A REVOLTA DOS QUEBRA-QUILOS NO NORDESTE BRASILEIRO E AS
UNIDADES DE MEDIDA UTILIZADAS PELOS TRABALHADORES DO CAMPO
Gelsa Knijnik
Profª Dra. da UNISINOS
Marilene Santos
Mestranda do PPGE da UNISINOS
RESUMO
Na segunda metade do século XIX o nordeste brasileiro enfrenta uma grave crise
econômica provocada pela queda no preço do algodão e do açúcar no mercado
internacional. Nesse período de crise o governo substitui o sistema de pesos e
medidas vigente no país pelo sistema métrico francês. Ao mesmo tempo o Brasil
enfrenta internamente conflitos sociais que contribuem para o agravamento da
instabilidade da população. É nesse contexto de crise econômica, conflitos sociais, e
implantação de um novo sistema de pesos e medidas que surge no nordeste, a
revolta conhecida como Quebra-quilos. Uma revolta popular liderada pelo povo
pobre do interior que não contou com representantes das classes dominantes. A
revolta dos Quebra-quilos foi um grande movimento de resistencia à implantação do
sistema métrico francês no Brasil, mesmo assim, esse Sistema foi implantado,
posteriormente tornando-se o Sistema de Medida Padrão no âmbito internacional.
No entanto, o povo brasileiro, especificamente os trabalhadores rurais não
abandonaram suas unidades de medidas, mesmo que hoje a referência seja o
padrão francês, as unidades de medidas populares também estão presentes no
cotidiano dos trabalhadores rurais na medição de terra e nas transações comerciais.
Entender na atualidade a resistência dos trabalhadores rurais em relação à revolta
do Quebra–quilos, contribui para ampliar uma compreensão sobre os elementos
presentes na cultura dos trabalhadores rurais de Assentamento de Reforma Agrária
do nordeste sergipano quando utilizam sistemas de medidas de terra, diferentes do
sistema métrico padrão.
Palavras chave: Saberes populares e currículo, movimento de resistência,
sistema de pesos e medidas.
INTRODUÇÃO
O presente trabalho constitui-se em uma parte relevante da pesquisa que
estou desenvolvendo no Curso de Mestrado em Educação no Programa de PósGraduação em Educação da UNISINOS. Nessa pesquisa tenho como propósito
investigar as práticas sociais de medição da terra em assentamentos de Reforma
Agrária do nordeste sergipano e estudar as unidades de medidas populares
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presentes na cultura destes trabalhadores rurais. A definição de tais propósitos foi
realizada tendo em vista a importância que vem sendo dada, na área da Educação,
para as conexões entre cultura e currículo, em especial na Educação de Jovens e
Adultos, na qual atuo há muitos anos.
Vivemos em um momento de muitas transformações que afetam todos os
aspectos de nossas vidas. As transformações do mundo do trabalho abalam nossa
tranqüilidade profissional e as expectativas para o futuro. As transformações
políticas têm provocado um redemoinho permanente no nosso desejo de
compartilhar um mundo diferente, um mundo no qual a vida seja encarada como o
bem maior de cada ser humano para si e para os outros seres vivos. As
transformações no mundo do conhecimento têm apontado dois caminhos quase
antagônicos. De um lado, acenam com a possibilidade de não se estabelecer limites
ao conhecimento, ao saber, à ciência, quando nos prometem, por exemplo, o clone
humano e não sabemos o que fazer com ele, se o queremos ou não. De outro lado,
a mesma ciência tem se aperfeiçoado na destruição das espécies vivas, inclusive da
espécie humana.
Acompanhando este cenário, um conjunto de políticas economicas, culturais,
sociais denominadas como neoliberais tentam se afirmar como a “única” saída
possível para o mundo. Tudo isto provoca alterações no nosso modo de pensar, de
compreender, de compartilhar, de agir, de ser, de saber. Do ponto de vista da
Educação esta política se manifesta de diferentes formas, uma delas está presente
na organização do conhecimento proposto pelos Parâmetros Curriculares Nacionais
que menosprezam os saberes populares dos trabalhadores como saberes
importantes na afirmação da identidade destes.
