso mesmo, Rodríguez dá muito mais importância atr a e n t e s . E l e c o m pa r a o tr a b a l h o a seu trabalho como viticultor do que como enólogo. A importância de Sisseck ao de Jean-Luc Thunevin, da viticultura para Telmo fica evidente na opção pelo cultivo orgânico q u e fa z o c u lt u a d o Va l a n d r a u d e m e no projeto de certificar todos os seus vinhedos como biodinâmicos. St- é m i l i o n ( v e r r e p o rta g e m d e c a pa d e W i n e St y l e n º 2 5 ) , a o c o m b i n a r u m a v i t i c u lt u r a a o m e s m o t e m p o “ m u i t o sofisticada Essa e opinião muito não Ele integra o grupo de produtores adeptos da biodinâmica reunidos no projeto Renaissance des Appelations, liderado pelo francês Nicolas Joly. tr a d i c i o n a l ” . “Não se pode pretender fazer um grande vinho, ou um vinho original, diminui se não se usar uma agricultura respeitosa. E, hoje, a que mais nos apro- sua a d m i r a ç ã o p e l o v i n h o m a i s fa m o s o xima disso é a biodinâmica. É a volta à responsabilidade”. dessa denominação, o Vega Sicilia, p r o vav e l m e n t e , o próprio Telmo define seus projetos e as posturas que adota como o vinho e s pa n h o l de referência no mundo. “O Vega é u m m i t o e u m v i n h o f u n d a m e n ta l pa r a t o d o s n ó s ” , d e c l a r a T e l m o , q u e Considerado por muitos críticos um “enfant terrible” do vinho, um trabalho de guerrilha. Os inimigos que combate são, principalmente, a globalização e a padronização dos vinhos. “Quanto t e m g r a n d e r e s p e i t o p e l a fa m í l i a mais nos convertemos em globais, mais perdemos a possibilidade A l va r e z , at u a l p r o p r i e t á r i a d o V e g a . de fazer um trabalho original”, sentencia. Por isso, diz não ter in- “Quando comprou o Vega Sicilia, a teresse em fazer vinhos em outros países que não estejam na região fa m í l i a A l va r e z , e m v e z d e pa s s a r ibérica. Hoje, seu único projeto fora da Espanha é no Douro, em a Portugal, porque, segundo ele, “Espanha e Portugal são dois dos fa z e r muitos vinhos, preferiu p r e s e r va r o v i n h e d o e o v i n h o m í t i c o ” . S e g u n d o e l e , a E s pa n h a p r e c i s a d e “produtores Peter (Sisseck) sofisticados e Pa b l o como ( A l va r e z ) , países mais interessantes do mundo para recuperar gostos autênticos e originais”. Não por acaso, seu parceiro do outro lado da fronteira é Dirk Niepoort, guerrilheiro como ele. p o r q u e v e m d e u m a v i s ã o i n d u s tr i a l e d e u a s c o s ta s a o a rt e s a n at o , q u e Os vinhos de Telmo Rodríguez são importados e distribuídos no Brasil pela agora precisamos recuperar”. Mistral (www.mistral.com.br). [email protected]