Uma outra forma de interpretar a organização do conhecimento como
produção cultural é defendida por SILVA (2001). Ele descarta a visão de cultura
como produto acabado, fixo, ou como “bagagem”, afirmando que a cultura, na visão
contemporânea “é um campo de luta em torno da construção e da imposição de
significados sobre o mundo social“ (p. 14). Para este autor, nessa perspectiva da
compreensão de cultura e de currículo alguns aspectos são necessários serem
considerados. Um desses aspectos é que a cultura e o currículo são entendidos
como práticas de significação porque é através da cultura que as pessoas dão
sentido à vida, ao mundo social. Isto é, criam significados por meio de sistemas e
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estruturas de relações de e entre grupos, criando suas marcas, suas redes de
significações.
Se a cultura e o currículo são práticas produzidas em redes de significações,
então eles são necessariamente relações sociais, pois as práticas de significação
não ocorrem de modo isolado, “livres da cultura”, mas sim ocorrem em uma rede de
relações, que são sociais.
Nessas relações se estabelecem disputas, negociações, acordos que são
desprezados quando a cultura ou o currículo são vistos somente como “produto”
social. Mas, mesmo que houvesse a tentativa de ver o currículo somente como tal
produto, “os traços das disputas por predomínio cultural, das negociações em torno
das representações dos diferentes grupos, das lutas entre, de um lado, saberes
oficiais, dominantes e, de outro, saberes subordinados, relegados, desprezados”
ficam inscritos no currículo (ibidem, p. 22), lembrando sempre que este é uma
relação social.
Assim sendo, SILVA enfatiza o caráter criativo da cultura, entendendo-a como
“atividade, ação, experiência”. As práticas produtivas da cultura estão sempre resignificando, modificando, transformando, se rebelando aos sentidos da cultura que
parecem ser fixos, determinados. E o currículo, mesmo sendo obrigado a obedecer a
normas e “regulamentos da instituição escolar”, também é “um campo de produção e
de criação de significado” (ibidem, p. 21).
Na perspectiva de cultura e de currículo brevemente expostas , não cabe o
binarismo cultura popular e cultura científica. Nessa concepção “pós-crítica” de
currículo, como denominada por SILVA (2002), levantam-se questões sobre as
práticas culturais e sociais, sobre as relações de poder que atravessam essas
práticas. Problematizam-se as formas como determinados saberes estão legitimados
no currículo, e outros não. Dessa forma, não se está compreendendo o currículo
como um mero instrumento de transmissão do conhecimento e da cultura, mas,
como afirmam MOREIRA e SILVA (1995, p. 28), “o currículo é, assim, um terreno de
produção e de política cultural, no qual os materiais existentes funcionam como
matéria-prima de criação, recriação e, sobretudo, de contestação e transgressão”.
É a partir dessa concepção de cultura e currículo que busco encontrar
elementos que me ajudem a compreender as práticas sociais de medição da terra na
cultura camponesa dos assentamentos de Pacatuba – Sergipe, onde diferentes
unidades de medida, distintas das utilizadas no sistema métrico padrão, se fazem
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presentes. Tal compreensão envolve, também, historicizar os processos que
conduziram à imposição do sistema métrico francês no Brasil, principalmente as
lutas populares de resistência a tal imposição. Compreender este processo histórico
tem contribuído para uma mais abrangente problematização da história do presente
do campo sergipano que ora realizo. A parte já concluída da investigação refere-se
exatamente ao historicizar dos processos de resistência à implantação do sistema
métrico francês no Brasil no século XIX, no nordeste brasileiro e se constitui no
objeto do presente trabalho.
A REVOLTA DO QUEBRA-QUILOS E AS UNIDADES DE MEDIDA
No período em que o sistema métrico francês foi implementado no Brasil, na
segunda metade do século XIX, o nordeste brasileiro vivia uma crise econômica sem
precedente, provocada pela queda no preço do açúcar e do algodão no mercado
internacional. Nesse período, esses dois produtos constituíam a base econômica da
região. Essa crise denominada por Henrique Augusto Milet como a “crise da lavoura"
e do comércio trouxe à população da época profunda recessão "que se manifesta na
classe menos abastada pela escassez dos meios de ganhar dinheiro, e nos que se
acham em relação mais direta com a produção, pela dupla crise da lavoura e do
comércio”. (MILET, 1876, p. 41).
Com o fim da guerra da Secessão nos Estados Unidos, a economia
americana recupera rapidamente seu espaço no mercado internacional. O algodão
produzido pelos americanos, reduz o preço e diminui a oferta do algodão brasileiro,
impossibilitando os produtores algodoeiros do sertão nordestino de competirem com
o algodão americano. Concomitantemente, a modernização no fabrico do açúcar,
tanto o de beterraba produzido na Europa, como a cana das Antilhas, Java e Ilhas
Maurício, dobrou o rendimento em relação aos engenhos brasileiros que mantinham
o antigo processo de fabricação do açúcar através de vaporização e cozimento, o
que levou também nosso açúcar a perder preço e aumentar o custo da produção,
impossibilitando-o de disputar o mercado internacional.
Nesse momento, os produtores nordestinos e os trabalhadores do campo de
modo geral esperavam poder contar com ajuda do império para enfrentar a crise,
mas são obrigados a pagar mais tributos e, em alguns casos, além do aumento na
quantidade de impostos, houve aumento também no valor de alguns impostos já
cobrados. Em todos os períodos na história da humanidade, em que há registro de
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revoltas populares, é comum entre as causas que as provocaram ter-se como
justificativa a cobrança de impostos. Assim, a manutenção do luxo imperial em
Roma e o pagamento de tropas mercenárias na antigüidade; o imposto sobre o sal,
papel timbrado e tabaco na França da Idade Média; a Revolução Americana nos
Estados Unidos e a reação à cobrança do quinto do ouro no Brasil pelo Império
Português podem exemplificar como a cobrança de impostos tem provocado
descontentamento e revolta aos mais diversos povos. Como afirma BONNET (1963,
p. 14), “em todos os tempos a questão do imposto retém um importante lugar na
história (...) em muitos momentos da história, a cobrança de impostos foi a causa de
revoltas e revoluções, provocando morte e muita violência por parte dos governos
contra o povo, que explorados, rebelavam-se”.
No mesmo período, o governo imperial implanta, através da lei n º 1.157 de 26
de junho de 1862, o Sistema Métrico Francês, em substituição ao Sistema de pesos
e medidas vigente na época. O texto da Lei n. 1,157 de 26 de junho de 1862
autorizava o governo a tomar as providências necessárias para uma substituição
gradativa do atual sistema de pesos e medidas pelo novo sistema métrico francês.
Para consolidação do novo sistema, foi estabelecido na lei o período de dez anos, a
partir de sua publicação. Passados os dez anos, nenhuma providência havia sido
tomada, mas o governo determinou que a partir de julho de 1873 “as mercadorias
oferecidas no mercado deveriam ser medidas ou pesadas de acordo com o novo
sistema de pesos e medidas” (SOUTO MAIOR, 1978, p. 22). Seria punido com
prisão ou multa quem desobedecesse e fizesse uso do antigo sistema. Essa
determinação provocaria muitas críticas contra o governo. A primeira foi um artigo do
engenheiro Guilherme Schuch de Capanema, publicado no jornal A Reforma, no
início de 1873, no qual diz:
O grande número de indivíduos que se serve hoje de pesos e
medidas é obrigado a mudar de chofre os seus hábitos; a lei davalhes dez anos para se prepararem. Não o podiam fazer porém, sem
que o governo cumprisse o que ela determinava, que era a
expedição de regulamento e a distribuição de padrões. Houve
prorrogação do prazo da lei, porque dentro dele nem mesmo os
regulamentos foram expedidos. Chegará o termo desse novo prazo,
e quem não tiver pesos e medidas de quilogramo, metro, litro,
pagará multa e irá para a cadeia. Devia dizer-se ao consumidor onde
encontrar-se essas medidas e pesos (ibidem, p. 22).
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Naquele período as unidades de medidas lineares utilizadas no Brasil eram “a
vara [correspondendo a 1,10 m.], o côvado [correspondendo a 66 cm] e a jarda
[equivalente a 91,44 cm]; as medidas de volume utilizadas eram a onça
[correspondendo a 28,691 g], as libras e os arretéis, com as quais se quantificavam
a carne-seca, o bacalhau e o açúcar. Os líquidos, no período, mediam-se às
canadas e aos quartilhos, e os grãos e a farinha em selamins, quartas e alqueires”
(ibidem, p. 22).
No mesmo período, o Brasil enfrenta internamente conflitos sociais que
contribuem para o agravamento da instabilidade da população. A questão religiosa,
crise entre o Estado imperial e a igreja católica, foi um fator interno que contribuiu
para o descontentamento da população em relação ao governo, que já contava com
um saldo de medidas não simpáticas à população. A implantação do novo sistema
de pesos e medidas - o Sistema Métrico Francês - foi para o povo do interior
nordestino, expropriado de todas as condições de sobrevivência, o limite de sua
tolerância com a exploração da carga tributária. É nesse contexto de crise
econômica, alta taxação tributária e implementação do novo sistema de medida que
no Nordeste, principalmente no interior da Paraíba, Pernambuco, Alagoas e Rio
Grande do Norte, surge a Revolta dos Quebra-quilos. Uma revolta popular liderada
pelo povo mais pobre do interior e não insuflada por líderes políticos ou religiosos
como algumas autoridades da época afirmavam. Para Augusto MILET (ibidem, p.
30),
a sedição Quebra-quilos não pode ser tida nem como pronunciamento
político, nem como protesto religioso; pois os chefes, tanto de uma
como de outra parcialidade, conhecem de sobra a impossibilidade de
lutar contra o governo e não se querem comprometer sem proveito. A
sedição dos Quebra-quilos tem raízes mais profundas; nasce do malestar das nossas populações do interior; mal-estar de que não se
pode duvidar quem se acha em contato com elas, e prende-se pelos
laços mais evidentes à tremenda crise pela qual está passando a
nossa agricultura.
O "Imposto do Chão", taxa cobrada aos feirantes para permitir a
comercialização dos produtos nas feiras (um tostão por carga), foi mais um motivo
para provocar revolta na população pobre do interior, que já era bastante sacrificada
pela tributação imposta pelo governo diante da crise econômica que o país
enfrentava. Outro fator que deve ser considerado para justificar a reação da
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população naquele momento é a lei do alistamento militar. Essa lei obrigava os
homens a servirem no exército independente de sua vontade, fazendo com que as
famílias ficassem sem braços fortes para a lavoura, pois esses homens, geralmente
chefes de família, eram obrigados a deixá-las à própria sorte para compor as fileiras
do Exército.
O historiador Horácio de ALMEIDA, no livro Brejo de Areia (1958), descarta os
fatores acima relatados como responsáveis pela revolta dos Quebra-quilos,
afirmando que a causa do levante seria a questão religiosa, ou seja, a briga que
houve na década de 1870 entre o Governo Imperial,
a Igreja Católica e a
maçonaria. Esse fator teria levado padres e vigários a insuflar a população contra o
governo e ajudado a organizar a revolta.
Parece difícil concordar com essa compreensão, pois os revoltosos não
atacavam apenas os maçons. Na realidade contra eles aparecem atos isolados sem
uma freqüência efetiva. O que é regular nas ações dos Quebra-quilos é a destruição
dos pesos e medidas, dos documentos dos arquivos públicos e Câmaras municipais.
É provável que nas localidades onde os padres, nos seus sermões, colocavam para
a população, de forma mais enfática, o conflito entre a Igreja e o Estado, esse tenha
sido mais um motivo para provocar a revolta da população contra o Governo, senão,
como explicar que a maioria das cidades que registraram ação dos Quebra-quilos
não teve o apoio do pároco local? O que seria lógico se tratasse de um movimento
liderado pela Igreja. O que a literatura registrou foi uma reação ostensivamente
contrária da maioria dos párocos à revolta dos Quebra-quilos.
Essa revolta não se configurava como uma organização partidária de
oposição ao governo, era uma manifestação espontânea do povo revoltado com a
situação então vivenciada. Suas principais causas, segundo SOUTO MAIOR, são:
“os impostos, a nova lei do recrutamento que denominam de lei do captiveiro, e
também a dos pesos e medidas” (1978, p. 31). Mas os representantes do império
não admitiam uma revolta que não tivesse objetivo político, que não fosse
organizada por forças políticas contrárias ao império. Tudo foi feito para convencer
a população de que os liberais e, mais especificamente a Igreja Católica, através dos
padres jesuítas, estavam por trás dos tumultos provocados pelos Quebra-quilos.
Essa acusação foi utilizada com motivo para expulsar os jesuítas da Província de
Pernambuco.
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É evidente que a população se colocava contra o Governo por vários fatores
que interferiam de forma prejudicial nas suas vidas diante da crise econômica que
vitimava o país naquele momento. A substituição dos instrumentos de pesos e
medidas pode até trazer vantagem para o consumidor, como diz ALMEIDA (1988, p.
138), mas era preciso pagar uma taxa pelo seu uso, fator que encarecia ainda mais
os produtos. Para uma população vítima de um sistema tributário muito elevado e
que enfrentava todo tipo de privação econômica diante da crise nacional, esse é um
motivo justo e suficiente para uma revolta.
A implantação do novo sistema desagradou principalmente os pequenos
proprietários e comerciantes nordestinos, que, além de tudo, teriam mais uma
despesa pois eram obrigados a pagar para usar as medidas nas feiras ou em
qualquer transação comercial, sob pena de pagar multa, como previsto no texto da
lei de implantação do novo sistema de medidas. A revolta dos Quebra-quilos foi
forjada pelos pequenos comerciantes e trabalhadores empobrecidos e expropriados
de suas condições de sobrevivência perante a profunda crise econômica que
assolava o país. Foi um movimento que não contou com representantes das classes
dominantes, ao contrário, seus líderes, forjados no meio popular, permaneceram no
anonimato. Teve a participação de atores sem prestígio social, como as mulheres e
os negros. Elas estiveram presentes em vários momentos da revolta, principalmente
nas cidades que tiveram a Lei do Recrutamento Militar como uma das causas
principais para as ações dos Quebra-quilos. Mas foi no Rio Grande do Norte que as
mulheres assumiram a coordenação de uma ação Quebra-quilos. Na cidade de
Mossoró, o “Motim das Mulheres”, como ficou conhecido, teve como liderança Ana
Floriano, e a ação consistiu em arrancar e rasgar os editais e listas da Lei do
Recrutamento Militar, fixadas nas igrejas.
O movimento dos Quebra-quilos representou também um momento de
esperança para os negros escravos dos engenhos na luta pela conquista da
liberdade. A história registra apenas um momento de efetiva participação deles num
episódio ocorrido nas proximidades de Campina Grande no sítio de nome Timbauba.
Aproximadamente quarenta escravos armados cercaram as casas do sítio e
obrigaram as pessoas que ali estavam a irem para Campina Grande para lhes
entregar o “livro da liberdade”. Lá chegando constataram que este ato foi inútil, pois
não existia o tal “livro da liberdade”, nem as pessoas que haviam feito prisioneiras
poderiam libertá-los. A revolta dos Quebra-quilos, movimento organizado e
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executado pelo povo mais expropriado economicamente, não incluiu entre suas
reivindicações a luta dos escravos pela liberdade, exceto o episódio de Campina
Grande acima relatado. Não se pode relacionar a revolta dos Quebra-quilos com a
revolta dos escravos para a conquista da liberdade apesar de a conjuntura naquele
momento favorecer isso. Mas, como diz SOUTO MAIOR (1978, p. 201), “o Quebraquilos não é uma revolta de escravos e, sim, de homens livres”.
Essa revolta popular não tem sido oficialmente incluída nos livros de História
do Brasil como um movimento social, a exemplo de movimentos como a Balaiada, a
Cabanada, a Guerra de Canudos, entre outros. Entretanto este foi um movimento de
grande relevância para a história de luta e resistência do povo nordestino,
principalmente por sua abrangência e impacto social. Os Quebra-quilos têm sido
apontados como referência a movimentos posteriores, como a guerra de Canudos.
Antonio Conselheiro, líder da Guerra de Canudos, coincidentemente esteve em
Pernambuco em 1874, ano que começou a revolta dos Quebra-quilos. SOUTO
MAIOR (ibidem, p. 204) dirá que “Convivera, portanto, o chefe dos jagunços com os
sertanejos que participaram do Quebra-quilos, e seria razoável admitir-se a
influência destes no seu ideário de rebeldia”.
A ação dos Quebra-quilos consistia em grupos de pessoas ocuparem as
cidades, principalmente nos dias de feira quando concentrava muita gente na cidade
e, com palavras de ordem, quebrar ou inutilizar os novos pesos e medidas, destruir
os documentos das Câmaras Municipais e os arquivos dos cartórios (lugares no
quais ficavam os documentos e leis sobre os impostos), conforme relato de um juiz
de direito ao governador da província da Paraíba, transcrito por SOUTO MAIOR
(ibidem, p. 101) no português da época,
Diversas vilas e povoados da Provincia da Parahíba tem sido victimas de
ataques do povo em massa, em número superior a mil indivíduos, segdo. o
conceito mais veridico, os quais declarão arrogantemente que não mais se
sugeitarão ao pagamento de quaesquer impostos legaes; assim como não
consentirão que continue em execução o systema métrico, levando seo
frenesi ao ponto de agredirem as collectorias, e as casas das Camaras
Municipaes dilacerando seos archivos, escangalhando e incendiando suas
mobilias; e exigindo dos commerciantes em seos estabelecimentos e nas
feiras os pesos e medidas do novo padrão inutilizando tudo, e qdo. por
ventura alguma vez, a força publica se tem apresentado, elles a tem repellido,
sem duvida por ser ella insuficiente...
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O governo reprimiu violentamente a revolta dos Quebra-quilos, enviou um
arsenal
para as províncias da Paraíba e de Pernambuco, equivalente ao que
enviaria para um campo de batalha numa guerra, tratou os presos como prisioneiros
de guerra, puniu culpados e inocentes. Humilhou, violentou e matou sertanejos que
haviam sido apontados como participantes ou até simpatizantes da revolta dos
Quebra-quilos. Um exemplo da violência a qual a polícia submeteu as pessoas que
foram presas como Quebra-quilos foi o “colete de couro” criado pelo capitão
Longuinho na Paraíba para comprimir o tórax dos prisioneiros, como relata SOUTO
MAIOR ( 1978, P.33), "pior e mais violenta do que a atuação dos quebra-quilos foi a
repressão das forças comandadas pelo capitão Longuinho, hoje tristemente famoso
pelos 'colete de couro', tortura que aplicou aos que lhe foram apontados ou
denunciados como quebra-quilos. Amarrados os prisioneiros, eram, em seguida,
metidos em grosseiros coletes de couro cru; ao ser molhado, o couro encolhia-se,
comprimindo o tórax das vitimas, quase asfixiando-as".
O Sistema de Medidas brasileiro, assim como a linguagem e as práticas
culturais da população, apresentam uma diversidade regional muito rica, o que
possibilitou de certa forma uma resistência entre unidades de medidas seculares
utilizadas pelo trabalhador do campo e o sistema de medidas “padrão”. Atualmente,
mesmo prevalecendo as unidades de medidas padrão (metro, quilograma e litro) nas
negociações comerciais, os trabalhadores rurais brasileiros ainda utilizam medidas
populares criadas por eles ou seus antepassados para medir a terra, vender e
comprar sua produção. Isso acontece de forma diferenciada em
brasileira. No Nordeste por exemplo, ao lado do
cada região
hectare, medida oficialmente
utilizada pelo Incra para medir a terra, há também a “vara” e a “tarefa” como medidas
populares de cuja utilização os trabalhadores rurais não abrem mão; ao lado do
quilograma, medida utilizada para pesar os produtos, utilizam outras medidas para
vender o amendoim, o milho e a farinha.
A implantação do atual sistema de medidas no Brasil - Métrico Francês - não
se deu de forma tranqüila. Como referi anteriormente, foi implementado através de
uma lei e obrigava as pessoas a usarem os novos pesos e medidas, mas para isso
era necessário pagar por sua utilização. Houve muitas reações contrárias a essas
medidas, mas a que se destaca pela forma violenta como se deu é a Revolta dos
Quebra -quilos no Nordeste.
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Esse movimento foi noticiado nos jornais da época durante todo o período dos
levantes. Tanto os jornais da imprensa liberal como os da imprensa conservadora
noticiavam as repercussões e ações provocadas pela revolta. Durante muito tempo
após o último levante, fez parte da vida do povo como uma lembrança, através das
trovas populares e dos rótulos de cigarros da época, que utilizaram cenas e
personagens Quebra-quilos e do governo nas ilustrações de suas marcas. O povo
foi reprimido violentamente pela força policial imperial, muitos perderam suas vidas,
outros foram julgados e condenados, mas o Sistema Métrico Francês foi implantado
no Brasil, posteriormente tornando-se o Sistema de Medida padrão no âmbito
internacional, mas o povo brasileiro, especificamente os trabalhadores rurais não
abandonaram suas unidades de medidas, mesmos que hoje a referência seja o
padrão francês.
As unidades de medidas populares também estão presentes no cotidiano dos
trabalhadores rurais na medição de terra e nas transações comerciais. No entanto,
foram banidas do espaço formativo mais importante da sociedade atual – as escolas
– como diz Helena Dória Lucas de Oliveira: “uma repressão simbólica existe hoje
quando é impedida que essas unidades de medidas, disseminadas no meio rural,
figurem nos cadernos das crianças, nos quadros das salas de aula, nos livros
didáticos, nos currículos escolares” (1997, p. 34).
Essas medidas estão excluídas da vida escolar como processo histórico; em
contrapartida, o sistema de medidas padrão faz parte do currículo brasileiro desde o
primeiro ano de vida escolar das crianças, contemplando o que determinava a lei nº
1.157 de 26 de junho de 1862 que implantou o Sistema Métrico Francês, em seu
“artigo 2º, inciso 2º - Durante este prazo, as escolas de instrução primária, tanto
públicas como particulares, compreenderão no ensino da aritmética a explicação do
sistema métrico comparado com o sistema de pesos e medidas atualmente em uso”
(SOUTO MAIOR, 1978, p. 21). A escola foi nesse caso, como na França, utilizada
como instrumento oficial para buscar a consolidação do novo sistema a partir da
educação das crianças.
Interpretar a revolta do Quebra-quilos como um movimento de resistência
política e cultural, poderá contribuir para explicar outras práticas e saberes populares
resistentes ainda hoje no nordeste sergipano e, em especial, para aprofundar uma
reflexão sobre a importância dos saberes populares na construção do currículo
escolar como um espaço de significação e de produção de sentidos.
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